13
1 A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM CLASSES DO 9º ANO: UMA TENTATIVA DE COMPREENDER AS TENSÕES DO PROCESSO ENSINO/APRENDIZAGEM Edna Gomes Roriz Programa de Pós-graduação Doutorado PUCMinas RESUMO A pesquisa que desenvolvemos e cujos resultados encontram-se na nossa dissertação de Mestrado: O Currículo e a Sala de Aula: desafios da escola contemporânea revelados através de aulas de ciências, orientada pela Profa Dra Rita Amélia Teixeira Vilela, baseia-se em pressupostos teóricos do campo do currículo e do campo da teorização social sobre a função da escola no mundo atual. O princípio que nos orientou foi a certeza da necessidade de se entender a sala de aula, espaço de materialização do currículo escolar, para poder desvendar a escola. Tomamos como ponto de partida o projeto educacional da Modernidade, primeiro sob a perspectiva de Comenius, que defendia a existência da escola como o espaço do ensinar e do aprender, desde a infância, sem distinção de classe ou de gênero. Essa premissa da educação foi consolidada no Iluminismo sendo defendida, inegavelmente, até hoje. Partindo dessa premissa, a implantação da instituição escola teve uma função clara e específica que, no entanto, não se concretiza nos nossos dias, pois acaba por excluir a maioria dos que a procuram. Como o currículo é o grande ordenador do que se faz na escola, foi em torno dele, e mais especificamente do currículo de Ciências, que trabalhamos, embora reconheçamos que, em educação, há outros fatores a serem considerados para trazer respostas aos nossos questionamentos. As aulas foram gravadas e analisadas utilizando- se a hermenêutica objetiva de Oevermann. Para a discussão, buscamos apoio no campo do currículo com os estudos de Apple, Moreira, Silva, Goodson e Forquin e na Teoria Crítica da Sociedade, pelos escritos de Adorno, Horkheimer, Oevermann e seus leitores como Pucci, Duarte, Zuin, Leo Maar e Vilela. Palavras chaves: sala de aula, currículo, hermenêutica objetiva, teoria crítica. XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007143

A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

  • Upload
    vuduong

  • View
    215

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

1

A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM CLASSES DO 9º

ANO: UMA TENTATIVA DE COMPREENDER AS TENSÕES DO PROCESSO

ENSINO/APRENDIZAGEM

Edna Gomes Roriz

Programa de Pós-graduação – Doutorado

PUCMinas

RESUMO

A pesquisa que desenvolvemos e cujos resultados encontram-se na nossa dissertação de

Mestrado: O Currículo e a Sala de Aula: desafios da escola contemporânea revelados

através de aulas de ciências, orientada pela Profa Dra Rita Amélia Teixeira Vilela,

baseia-se em pressupostos teóricos do campo do currículo e do campo da teorização

social sobre a função da escola no mundo atual. O princípio que nos orientou foi a

certeza da necessidade de se entender a sala de aula, espaço de materialização do

currículo escolar, para poder desvendar a escola. Tomamos como ponto de partida o

projeto educacional da Modernidade, primeiro sob a perspectiva de Comenius, que

defendia a existência da escola como o espaço do ensinar e do aprender, desde a

infância, sem distinção de classe ou de gênero. Essa premissa da educação foi

consolidada no Iluminismo sendo defendida, inegavelmente, até hoje. Partindo dessa

premissa, a implantação da instituição escola teve uma função clara e específica que, no

entanto, não se concretiza nos nossos dias, pois acaba por excluir a maioria dos que a

procuram. Como o currículo é o grande ordenador do que se faz na escola, foi em torno

dele, e mais especificamente do currículo de Ciências, que trabalhamos, embora

reconheçamos que, em educação, há outros fatores a serem considerados para trazer

respostas aos nossos questionamentos. As aulas foram gravadas e analisadas utilizando-

se a hermenêutica objetiva de Oevermann. Para a discussão, buscamos apoio no campo

do currículo com os estudos de Apple, Moreira, Silva, Goodson e Forquin e na Teoria

Crítica da Sociedade, pelos escritos de Adorno, Horkheimer, Oevermann e seus leitores

como Pucci, Duarte, Zuin, Leo Maar e Vilela.

