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A MEDIAÇÃO NOS JULGADOS DE PAZ NO CONTEXTO DA “CRISE DA JUSTIÇA” Marcos Keel Pereira FDUNL N.º7 - 2002

A MEDIAÇÃO NOS JULGADOS DE PAZ NO CONTEXTO DA … · de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou ... medida em que a solução do conflito seja

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A MEDIAÇÃO NOS JULGADOS DE PAZ NO

CONTEXTO DA “CRISE DA JUSTIÇA”

Marcos Keel Pereira FDUNL N.º7 - 2002

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 7/02

A MEDIAÇÃO NOS JULGADOS DE PAZ NO CONTEXTO

DA “CRISE DA JUSTIÇA”

Marcos Keel Pereira

© Marcos Keel Pereira Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova

de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou

primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A

sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação

posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como

Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de

Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro,

[email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Travessa Estevão

Pinto, Campolide 1400-Lisboa.

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A mediação nos julgados de paz no contexto da “crise da justiça”∗

O diagnóstico: a “crise da justiça”

Dizer-se, hoje, que a sociedade portuguesa se confronta com uma grave crise da sua

justiça constitui um lugar-comum quer no sentido mais corrente da expressão, isto é,

trivialidade, banalidade, ideia já muito batida, quer no sentido em que o conceito é utilizado

pela “tópica”, ou seja, enquanto ponto de partida do discurso consensualmente aceite pelos

interlocutores do orador que permite o desenvolvimento do raciocínio. Mas, tratando-se de um

dado incontroverso nos dias de hoje, não representa nem um dado novo, nem tão-pouco

característica ou problema exclusivo da sociedade portuguesa. Por exemplo, já em 19871, o

Professor António Hespanha, reportando-se a um campo de observação mais vasto (dir-se-ia,

o mundo ocidental contemporâneo) identificava a existência de uma “crise da lei”, cujos

sintomas se poderiam sinteticamente reconduzir a uma generalizada desobediência à lei por

parte dos cidadãos, à não aplicação ou aplicação selectiva da lei por parte dos órgãos de poder

e à ineficiência dos instrumentos de aplicação coerciva da lei. Este último sintoma, revelador de

uma crise da justiça ou da ordem, estaria mais directamente relacionado com a morosidade e a

ineficácia dos mecanismos de administração da justiça nos Estados de cunho civilizacional

europeu. Ainda de acordo com o referido Autor, esta “crise da lei” relaciona-se com o

esgotamento do paradigma legalista enquanto tecnologia disciplinar, paradigma esse cujos

corolários mais evidentes são o princípio da legalidade, o primado da lei e, com especial

interesse para o tema que nos ocupa, os ideais de juridificação das relações sociais e de

acesso à justiça (leia-se justiça “oficial” dos tribunais estaduais) e que conduz a uma muito

significativa compressão do leque de tecnologias disciplinares a que se recorreu noutros

períodos históricos. É de salientar o facto de, ao contrário do que se poderia pensar, a

identificação desta crise da justiça ser feita não apenas nos países menos desenvolvidos, mas

também em países muitas vezes apontados como expoentes de eficácia na administração da

justiça. Assim, por exemplo, num editorial da revista americana Judicature2, alerta-se para o

crescimento perigoso da crise de confiança no sistema jurídico americano.

∗ Trabalho realizado no âmbito da disciplina de Profissões Jurídicas e Deontologia, leccionada pelo Prof. Doutor Rui Pinto Duarte, no 2º semestre de 2001/2002. Contacto para críticas, comentários, observações: [email protected]. 1 V. António Manuel Hespanha, “Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma”, em idem, Justiça e litigiosidade: história e prospectiva, Lisboa, Gulbenkian, 1993, pp. 9 ss. 2 Em http://www.ajs.org/hot23.html, citada por Pedro Coutinho Magalhães, “O sistema judicial em Portugal: ineficácia e ilegitimidade”, em António Barreto (org.), Justiça em crise? Crises da justiça, Lisboa, Dom Quixote, 2000, p. 411.

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Em Portugal, são conhecidas as dificuldades. Os profissionais da justiça (juízes,

magistrados do Ministério Público, funcionários de justiça) não têm mãos a medir para a

enorme quantidade de processos que lhes são confiados. Segundo informação recente3, o

número de processos pendentes nos tribunais portugueses quase duplicou entre os anos de

1995 (645.946) e 2000 (1.187.738), sem que tenha havido concomitante aumento do número

de juízes. Os processos arrastam-se durante anos, o número de prescrições atingiu as 40.000

entre 1993 e 19984. Como teve ocasião de notar o então Procurador-Geral da República, o

volume de processos atrasados apenas em virtude da incapacidade de resposta dos serviços

de secretaria evidencia o paradoxo “de que, em Portugal, a administração da justiça vive entre

a deficiência de resposta em sectores de reduzida expressão técnico-jurídica e a falta de

resposta em áreas de elevada complexidade”5. O cenário descrito leva-nos mesmo a

questionar se não estaremos a caminhar para a negação, na prática, de um direito fundamental

(“direito, liberdade, e garantia”) constitucionalmente consagrado, o do acesso à justiça e à

tutela jurisdicional efectiva (art. 20 da Constituição da República Portuguesa).

Uma das causas profundas do estado actual da justiça prende-se com a evolução da

concepção e do modelo de Estado, ao longo do século XX, que levou a que este – entendido

não já como mero Estado de polícia mas como Estado social de direito – assumisse a

realização de uma quantidade de funções e tarefas superior aos recursos disponíveis,

movimento que foi acompanhado pela juridificação pormenorizada de quase todas as vertentes

da vida social. Ora, esta sobrecarga do Estado repercute-se, naturalmente, sobre cada um dos

diversos sectores da actividade estatal, como a justiça. Nesta área, a dita sobrecarga revelou-

se não apenas de ordem quantitativa, mas também de ordem qualitativa, com o aludido

fenómeno de juridificação a contribuir para uma maior complexidade do tipo de conflitualidade

jurídica colocada perante os tribunais, tudo isso causando um decréscimo de eficiência e

eficácia na realização das tarefas quotidianas da justiça.

Uma terapia possível: “resolução alternativa de litígios”

Após o breve diagnóstico, importa indagar quais as respostas que Estado e sociedade

de hoje procuram encontrar, por forma a superar ou, pelo menos, atenuar a crise da justiça.

Um ponto de partida para esta reflexão passa pelo reconhecimento de que, embora a

realização do Estado de direito se dirija ao Estado, não constitui campo de monopólio ou

reserva de intervenção estatal. A ordem jurídica estatal complementa a ordem social geral e a

assunção pelo Estado da responsabilidade pela efectivação do direito há-de ser sempre uma

3 Carlos Blanco de Morais, “O debate da justiça”, no jornal Público, de 2.3.2002, p. 5. 4 Deve notar-se que, segundo informação recentíssima, veiculada pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, J. Aragão Seia, no jornal Público, de 3.4.2002, p. 28, tudo indica que o arrastamento dos processos se concentra nos tribunais de primeira instância, uma vez que os tribunais superiores portugueses são dos mais céleres da Europa. 5 J. N. Cunha Rodrigues, “Um apontamento e algumas sugestões”, em António Barreto (org.), Justiça..., cit., p. 322.

