12
Uma obra meritória? A campanha contra a doença do sono em uma colônia portuguesa, ilha do Príncipe, 1911-1914 EWERTON LUIZ FIGUEIREDO MOURA DA SILVA Resumo: Doenças como a malária e a doença do sono representaram um sério obstáculo para a viabilidade dos impérios europeus na África no início do século XX. Portugal, metrópole militar e economicamente frágil, possuía um vasto império cuja colônia mais rentável eram as ilhas de São Tomé e Príncipe. O arquipélago era o segundo maior produtor de cacau do mundo e dependia de levas de trabalhadores forçados provenientes principalmente de Angola. A existência de condições análogas à escravidão e as disputas imperialistas europeias conduziram à tenaz campanha do chocolateiro britânico William Cadbury pelo boicote a compra do "cacau escravo são-tomense" em 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença do sono. Tais condições alimentaram a constituição de uma campanha contra a doença na ilha organizada por médicos da Escola de Medicina Tropical de Lisboa. Os métodos da campanha incluíam a destruição da mata nativa, o extermínio da fauna selvagem e a proibição de trabalhadores doentes de deixar a ilha. A eliminação das tsé-tsés, transmissoras da doença, em 1914, trouxe impactos ambientais e sociais. Por fim, pretende-se tangenciar as ressonâncias desta campanha em cenário africano no Brasil, país cuja intelectualidade debatia sobre a extensão dos serviços sanitários para combater doenças que assolavam as populações rurais. Esta reflexão foi construída com base na perscrutação a jornais (portugueses e brasileiros), periódicos médicos portugueses e relatórios sanitários do ultramar. Palavras-chave: Portugal, doença do sono, Príncipe, África, medicina tropical. Introdução Em agosto de 1915, o periódico portuense A Medicina Moderna publicou um pequeno texto sobre a assistência médica dispensada nos territórios coloniais. Logo nas primeiras linhas, o autor destacou a relevância dos domínios ultramarinos para a existência de Portugal: Excedeu já os limites de lugar comum a frase de que o futuro do nosso país está no seu domínio colonial; mas apesar de vulgarizada, cada vez mais, nós temos de reconhecer que ela encerra uma grande e profunda verdade (A MEDICINA MODERNA, 1915:89). A então jovem República Portuguesa, apesar de seus limitados recursos econômicos, militares e demográficos, administrava um considerável império de 2.079.576,72 Km² constituído por possessões em África Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe e na Ásia Índia, Timor e Macau. Estes territórios, nos primórdios do século XX, contavam com vias de comunicação e infraestruturas escassas e com regiões ainda fora da órbita metropolitana sediada em Lisboa (MARTINS, 2014:139-140). Diante das fragilidades do controle português e da acirrada disputa por espaços coloniais entre os poderes europeus, os Doutorando do Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP e bolsista FAPESP.

A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

Uma obra meritória? A campanha contra a doença do sono em uma colônia portuguesa, ilha

do Príncipe, 1911-1914

EWERTON LUIZ FIGUEIREDO MOURA DA SILVA

Resumo: Doenças como a malária e a doença do sono representaram um sério obstáculo para a viabilidade dos

impérios europeus na África no início do século XX. Portugal, metrópole militar e economicamente frágil, possuía

um vasto império cuja colônia mais rentável eram as ilhas de São Tomé e Príncipe. O arquipélago era o segundo

maior produtor de cacau do mundo e dependia de levas de trabalhadores forçados provenientes principalmente de

Angola. A existência de condições análogas à escravidão e as disputas imperialistas europeias conduziram à tenaz

campanha do chocolateiro britânico William Cadbury pelo boicote a compra do "cacau escravo são-tomense" em

1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro

epidêmico representado pela doença do sono. Tais condições alimentaram a constituição de uma campanha contra

a doença na ilha organizada por médicos da Escola de Medicina Tropical de Lisboa. Os métodos da campanha

incluíam a destruição da mata nativa, o extermínio da fauna selvagem e a proibição de trabalhadores doentes de

deixar a ilha. A eliminação das tsé-tsés, transmissoras da doença, em 1914, trouxe impactos ambientais e

sociais. Por fim, pretende-se tangenciar as ressonâncias desta campanha em cenário africano no Brasil, país cuja

intelectualidade debatia sobre a extensão dos serviços sanitários para combater doenças que assolavam as

populações rurais. Esta reflexão foi construída com base na perscrutação a jornais (portugueses e brasileiros),

periódicos médicos portugueses e relatórios sanitários do ultramar.