Palavras chaves: sala de aula, currículo, hermenêutica objetiva, teoria crítica.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007143

Page 2: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

1

Em nossas pesquisas, temos buscado desenvolver discussões sobre a necessidade de

conhecimento real da escola como condição para orientar seu trabalho efetivo na

preparação das novas gerações para a vida social plena no seu tempo e na sociedade.

Para isso, consideramos necessário confrontar a realidade aparente da escola com o que

ela realmente é, colocando como imperativo conhecer e explicar os problemas

existentes na prática pedagógica que é materializada no currículo real. Além de

apoiarmos nossos estudos nas Teorias de Currículo, buscamos, na Teoria Crítica da

Sociedade, o pensamento de Adorno para o qual ―a crítica da sociedade é a crítica do

conhecimento sobre ela e vice-versa‖ (ADORNO, 1995, p.189). Desta forma, a crítica

da escola é a crítica do conhecimento sobre ela, e esse é o desafio para se desvendar o

que efetiva o currículo. Tentamos esclarecer as reais possibilidades de a escola ocupar

um lugar central no processo de educar pessoas, abordando a educação numa

perspectiva muito mais ampla do que apenas ensinar e disciplinar para o que está

estabelecido. Para isso, fundamental tem sido o apoio na teoria pedagógica que explica

e reforça a função social da escola. Portanto, na perspectiva da Teoria da Educação,

partimos do pensamento de Comenius, isto é, situamo-nos a partir do século XVII, sem

qualquer pretensão de uma revisão de cunho cronológico da história das idéias

pedagógicas, mas buscando, ao longo da História da Educação, quais funções foram

atribuídas à escola de acordo com o contexto histórico e social. Procuramos, em

especial, conhecer o pensamento de estudiosos da educação, cuja preocupação maior,

em seus projetos educacionais, foi a de considerar, como função da escola, promover a

concretização da tríade Educação, Ensino (Instrução) e Formação como meta principal

do processo educacional. Buscamos contextualizar, histórica e socialmente, o conceito

de Bildung (Formação), como a dimensão última do processo pedagógico,

especialmente na visão de José Fernandes Weber (2006) e de Ilan Gur-Ze’ev (2006).

Assistimos a aulas de Ciências ministradas aos alunos do 9º ano do Ensino Fundamental

em uma escola da rede estadual de ensino situada em Belo Horizonte, Minas Gerais. As

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007144

Page 3: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

2

aulas foram gravadas e rigorosamente transcritas, criando assim um protocolo a ser

analisado por grupos de professores de áreas diversas, incluindo sempre, pelo menos,

um da área de Ciências. Utilizamo-nos da hermenêutica objetiva, metodologia

desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann, da Universidade de Frankfurt.

Essa metodologia foi construída sob os princípios da dialética negativa de Theodor

Adorno, da sociologia hermenêutica e da sociologia estruturalista, possibilitando

confrontar o aparente com o real e fazendo emergir as estruturas que dão sentido às

práticas sociais. Essa abordagem permite reconstruir o processo pedagógico que se deu

na sala de aula, através da análise cuidadosa de cada parte do protocolo gerado, tanto ao

longo de cada aula (análise horizontal), quanto em um conjunto de várias aulas (análise

vertical). Buscamos, assim, esclarecer os problemas e reconhecer os desafios que

surgem no processo educacional, desvelando a sala de aula, para tentar compreender a

escola. Ao decidirmos analisar a sala de aula, e entendê-la através das relações que

professores e alunos estabelecem não somente entre si, mas entre o currículo prescrito e

o real, optamos por delimitar o estudo da sala de aula no âmbito do processo

pedagógico porque este corresponde à natureza da escola. Assim, nossa opção é pelo

estudo da sala de aula como espaço concreto de realização da educação escolar, uma

vez que nos interessava reconstruir de forma analítica o processo pedagógico

materializado pelo currículo e explicar como a dinâmica de entrelaçamento desses

elementos se apresenta na escola. Esperamos que, com os resultados obtidos, possamos

contribuir não só para uma reflexão sobre os processos educacionais vivenciados no

