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Uma obra meritória? A campanha contra a doença do sono em uma colônia portuguesa, ilha
do Príncipe, 1911-1914
EWERTON LUIZ FIGUEIREDO MOURA DA SILVA
Resumo: Doenças como a malária e a doença do sono representaram um sério obstáculo para a viabilidade dos
impérios europeus na África no início do século XX. Portugal, metrópole militar e economicamente frágil, possuía
um vasto império cuja colônia mais rentável eram as ilhas de São Tomé e Príncipe. O arquipélago era o segundo
maior produtor de cacau do mundo e dependia de levas de trabalhadores forçados provenientes principalmente de
Angola. A existência de condições análogas à escravidão e as disputas imperialistas europeias conduziram à tenaz
campanha do chocolateiro britânico William Cadbury pelo boicote a compra do "cacau escravo são-tomense" em
1908. Além disso, a ilha do Príncipe tornou-se um cemitério para os trabalhadores devido ao grave quadro
epidêmico representado pela doença do sono. Tais condições alimentaram a constituição de uma campanha contra
a doença na ilha organizada por médicos da Escola de Medicina Tropical de Lisboa. Os métodos da campanha
incluíam a destruição da mata nativa, o extermínio da fauna selvagem e a proibição de trabalhadores doentes de
deixar a ilha. A eliminação das tsé-tsés, transmissoras da doença, em 1914, trouxe impactos ambientais e
sociais. Por fim, pretende-se tangenciar as ressonâncias desta campanha em cenário africano no Brasil, país cuja
intelectualidade debatia sobre a extensão dos serviços sanitários para combater doenças que assolavam as
populações rurais. Esta reflexão foi construída com base na perscrutação a jornais (portugueses e brasileiros),
periódicos médicos portugueses e relatórios sanitários do ultramar.
Palavras-chave: Portugal, doença do sono, Príncipe, África, medicina tropical.
Introdução
Em agosto de 1915, o periódico portuense A Medicina Moderna publicou um pequeno
texto sobre a assistência médica dispensada nos territórios coloniais. Logo nas primeiras linhas,
o autor destacou a relevância dos domínios ultramarinos para a existência de Portugal:
Excedeu já os limites de lugar comum a frase de que o futuro do nosso país está no seu domínio colonial; mas apesar de vulgarizada, cada vez mais, nós temos de
reconhecer que ela encerra uma grande e profunda verdade (A MEDICINA
MODERNA, 1915:89).
A então jovem República Portuguesa, apesar de seus limitados recursos econômicos,
militares e demográficos, administrava um considerável império de 2.079.576,72 Km²
constituído por possessões em África – Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé
e Príncipe – e na Ásia – Índia, Timor e Macau. Estes territórios, nos primórdios do século XX,
contavam com vias de comunicação e infraestruturas escassas e com regiões ainda fora da órbita
metropolitana sediada em Lisboa (MARTINS, 2014:139-140). Diante das fragilidades do
controle português e da acirrada disputa por espaços coloniais entre os poderes europeus, os
Doutorando do Departamento de Medicina Preventiva-FMUSP e bolsista FAPESP.
territórios lusitanos foram alvo de pelo menos dois conchavos diplomáticos que visavam a sua
partilha entre britânicos e alemães, em 1898 e 1913 (TEIXEIRA, 1996:127-136).
Para muitos portugueses as colônias eram lugares perigosos e infestados de doenças que
corrompiam os corpos e devoravam as vidas daqueles que lá aportavam (BASTOS,2011:25-
2
58). Sobre a colônia de São Tomé e Príncipe, João Augusto Martins teceu os seguintes
comentários:
Esta província constituída pelas duas ilhas vizinhas e colocadas ao equador,
representam um papel predominante na nossa equação colonial, não só pela
importância agrícola e comercial, mas pela sua sonância patológica e pela febre de
rivalidades e conjurações que desde muito as acometem e embatem (MARTINS, 1912: 212).