Palavras-chave: Portugal, doença do sono, Príncipe, África, medicina tropical.

Introdução

Em agosto de 1915, o periódico portuense A Medicina Moderna publicou um pequeno

texto sobre a assistência médica dispensada nos territórios coloniais. Logo nas primeiras linhas,

o autor destacou a relevância dos domínios ultramarinos para a existência de Portugal:

Excedeu já os limites de lugar comum a frase de que o futuro do nosso país está no seu domínio colonial; mas apesar de vulgarizada, cada vez mais, nós temos de

reconhecer que ela encerra uma grande e profunda verdade (A MEDICINA

MODERNA, 1915:89).

A então jovem República Portuguesa, apesar de seus limitados recursos econômicos,

militares e demográficos, administrava um considerável império de 2.079.576,72 Km²

constituído por possessões em África – Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé

e Príncipe – e na Ásia – Índia, Timor e Macau. Estes territórios, nos primórdios do século XX,

contavam com vias de comunicação e infraestruturas escassas e com regiões ainda fora da órbita

metropolitana sediada em Lisboa (MARTINS, 2014:139-140). Diante das fragilidades do

controle português e da acirrada disputa por espaços coloniais entre os poderes europeus, os

Doutorando do Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP e bolsista FAPESP.

Page 2: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

territórios lusitanos foram alvo de pelo menos dois conchavos diplomáticos que visavam a sua

partilha entre britânicos e alemães, em 1898 e 1913 (TEIXEIRA, 1996:127-136).

Para muitos portugueses as colônias eram lugares perigosos e infestados de doenças que

corrompiam os corpos e devoravam as vidas daqueles que lá aportavam (BASTOS,2011:25-

Page 3: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

2

58). Sobre a colônia de São Tomé e Príncipe, João Augusto Martins teceu os seguintes

comentários:

Esta província constituída pelas duas ilhas vizinhas e colocadas ao equador,

representam um papel predominante na nossa equação colonial, não só pela

importância agrícola e comercial, mas pela sua sonância patológica e pela febre de

rivalidades e conjurações que desde muito as acometem e embatem (MARTINS, 1912: 212).

Localizadas no golfo da Guiné e a uma distância de 90 milhas uma da outra, as ilhas de

São Tomé e Príncipe ocupavam o segundo lugar entre os maiores produtores mundiais de cacau,

atrás somente da República do Equador – com 260.893 toneladas produzidas entre 1904 e 1912

(SECRETARIA DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1915). Esta

expressiva produção era alimentada por sucessivas levas de trabalhadores, oriundos de outras

colônias portuguesas, destinados à dura lida nas roças da ilha do Príncipe (NASCIMENTO,

2004:77-112).

Pela legislação portuguesa, os chamados indígenas estavam sujeitos, moral e

legalmente, à obrigação de trabalhar (REPÚBLICA PORTUGUESA, 1911: 1288-1289) e

Angola tornou-se uma importante fornecedora de braços (PINTO, 2017: 623-625). No entanto,

o Norte daquela colônia, com fronteira em comum com o Congo belga, abrigava uma mosca

hematófaga de hábitos diurnos conhecida como tsé-tsé (Glossina palpalis). A incômoda e voraz

presença destes dípteros foi assim descrita em 1905:

Algumas entraram dentro do comboio em marcha e um companheiro de viagem,

condutor do caminho de ferro de Malange, foi picado no pescoço por uma mosca que

se conseguiu apanhar e que por um exame rápido e muito superficial me pareceu

pertencer à espécie palpalis.

Na travessia entre Cassualalla e o Dondo, uma viagem de 6 horas em tipoia (rede

transportada às costas dos pretos), as glossinas são abundantíssimas. A todo o instante

pousavam na rede e nas costas dos carregadores, vendo-se estes obrigados de tempos

a tempos a bater com a palma da mão nas costas para as afugentar, sucedendo muitas

vezes esmagarem algumas já repletas de sangue, acabado de sugar[...]. Do Dongo

segui para Massangano, povoação situada na margem direita do Cuanza, descendo o

rio em escaler. Durante toda a viagem fui importunado pela tsé-tsé que invadia constantemente o barco, principalmente quando me aproximava das margens

(MENDES, 1905:68-69).