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co-assunção6. De resto, de certo modo, o recurso à justiça estatal exprime sempre um fracasso

da auto-regulação social. Seria irresponsável (para além de irrealista) preconizar a abolição do

sistema de justiça estatal, mas já fará sentido procurar, por um lado, proporcionar condições

que permitam evitar o surgimento de conflitos a resolver pela via judicial, por outro lado,

colocar, tanto quanto possível, num plano subsidiário a intervenção dos tribunais estaduais (ou,

pelo menos, dos modos mais tradicionais e formais de realização da justiça nestes tribunais),

favorecendo os mecanismos de resolução de conflitos que não traduzam uma actuação

essencialmente unilateral e impositiva dos tribunais estaduais. Há toda a vantagem em

estimular a auto-regulação de um conflito jurídico pelas partes envolvidas, porque tal

envolvimento fará, por um lado, com que estas aceitem melhor a solução encontrada e, por

outro lado, com que haja uma optimização do equilíbrio dos interesses em jogo, logo uma

melhor realização da justiça.

Assim, podemos identificar quatro tipos possíveis de regulação de conflitos, que se

distinguem entre si pela maior ou menor intensidade de interferência das instâncias na

prossecução da solução que ponha termo ao conflito7. Temos, pois, começando pelo tipo em

que a intervenção do Estado é mais fraca ou inexistente e acabando naquele em que ela é

mais forte, a auto-regulação social pura e simples, a auto-regulação social enquadrada por

normação estatal, a regulação estatal com incorporação de elementos de auto-regulação e a

regulação estatal imperativa.

Os julgados de paz

A instituição dos julgados de paz em Portugal pode ser vista como uma resposta

concreta à crise da justiça que vem na senda das ideias acima expostas e pode ser

enquadrada entre o segundo e o terceiro tipo de regulação social que se apontou supra: na

medida em que a solução do conflito seja decidida pelo juiz de paz, aproximar-nos-emos mais

de um tipo de regulação estatal com incorporação de elementos de auto-regulação; se o

conflito trazido ao julgado de paz for resolvido na fase de mediação, limitando-se a intervenção

do juiz a um acto de homologação do acordo das partes, a componente “Estado” será menos

intensa, podendo afirmar-se estarmos perante uma forma de auto-regulação social regulada

pelo Estado8.

Os julgados de paz não são, de modo algum, uma novidade absoluta em Portugal. A

Carta Constitucional de 1826, inspirada pelos arts. 128 e 129 da Constituição brasileira de

1824, institucionalizou-os expressamente pela primeira vez. No curto espaço de que dispomos,

6 Sobre esta ideia e sobre o raciocínio que se lhe segue, cfr. Wolfgang Hoffmann-Riem, “Justizdienstleistungen im kooperativen Staat”, em Juristenzeitung (9/1999), pp. 421 ss. 7 V. Hoffmann-Riem, “Justizdienstleistungen...”, cit., p. 423.

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não temos possibilidade de traçar o percurso dos julgados de paz na legislação portuguesa dos

dois últimos séculos9, pelo que “saltaremos” de imediato para 1997. Na revisão constitucional

efectuada nesse ano, foi acrescentada ao (actual) art. 209/2 CRP – que elenca as várias

categorias de tribunais –, por impulso dos partidos comunista e socialista10, a referência aos

julgados de paz, cuja instituição foi, desse modo, tornada possível, ainda que com carácter

facultativo. Esta inserção sistemática evidencia que os julgados de paz, embora dotados de

características próprias que os distinguem dos tribunais judiciais, não deixam de ser

considerados, pela Constituição, como tribunais, logo órgãos de soberania (na acepção do art.

110/1 CRP)11. Em Fevereiro de 2000, o Partido Comunista apresentou um projecto de lei que,

depois de discutido e aprovado na generalidade e da introdução de algumas alterações12, veio

dar origem à Lei 78/2001, de 13 de Julho, que definiu a organização, a competência e o

funcionamento dos julgados de paz.

Passemos, então, à análise do regime jurídico resultante da Lei 78/200113. Na

economia desta breve exposição, não nos debruçaremos sobre todo o regime nela fixado,

antes procuraremos concentrar a nossa atenção naquelas disposições especialmente

relevantes para a compreensão dos aspectos essenciais do instituto da mediação no contexto

dos julgados de paz.

Como primeiro ponto de referência, essencial ao correcto entendimento da razão de

ser e da função dos julgados de paz, tomemos o art. 2º, que define os objectivos prosseguidos

com a sua instituição (nº1) e enuncia os princípios gerais que devem presidir a todos os

procedimentos que neles tenham lugar (nº2). Temos, pois, segundo a lei, dois objectivos

distintos: por um lado, pretende-se que os julgados de paz permitam a “participação cívica”

dos interessados, por outro lado, visa-se incentivar a “justa composição dos litígios por acordo

das partes”. Os julgados de paz foram concebidos como uma via alternativa (face às vias

tradicionais) de realização da justiça, que se caracteriza, sobretudo, por estar mais próxima dos

cidadãos14. Esta proximidade manifesta-se em dois planos. Há uma preocupação com a

proximidade física entre o julgado de paz e as pessoas que a ele recorrem, preocupação essa

espelhada no facto de a área de circunscrição daquele ser limitada ao concelho, freguesia ou

8 A relação entre as funções do serviço de mediação e do juiz de paz será melhor explanada adiante. 9 Para esse panorama histórico, v. M. Marques dos Santos, “Os julgados de paz”, em Estudos em memória do Professor Doutor Luis de Sá, Lisboa, Universidade Aberta, 2000. 10 V. intervenção do Deputado Jorge Lacão no Diário da Assembleia da República, Iª série, nº77, 12.6.2000, p. 3030. A alteração ao (actual) art. 209 tendo em vista a possibilidade de criação dos julgados de paz não suscitou discussão na reunião plenária da Assembleia da República: cfr. D.A..R., Iª série, nº102, 26.7.1997, pp. 3854 ss. 11 Segundo J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, p. 666, embora a Constituição se baseie num modelo clássico de juízes, tribunais e jurisprudência, não há obstáculos incontornáveis à institucionalização de formas alternativas ou complementares de justa composição dos conflitos por acordo das partes e ou com o auxílio de um mediador. 12 De entre as quais a mais relevante nos parece ter sido o abandono da ideia do carácter electivo do cargo de juiz de paz, ideia essa constante do projecto PC e duramente criticada pelo Deputado do CDS-PP Nuno Teixeira de Melo (cfr. D.A.R., Iª série, nº77, 12.6.2000, pp. 3029 ss.). 13 Os artigos referidos sem indicação do diploma em que se inserem reportam-se à Lei 78/2001, de 13 de Julho. 14 Cfr. Projecto de lei 83/VIII (P.C.), 2º parágrafo do preâmbulo, no D.A..R., IIª série, de 2.2.2000. p. 359.

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agrupamento de concelhos ou freguesias contíguas para os quais o julgado de paz é

“exclusivamente criado” (art. 4º/2)15. Mas o conceito de proximidade não se reduz à sua

vertente espacial. Traduz também a ideia de um meio “pessoalizado” de justiça, que vai ao

encontro das preocupações dos envolvidos e que, mais do que o rigor técnico-jurídico dos

procedimentos e das decisões (que, todavia, não deve ser pura e simplesmente posto de lado),

procura evitar e eliminar efectivamente os conflitos (o que representa algo mais do que a sua

simples resolução através de uma decisão judicial imperativa) e alcançar a pacificação e a

tranquilização individual e social16. Ora, tal propósito será terá tanto mais possibilidades de ser

atingido quanto maior o grau de “aceitabilidade”, para as partes, da solução encontrada. E essa

aceitabilidade será tanto maior quanto mais intenso for o envolvimento das partes na

construção da decisão, quanto mais estas tiverem a percepção de que a solução a que se

chegou é, antes do mais, uma decisão sua e não, como porventura acontecerá numa decisão

judicial tradicional, uma decisão verticalmente imposta por um terceiro. No fundo, parece-nos

ser possível afirmar que o primeiro objectivo estabelecido no art. 2º/1 (a “participação cívica”) é

instrumental face à prossecução do segundo, o da auto-composição dos litígios pelas partes.