Localizadas no golfo da Guiné e a uma distância de 90 milhas uma da outra, as ilhas de
São Tomé e Príncipe ocupavam o segundo lugar entre os maiores produtores mundiais de cacau,
atrás somente da República do Equador – com 260.893 toneladas produzidas entre 1904 e 1912
(SECRETARIA DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS, 1915). Esta
expressiva produção era alimentada por sucessivas levas de trabalhadores, oriundos de outras
colônias portuguesas, destinados à dura lida nas roças da ilha do Príncipe (NASCIMENTO,
2004:77-112).
Pela legislação portuguesa, os chamados indígenas estavam sujeitos, moral e
legalmente, à obrigação de trabalhar (REPÚBLICA PORTUGUESA, 1911: 1288-1289) e
Angola tornou-se uma importante fornecedora de braços (PINTO, 2017: 623-625). No entanto,
o Norte daquela colônia, com fronteira em comum com o Congo belga, abrigava uma mosca
hematófaga de hábitos diurnos conhecida como tsé-tsé (Glossina palpalis). A incômoda e voraz
presença destes dípteros foi assim descrita em 1905:
Algumas entraram dentro do comboio em marcha e um companheiro de viagem,
condutor do caminho de ferro de Malange, foi picado no pescoço por uma mosca que
se conseguiu apanhar e que por um exame rápido e muito superficial me pareceu
pertencer à espécie palpalis.
Na travessia entre Cassualalla e o Dondo, uma viagem de 6 horas em tipoia (rede
transportada às costas dos pretos), as glossinas são abundantíssimas. A todo o instante
pousavam na rede e nas costas dos carregadores, vendo-se estes obrigados de tempos
a tempos a bater com a palma da mão nas costas para as afugentar, sucedendo muitas
vezes esmagarem algumas já repletas de sangue, acabado de sugar[...]. Do Dongo
segui para Massangano, povoação situada na margem direita do Cuanza, descendo o
rio em escaler. Durante toda a viagem fui importunado pela tsé-tsé que invadia constantemente o barco, principalmente quando me aproximava das margens
(MENDES, 1905:68-69).
A partir de 1904, as tais moscas tsé-tsés foram encaradas como as transmissoras da
doença do sono ou tripanossomíase africana. A doença, causada pelo Trypanosoma brucei
gambiense, provocava em seu estágio final uma invencível e mortal sonolência:
“[...] o doente apresenta uma apatia intelectual profunda, uma fisionomia
estupidificada, um torpor invencível que surpreende os doentes no meio da conversa
ou da refeição e que caracteriza a moléstia [doença doo sono]: a temperatura axilar
desce, podendo chegar a 34°, o emagrecimento torna se considerável, o pulso
pequeno, há diarreias profundas, acessos convulsivos, e, por fim, o indivíduo morre
com escaras de decúbito ou no estado de coma.” (Velho, 1921:33).
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O cacau e a doença do sono: marcas em São Tomé e Príncipe
As chamadas roças eram latifúndios voltados para a produção e exportação do cacau
que fizeram a fortuna de proprietários agrícolas, alguns deles a esbanjar seus recursos
financeiros em Lisboa. Porém, toda esta riqueza foi produzida por trabalhadores, denominados
de serviçais, que fugiam das agruras da fome em Cabo Verde ou eram remetidos à força de
Angola. Nas roças, o trabalho era duro e permeado por abusos como castigos físicos, míseros
vencimentos (quando havia) e extensão arbitrária dos contratos de trabalho que, em tese,
duravam até 5 anos (ZAMPARONI, 2004:299-335).
A dura rotina imposta aos serviçais nas roças cacaueiras, muito próxima à escravidão, e
a crescente disputa por territórios africanos levaram ao boicote capitaneado pelo chocolateiro
britânico William Cadbury a compra do “cacau escravo” procedente da colônia de São Tomé e
Príncipe em 1908 (CADBURY,1910).