A partir de 1904, as tais moscas tsé-tsés foram encaradas como as transmissoras da

doença do sono ou tripanossomíase africana. A doença, causada pelo Trypanosoma brucei

gambiense, provocava em seu estágio final uma invencível e mortal sonolência:

“[...] o doente apresenta uma apatia intelectual profunda, uma fisionomia

estupidificada, um torpor invencível que surpreende os doentes no meio da conversa

ou da refeição e que caracteriza a moléstia [doença doo sono]: a temperatura axilar

desce, podendo chegar a 34°, o emagrecimento torna se considerável, o pulso

pequeno, há diarreias profundas, acessos convulsivos, e, por fim, o indivíduo morre

com escaras de decúbito ou no estado de coma.” (Velho, 1921:33).

Page 4: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

3

O cacau e a doença do sono: marcas em São Tomé e Príncipe

As chamadas roças eram latifúndios voltados para a produção e exportação do cacau

que fizeram a fortuna de proprietários agrícolas, alguns deles a esbanjar seus recursos

financeiros em Lisboa. Porém, toda esta riqueza foi produzida por trabalhadores, denominados

de serviçais, que fugiam das agruras da fome em Cabo Verde ou eram remetidos à força de

Angola. Nas roças, o trabalho era duro e permeado por abusos como castigos físicos, míseros

vencimentos (quando havia) e extensão arbitrária dos contratos de trabalho que, em tese,

duravam até 5 anos (ZAMPARONI, 2004:299-335).

A dura rotina imposta aos serviçais nas roças cacaueiras, muito próxima à escravidão, e

a crescente disputa por territórios africanos levaram ao boicote capitaneado pelo chocolateiro

britânico William Cadbury a compra do “cacau escravo” procedente da colônia de São Tomé e

Príncipe em 1908 (CADBURY,1910).

Naquele mesmo ano, Aníbal Correia Mendes – diretor do laboratório bacteriológico de

Luanda –, Bernardo Bruto da Costa – diretor do laboratório bacteriológico de São Tomé – e

António Damas Mora – delegado de saúde da ilha do Príncipe –, integrantes de uma missão

científica enviada à ilha do Príncipe no ano anterior e apoiada pela Escola de Medicina Tropical

de Lisboa (AMARAL, 2015:17) concluíram seu relatório preliminar sobre os casos reportados

de doença do sono na ilha. Naquela altura, cobaias humanas foram utilizadas em experimentos

com o uso do Atoxil, um composto orgânico arsenical considerado a grande ferramenta

terapêutica contra a doença:

Experiência I Averiguar o tempo que os tripanossomas gastam a reaparecer no sangue periférico

depois da injeção de doses únicas e sucessivamente crescentes de Atoxil desde 3

decigramas a 1 grama.

Separámos oito doentes nos quais se verificou a existência de tripanossomas no

sangue e que não tinham tomado Atoxil previamente. Injetaram-se 3 decigramas de

Atoxil ao primeiro; 4 decigramas ao segundo e assim sucessivamente, tendo o oitavo

e último 1 grama de Atoxil

[...] Devemos acrescentar que, com exceção do doente a quem se injetaram 3

decigramas, criança de oito anos, todos os outros eram adultos.

Deduz-se desta experiência que o tempo que os tripanossomas levam a reaparecer no

sangue periférico, após uma única injeção de Atoxil, não está em relação com a dose

injetada. Assim, o que teve 4 decigramas esteve vinte dias sem tripanossomas no sangue, enquanto que, nos injetados com 7 decigramas e 1 grama, os flagelados

reaparecem onze dias depois da injeção (MENDES; et.al.,1909:16).

Os integrantes da missão recomendaram medidas profiláticas contra a ação das glossinas

como a proibição da criação de porcos e a limpeza dos terrenos – que representavam,

respectivamente, as fontes de alimento e o habitat das moscas. Contudo, tais medidas não foram

aplicadas até 1911 e a pequena ilha registrava crescentes casos de mortalidade pela doença que,

Page 5: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

4

somados, atingiam a cifra dos 2.525 óbitos entre 1902 e 1913, sendo que sua população total

naquele último ano era de 4.958 habitantes:

Fonte: COSTA; et.al., 1915:259.