Ensino Fundamental, mas também para a formação dos docentes. Especialmente,

esperamos chamar a atenção para a necessidade de compreendermos o currículo como

peça fundamental nas relações de mediação nas salas de aulas, possibilitando entender,

tanto a realidade escolar, quanto os papéis da educação, do ensino e da formação na

significação da escola na sociedade de hoje e do futuro.

Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da

Modernidade, procuramos soluções modernas para desafios contemporâneos, pois

sabemos que formar pessoas coloca os educadores em uma realidade imersa em

perplexidades, crises, incertezas, pressões sociais e econômicas, relativismo

moral, dissoluções de crenças e utopias. [...] Talvez a ressonância mais

problemática disso se dê na sala de aula, onde decisões precisam ser tomadas

e ações imediatas e pontuais precisam ser efetivadas visando promover

mudanças qualitativas no desenvolvimento e na aprendizagem dos sujeitos.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007145

Page 4: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

3

[...] Isso envolve necessariamente uma tomada de posição pela

pedagogia. Nenhum investigador e nenhum educador prático poderá, pois,

evadir-se da pedagogia, pois o que fazemos quando intentamos

educar pessoas é efetivar práticas pedagógicas que irão constituir sujeitos e

identidades. Por sua vez, sujeitos e identidades se constituem

enquanto portadores das dimensões física, cognitiva, afetiva, social, ética,

estética, situados em contextos socioculturais, históricos e institucionais.

Buscar saber como esses contextos atuam em processos de ensino e

aprendizagem de modo a formar o desenvolvimento cognitivo, afetivo e

moral dos indivíduos com base em necessidades sociais é uma forte razão

para o cotejamento entre o ―clássico‖ da pedagogia e as novas construções

teóricas lastreadas no pensamento ―pós-moderno‖. (LIBÂNEO, xxxx, p.16).

Conscientes de que uma das ações mais claras do fazer docente é proporcionar ao

indivíduo uma formação geral básica, buscamos na Modernidade, mais exatamente na

Didacta Magna de Comenius, os primeiros passos do ―ensinar tudo a todos‖, como um

importante momento da ação pedagógica. De acordo com Comenius,

nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, uma arte universal de

ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de

ensinar de modo fácil, portanto sem que docentes e discentes se molestem ou

enfadem, mas, ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo

sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à

verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda.

Finalmente, demonstramos essas coisas a priori, partindo da própria natureza

imutável das coisas, como se fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos

perenes, que se unissem depois num único rio para constituir uma arte

universal, a fim de fundar escolas universais. (COMENIUS, 2006, p.13).

Em Comenius, encontramos a defesa de que o aprender e o ensinar só se harmonizariam

se alguns princípios fossem seguidos, isto é, Comenius faz referência à necessidade do

ser humano de receber conhecimento para saber como sobreviver (Ensino), “... a

caridade ordena (como declara Lubin em sua Didática) que nada se esconda ao gênero

humano, mas que se divulgue tudo o que Deus ensinou para a salvação do gênero

humano)” (COMENIUS, 2006, p.18); também mostra a importância de conhecer a

respeito de solidariedade e respeito ao próximo (Educação), “por lei da natureza

humana, quem souber a maneira de prestar socorro a alguém em dificuldade não

deverá deixar de prestá-lo: sobretudo quando (como em nosso caso) não se tratar de

um homem apenas mas de muitos...” (COMENIUS, 2006, p.18). Eis aqui presentes os

dois pilares Ensino ou Instrução e Educação como condição fundamental para se

alcançar a plenitude da Formação.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007146