Naquele mesmo ano, Aníbal Correia Mendes – diretor do laboratório bacteriológico de
Luanda –, Bernardo Bruto da Costa – diretor do laboratório bacteriológico de São Tomé – e
António Damas Mora – delegado de saúde da ilha do Príncipe –, integrantes de uma missão
científica enviada à ilha do Príncipe no ano anterior e apoiada pela Escola de Medicina Tropical
de Lisboa (AMARAL, 2015:17) concluíram seu relatório preliminar sobre os casos reportados
de doença do sono na ilha. Naquela altura, cobaias humanas foram utilizadas em experimentos
com o uso do Atoxil, um composto orgânico arsenical considerado a grande ferramenta
terapêutica contra a doença:
Experiência I Averiguar o tempo que os tripanossomas gastam a reaparecer no sangue periférico
depois da injeção de doses únicas e sucessivamente crescentes de Atoxil desde 3
decigramas a 1 grama.
Separámos oito doentes nos quais se verificou a existência de tripanossomas no
sangue e que não tinham tomado Atoxil previamente. Injetaram-se 3 decigramas de
Atoxil ao primeiro; 4 decigramas ao segundo e assim sucessivamente, tendo o oitavo
e último 1 grama de Atoxil
[...] Devemos acrescentar que, com exceção do doente a quem se injetaram 3
decigramas, criança de oito anos, todos os outros eram adultos.
Deduz-se desta experiência que o tempo que os tripanossomas levam a reaparecer no
sangue periférico, após uma única injeção de Atoxil, não está em relação com a dose
injetada. Assim, o que teve 4 decigramas esteve vinte dias sem tripanossomas no sangue, enquanto que, nos injetados com 7 decigramas e 1 grama, os flagelados
reaparecem onze dias depois da injeção (MENDES; et.al.,1909:16).
Os integrantes da missão recomendaram medidas profiláticas contra a ação das glossinas
como a proibição da criação de porcos e a limpeza dos terrenos – que representavam,
respectivamente, as fontes de alimento e o habitat das moscas. Contudo, tais medidas não foram
aplicadas até 1911 e a pequena ilha registrava crescentes casos de mortalidade pela doença que,
4
somados, atingiam a cifra dos 2.525 óbitos entre 1902 e 1913, sendo que sua população total
naquele último ano era de 4.958 habitantes:
Fonte: COSTA; et.al., 1915:259.
Nas roças os cacaueiros exigiam sombra e umidade contra os ventos fortes e o tórrido
calor, desfavoráveis para o pleno desenvolvimento dos frutos. No entanto, estas mesmas
condições criaram ambientes muito propícios para a reprodução das moscas tsé-tsés. Tal
situação, somada às levas de trabalhadores braçais provenientes de uma região onde a doença
era endêmica (Angola), trouxe como consequência a crescente mortalidade pela doença do sono
(SILVA, 2013:7).
A existência de uma grave doença que reduzia consideravelmente o exército de mão de
obra disponível para o trato do cacau e as pressões internacionais da campanha antiescravagista
movida contra Portugal foram as tramas que se cruzaram em São Tomé e Príncipe e
determinaram o envio de uma missão médica ao Príncipe para conduzir uma campanha para a
eliminação das glossinas (SILVA, 2018:79-101).
A Campanha contra as glossinas no Príncipe, 1911-1914
Com a anuência do governador de São Tomé e Príncipe, António Pinto Miranda Guedes,
no verão de 1911 uma equipe de médicos, apoiada pela Escola de Medicina Tropical de Lisboa,
foi constituída para combater a doença do sono na ilha do Príncipe. A partir de 1912, o comando
da missão passou para Bernardo Bruto da Costa – médico de origem goesa e diplomado pela
Escola de Medicina Tropical de Lisboa em 1904 (FRAGA DE AZEVEDO, 1952).