Nas roças os cacaueiros exigiam sombra e umidade contra os ventos fortes e o tórrido

calor, desfavoráveis para o pleno desenvolvimento dos frutos. No entanto, estas mesmas

condições criaram ambientes muito propícios para a reprodução das moscas tsé-tsés. Tal

situação, somada às levas de trabalhadores braçais provenientes de uma região onde a doença

era endêmica (Angola), trouxe como consequência a crescente mortalidade pela doença do sono

(SILVA, 2013:7).

A existência de uma grave doença que reduzia consideravelmente o exército de mão de

obra disponível para o trato do cacau e as pressões internacionais da campanha antiescravagista

movida contra Portugal foram as tramas que se cruzaram em São Tomé e Príncipe e

determinaram o envio de uma missão médica ao Príncipe para conduzir uma campanha para a

eliminação das glossinas (SILVA, 2018:79-101).

A Campanha contra as glossinas no Príncipe, 1911-1914

Com a anuência do governador de São Tomé e Príncipe, António Pinto Miranda Guedes,

no verão de 1911 uma equipe de médicos, apoiada pela Escola de Medicina Tropical de Lisboa,

foi constituída para combater a doença do sono na ilha do Príncipe. A partir de 1912, o comando

da missão passou para Bernardo Bruto da Costa – médico de origem goesa e diplomado pela

Escola de Medicina Tropical de Lisboa em 1904 (FRAGA DE AZEVEDO, 1952).

0

50

100

150

200

250

300

350

1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913

Mortalidade pela doença do sono, ilha do

Príncipe, 1902-1913

Page 6: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

5

A guerra contra as glossinas foi travada mediante a massiva intervenção sobre a fauna

e a flora da ilha do Príncipe coordenada pela equipe de esculápios portugueses e executada por

um brigada – constituída inicialmente por 43 serviçais e que atingiu a cifra dos 300 homens em

abril de 1914 – formada especialmente por prisioneiros de guerra e condenados por crimes em

São Tomé, Angola e Índia. O pessoal da brigada foi mobilizado para a drenagem e aterro dos

pântanos, derrubada das florestas e destruição da vegetação herbácea e arbustiva, inclusive

aquela próxima das margens dos rios, por meio do machado e das queimadas. A limpeza dos

terrenos, como era chamada, deveria ser procedida também nos cacaueiros, locais igualmente

infestados pelas tsé-tsé, mas como a legislação isentava os proprietários com poucos serviçais

dos custos de tais operações, muitos donos de terrenos dispensaram seus empregados para não

ter que arcar com os gastos de capinação, transferindo-os para a brigada oficial. Os relatórios

produzidos acusavam constantemente os proprietários indígenas de indolência e passibilidade

frente aos trabalhos prestados:

No abandono em que os Indígenas, salvo raras exceções, trazem as suas propriedades, demonstram bem a sua indolência natural que aumentou quando tiveram

conhecimento de que não pagavam nada, dos serviços feitos pela brigada, aqueles que

não possuíssem trabalhadores nas suas propriedades. Achamos extraordinário que

havendo aqui uma liga indígena, esta não tenha feito compreender aos patrícios menos

inteligentes a necessidade que há de acabar com a doença do sono, evitando assim o

aniquilamento da sua raça. Notamos somente da parte dos indígenas um

indiferentismo doentio (COSTA, 1913:68).

É importante frisar que as críticas elaboradas pelos médicos portugueses aos habitantes

locais de uma colônia africana devem ser compreendidas sob as lentes do imperialismo europeu

que, em via de regra, considerava os nativos de suas colônias como seres racialmente inferiores

e menos vocacionados ao trabalho em comparação ao homem branco, sendo a expressão

“indolência natural” utilizada no discurso acima bastante elucidativa. No entanto, foram os

habitantes da ilha que bancaram a maior fatia dos custos dos trabalhos da missão, avaliados em

156.982$27 Escudos (COSTA; et.al., 1915:129).