Page 5: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

4

A palavra educar, isto é, o ato pedagógico, tem sua origem em dois termos latinos:

educare, que significa ―conduzir de um estado a outro‖ no sentido de algo que se dá a

alguém para conduzi-lo numa certa direção, e educere, que traz a idéia de conduzir para

fora, sugerindo a liberação de algo que está latente e dependendo de estimulação para

aflorar. Podemos, então, definir esse ato pedagógico como uma ação exercida entre

sujeitos, visando provocar mudanças extremamente eficazes, de forma a torná-los ativos

da própria ação exercida. Portanto, a educação não pode ser compreendida

independentemente de um contexto histórico-social concreto em que esses sujeitos

estariam inseridos, não podendo ser considerada como uma simples transmissão de

saberes intergeracionais, mas sim como um processo que torna possível o aparecimento

do novo e a ruptura com o velho.

O Vocabulaire Téchnique et Critique de la Philosophie, publicação da Société

Française de Philosophie, na edição de 1997, página 520, define a palavra Instrução

(do latim instruere, ou seja, construir) como a ação de comunicar conhecimentos a

outrem, opondo-se ao significado de Educação, que se aplica ao desenvolvimento de

hábitos de conduta e da moralidade, ou seja, do caráter.

Percorrendo os caminhos da Teoria Pedagógica, partindo da utopia de Comenius de

ensinar tudo a todos; seguindo pelo romantismo de Rousseau, ao propor um

aprendizado guiado pelas leis da natureza; da educação do esclarecimento (Aufklãrung)

com o postulado do uso libertador da razão como uma saída para a formação moral dos

homens, defendidos por Kant; no pensamento de Durkheim, que considerava a escola

como espaço fundamental do aprendizado necessário para viver em sociedade; passando

por Humboldt, para quem a formação deveria ser para todos os indivíduos

independentemente de sua origem social e assim deveria estar em todas as escolas, não

importasse o ramo e grau de ensino; chegando, finalmente, na reivindicação de Adorno

de educação para autonomia, tal como ele concebe o projeto educacional. Todas as

concepções acima demonstram que a plenitude do processo educacional deve-se apoiar

no tripé Educação (condução do outro para a aprendizagem) / Ensino (instrução) /

Formação. Por tudo isso, não apenas consideramos a escola como o lugar de

transmissão do saber, mas da realização do processo pedagógico que culmina com a

formação plena do indivíduo. Essa formação realizar-se-á somente através do processo

de ensino e da educação verificado na sala de aula. Daí vem a nossa opção de trabalhar

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007147

Page 6: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

5

com uma metodologia que permite a reconstrução desse processo na sala de aula, não

através do que ela aparenta ser, mas do que é revelado por ela mesma.

Optamos, então, pela utilização da metodologia denominada Hermenêutica Objetiva,

desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Oevermann, de uso muito recente no Brasil

(VILELA 2008, 2010; NOACK – Nápolis, 2008; WELLER, 2007, 2009). Na

Alemanha, a Hermenêutica Objetiva é um dos mais utilizados métodos de investigação

sociológica que opera com a reconstrução lógica de acontecimentos e relações sociais.

Ela se aplica de modo especial àqueles estudos que se interessam pelo entendimento dos

processos lógicos de interação, o que explica sua apropriação para os estudos dos

intramuros da escola e da sala de aula, procurando desvendar como se dão as relações

estruturais de todos os elementos da aula e das interações da disciplina com o contexto

escolar e social (FLICK, 2009). De acordo com Pflugmacher, pesquisador da

Universidade de Frankfurt,

A aula é sempre, em primeiro lugar, uma forma específica de práxis social que tem

uma lógica pedagógica própria e que, por isso, se diferencia, com suas regras, de

outras práticas. Outra consideração importante, que podemos comprovar

empiricamente, é que essas três normas do processo pedagógico: educação, ensino

e formação, não acontecem de uma forma harmoniosa e nem isolada numa aula,

mas sim demarcam o que é a aula, num processo permanente de tensão.