Antecipando já matéria que versaremos adiante, poderemos dizer que a introdução, nos

julgados de paz, de um serviço de mediação se revela fundamental para o alcançar do referido

objectivo.

É também à luz dos objectivos indicados que devem ser entendidos os princípios

gerais de actuação enumerados no art. 2º/217. São eles os princípios de simplicidade,

adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual. Comecemos por analisar

aqueles que também estão claramente presentes no processo civil comum.

A adequação exprime a mesma ideia que o legislador da reforma do processo civil de

1995/96 quis introduzir no art. 265-A do código de processo civil (CPC). Assim, com essa

reforma, foi substituído o rígido princípio da legalidade das formas processuais por um princípio

de adequação formal, segundo o qual o juiz deve adaptar a tramitação abstractamente prevista

na lei quando a forma legal não se ajustar às especificidades do caso concreto18. Tal princípio

está em plena consonância com o espírito deste tipo de sistema de justiça, uma vez que, como

julgamos transparecer do que dissemos acima, ele dá particular atenção às circunstâncias

concretas de cada caso e às preocupações dos interessados que nelas se encerram.

15 O D.L. 329/2001, de 20.12.01, deu cumprimento ao disposto nos arts. 3º e 64 da Lei 78/2001, ao proceder à criação dos julgados de paz de Lisboa, Oliveira do Bairro, Seixal e Vila Nova de Gaia. O art. 3º daquele D.L. limita a respectiva circunscrição territorial a um certo número de freguesias. 16 Cfr. J.O. Cardona Ferreira, Julgados de paz – organização, competência e funcionamento, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, pp. 6 ss. 17 Segundo Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 19, o art. 2º, constituindo a chave da orientação da conduta de todos os envolvidos no julgado de paz, apresenta no seu nº1 a “estratégia” do sistema e no seu nº2 a respectiva “táctica”. 18 V. J. Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 141.

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Também o princípio da oralidade está consagrado no processo civil, associado ao

princípio da imediação como instrumento da plena realização do princípio da livre apreciação

da prova, e significa essencialmente que os depoimentos de parte, de testemunhas e os

esclarecimentos dos peritos devem ser feitos oralmente perante quem aprecia a matéria de

facto19. Sem prejuízo de esta vertente da oralidade também dever ser respeitada nos julgados

de paz (cfr. art. 57), estamos em crer que o art. 2º/2 pretende colocar a tónica num outro

aspecto. Da leitura conjugada do princípio da oralidade com os restantes princípios enunciados

(maxime, os da simplicidade e da informalidade) resulta que com a consagração daquele se

visa acentuar a possibilidade de serem expressos oralmente acto e tomadas de posição das

partes que, noutras circunstâncias, tenderiam a ser realizados por escrito. Indiquem-se, neste

sentido, os arts. 43/2, 43/5 e 47. A oralidade ajusta-se também melhor do que a escrita a um

processo dominado pela ideia de proximidade.

O último princípio contido no art. 2º/2 que orienta também explicitamente a tramitação

do processo civil é o da economia processual. Das duas vertentes apontadas pela doutrina20

neste princípio interessa-nos sobretudo aquela que se pode designar por economia de actos e

formalidades, i. é., no processo devem apenas ser praticados os actos e formalidades

indispensáveis, sendo que estas devem ser tanto quanto possível simplificadas, na medida em

que, desse modo, se atinja melhor o fim por elas visado (cfr. art. 138 CPC)21.

Falta ainda mencionar os princípios da simplicidade e da informalidade, que estão

estreitamente ligados à concepção deste tipo de justiça como uma justiça de proximidade.

Cremos mesmo que não há diferença substancial entre ambos (sobretudo se tivermos em

conta os restantes princípios enunciados) e que a sua formulação separada se pode explicar

pelo facto de o legislador ter sentido a necessidade de fazer notar com especial insistência a

todos os envolvidos nos procedimentos dos julgados de paz que devem ter sempre presente

que o objectivo último a prosseguir é o da eliminação do conflito e da pacificação individual e

social e que, como tal, deve ser dada prevalência ao conteúdo e à ratio dos actos processuais

sobre a sua forma. A simplicidade, em particular, favorece o envolvimento das partes, já que

lhes permite ter uma melhor compreensão das questões do que num processo que se

caracterize pela complexidade formal.

Podemos dizer ainda que todos os princípios que descrevemos contribuem para a

realização de um outro que, não estando expressamente elencado no art. 2º, pode ver-se nele

implícito. Referimo-nos ao princípio da celeridade processual. Na verdade, qualquer iniciativa

de reforma do sistema não pode perder de vista que a melhor justiça é não só aquela que

19 V. Lebre de Freitas, Introdução..., cit., pp. 155 ss. 20 V. Lebre de Freitas, Introdução..., cit., p. 163. 21 Cfr., entre outros, os arts. 48 e 59/2.

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permite a obtenção de resultados materialmente mais equilibrados, mas também aquela que

permite chegar a esses resultados com menor dispêndio de tempo. Ou, se quisermos, por

outras palavras, a celeridade na sua obtenção é um dos elementos “constitutivos” (inerentes)

da ideia de resultado materialmente mais justo. Aliás, é interessante verificar como, por vezes,

há uma certa tensão entre o princípio da celeridade e alguns dos outros princípios

expressamente formulados, tensão essa que, significativamente, é resolvida dando-se

prioridade à celeridade. Por exemplo, no art. 44, restringe-se a faculdade de cumulação de

pedidos (figura que promove a economia processual na vertente de “economia de processos”)

ao momento da propositura da acção.

Em especial, a mediação nos julgados de paz

Traçados os objectivos e princípios gerais que devem nortear todos os procedimentos

realizados no seio dos julgados de paz, importa agora precisar qual o lugar neles ocupado pela

mediação. Em primeiro lugar, note-se que, como já se antecipou supra22, só quando o litígio

seja sanado na fase de mediação será correcto falar-se em resolução “extrajudicial” do conflito

no julgado de paz. Isto, porque, como também já foi mencionado, os julgados de paz

constituem, nos termos da Constituição, uma categoria própria de tribunais, pelo que, se o

conflito for realmente decidido pelo juiz de paz, estaremos perante uma decisão “judicial” e não

“extrajudicial” do conflito. Ao invés, se este chega ao fim com a obtenção de um acordo pelas

partes na fase de mediação, o juiz limita-se a proferir uma sentença homologatória23, logo não

decide o caso. Assim, julgamos preferível, por mais rigoroso, qualificar a resolução de um

litígio, que tenha lugar num julgado de paz, como “judicial” ou extrajudicial” em função da

natureza da intervenção dos envolvidos, em vez de considerar como “judicial” quer a sentença

imperativamente ditada pelo juiz de paz, quer a solução obtida através de um processo de

mediação, apenas porque ambas se enquadram no âmbito dos julgados de paz.

Feito este esclarecimento prévio, convirá agora proceder à caracterização da

mediação, para o que nos podemos socorrer da interpretação conjunta dos arts. 16, 35 e 53/1.