A criação de porcos foi estritamente proibida em toda a ilha e seu abate, em conjunto

com mamíferos selvagens e cães vadios, foi prescrito pelos médicos, pois as glossinas

utilizavam estes animais para a alimentação:

É sabido de todos que a mosca se acoita nos pontos sombrios, úmidos e habitados por

animais, principalmente pelo porco, que não reagindo à picada das moscas deixa

pousar estas em grande número e as leva à distância. Este animal, além de veículo

serve-lhes de bom campo de alimentação, por serem hematófagas.

Duma vez observamos num porco morto 30 “glossinas” agarradas e cheias de sangue

e sempre que são mortos aqueles animais a tiro, segundo informação do primeiro

capataz da brigada, encontram-se lhes algumas “glossinas” agarradas ao corpo

(COSTA, 1913:69).

Page 7: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

6

Como medida secundária, a captura das moscas foi providenciada por um método

bastante inusitado: em 1906, o administrador da roça Sundy, Ângelo de Bulhões Maldonado,

ao perceber que as moscas rodeavam as costas de seus empregados curvados durante à lida

diária, decidiu que os mesmos deveriam utilizar um pano sobre as costas embebecido em uma

substância viscosa que capturasse as moscas que pousassem sobre a armadinha. O método de

Maldonado foi empregado durante a campanha de 1911 a 1914, e os “serviçais apanha-moscas

da brigada oficial” eram escolhidos entre os homens considerados fisicamente mais fracos, pois

os mais robustos eram empregados no serviço braçal de derrubada das matas:

[...] foi necessário votar ao serviço exclusivo da apanha das moscas um certo número

de serviçais, escolhidos de entre os que, por serem mais fracos, são conhecidos pela

designação de caranguejos. Os portadores dos panos eram distribuídos à volta do

turno dos trabalhadores, ocupando de preferência as clareiras e os pontos já capinados,

aonde as moscas afluíam afugentadas pela agitação do mato e pela queda das árvores;

um certo número deles eram também enviados para os pontos mais frequentados pelas

glossinas, como vales sombrios, proximidades dos rios, ribeiras e pântanos, devendo,

uma vez ali, fazerem percursos lentos em vários sentidos (COSTA, et.al.,1915:112-

113).

A captura das glossinas e a destruição de seu habitat e dos animais que serviam como

suas fontes de alimento resultaram na drástica redução daqueles dípteros no Príncipe: em 1911

foram capturados 203.629 insetos; no ano seguinte 197.326; em 1913 foram mortas 68.322

moscas; em 1914 a cifra atingiu 34 exemplares e, a partir de maio daquele ano, o índice de

capturas zerou, conforme o gráfico abaixo:

Fonte: COSTA; et.al., 1915:115.

0

50.000

100.000

150.000

200.000

250.000

1911 1912 1913 1914

Número de glossinas apanhadas pelo "método

de Maldonado"

Page 8: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

7

Coube ainda à equipe médica a realização de exames em amostras sanguíneas dos

habitantes da ilha e quando havia a presença do Trypanosoma brucei gambiense no organismo,

o doente era submetido ao tratamento atoxílico e isolado. O parecer sanitário negativo para a

doença do sono tornou-se imprescindível para a entrada e para a saída do Príncipe, e os serviçais

que apresentassem o parasito no sangue ou no líquido cefalorraquidiano eram proibidos de

deixar a ilha, mesmo após o fim de seu contrato, condenados a permanecer em uma prisão

insular, sob o controle de seus patrões, até o final de suas vidas. O trabalho árduo nas roças, a

ameaça representada pela doença do sono e a impossibilidade de muitos serviçais deixarem a

ilha com vida explicam o porquê de São Tomé e Príncipe ser conhecida como terra de desterro

pelas populações nativas de Cabo Verde e Angola (BERTHET, 2016: 345).

Em junho de 1914, com a ausência de glossinas e com apenas 19 casos de doença do

sono registrados na ilha, o Príncipe foi considerada uma colônia portuguesa livre da doença do

sono, pelo menos até 1956. O acontecimento foi reverberado pela memorialística médica e

serviu para enaltecer a presença colonial portuguesa na África (COSTA, 1952: 727-735).