(PFLUGMACHER, 2010, p.3)

Essa reconstrução empírica é processada segundo a orientação epistemológica da Teoria

Crítica de Adorno, mais especificamente segundo um postulado da dialética negativa.

“Apenas na contradição daquilo que aparenta ser com aquilo que realmente é, é que a coisa

deixa de fato reconhecer o que ela realmente é”. (PFLUGMACHER, 2010).

De acordo com Vilela (2010), uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a utilizar a

metodologia da Hermenêutica Objetiva, se a relação entre Educação, Ensino e Formação,

respectivamente,

Erziehung, Didaktik, Bildung é determinada historicamente dando sentido à

escola, entender essa relação é condição para o conhecimento daquilo que a

escola é e isso só se torna possível no desvendamento das contradições entre

suas aspirações e possibilidades. Dessa forma, ao desvendar de forma crítica

a presença ou a ausência dessa relação na escola de hoje, ou melhor, como

essas dimensões estão dentro da aula num processo contraditório, às vezes

latente, às vezes explícito, chega-se a um conhecimento crítico sobre a escola

e assim torna-se possível alcançar o conhecimento de fato sobre ela, ou, a sua

verdade. A pretensão do grupo de Frankfurt, como foi dito, é formular uma

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007148

Page 7: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

6

teoria sobre a escola de hoje sem negar a sua dimensão histórica e, sobretudo,

referendada empiricamente. (VILELA, 2010b).

É na dimensão desta orientação de pesquisa que nosso trabalho foi inserido, isto é,

buscando analisar e, então, compreender a constante tensão inerente ao processo

pedagógico. Tensão esta que será encontrada em vários momentos, tais como: o

educador deve formar o aprendiz para a autonomia, contemplando necessidades

individuais, mas sem perder de vista as necessidades sociais, tratando cada um como se

fosse único, mas não permitindo seu isolamento do todo, enfatizando a importância da

obediência às normas sociais, mas preparando-o para criticá-las; contextualizando os

saberes no cotidiano dos alunos, mas sem permitir que se instale o ―senso comum‖. A

sala de aula, nessa perspectiva torna-se o locus no qual os sujeitos devem receber o

conhecimento teórico e científico para o desenvolvimento da razão que permitirá o

exercício da autonomia e da liberdade, acolhendo-os nas suas diferenças, tornando

possível a construção de suas identidades. Com a união dessas ações pedagógicas, eles

serão formados para o exercício da cidadania na qual sua liberdade não irá ferir ou

limitar a liberdade dos outros.

Em todas as aulas a que estivemos presentes, o início foi marcado pela falta de cortesia

entre a professora que chega e os alunos que a recebem. Não há um cumprimento ou um

convite para que se estabeleça qualquer elo de cordialidade entre aqueles que vão iniciar

um processo, no qual a interação é essencial para a construção de significado nas ações

que virão a seguir. Essa falta de um sinal afetivo pode ser uma das causas das

dificuldades de relacionamento entre professores e seus alunos, muitas relatadas como

situações de violência na sala de aula. Assim, a dimensão educativa, a condução do

processo por alguém imbuído dessa tarefa, no caso, a professora, não se instala.

Após a chegada da professora, são necessários, invariavelmente, cerca de 10 a 15

minutos a fim de que a sala fique organizada para o início da aula propriamente dita. Há

casos em que 25 minutos transcorreram sem qualquer sinal do motivo que reuniu, em

um mesmo espaço físico, professora e alunos. Além disso, as interrupções são

frequentes e não justificadas. Como não há, por parte da professora, o estabelecimento

de que aquele é o momento de se iniciar uma atividade, fato, como vimos, representado

pela ausência de um cumprimento, ou mesmo, em seguida, de uma exposição do que

deveria ser feito naquele instante, novamente não se instala o processo educativo, para a

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007149

Page 8: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

7

concretização do que, supostamente, deveria ser realizado. Nota-se que os alunos não se

sentem convidados a participarem da aula e, dessa forma, continuam a conversar como

se ainda estivessem no intervalo que antecede a aula.