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50
100
150
200
250
300
350
1902 1903 1904 1905 1906 1907 1908 1909 1910 1911 1912 1913
Mortalidade pela doença do sono, ilha do
Príncipe, 1902-1913
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A guerra contra as glossinas foi travada mediante a massiva intervenção sobre a fauna
e a flora da ilha do Príncipe coordenada pela equipe de esculápios portugueses e executada por
um brigada – constituída inicialmente por 43 serviçais e que atingiu a cifra dos 300 homens em
abril de 1914 – formada especialmente por prisioneiros de guerra e condenados por crimes em
São Tomé, Angola e Índia. O pessoal da brigada foi mobilizado para a drenagem e aterro dos
pântanos, derrubada das florestas e destruição da vegetação herbácea e arbustiva, inclusive
aquela próxima das margens dos rios, por meio do machado e das queimadas. A limpeza dos
terrenos, como era chamada, deveria ser procedida também nos cacaueiros, locais igualmente
infestados pelas tsé-tsé, mas como a legislação isentava os proprietários com poucos serviçais
dos custos de tais operações, muitos donos de terrenos dispensaram seus empregados para não
ter que arcar com os gastos de capinação, transferindo-os para a brigada oficial. Os relatórios
produzidos acusavam constantemente os proprietários indígenas de indolência e passibilidade
frente aos trabalhos prestados:
No abandono em que os Indígenas, salvo raras exceções, trazem as suas propriedades, demonstram bem a sua indolência natural que aumentou quando tiveram
conhecimento de que não pagavam nada, dos serviços feitos pela brigada, aqueles que
não possuíssem trabalhadores nas suas propriedades. Achamos extraordinário que
havendo aqui uma liga indígena, esta não tenha feito compreender aos patrícios menos
inteligentes a necessidade que há de acabar com a doença do sono, evitando assim o
aniquilamento da sua raça. Notamos somente da parte dos indígenas um
indiferentismo doentio (COSTA, 1913:68).
É importante frisar que as críticas elaboradas pelos médicos portugueses aos habitantes
locais de uma colônia africana devem ser compreendidas sob as lentes do imperialismo europeu
que, em via de regra, considerava os nativos de suas colônias como seres racialmente inferiores
e menos vocacionados ao trabalho em comparação ao homem branco, sendo a expressão
“indolência natural” utilizada no discurso acima bastante elucidativa. No entanto, foram os
habitantes da ilha que bancaram a maior fatia dos custos dos trabalhos da missão, avaliados em
156.982$27 Escudos (COSTA; et.al., 1915:129).
A criação de porcos foi estritamente proibida em toda a ilha e seu abate, em conjunto
com mamíferos selvagens e cães vadios, foi prescrito pelos médicos, pois as glossinas
utilizavam estes animais para a alimentação:
É sabido de todos que a mosca se acoita nos pontos sombrios, úmidos e habitados por
animais, principalmente pelo porco, que não reagindo à picada das moscas deixa
pousar estas em grande número e as leva à distância. Este animal, além de veículo
serve-lhes de bom campo de alimentação, por serem hematófagas.
Duma vez observamos num porco morto 30 “glossinas” agarradas e cheias de sangue
e sempre que são mortos aqueles animais a tiro, segundo informação do primeiro
capataz da brigada, encontram-se lhes algumas “glossinas” agarradas ao corpo
(COSTA, 1913:69).
6
Como medida secundária, a captura das moscas foi providenciada por um método
bastante inusitado: em 1906, o administrador da roça Sundy, Ângelo de Bulhões Maldonado,
ao perceber que as moscas rodeavam as costas de seus empregados curvados durante à lida
diária, decidiu que os mesmos deveriam utilizar um pano sobre as costas embebecido em uma
substância viscosa que capturasse as moscas que pousassem sobre a armadinha. O método de
Maldonado foi empregado durante a campanha de 1911 a 1914, e os “serviçais apanha-moscas
da brigada oficial” eram escolhidos entre os homens considerados fisicamente mais fracos, pois
os mais robustos eram empregados no serviço braçal de derrubada das matas:
[...] foi necessário votar ao serviço exclusivo da apanha das moscas um certo número
de serviçais, escolhidos de entre os que, por serem mais fracos, são conhecidos pela
designação de caranguejos. Os portadores dos panos eram distribuídos à volta do
turno dos trabalhadores, ocupando de preferência as clareiras e os pontos já capinados,
aonde as moscas afluíam afugentadas pela agitação do mato e pela queda das árvores;
um certo número deles eram também enviados para os pontos mais frequentados pelas
glossinas, como vales sombrios, proximidades dos rios, ribeiras e pântanos, devendo,
uma vez ali, fazerem percursos lentos em vários sentidos (COSTA, et.al.,1915:112-
113).