Entretanto, a campanha de combate à doença do sono iniciada em 1911 teve altos custos sociais

e ambientais como a redução da área florestal, a eliminação de parte da fauna nativa, a proibição

imposta aos serviçais infectados de deixarem as roças onde trabalhavam e a exigência para que

os agricultores arcassem com a maior parte dos custos daquela empreitada (AMARAL, 2019:

64-82). A participação dos agricultores locais incidiu na obrigatoriedade de fornecerem parte

da mão de obra empregada nos trabalhos de combate às moscas, o material de defesa sanitária,

o tratamento curativo e profilático dos infectados e o sacrifício dos animais domésticos

portadores de tripanossomas (COSTA; et.al.,1915:129).

Ressonâncias no Brasil

Embora algumas referências médicas apontassem, no final do século XIX, para a

existência da doença do sono em escravos no Brasil (MOREIRA, 1901: 317), o vetor daquela

doença – a mosca tsé-tsé – inexistia em terras brasileiras, tanto que o livro Doenças africanas

no Brasil (1935) de José Octavio de Freitas não trouxe nenhuma menção à tripanossomíase

africana em suas 226 páginas (FREITAS, 1935). Contudo, Brasil e Portugal, no alvorecer do

século XX, mantinham um significativo intercâmbio comercial e cultural, os portos nacionais

acolhiam a maior parte da torrente emigratória portuguesa (LOBO, 2001) e a imprensa

brasileira empregava com frequência lusitanos em suas redações (ALMINO, 2003:128). Assim,

os assuntos portugueses ganhavam eco nos principais jornais brasileiros e a maior parte das

Page 9: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

8

notícias sobre a doença do sono na África, mesmo que muitas delas tenham sido transmitidas

de forma telegráfica, referiam-se às colônias portuguesas como Angola e São Tomé e Príncipe.

Sob o título de “Uma obra meritória”, o jornal Gazeta de Notícias, periódico sediado

no Rio de Janeiro, publicou um texto inteiro sobre a campanha de erradicação das glossinas na

ilha do Príncipe no dia 15 de julho de 1918, quatro anos depois do seu término. Naquele

momento histórico, a Liga Pró-Saneamento do Brasil – fundada em 11 de fevereiro de 1918 por

homens como Belisario Penna, Arthur Neiva, Carlos Chagas, Renato Kehl, Miguel Pereira,

Monteiro Lobato, Vital Brazil e Afrânio Peixoto – apresentava suas propostas em defesa de

uma maior intervenção do governo federal nos assuntos relacionados à saúde da população, em

especial no combate às chamadas endemias rurais, males se não curáveis, pelo menos evitáveis,

como a ancilostomíase, a malária e a doença de Chagas: a tríade maldita dos sertões brasileiros

(HOCHMAN, 2006:62-79).

Anos antes da criação da Liga, Carlos Chagas – cientista brasileiro consagrado pela

descoberta do ciclo da doença designada com o seu nome (KROPF, 2009) – defendia que as

autoridades brasileiras deveriam se preocupar com os graves males impostos às populações

rurais por intermédio do barbeiro, o transmissor do Trypanosoma cruzi. Para Chagas, o combate

à tripanossomíase americana, ou doença de Chagas, deveria ser feito por questões de

patriotismo e humanidade e visando zelar pelo futuro da população brasileira, pois a doença

que aqueles insetos transmitiam inutilizava os homens – por distúrbios cardíacos, nervosos e

endócrinos – antes de matá-los. Por tratar-se de uma tripanossomíase humana, à semelhança da

doença do sono, as comparações com as ações empreendidas pelos europeus na África eram

inevitáveis:

Cumpre salientar que o principal fator epidemiológico da moléstia é constituído por

um inseto, companheiro constante do homem nos domicílios e, por isso mesmo,

facilmente atingível às medidas de destruição. Recuar diante do inimigo tão mesquinho, deixar o campo livre à sua ação devastadora, fora, sem dúvida, a mais alta

expressão da ausência de energia em um povo civilizado. No continente africano, onde

grassa endemicamente a letargia dos pretos, moléstia similar da nossa, a mutuca

transmissora vive no mundo exterior, o que torna de dificuldades quase extremas a

profilaxia da moléstia. E, apesar, disso, as nações civilizadas da Europa, por interesses

exclusivos de colonização, cuidam do assunto com o maior zelo, enviando ao

continente africano, para colher noções científicas e estudar a solução prática do

problema, missões de que têm feito parte os maiores vultos da ciência mundial. E no

caso só atuam interesses de colonização, notai bem!