Pudemos observar que o mais importante para a professora é o cumprimento da tarefa e,

muitas vezes, passou-se o transcurso de mais da metade do tempo de aula sem que nem

soubéssemos, através da leitura da transcrição, de que assunto deveria tratar a aula. Em

uma aula de Ciências, onde os temas tratados são de especial importância para o

adolescente que desperta para a sexualidade, as questões sobre contracepção, prevenção

de doenças sexualmente transmissíveis, gravidez precoce, transtornos de alimentação,

entre outros, são tratadas de forma superficial, ou não são tratadas. Há, muitas vezes, o

discurso de que os alunos já deveriam saber esse ou aquele conteúdo, por ter sido

trabalhado em um ano anterior, ou de que o assunto não será estudado naquele

momento, nem naquele lugar, porque dentro de alguns meses virá um representante de

um laboratório para explicar.

A professora não assume seu papel de despertar o interesse pelo conteúdo e, também, o

de usar da sua competência, esperada pela sua função, para explicitar os elementos do

conhecimento, sempre pedidos pelos alunos. Nas aulas, ela não conduziu qualquer

reflexão para que os alunos superassem sua situação de não conhecimento. Dúvidas

foram ignoradas, várias respostas dadas pela professora foram carregadas de equívocos,

tais como, reforço ao senso comum e até mesmo erros conceituais, como podemos ver

no exemplo abaixo:

FRAGMENTO 1 DA AULA DE CIÊNCIAS em 16/04/2009

A16♂: Ó professora.

Profa: Oi.

A16♂: Professora, o DIU.

A17♂: É, o DIU. Explica prá nós.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007150

Page 9: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

8

(Trata-se de uma aula de Ciências, cujo tema é ―Aparelho reprodutor masculino e

feminino.‖)

Observa-se que a professora está sendo abordada por dois meninos, que parecem

interessados em aprender mais sobre métodos contraceptivos.

Consideramos digno de nota que jovens do sexo masculino estejam interessados

em aprender sobre como prevenir a gravidez, tarefa muitas vezes delegada

apenas às mulheres.

A faixa etária dos alunos — 14 a 16 anos — é condizente com questionamentos

dessa natureza, uma vez que a atividade sexual, em nossa sociedade está cada

vez mais precoce.

Será que os alunos estão questionando a respeito do dispositivo intrauterino, em

função da divergência existente entre os médicos sobre o papel do mesmo?

O professor de Biologia, que faz parte do nosso grupo de análise, esclarece que

há controvérsias a respeito do funcionamento do DIU. Alguns médicos dizem

que ele impede a passagem dos espermatozóides pelas trompas, evitando a

fecundação do óvulo, sendo, por isso, um método contraceptivo. Outra corrente

defende que o DIU não impede a fecundação e sim a nidação, ou seja, impede

que o óvulo fecundado seja fixado na parede uterina; dessa maneira, o DIU

atuaria como abortivo.

Existindo a controvérsia se o DIU seria ou não abortivo, é possível que os alunos

tenham sido motivados a questionar seu uso, levando-se em conta as

divergências que permeiam o tema.

Profa: Porque o DIU é um aparelhinho que vai ser colocado lá dentro do útero e ele

vai provocar uma inflamação no útero. Quando a gente tem qualquer inflamação no

corpo não tem células do sangue que vão lá prá proteger o organismo, fazer a

proteção, que são os leucócitos? Aí caso o embrião queira implantar lá eles vão lá e

vão comer, entre aspas. São os leucócitos que fazem essa fagocitose, não é isso? Então

o embrião não sobrevive. Mata o bichinho.

Por que a professora, ao dirigir-se a uma classe de adolescentes, tratando de uma

temática tão importante, dirige-se aos alunos utilizando o diminutivo?

Seria uma tentativa de esquivar-se de tratar do assunto de uma forma científica?

