A Memória de Shakespeare

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  • 8/16/2019 A Memória de Shakespeare

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    A Memória de Shakespeare, Jorge Luis Borges

    A Memória de Shakespeare

    Há devotos de Goethe, das Eddas e do tardio cantar dos Nibelungos; Shakespeare foi

    meu destino. Ainda é, mas de um modo ue ninguém teria podido pressentir, salvo um!nico homem, "aniel #horpe, ue acaba de morrer em $ret%ria. Há outro cu&o rostonunca vi.

    Sou Hermann Soergel. ' curioso leitor talve( tenha folheado minha )*ronologia deShakespeare+, ue achei ser necessária certa ve( boa intelig-ncia do teto e ue foitradu(ida para vários idiomas, inclusive o castelhano. N/o é imposs0vel ue recordetambém uma prolongada pol-mica sobre certa emenda ue #heobald intercalou em suaedi1/o cr0tica de 2345 e ue, desde essa data, é parte n/o discutida do c6none.Ho&e, surpreende7me o tom incivil dauelas uase alheias páginas. $or volta de 2825redigi, e n/o entreguei publica1/o, um estudo sobre as palavras compostas ue o

    helenista e dramaturgo George *hapman for&ou para suas vers9es homéricas e ueretrocedem o ingl-s, sem ue ele pudesse suspeitar disso, a sua origem (Urprung)anglo7sa:nica. Nunca pensei ue sua vo(, ue esueci agora, ser7me7ia familiarAlguma separata assinada com iniciais completas, creio, minha biografia literária. N/osei se é l0cito acrescentar uma vers/o inédita de disse > ue o ue di(em se confunde.

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     > Sua hist%ria, ?arcla@, tem alguma coisa de parábola.

    Joi ent/o ue "aniel #horpe falou. Ele o fe( de modo impessoal, sem olhar7nos.$ronunciava o ingl-s de modo peculiar, ue atribu0 a uma longa perman-ncia no'riente.

     > N/o é uma parábola > disse ele >, e, se o for, é verdade.Há coisas de um valor t/o inestimável ue n/o podem ser vendidas. As palavras uetento reconstruir me impressionaram menos do ue a convic1/o com ue as disse "aniel#horpe. Achamos ue diria algo mais, mas de repente calou7se, como ue arrependido.?arcla@ despediu7se. =untos, n%s dois voltamos ao hotel. Era muito tarde, mas "aniel#horpe prop:s7me ue prossegu0ssemos a conversa em seu uarto. Ap%s algumastrivialidades, disse7meK

     > 'fere1o7lhe o anel do rei. L claro ue se trata de uma metáfora, mas o ue essametáfora encobre n/o é menos prodigioso ue o anel. 'fere1o7lhe a mem%ria de

    Shakespeare desde os dias mais pueris e antigos até os do in0cio de abril de 2M2M. N/oacertei em pronunciar uma palavra. Joi como se me oferecessem o mar. #horpecontinuouK

     > N/o sou um impostor. N/o estou louco. ogo7lhe ue n/o &ulgue até depois de ouvir7me. ' ma&or deve ter7lhe dito ue sou, ou era, médico militar. A hist%ria cabe em poucas

     palavras. *ome1a no 'riente, ao alvorecer, em um hospital de sangue. A data precisan/o importa. Em suas !ltimas palavras, um soldado raso, Adam *la@, ue havia sidoatingido por duas descargas de fu(il, ofereceu7me, pouco antes do fim, a preciosamem%ria. A agonia e a febre s/o inventivas; aceitei a oferta sem dar7lhe crédito. Alémdisso, depois de uma a1/o de guerra, nada é muito estranho. ' senhor, agora, tem a mem%ria de ShakespeareI

    #horpe respondeuK

     > #enho, ainda, duas mem%rias. A minha pessoal e a dauele Shakespeare ue parcialmente sou. 'u melhor, duas mem%rias me t-m. Há uma (ona em ue seconfundem. Há um rosto de mulher ue n/o sei a ue século atribuir.