Entre nós a iniciativa de medidas sanitárias justifica-se, sem dúvida, em considerações

bem mais elevadas: é o futuro de um grande povo que se deverá zelar; são deveres de humanidade e de patriotismo que devem atuar no espírito progressista dos homens de

estado (CHAGAS, 1911:374).

Assim, para voltar o referido artigo publicado pela Gazeta de Notícias, no ano de 1918,

sobre a campanha comandada por médicos portugueses contra as glossinas no Príncipe, o jornal

Page 10: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

9

depois de descrever as medidas adotadas pelas autoridades sanitárias na ilha – isolamento e

vigilância dos doentes, uso do Atoxil, extermínio dos porcos e emprego dos coletes com visco

para a captura das moscas –, sem mencionar seus impactos sociais e ambientais, concluiu com

os seguintes dizeres:

Enquanto Portugal assim procede, para defender a vida de uns tantos milhares de

pretos quase selvagens, aqui, na capital de uma República que se julga civilizada, o

impaludismo, a ancilostomíase e mil outros males dizimam a população, já por si tão

depauperada pela dieta que a carestia da vida a obriga a manter (GAZETA DE

NOTÍCIAS, 1918:2).

A conclusão do artigo compara o êxito lusitano em uma pequena ilha de 136 Km² de

extensão com as dificuldades da República brasileira em combater as doenças que fustigam a

sua própria população. Assim, talvez mais do que simplesmente descrever uma ação bem-

sucedida de médicos portugueses em uma colônia ultramarina, o periódico buscou se posicionar

frente aos problemas sanitários, ainda sem desfecho, que acometiam o próprio Brasil e

tangenciar a comparação tecida por alguns médicos brasileiros, entre eles Carlos Chagas, entre

os esforços empreendidos pelos europeus para combater as doenças tropicais que grassavam

em suas colônias africanas – visando defender seus impérios coloniais – e extrema necessidade

de medidas, por parte das autoridades brasileiras, para debelar as doenças e acometiam a

população do país e sua produtividade.

Referências

ALMINO, João. O diálogo interrompido: as relações literárias entre o Brasil e Portugal. In:

ADDALA JÚNIOR, Benjamin (Org.). Incertas relações. Brasil-Portugal no século XX. São

Paulo: Editora Senac; 2003: 125-148.

AMARAL, Isabel. A doença do sono/tripanossomíase – o elemento catalisador do progresso da

medicina tropical portuguesa (1901-1966). In: MOTA, André; MARINHO, Maria Gabriela

S.M.C; BERTOLLI FILHO, Cláudio (Org.). As enfermidades e suas metáforas: epidemias,

vacinação e produção de conhecimento. São Paulo: USP, Faculdade de Medicina: UFABC,

Universidade Federal do ABC: CD.G Casa de Soluções e Editora, 2015.p.13-30.

AMARAL, Isabel. Medicina tropical e ambiente em perspectiva: reconstituindo o puzzle da

erradicação da doença do sono na ilha do Príncipe, 1914. Fronteiras: Journal of Social,

Technological and Environmental Science. 2018; 7 (2): 64-82. Disponível em

http://periodicos.unievangelica.edu.br/index.php/fronteiras/article/view/2960/2291.

BASTOS, Cristina. Corpos, climas, ares e lugares: autores e anónimos nas ciências da

colonização. In: BASTOS, Cristina; BARRETO, Renilda (Org.). A circulação do

conhecimento: medicina, redes e impérios. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais; 2011.p.

25-58.

Page 11: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

10

BERTHET, Marina Annie. À sombra do cacau: representações sobre trabalho forçado nas ilhas

de São Tomé e Príncipe. Revista do Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro. 2016

(11):343-365. Disponível em http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-

content/uploads/2016/12/Dossi%C3%AA_Artigo-2.pdf.

CADBURY, William. Labour in Portuguese West Africa. 2nd ed. Londres: George

Routledge and Sons; 1910.p.95-96 e 98. Disponível em

https://archive.org/details/labourinportugue00cadb/page/n5.

CHAGAS, Carlos. A moléstia de Carlos Chagas. Brazil-Médico. 1911 out.1; 25 (37): 373-375.

COSTA, Bernardo Bruto et al,. A doença do sôno na ilha do Príncipe. Excertos do relatorio

final da ultima missão sanitaria (1912-1914). Portugal Médico. 1915;9 (5): 257-261.