Antes disso, porém, note-se que teria sido preferível, do ponto de vista da disposição

sistemática da lei (e da simplicidade que, afinal, é princípio fundamental dos julgados de paz!),

reunir num único artigo as características essenciais e os objectivos da mediação, evitando-se

assim a dispersão por três artigos situados em capítulos diferentes. Deste modo se facilitaria a

tarefa do intérprete. Em qualquer caso, decorre dos artigos citados que a mediação configura

uma forma de resolução de litígios que se coloca em alternativa à forma tradicional de uma

solução ditada imperativamente por uma entidade – o juiz – colocada acima das partes.

22 V. p. 4, a propósito da posição dos julgados de paz entre os vários tipos de regulação de conflitos.

9

Através da mediação, pretende-se que as partes em contenda cheguem por si próprias

a uma solução negociada, concertada e amigável (arts. 16/2, 35/1 in fine, 53/1; cfr. também art.

2º/1). Daí a natureza “não contenciosa” (art. 35/1) da mediação, que implica a renúncia, pelas

partes, a uma postura adversarial extrema e o respeito pelos princípios da cooperação e boa fé

na busca de uma solução compromissória. Nessa busca, as partes são auxiliadas por um

terceiro externo ao conflito. Este aspecto é essencial para se compreender a filosofia

subjacente à mediação e às funções do mediador. No seguimento das escolas de mediação

brasileira e argentina, que muito influenciaram o legislador português24, a Lei 78/2001 consagra

um modelo essencialmente não intervencionista, em que, de certo modo, se opta por dar “todo

o poder ao cidadão”. Isto é, o mediador, organizando e dirigindo a mediação (arts. 35/3, 53/2),

procura fazer com que cada uma das partes compreenda bem a posição da contraparte,

acompanha-as ao longo de um processo evolutivo que se pretende seja de aproximação

recíproca, contribui para que se gere confiança mútua entre elas, mas não dita soluções

imperativamente (arts. 35/2, 53/1 e 2). Mais do que isso, nos cursos de formação ministrados

aos mediadores colocados no serviço de mediação dos julgados até agora abertos, foi

sublinhado que mesmo a simples sugestão de uma solução pelo mediador deve ser feita com

especial cautela, para não transmitir à(s) parte(s) a ideia de que o mediador entende que certa

solução é a “melhor” e que, por isso, a(s) parte(s) a “deve(m)” aceitar. Assim, a exigência de

neutralidade do mediador (art. 35/2) é levada ao extremo, entendendo-se que este deve, até

onde lhe for possível, abster-se de opinar, pelo menos explicitamente, sobre a bondade das

soluções, de forma a que sejam as partes, por elas mesmas, a pôr termo ao conflito que as

divide. As partes devem assumir a responsabilidade das suas decisões e controlar o resultado,

pelo que o mediador se deve abster de manifestar o seu próprio juízo, tendo, pois, presente

que a mediação se baseia num princípio que se pode designar por “auto-determinação”25. Esta

característica de neutralidade funciona como um "catalisador" que reaproxima as partes para

que estas encontrem, através da negociação pelos seus próprios esforços, um acordo que

atenda os seus interesses26, podendo suceder que o resultado encontrado seja considerado

bom pelas partes e não pelo mediador. Contudo, aqui há que introduzir um limite importante:

em certos casos extremos, quando entenda que a solução encontrada é manifestamente

injusta, desequilibrada, o mediador tem o poder-dever de “vetar” o acordo das partes, obstando

à sua homologação pelo juiz (art.56/1)27.

23 Cfr., para o processo civil, Lebre de Freitas, Introdução..., cit., p. 35. 24 Recolhemos esta informação junto do Dr. Vasco Clímaco (mediador no recém-instalado julgado de paz de Telheiras), cuja disponibilidade e amabilidade não queremos deixar de salientar e agradecer. 25 Cfr. Marialma Gabriela Berrino, Autodeterminacion de las partes y funcion del mediador, em http://www.jornadas.civil.org/ponencias/c10p08.html. 26 Cfr. E. Zimmermann, O que é um processo de mediação?, em http://www.scritoriovirtual.com.br. 27 Este poder-dever do mediador não consta da Lei 78/2001, mas integra um dos deveres deontológicos constantes do futuro “Código deontológico dos mediadores”, que ainda não é público por se encontrar em fase final de elaboração.

10

Para rematar este aspecto da caracterização da mediação no contexto dos julgados de

paz, fazemos nossas as palavras do Dr. Vasco Clímaco, que nos parecem particularmente

felizes neste contexto, para dizer que, no julgado de paz e, em particular, na mediação, ao

contrário do que sucede num tribunal “tradicional”, não está tanto em causa a análise e o

julgamento de um evento que teve lugar no passado e que é apreciado enquanto tal, mas

antes a identificação das questões que preocupam as partes no presente e o modo como essa

questão se pode projectar no futuro relacionamento entre as partes.

A mediação tem, ainda, nas palavras da lei (art. 35/1), carácter privado, informal,

confidencial e voluntário. Quanto à informalidade, julgamos ser dispensável acrescentar algo

mais ao que já foi dito (a propósito da caracterização da mediação que acabamos de fazer e

quando tratámos dos princípios gerais que regem todos os procedimentos nos julgados de

paz). O carácter privado da mediação significa que o processo concreto no qual ela se insere

só respeita às partes. Para que esta ideia seja efectiva, o mediador deve abster-se de emitir

opiniões sobre os comportamentos passados das partes e todos os envolvidos devem

assegurar que nenhuma informação revelada ao longo da mediação seja transmitida para o

exterior, o que se relaciona estreitamente com os deveres de confidencialidade impostos a

todos os envolvidos. A importância desta característica é realçada pelo facto de o próprio juiz

apenas ter conhecimento do resultado final da mediação (os termos do acordo ou a falta dele)

e não já das várias declarações que sejam proferidas nas sessões de mediação. A ideia de

“privacidade” do processo de mediação contribui também para explicar e reforçar o aspecto

acima realçado do “primado das partes” no achamento da solução para o litígio, a sua primazia

face ao próprio mediador na construção do acordo.

Como dissemos, intimamente ligada ao carácter privado da mediação está a

confidencialidade, característica desenvolvida nos arts. 22 (na vertente de dever de sigilo dos

juízes de paz e dos mediadores) e 52 (para o processo de mediação em geral). Assim, em

momento anterior ao início da mediação, as partes subscrevem um acordo pelo qual se

obrigam, expressamente, a não transmitir a terceiros o conteúdo das declarações emitidas ao

longo da mediação. De jure condendo, não vemos razão para que o próprio mediador e todos

os representantes ou assistentes das partes (cfr. art. 53/5) não sejam também subscritores do

acordo de confidencialidade, já que também eles estão obrigados, nos mesmos termos das

partes, a manter a confidencialidade sobre o conteúdo das sessões de mediação (art. 52/2,

devendo a referência aos “representantes” ser interpretada extensivamente, de modo a abarcar

todas as pessoas que tenham algum envolvimento na mediação, nos termos do art. 53/5).