A captura das glossinas e a destruição de seu habitat e dos animais que serviam como
suas fontes de alimento resultaram na drástica redução daqueles dípteros no Príncipe: em 1911
foram capturados 203.629 insetos; no ano seguinte 197.326; em 1913 foram mortas 68.322
moscas; em 1914 a cifra atingiu 34 exemplares e, a partir de maio daquele ano, o índice de
capturas zerou, conforme o gráfico abaixo:
Fonte: COSTA; et.al., 1915:115.
0
50.000
100.000
150.000
200.000
250.000
1911 1912 1913 1914
Número de glossinas apanhadas pelo "método
de Maldonado"
7
Coube ainda à equipe médica a realização de exames em amostras sanguíneas dos
habitantes da ilha e quando havia a presença do Trypanosoma brucei gambiense no organismo,
o doente era submetido ao tratamento atoxílico e isolado. O parecer sanitário negativo para a
doença do sono tornou-se imprescindível para a entrada e para a saída do Príncipe, e os serviçais
que apresentassem o parasito no sangue ou no líquido cefalorraquidiano eram proibidos de
deixar a ilha, mesmo após o fim de seu contrato, condenados a permanecer em uma prisão
insular, sob o controle de seus patrões, até o final de suas vidas. O trabalho árduo nas roças, a
ameaça representada pela doença do sono e a impossibilidade de muitos serviçais deixarem a
ilha com vida explicam o porquê de São Tomé e Príncipe ser conhecida como terra de desterro
pelas populações nativas de Cabo Verde e Angola (BERTHET, 2016: 345).
Em junho de 1914, com a ausência de glossinas e com apenas 19 casos de doença do
sono registrados na ilha, o Príncipe foi considerada uma colônia portuguesa livre da doença do
sono, pelo menos até 1956. O acontecimento foi reverberado pela memorialística médica e
serviu para enaltecer a presença colonial portuguesa na África (COSTA, 1952: 727-735).
Entretanto, a campanha de combate à doença do sono iniciada em 1911 teve altos custos sociais
e ambientais como a redução da área florestal, a eliminação de parte da fauna nativa, a proibição
imposta aos serviçais infectados de deixarem as roças onde trabalhavam e a exigência para que
os agricultores arcassem com a maior parte dos custos daquela empreitada (AMARAL, 2019:
64-82). A participação dos agricultores locais incidiu na obrigatoriedade de fornecerem parte
da mão de obra empregada nos trabalhos de combate às moscas, o material de defesa sanitária,
o tratamento curativo e profilático dos infectados e o sacrifício dos animais domésticos
portadores de tripanossomas (COSTA; et.al.,1915:129).
Ressonâncias no Brasil
Embora algumas referências médicas apontassem, no final do século XIX, para a
existência da doença do sono em escravos no Brasil (MOREIRA, 1901: 317), o vetor daquela
doença – a mosca tsé-tsé – inexistia em terras brasileiras, tanto que o livro Doenças africanas
no Brasil (1935) de José Octavio de Freitas não trouxe nenhuma menção à tripanossomíase
africana em suas 226 páginas (FREITAS, 1935). Contudo, Brasil e Portugal, no alvorecer do
século XX, mantinham um significativo intercâmbio comercial e cultural, os portos nacionais
acolhiam a maior parte da torrente emigratória portuguesa (LOBO, 2001) e a imprensa
brasileira empregava com frequência lusitanos em suas redações (ALMINO, 2003:128). Assim,
os assuntos portugueses ganhavam eco nos principais jornais brasileiros e a maior parte das
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notícias sobre a doença do sono na África, mesmo que muitas delas tenham sido transmitidas
de forma telegráfica, referiam-se às colônias portuguesas como Angola e São Tomé e Príncipe.
Sob o título de “Uma obra meritória”, o jornal Gazeta de Notícias, periódico sediado
no Rio de Janeiro, publicou um texto inteiro sobre a campanha de erradicação das glossinas na
ilha do Príncipe no dia 15 de julho de 1918, quatro anos depois do seu término. Naquele
momento histórico, a Liga Pró-Saneamento do Brasil – fundada em 11 de fevereiro de 1918 por
homens como Belisario Penna, Arthur Neiva, Carlos Chagas, Renato Kehl, Miguel Pereira,
Monteiro Lobato, Vital Brazil e Afrânio Peixoto – apresentava suas propostas em defesa de
uma maior intervenção do governo federal nos assuntos relacionados à saúde da população, em
especial no combate às chamadas endemias rurais, males se não curáveis, pelo menos evitáveis,
como a ancilostomíase, a malária e a doença de Chagas: a tríade maldita dos sertões brasileiros
(HOCHMAN, 2006:62-79).