COSTA, Bernardo Bruto et al,. Relatório final da missão da doença do sono na ilha do Príncipe.

Arquivos de Higiene e Patologia Exótica. 1915;5.

COSTA, Vasco Bruto. A Ilha do Príncipe e a doença do sono. Anais do Instituto de Medicina

Tropical.1952 Set; 9 (3).

FRAGA DE AZEVEDO, João. Cinquenta anos de atividade de instituto de medicina

tropical. Lisboa,1952.

FREITAS, José Otávio de. Doenças africanas no Brasil. São Paulo: Editora Nacional; 1935.

GAZETA DE NOTÍCIAS. Uma obra meritória. Rio de Janeiro. 1918 jul 15. Disponível em

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=103730_04&pesq=ilha%20do%20Pr%

C3%ADncipe&pasta=ano%20191

HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec; 2006.

KROPF, Simone Petraglia. Doença de chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação

(1909-1962). Rio de Janeiro. Tese [Doutorado em História] – Universidade Federal

Fluminense; 2006.

LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec

/Instituto Camões;2001.

MARTINS, João Augusto. Revista sanitária das províncias ultramarinas. Referida aos anos

1910-1911. Archivos de Hygiene e Pathologia Exoticas.1912; 3 (1): 191-249.

MARTINS, Leonor Pires. Um império de papel. Imagens do colonialismo português na

imprensa periódica ilustrada (1875-1940). 2.ed. Lisboa: Edições 70; 2014.

MENDES, Aníbal Correia; et. al,. Relatório preliminar da missão de estudo da doença do somno

na ilha do Príncipe. Archivos de Hygiene e Pathologia Extoticas. 1909;2 (1): 3-40.

MOREIRA, Juliano. Os recentes trabalhos portugueses sobre a moléstia do somno. Gazeta

Medica da Bahia. 1901; 33 (1): 317:325.

Page 12: A Medicina Moderna · 2019-08-14 · 1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro epidêmico representado pela doença

11

NASCIMENTO, Augusto. A passagem de coolies por São Tomé e Príncipe. Arquipélago

História. 2004;8 (2): 77-112. Disponível em https://core.ac.uk/download/pdf/61434076.pdf.

PINTO, Alberto Oliveira. História de Angola. Da pré-história ao início do século XXI. 2ª

ed. Lisboa: Mercado de letras, 2017.

REBÊLO, Frederico Leopoldino. O atoxyl no tratamento da doença do sono. Porto. Tese

[Doutorado em Medicina] – Faculdade de Medicina do Porto; 1921.

REPÚBLICA PORTUGUESA. Regulamento do trabalho dos indígenas de 27 de maio de

1911.Disponível em: https://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1428.pdf.

SECRETARIA DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS. Boletim da

directoria de industria e commercio. São Paulo: Tipografia Brasil de Rothschild and Comp.

Série 7, n.5, maio de 1915.

SILVA, Sebastião Nuno de Araújo Barros. The land off lies, childen and devils: the sleeping

sickness epidemic in the island of Principe (1870s-1914). Oxford. Tese [Doutorado em

Filosofia] – Universidade de Oxford;2013.

SILVA, Ewerton Luiz Figueiredo Moura. O Combate à doença do sono nas colônias

portuguesas na África: medicina sob o signo do racismo e do darwinismo social (1901-1932).

Revista Transversos. 2018 maio-ago (13): 79-101. Disponível em https://www.e-

publicacoes.uerj.br/index.php/transversos/article/view/35648/26091.

TEIXEIRA, Nuno Severiano. O poder e a guerra (1914-1918). Objectivos nacionais e

estratégias políticas na entrada de Portugal na grande guerra. Lisboa: editorial estampa;

1996.

VELHO, Luís Baptista da Assunção. A doença do sono como entidade mórbida. Revista

Médica de Angola. 1921; (2): 23-44.

ZAMPARONI, Valdemir. Da escravatura ao trabalho forçado: teorias e práticas. Africana

Studia 2004 (7): 299-335 Disponível em:

https://www.cecult.ifch.unicamp.br/pfcecult/publicfiles/projetos/9585/zamparoni_africanastu

dia_2004_-_escravatura_ao_trabalho_forcado.pdf.