Aliás, segundo o disposto no art. 52/4, o mediador não pode ser chamado a depor como

testemunha em qualquer causa que oponha os mediados, ainda que não directamente

relacionada com o objecto da mediação. Poder-se-ia interpretar este preceito no sentido de já

ser possível convocar o mediador como testemunha numa causa que nem sequer

11

indirectamente se relacionasse com o objecto da mediação. Contudo, e embora não nos

pareça inteiramente feliz a formulação do art. 52/4 (justamente por poder dar azo a

interpretações equívocas...), estamos em crer que a proibição contida no preceito citado visa

impedir que, em qualquer causa em que as partes surjam como opositores recíprocos, seja

revelada informação que frustre a confiança depositada pelas partes num processo que,

justificadamente, pensaram ser confidencial. Consequentemente, decisivo não é sequer o facto

de o mediador ser chamado a depor, mas sim que ele não possa, através do seu depoimento,

violar os deveres de confidencialidade e de sigilo a que está obrigado enquanto mediador de

um certo caso concreto. Por conseguinte, essa violação tanto se poderia verificar num caso à

partida totalmente estranho ao objecto da mediação, como no próprio julgamento, no mesmo

julgado de paz, de um caso cujo processo de mediação houvesse fracassado. Daí que as

partes não possam vir invocar perante o juiz de paz do mesmo caso quaisquer declarações

proferidas pelo mediador (ou pela contraparte) na mediação (fracassada) que antecedeu o

julgamento. Por seu turno, o mediador está também vinculado ao dever de confidencialidade

no que concerne a tudo quanto lhe for dito pelas partes nas reuniões separadas que

eventualmente tenham lugar (art. 53/3).

Toda esta garantia de confidencialidade é essencial para promover a confiança e a boa

fé negocial entre as partes, que, seguras de que o que disserem não será passado para o

exterior nem usado contra elas noutras circunstâncias, mais facilmente se libertarão de

quaisquer constrangimentos na discussão28. A obrigação de confidencialidade é reforçada,

quanto ao mediador, pelo dever de sigilo que lhe é expressamente imposto pelo art. 22, que

será abordado adiante.

Falta explicitar o carácter voluntário da mediação. Com este adjectivo pretende dizer-se

que as partes não podem, de forma alguma, ser obrigadas a passar pela fase de mediação, o

que, aliás, corresponde à única solução consentânea com o espírito da mediação, acima

descrito. Assim, qualquer uma delas, pode, sem necessidade de o justificar, afastar

liminarmente a possibilidade de mediação (art. 49/1, in fine), passando-se, pois, de imediato à

fase “judicial”. Se não existir esta oposição de princípio, as partes podem, ainda assim, decidir,

após a fase de pré-mediação (melhor explicada infra), que preferem passar à audiência de

julgamento sem prévia fase de mediação (art. 50/3). E, mesmo que se decidam pela mediação,

qualquer uma delas pode, sem que daí lhe advenham quaisquer consequências negativas para

a sua posição no caso, desistir da mediação, em qualquer altura (art. 55/1e3). Julgamos

constituir um corolário do carácter absolutamente voluntário da mediação (associado à

característica da privacidade) a faculdade, conferida às partes, de escolha do mediador,

consagrada no art. 51/2. Para que esta faculdade possa ser exercida, em cada julgado de paz

28 Neste sentido, Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 71.

12

é afixada uma lista da qual constam os nomes das pessoas susceptíveis de serem escolhidas

pelas partes como mediador (art. 33).

Aqui chegados, julgamos ser importante procurar distinguir da mediação outras formas

de “resolução alternativa29 de litígios”, como a arbitragem e a conciliação.

Na arbitragem, as partes, em lugar de solicitarem a resolução do conflito pela

autoridade judicial estatal, levam o seu conflito ante árbitros, para que estes, exercendo

funções análogas às da autoridade judicial, profiram uma decisão que será vinculativa para as

partes e exequível nos tribunais judiciais, em virtude de aquelas se terem prévia e

voluntariamente submetido a esta forma de resolução de litígios30. Pode dizer-se que a

arbitragem se caracteriza por dois aspectos essenciais: são as partes na controvérsia que

decidem livremente as pessoas (árbitros) que a devem decidir; são ainda as mesmas partes

que conferem aos árbitros o poder e autoridade de proferir a decisão. A organização judiciária

estatal impõe a sua jurisdição enquanto manifestação de soberania que é exercida mesmo

contra quem lhe seja “estranho”, ao passo que a arbitragem só pode aplicar-se a quem a tenha

querido31. A arbitragem encontra-se regulada, no ordenamento jurídico português, pela Lei

31/86, de 29 de Agosto (“Lei da Arbitragem Voluntária”). Como resulta do exposto, para além

de outras, a principal diferença entre a arbitragem e a mediação prende-se com o tipo de

intervenção do terceiro chamado a colaborar na resolução do conflito. Se, na mediação, o

terceiro se limita a orientar as partes (e, ainda assim, dentro dos limites acima assinalados), na

arbitragem é o terceiro que profere a decisão, vinculativa para as partes, que põe formalmente

termo ao litígio.

Apesar de bem diferentes, a arbitragem e a mediação não se têm mostrado

absolutamente incompatíveis, tendo-se mesmo desenvolvido dois métodos que procuram

conjugar as virtualidades patenteadas por cada um dos sistemas. O primeiro – denominado

“Mediarb” – não é particularmente inovador. Trata-se, no fundo, de uma mera justaposição

sequencial dos dois métodos: em primeiro lugar, ensaia-se uma resolução do conflito

recorrendo à mediação; se esta tentativa se revelar infrutífera, passa-se à arbitragem, sendo

que as partes, quando se inicia a mediação, já sabem que o fracasso desta implicará o recurso

à arbitragem. O segundo método combinado, que tem vindo a ser posto em prática, por

exemplo, na Argentina, já se mostra mais original. Aqui, começa por se desenvolver um

processo de arbitragem, que culmina numa decisão do caso pelo árbitro. Contudo, em vez de

dar conhecimento à partes do conteúdo dessa decisão, o árbitro coloca-a num envelope, que

entrega às partes, deixando-as, em seguida, a sós. Então, as partes são postas perante a

29 “Alternativa” em relação aos processos que culminam numa decisão de um juiz munido do imperium estatal. 30 Cfr. Luis Díez-Picazo/Antonio Gullón, Sistema de Derecho Civil, II, 7.ª ed., Madrid, Tecnos, 1975, p. 501. 31 V. Sergio La China, L’arbitrato – il sistema e l’esperienza, Milão, Giuffré, 1999, p. 3.

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seguinte alternativa: ou abrem o envelope, caso em que a decisão do árbitro será vinculativa,

ou preferem tentar a mediação. Se optarem por este segundo termo da alternativa, o árbitro

“transfigura-se” em mediador e, na hipótese de se chegar a um acordo, a decisão do árbitro

não chega a ser conhecida pelas partes. Fracassando a mediação, recorre-se à decisão

contida no envelope, que terá carácter vinculativo32. Embora reconhecendo tratar-se de um

método interessante, não podemos deixar de nos perguntar até que ponto alguém que,

enquanto árbitro, já analisou o litígio e o resolveu num determinado sentido poderá, após uma

súbita “conversão” em mediador, desempenhar, com neutralidade e imparcialidade, as suas

novas funções.

Menos clara é a contraposição entre mediação e conciliação. O Prof. C. Ferreira de

Almeida, no seu ensino oral, embora frise tratar-se de terminologia flutuante, difícil de definir

com rigor, identifica a marca distintiva no facto de, na conciliação, o terceiro não ter a

possibilidade de sugerir soluções, ao contrário do que sucederia na mediação, em que o

terceiro seria mais interventor. O Instituto do Consumidor versou estas matérias, numa

publicação de 1997, mas não é clara a sua posição quanto à distinção que aqui nos ocupa33.