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007151

Page 10: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

9

Seria uma tentativa de infantilizar a classe e, com isso, minimizar a importância

do tema?

Chama a nossa atenção os graves erros cometidos na explicação acima. O DIU

feito de cobre é considerado como espermatecida, impeditivo da fecundação por

imobilizar ou matar os espermatozóides. O DIU feito de outros materiais,

inclusive plástico, seria um corpo estranho no útero cuja presença provocaria

uma contratilidade uterina excepcional e a irritação de secreções anormais da

decídua (onde deve ocorrer a implantação) que favorecem a expulsão do ovo, até

então livre na cavidade uterina. Por isso ele é considerado, por muitos, como

causador de um micro-abortamento que ocorrerá assintomático.

Observamos, a partir do texto acima, que o conhecimento científico não esteve

presente na sala de aula. Consideramos que a Instrução tem que ser uma das

funções da escola e, nesse caso, ela não se concretizou. O tema, ao ser tratado de

forma vaga e superficial não contribuiu para o aprendizado dos alunos no que

diz respeito à conduta em sociedade. Dessa forma, a aula, nesse momento, não

contribuiu para a Educação dos alunos. Assim sendo, não se realiza a Formação

(Bildung).

Embora, muitas vezes, ouçamos o discurso de que os alunos não se interessam pelo

conhecimento, não querem saber de estudar e que, por mais que os professores se

esforcem para motivarem-nos, eles nada querem, nossas observações têm mostrado uma

realidade muito diferente. Não há dúvidas que, em muitos momentos, as falas dos

alunos registram a vontade dos mesmos de aprenderem. O que observamos é que a

professora, muitas vezes, responde às questões que ela mesma propõe, não permitindo

ao aluno refletir para, ele mesmo responder. Há outras ocasiões em que o aluno quer

saber mais e a professora ridiculariza suas colocações ou responde utilizando o senso

comum. Assim se evidencia que outra dimensão do processo pedagógico, o ensino

propriamente dito, também está ausente. Observemos o exemplo abaixo:

FRAGMENTO 2 DA AULA DE CIÊNCIAS em 16/04/2009

A20♂: Professora?

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007152

Page 11: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

10

Profa: Oi.

A20♂: E as doenças?

Profa: Da mesma maneira que tá aqui. Só uma pincelada. Não aprofundou porque isso

vocês já viram nos anos anteriores.

O conhecimento está sendo negado, naquele momento, e a justificativa é o fato

de que os alunos já teriam debatido esse assunto em anos anteriores.

Desconsidera-se, aqui, a necessária retomada de vários temas em momentos

diversos da vida dos aprendizes.

Destacamos, mais uma vez, a ausência da Instrução e da Educação nessa aula.

A20♂: É, isso daqui eu sei tudo também. Mas eu tô querendo saber...

O aluno insiste que gostaria de saber mais alguma coisa.

Vemos que ele foi interrompido e de forma brusca como constatado no texto que

se segue.

Profa: É, da maneira que tá aqui. Só essa visão mais superficial. É porque lá no sexto

ano vocês viram reprodução nas plantas. As doenças eu não vou cobrar nessa prova

não porque a menina da Schering vem fazer um trabalho com vocês sobre isso. Aí, eu

vou cobrar parte de reprodução humana sem falar das doenças. Porque aí, em agosto,

ela vem pra fazer isso.

A20♂: Nem da AIDS?

O aluno insiste, certamente pelo saber naquele momento e não meses depois.

Ele pede que o conhecimento venha através da professora e não que seja

delegado a um representante de um laboratório.