Anos antes da criação da Liga, Carlos Chagas – cientista brasileiro consagrado pela
descoberta do ciclo da doença designada com o seu nome (KROPF, 2009) – defendia que as
autoridades brasileiras deveriam se preocupar com os graves males impostos às populações
rurais por intermédio do barbeiro, o transmissor do Trypanosoma cruzi. Para Chagas, o combate
à tripanossomíase americana, ou doença de Chagas, deveria ser feito por questões de
patriotismo e humanidade e visando zelar pelo futuro da população brasileira, pois a doença
que aqueles insetos transmitiam inutilizava os homens – por distúrbios cardíacos, nervosos e
endócrinos – antes de matá-los. Por tratar-se de uma tripanossomíase humana, à semelhança da
doença do sono, as comparações com as ações empreendidas pelos europeus na África eram
inevitáveis:
Cumpre salientar que o principal fator epidemiológico da moléstia é constituído por
um inseto, companheiro constante do homem nos domicílios e, por isso mesmo,
facilmente atingível às medidas de destruição. Recuar diante do inimigo tão mesquinho, deixar o campo livre à sua ação devastadora, fora, sem dúvida, a mais alta
expressão da ausência de energia em um povo civilizado. No continente africano, onde
grassa endemicamente a letargia dos pretos, moléstia similar da nossa, a mutuca
transmissora vive no mundo exterior, o que torna de dificuldades quase extremas a
profilaxia da moléstia. E, apesar, disso, as nações civilizadas da Europa, por interesses
exclusivos de colonização, cuidam do assunto com o maior zelo, enviando ao
continente africano, para colher noções científicas e estudar a solução prática do
problema, missões de que têm feito parte os maiores vultos da ciência mundial. E no
caso só atuam interesses de colonização, notai bem!
Entre nós a iniciativa de medidas sanitárias justifica-se, sem dúvida, em considerações
bem mais elevadas: é o futuro de um grande povo que se deverá zelar; são deveres de humanidade e de patriotismo que devem atuar no espírito progressista dos homens de
estado (CHAGAS, 1911:374).
Assim, para voltar o referido artigo publicado pela Gazeta de Notícias, no ano de 1918,
sobre a campanha comandada por médicos portugueses contra as glossinas no Príncipe, o jornal
9
depois de descrever as medidas adotadas pelas autoridades sanitárias na ilha – isolamento e
vigilância dos doentes, uso do Atoxil, extermínio dos porcos e emprego dos coletes com visco
para a captura das moscas –, sem mencionar seus impactos sociais e ambientais, concluiu com
os seguintes dizeres:
Enquanto Portugal assim procede, para defender a vida de uns tantos milhares de
pretos quase selvagens, aqui, na capital de uma República que se julga civilizada, o
impaludismo, a ancilostomíase e mil outros males dizimam a população, já por si tão
depauperada pela dieta que a carestia da vida a obriga a manter (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 1918:2).
A conclusão do artigo compara o êxito lusitano em uma pequena ilha de 136 Km² de
extensão com as dificuldades da República brasileira em combater as doenças que fustigam a
sua própria população. Assim, talvez mais do que simplesmente descrever uma ação bem-
sucedida de médicos portugueses em uma colônia ultramarina, o periódico buscou se posicionar
frente aos problemas sanitários, ainda sem desfecho, que acometiam o próprio Brasil e
tangenciar a comparação tecida por alguns médicos brasileiros, entre eles Carlos Chagas, entre
os esforços empreendidos pelos europeus para combater as doenças tropicais que grassavam
em suas colônias africanas – visando defender seus impérios coloniais – e extrema necessidade
de medidas, por parte das autoridades brasileiras, para debelar as doenças e acometiam a
população do país e sua produtividade.
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