Dos vários documentos e actos normativos emitidos por órgãos da União Europeia que

consultámos sobre a matéria em análise, apenas pudemos concluir que, numa ocasião, se

utiliza o conceito de conciliação com um elevado grau de extensão (logo, de mais reduzida

compreensão) para significar o conjunto dos “procedimentos extrajudiciais” de resolução de

litígios (abarcando, pois, a mediação)34, enquanto que, num outro documento, se qualificam a

mediação e a conciliação (não as distinguindo) como “procedimentos complementares ou

prévios face aos judiciais” e a arbitragem como “mecanismo alternativo” em relação aos meios

judiciais35. De facto, é difícil diferenciar as figuras em causa. O critério distintivo proposto pelo

Prof. Ferreira de Almeida parece não encontrar eco no modelo de mediador mais “discreto”, de

intervenção mínima, recebido pelo regime jurídico dos julgados de paz. Contudo, podemos

encontrar, na legislação portuguesa, pelo menos dois exemplos em que a ideia do cariz

fortemente interventor do mediador, expressa pelo Prof. Ferreira de Almeida, é acolhida.

Referimo-nos, por um lado, ao art. 34 (sobretudo ao seu nº4) do Código dos Valores

Mobiliários, o qual contempla, expressamente, a hipótese de o mediador propor a solução que

lhe pareça mais adequada, hipótese essa, aliás, colocada em alternativa à tentativa de

conciliação. Por outro lado, temos o Decreto-Lei 519-C1/79, de 29-12, que disciplina os

instrumentos de regulamentação colectiva das relações laborais. De qualquer forma, neste

32 V., sobre os dois métodos combinados descritos, Susana Figueiredo Bandeira, “A mediação como meio privilegiado de resolução de litígios”, em AA.VV., Julgados de paz e mediação – um novo conceito de justiça, Lisboa, AAFDL, 2002, pp. 114 ss. 33 Cfr. Arbitragem de conflitos de consumo, Lisboa, 1997, p. 13. 34 Resolução do Parlamento Europeu, de 14.11.96, no JO C362, de 2.12.96, p. 275. 35 “Parecer do Comité das Regiões sobre a Comunicação da Comissão sobre a resolução extrajudicial de conflitos de consumo e a recomendação da Comissão relativa aos princípios aplicáveis aos organismos responsáveis pela resolução extrajudicial de litígios de consumo”, no JO C198, de 14.7.99, p. 56, nº22. Cfr., ainda, Recomendação 98/257/CE da Comissão; Resolução do Conselho de 25.5.2000.

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Decreto-Lei, a possibilidade de formulação de uma proposta de solução pelo conciliador,

embora mais fraca, não deixa de existir36. Ainda assim, e concluindo, a doutrina portuguesa

mais recente que se pronunciou directamente sobre esta matéria vai claramente no sentido,

contrário ao exposto por último, de considerar a conciliação como um meio de resolução de

conflitos em que um terceiro desenvolve esforços e formula sugestões e propostas tendo em

vista atingir um consenso entre as partes. Para esta perspectiva, a nota distintiva da

conciliação face à mediação assenta, precisamente, no facto de o conciliador ter um papel

mais activo e participativo que o mediador, na medida em que lhe compete apontar vias e

recomendar, a final, uma solução para o conflito, que, todavia, precisará sempre da anuência

das partes para se tornar num acordo conciliatório37.

Voltemos, agora, a nossa atenção para os aspectos especificamente relacionados com

a figura do mediador ainda não abordados supra. Repetindo parcialmente o que ficou dito

quando caracterizámos a mediação, podemos apontar como princípios ou critérios de actuação

do mediador a independência (arts. 30/1 e 35/2 – na organização e direcção da mediação, o

mediador não se encontra sujeito às ordens, instruções ou directivas de qualquer entidade)38, a

neutralidade (art.35/2 – característica já suficientemente exposta); a imparcialidade (arts. 30/2 e

35/2), a credibilidade, a competência, a confidencialidade e a diligência (art. 30/2)39. Deixemos

apenas algumas breves notas para esclarecer alguns pontos em torno destes princípios ou

critérios.

No que respeita à imparcialidade, constitui ela uma exigência idêntica à que é feita em

relação aos juízes (em geral), visando, pois, assegurar que o mediador não esteja, de forma

alguma, comprometido com o interesse de qualquer das partes. Para garantir a realização

efectiva deste princípio, a lei, no art. 21, sujeitou os mediadores (e os juízes de paz) ao mesmo

regime de impedimentos e suspeições estabelecido no CPC para os juízes dos tribunais

comuns40 e proibiu ainda os mediadores de exercerem a advocacia no julgado de paz onde

prestam serviço (art. 30/3).

No que concerne à confidencialidade, já se disse o essencial, faltando apenas

mencionar mais claramente o art. 22, que estabelece o dever de sigilo dos mediadores (e dos

juízes de paz). Este traduz-se na obrigação (negativa) de não proferir declarações ou realizar

36 Este Decreto-Lei dedica o seu capítulo VIII aos “conflitos colectivos de trabalho”, destacando como formas (entre outras) de solução dos ditos conflitos a “conciliação” (arts. 30 ss.) e a “mediação” (art. 33). Enquanto, na “mediação”, a formulação de uma proposta pelo mediador é obrigatória e constitui o centro em torno do qual gira este modo de resolução do diferendo, na “conciliação”, a realização de uma proposta pelos “serviços de conciliação” é meramente eventual, não deixando, todavia, de poder ser feita. 37 É a posição defendida por Susana F. Bandeira, “A mediação...”, cit., p. 108. 38 Para este estatuto de independência, contribuirá também o facto de os mediadores serem contratados em regime de prestação de serviços e não de contrato de trabalho, ainda que esta não seja a razão principal para a opção do legislador por este tipo de contrato (art. 34). 39 É de realçar que a exclusividade não constitui requisito ou condição do exercício da actividade de mediador. Ou seja, ressalvada a restrição do art. 30/3, os mediadores podem exercer, simultaneamente, outra actividade profissional. V. Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 48.

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comentários sobre os processos que lhes são distribuídos. Relacionando o dever de sigilo com

o dever de confidencialidade, poderemos dizer que este é mais amplo, constituindo aquele uma

sua vertente específica. Enquanto o dever de confidencialidade é susceptível de abranger,

temporalmente, quer o período durante o qual a mediação se prolonga, quer o período

subsequente ao termo da mediação, o dever de sigilo reporta-se, mais restritamente, àquele

primeiro período. O art. 22/2 exclui do âmbito do dever de sigilo as informações que visem a

realização de direitos ou interesses legítimos (dá como exemplo o acesso à informação) e que

não devam considerar-se cobertas pelo segredo de justiça ou pelo sigilo profissional. Esta

última referência causa alguma perplexidade, uma vez que, sendo o mediador um “profissional”

(art. 30/1) e constituindo o dever de sigilo um dever da sua profissão, parece estar a retirar-se

todo o sentido útil à excepção. De facto, nesta parte, é como se o art. 22/2 dissesse algo

parecido com “não são abrangidas pelo dever de sigilo as informações que não constituam

matéria coberta pelo dever de sigilo”! Em qualquer caso, a excepção consagrada no art. 22/2

há-de ser sempre interpretada cautelosamente, designadamente de modo a não pôr em causa

o direito das partes à confidencialidade, que, como se disse, consubstancia um correlativo

dever de confidencialidade mais amplo do que o dever de sigilo.