Se o processo pedagógico deve ser instaurado com a relação ensino e educação como

condição para que o aluno se desenvolva plenamente, alcançando o mais elevado grau

de desenvolvimento pessoal, para conhecer, pensar, refletir e tomar decisões, esse

processo não ocorreu nessas aulas de ciências. Isto é, se os componentes da tríade,

Educação e Ensino não estão presentes, não há como se concretizar a Formação

Integral, Bildung, do educando.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007153

Page 12: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

11

A palavra Bildung se revela como um dos conceitos básicos do Humanismo, destacado

desde a época de Goethe até os nossos dias. A Bildung se fez presente, histórica e

ideologicamente, na transformação da sociedade alemã que se encontrava movida por

um intenso nacionalismo, no momento em que se dava a chegada da industrialização e

do progresso na Alemanha (WEBER, 2006). Na Língua Portuguesa, o significado mais

próximo da expressão Bildung é Formação, formação plena do indivídulo naquilo que

designa sua humanidade e condição de vida em sociedade; portanto, que ele seja pleno

de conhecimento, que aja com plena autonomia e que se enxergue na relação social

sempre tendo o outro como referência. Isso se identifica com o conceito de sujeito

emancipado de Kant (KANT, 2006) e Adorno (ADORNO, 2006).

Adorno deu grande importância à autonomia, conquistada através da Formação do

sujeito, à liberdade de decidir a respeito dos caminhos a serem seguidos, à capacidade

de se autodisciplinar e viver de forma independente. Por isso, sempre que se refere à

educação, Adorno mostra-se contrário a qualquer processo de coisificação, de

modelagem das pessoas, à “mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de

coisa morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma consciência

verdadeira”. (ADORNO, 2006, p.141). Para Adorno, o conceito de educação para a

autonomia é complexo, já que supõe uma orientação, um guiamento como condição de

se chegar à autonomia, sendo essa a condição para a vida emancipada. Com isso, ele

quer nos dizer que, para se chegar à condição de exercer plena autonomia, o indivíduo

precisa viver um processo educativo que lhe possibilite internalizar normas e valores

sociais do seu tempo e seu lugar, mas esse processo, adverte ele, não pode se dar pela

via da imposição, pois essa retira do homem sua liberdade de poder discernir e decidir.

Viabilizar que a autonomia se processe como uma autoeducação, mas centrada na

realidade social, é o grande desafio para a tarefa educativa a ser exercida pela escola.

Referências:

ADORNO, T. W. Educação e emancipação. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos

filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007154

Page 13: A MATERIALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DE CIÊNCIAS EM … · Retomando as Teorias Pedagógicas que embasaram o projeto de educação da Modernidade, procuramos soluções modernas para

12

BODGAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação: uma

introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.

COMENIUS, Jan Amos. Didática magna. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006

FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed & Bookman,

2009.

GUR-ZE’EV,Ilan. A Bildung e a teoria crítica na era da educação pós-moderna.

Tradução de Newton Ramos-de-Oliveira. Linhas críticas, v.12, n.22, jul/dez 2006:5-22.

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 5ª ed. Piracicaba: Editora Unimep. 2006.

LALANDE, André. Vocabulaire techinique et critique de la philosophie. V.1, Paris:

Puf, 2002.

LIBÂNEO, José Carlos. As teorias pedagógicas modernas revisitadas pelo debate

contemporâneo na educação In: LIBÃNEO, José Carlos; SANTOS, Akiko (Orgs.).

Educação na era do conhecimento em rede e transdisciplinaridade. Campinas: Alínea,

2005. p.19-63.

PFLUGMACHER, Torsten. Reconstruões empíricas da aula educativa. Tradução de

Rita Amélia Teixeira Vilela. Título original: Empirische Rekonstruktionen zu

erziehendem Unterricht. Aula proferida em 20/10/2010. Programa de Pós-graduação

em Educação. PUC Minas. Disponível em: www.ich.pucminas.br/pged. Acesso em

30/10/2010.

VILELA, Rita Amelia T. Wilhelm Von Humbold: um estadista e um teórico da

educação. Belo Horizonte. Programa de Pós-graduação em Educação. PUC Minas.

Documento de circulação restrita. 2010.

WEBER, José Fernandes. Bildung e educação. Educação e Realidade. 31(2). Jun/Dez.

2006, p.117-134.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.007155