Quanto aos princípios da credibilidade, da competência e da diligência, estamos em

crer não ser necessário esclarecer o seu conteúdo; temos mesmo alguma dificuldade em

reconhecer a utilidade da sua afirmação expressa, sobretudo porque se trata de princípios de

procedimento comuns ao exercício de qualquer tipo de actividade, mormente daquelas que

envolvam directamente relações humanas. De qualquer modo, sempre diremos que os três

princípios referidos se reflectem em alguns dos requisitos legais para o exercício das funções

de mediador enunciados no art. 31. Assim, a competência pretende ser assegurada pelas

exigências de posse de uma licenciatura “adequada”41 (al. c)), de um curso específico de

mediação reconhecido pelo Ministério da Justiça (al. d)) e do domínio da língua portuguesa (al.

f))42. Por sua vez, a preocupação com a credibilidade está espelhada no facto de se requerer

que o mediador esteja no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos (al.b)) e de considerar

incompatível com o exercício das suas funções a condenação ou a pronúncia por crime doloso

40 Ver arts. 122-124 (impedimentos) e 126-131 (suspeições) CPC. Sobre as características da independência e da imparcialidade, cfr. Lebre de Freitas, Introdução..., cit., pp. 63 ss. 41A actividade de mediador não é, pois, reduto exclusivo dos juristas! A utilização, pela lei, de um conceito vago e indeterminado nesta matéria não deixará certamente de colocar dificuldades no momento da sua concretização, constituindo mesmo, em nossa opinião, potencial fonte de litígios futuros. Por exemplo, numa primeira apreciação, dir-se-ia ser mais “adequada” à realização das funções de mediador uma licenciatura em gestão de recursos humanos ou em psicologia do que uma licenciatura em engenharia de minas. Contudo, bem vistas as coisas, não interessará mais o perfil pessoal de cada candidato, a sua experiência profissional passada, a sua capacidade de lidar com as pessoas, do que a exibição de uma licenciatura supostamente “adequada” às funções de mediador? Parece-nos mesmo que seria, de todo, dispensável a exigência de uma licenciatura como forma de assegurar o bom desempenho das funções em questão. Muito mais importante é a existência de formação específica. Mas, uma vez que se entendeu estabelecer aquele requisito, teria sido preferível delimitar rigidamente as licenciaturas consideradas adequadas, ou, pelo contrário, exigir o grau de licenciatura sem acrescentar qualquer qualificativo. 42 Não é necessário ter a nacionalidade portuguesa para se ser mediador. Segundo Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 49, a exigência do domínio da língua portuguesa foi também pensada como “medida apelativa dos cidadãos dos Estados da CPLP.

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(arts. 31 e) e 33/5). Esta última opção do legislador (referente à mera pronúncia) pode suscitar

dúvidas quanto à sua constitucionalidade43.

Aproveitamos para, sucintamente, esboçar um quadro comparativo entre os requisitos

estabelecidos para o exercício das funções de mediador e aqueles instituídos para o

desempenho do cargo de juiz de paz. O legislador entende que o juiz de paz deve ter maior

maturidade e experiência de vida, uma vez que o limite mínimo de idade é superior ao do

mediador (cfr. arts. 23 c) e 31 a)). Como se viu (notas 39 e 40), para se ser mediador não é

necessário ter nacionalidade portuguesa, nem ser licenciado em direito. Ao invés, para o juiz

de paz estes dois requisitos já estão presentes (art. 23 a) e b)), o que se explica,

respectivamente, pela já aludida qualidade de órgãos de soberania dos julgados de paz e pelo

facto de o juiz de paz (ao contrário do mediador) ser um órgão aplicador do direito. Este está

sujeito a um regime muito rígido de incompatibilidades, que se traduz numa quase-

exclusividade das funções de juiz de paz (arts.23 f) e 27/1e2), ao passo que ao mediador só

está vedado o exercício da advocacia no julgado onde presta serviço (art. 30/3). A al. g) do art.

31, que não tem paralelo para os juízes, afirma uma preferência por candidatos a mediador

com residência na área territorial abrangida pelo julgado de paz, o que constitui mais uma

manifestação da ideia de proximidade que subjaz a todo o regime contido na Lei 78/2001.

Como já tivemos ensejo de mencionar (nota 36), o mediador é contratado em regime

de prestação de serviços, por períodos anuais renováveis (art. 34). Deste modo, o mediador é

um “terceiro” colaborador do julgado de paz que, formalmente, não constitui sua parte

integrante44. O legislador considerou que a natureza das funções exercidas pelo juiz aconselha

a uma maior estabilidade, pelo que estipulou um período de nomeação de três anos, nada

dizendo acerca da eventual renomeação45. O carácter temporário do vínculo, bem como a

possibilidade de renovação, constitui um estímulo à eficácia e à “produtividade” dos

mediadores (e dos juízes). Este mesmo objectivo pode ver-se prosseguido no art. 36, no qual

se estipula que o mediador é remunerado por cada processo de mediação e não pela

43 Pode levantar-se a questão de saber se a impossibilidade de exercer as funções de mediador e a exclusão da lista dos mediadores em virtude de um simples despacho de pronúncia, ou seja, em momento anterior ao trânsito em julgado da sentença, não chocará com o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 29/5 CRP. Em contrário, pode argumentar-se com a importância fundamental do factor “confiança” no processo de mediação e da credibilidade e idoneidade pessoais do mediador justificaria uma excepção a este principio, que, então, cederia perante a máxima segundo a qual “à mulher de César não basta ser...”. Acresce que o princípio da presunção de inocência, enquanto estatuto jurídico-político do arguido, não deve ser entendido de forma estática; a sua densidade e a sua intensidade variam ao longo do processo penal. O despacho de pronúncia, embora não constitua caso julgado, consubstancia já uma decisão judicial que confirma a existência de indícios suficientes da culpabilidade (lato sensu) do arguido, donde decorre uma certa compressão da presunção de inocência do arguido, que era plena no início do processo (cfr. arts 283/1e2, 286/1 e 308/1 do Código de Processo Penal [CPP]). Por isso, parece-nos que, afinal, a disposição é compatível com a Constituição. Resta saber se não serão concebíveis situações cronologicamente anteriores ao despacho de pronúncia em que a questão da (perda de) credibilidade do mediador se porá de forma ainda mais aguda. Pense-se, p. ex., na decretação de certas medidas de coacção, que exigem a formulação de um juízo de “fortes indícios” da prática do crime (cfr. arts 200 ss. CPP). 44 V. Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 51. 45 Segundo Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 44, a omissão legal não quererá significar que não seja possível a renomeação. Pode apontar-se a possibilidade de renovação dos contratos dos mediadores

17

prestação da sua actividade em si (cfr., também, arts. 33/4 e 40), o que, aliás, se revela

consentâneo com a configuração do contrato de prestação de serviços, em que o prestador se

compromete a apresentar um resultado, mais do que a realizar uma actividade. A escolha dos

mediadores faz-se mediante concurso curricular, cujo regulamento é aprovado por portaria do

Ministério da Justiça46 (art.32; cfr. art 24, para os juízes).

Terminamos este nosso olhar sobre a mediação no âmbito dos julgados de paz, com a

descrição do caminho percorrido pelas partes desde o momento em que a controvérsia é

trazida ao julgado até à homologação do acordo (eventualmente conseguido) entre as partes.

Uma vez apresentado pelo demandante o requerimento inicial (pedido47), e desde que

nenhuma das partes tenha usado da faculdade de rejeitar à partida a mediação, tem lugar a

designada fase de “pré-mediação” (art. 49/1). Neste ponto, há que dar nota da situação

prevista no art. 16/3, que, quando esteja em causa, implica um ajustamento na marcha normal

do processo. De facto, aí se refere a possibilidade de o serviço de mediação actuar em casos

situados fora da competência do julgado de paz, desde que não estejam em causa direitos

indisponíveis (cfr. art. 299 CPC)48. Se as partes manifestarem a vontade de recorrer à

mediação, impõe-se introduzir uma ressalva no art. 7º, de modo a que o processo não seja

remetido para o tribunal competente, antes prossiga para os serviços de mediação.

A pré-mediação serve dois objectivos (art. 50). Em primeiro lugar, permite explicar às

partes o conteúdo e o propósito da mediação. Em segundo lugar, constitui momento oportuno

para avaliar a predisposição das partes para a obtenção de um acordo. Os princípios da

informalidade e da absoluta economia processual justificam que a pré-mediação e a própria

mediação, se for caso disso, possam ter início imediatamente após a formulação do

requerimento inicial (art. 49/2). A mesma ideia explica que, uma vez afirmada positivamente a

vontade das partes acerca da mediação, seja de imediato marcada a primeira sessão, que

pode mesmo realizar-se logo (arts. 50/2 e 51/1). Se as partes rejeitarem a mediação, o

processo é remetido para o juiz de paz (art. 50/3). A pré-mediação envolve um “desgaste”

46 V. a Portaria 1005/2001, de 18 de Agosto. 47 A Lei 78/2001 utiliza como sinónimos a expressão “requerimento inicial” e a palavra “pedido” (cfr. arts. 43, 44, 45). 48 Cardona Ferreira, Julgados..., cit., p. 36, sustenta, com boas razões, uma interpretação restritiva do preceito segundo a qual nunca poderia ser ultrapassada a competência em razão do objecto (art. 6º), nem em razão do território (art.10º). Restam, portanto, para o âmbito de aplicação do art. 16/3 a competência em razão da matéria e a competência em razão do valor. Cardona Ferreira defende ainda que um acordo alcançado na sequência de um processo de mediação iniciado ao abrigo do art. 16/3 não pode ser homologado, por se estar fora da competência do julgado de paz. Uma tal interpretação, embora lógica (se o juiz de paz não é competente para julgar o caso, também não pode homologar o acordo, conferindo-lhe valor de sentença), retira grande parte do efeito útil ao art. 16/3. Um acordo não homologado não tem a força de uma sentença judicial e não vale como título executivo (excepto nos casos em que preencha os requisitos do art. 46 c) do CPC). Na sentença homologatória, o juiz limita-se a verificar a capacidade e a legitmidade das partes e a disponibilidade do objecto. Mais, com a homologação, o juiz profere uma sentença em conformidade com a vontade das partes, não por aplicação do direito objectivo aos factos provados (Lebre de Freitas, Introdução..., cit., p. 35). Assim, dada esta natureza “fraca” da sentença homologatória, tenderíamos a interpretar o art. 16/3 no sentido de este conferir competência ao juiz de paz para a prática de um só acto – a homologação –, procurando, dessa maneira, conferir a maior utilidade possível ao preceito. No entanto, o art. 8º d) do Decreto-Lei 329/2001, de 20 de Dezembro (que criou os quatro julgados de paz actualmente em funcionamento) vem expressamente aderir à posição assumida pelo Juiz Conselheiro Cardona Ferreira, não deixando espaço para outra interpretação.

18

bastante acentuado dos mediadores na sua relação com as partes, na medida em que é nesse

momento que têm lugar os primeiros contactos formais, as partes são instruídas acerca das

regras da mediação, o que se pode vir a revelar uma etapa algo fastidioso ou até “enervante”

para as partes. Daí que o mediador que realiza esta fase de pré-mediação nunca seja o

mesmo que, subsequentemente, dirige a fase de mediação propriamente dita (art. 50/4). Já se

disse que cabe às partes escolher, por acordo, o mediador; na falta de acordo, este é

designado pela secretaria (art. 51/2).

A fase da mediação stricto sensu decorrerá, em regra, com a presença simultânea de

ambos os litigantes, mas o mediador pode entender ser profícuo realizar, com autorização das

partes, reuniões separadas (art. 53/3). As partes podem recorrer à assistência de quem bem

entendam (art. 53/5) e, como já tivemos ocasião de referir, podem, a qualquer altura desistir da

mediação, caso em que o processo seguirá para julgamento (art. 55) A falta de comparência

injustificada a uma sessão de mediação ou de pré-mediação é tratada como se de uma

desistência se tratasse, visto que não acarreta qualquer outra consequência a não ser a

remessa do processo para julgamento (art. 54/1). Verificando-se uma falta justificada, será

marcada nova sessão para os cinco dias seguintes, sem que haja possibilidade de novo

adiamento, ainda que justificado (art. 54/2e3). As exigências de máxima celeridade e economia

processual assim o impõem.

Durante a mediação, cabe ao mediador ponderar a necessidade da sua continuação, a

pertinência da marcação de novas sessões, devendo ter sempre presente que a duração da

mediação deverá ser adequada à natureza e à complexidade do conflito (art. 53/6). Em caso de

acordo total, este é reduzido a escrito e assinado, quer pelas partes, quer pelo mediador, ao

que se segue a homologação pelo juiz (art. 56/1). Se apenas houver acordo parcial, o processo

seguirá para julgamento quanto à matéria relativamente à qual não foi possível resolver o

litígio, se não houver de todo acordo, todo o processo vai para julgamento. Em qualquer destes

dois últimos casos, o mediador dá conhecimento da situação ao juiz de paz, que marca a

audiência de julgamento (art. 56/2). Infelizmente, vêmo-nos forçados a terminar com uma

crítica ao legislador quanto à ordenação sistemática interna ao capítulo VI (“Do processo”) da

Lei 78/2001. Este capítulo foi dividido em três secções, a saber, “Disposições gerais”, “Do

requerimento inicial e contestação” e “Da pré-mediação e da mediação”. Ora, ao contrário do

que se nos afiguraria correcto, o legislador juntou nesta secção não apenas as disposições

concernentes ao processo de mediação – o que está obviamente certo –, mas também todos

os preceitos relativos à fase de julgamento perante o juiz de paz. Julgamos não fazer qualquer

sentido (pensamos mesmo tratar-se de um lapso inadvertido do legislador) incluir numa secção

intitulada “Da pré-mediação e da mediação” artigos que já nada têm a ver com essas duas

fases. Acresce que a inserção sistemática do art. 63, de cuja redacção parece poder inferir-se

que a aplicação subsidiária do CPC se projecta sobre a Lei 78/2001 na sua globalidade e não

19

apenas sobre a parte respeitante à fase de julgamento, também não é a mais feliz. A opção

mais acertada passaria, a nosso ver, por agregar os artigos 57 a 62 numa secção autónoma

(denominada, por exemplo, “Do julgamento”) e por situar o art. 63 no domínio das “Disposições

finais e transitórias”, a menos que se pretenda que a remissão subsidiária para o CPC apenas

respeite à fase de julgamento, caso em que deveria ser tornada mais clara a letra do artigo (por

exemplo, dizendo-se “no que não seja incompatível com o disposto na presente secção”).

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Bibliografia

- AA. VV., Julgados de paz e mediação – um novo conceito de justiça, Lisboa, AAFDL,

2002.

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