    $erguntei7lhe ent/oK

     > ' ue fe( o senhor com a mem%ria de ShakespeareI

    Houve um sil-ncio. "epois disseK

     > Escrevi uma biografia romanceada ue mereceu o desdém da cr0tica e algum sucesso

    comercial nos Estados Dnidos e nas col:nias. Acho ue é tudo. $reveni7o de ue meu presente n/o é uma sinecura. *ontinuo espera de sua resposta.

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    Jiuei pensando. N/o havia consagrado minha vida, n/o menos incolor ue estranha,  busca de ShakespeareI N/o seria &usto ue no fim da &ornada eu desse com eleI

    "isse, articulando bem cada palavraK

     > Aceito a mem%ria de Shakespeare.

    Algo, sem d!vida, aconteceu, mas n/o percebi.

    Apenas um princ0pio de fadiga, talve( imaginária.

    embro claramente ue #horpe me disseK

     > A mem%ria &á entrou em sua consci-ncia, mas é preciso descobri7la. Surgirá nossonhos, na vig0lia, ao virar as folhas de um livro ou ao dobrar uma esuina. ' senhor 

    n/o se impaciente, n/o invente lembran1as. ' acaso pode favorec-7lo ou atrasá7lo,segundo seu misterioso modo. O medida ue eu vá esuecendo, o senhor recordará. N/olhe prometo um pra(o.

    ' ue sobrava da noite foi dedicado a discutir o caráter de Sh@lock. Abstive7me deindagar se Shakespeare havia tido contato pessoal com &udeus. N/o uis ue #horpeimaginasse ue eu o submetia a uma prova. *omprovei, n/o sei se com al0vio ou cominuieta1/o, ue suas opini9es eram t/o acad-micas e t/o convencionais como asminhas.

    Apesar da vig0lia anterior, uase n/o dormi na noite seguinte. "escobri, como em outrastantas ocasi9es, ue eu era um covarde. $elo temor de ser defraudado, n/o me entreguei generosa esperan1a. Puis pensar ue era ilus%rio o presente de #horpe.rresistivelmente, a esperan1a prevaleceu. Shakespeare seria meu, como ninguém foi deninguém, nem no amor, nem na ami(ade, nem seuer no %dio. "e algum modo eu seriaShakespeare. N/o escreveria as tragédias nem os intrincados sonetos, mas recordaria oinstante em ue me foram reveladas as bruas, ue também s/o as parcas, e aueleoutro em ue me foram dadas as vastas linhasK

     And shake the yoke of inauspicious stars

     From this worldweary flesh.

    embraria Anne HathaQa@ como lembro auela mulher, &á madura, ue me ensinou oamor em um apartamento de Rbeck, há tantos anos. B#entei recordá7la e s% puderecuperar o papel de parede, ue era amarelo, e a claridade ue vinha da &anela. Esse

     primeiro fracasso deveria antecipar7me os demaisC.

    Eu havia postulado ue as imagens da prodigiosa mem%ria seriam, antes de mais nada,visuais. N/o foi o ue aconteceu. "ias depois, ao barbear7me, pronunciei ante o espelhoalgumas palavras ue me surpreenderam e ue pertenciam, como um colega meassinalou, ao A, ?, * de *haucer. Dma tarde, ao sair do

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    =á terá o leitor percebido o tra1o comum dessas primeiras revela19es de uma mem%riaue era, apesar do esplendor de algumas metáforas, bem mais auditiva do ue visual. "ePuince@ afirma ue o cérebro do homem é um palimpsesto. *ada nova escrita encobre aescrita anterior e é encoberta pela seguinte, mas a todo7poderosa mem%ria pode eumar ualuer impress/o, por mais moment6nea ue tenha sido, se lhe derem o suficiente

    est0mulo. A &ulgar por seu testamento, n/o havia um !nico livro, nem seuer a ?0blia, nacasa de Shakespeare, mas ninguém ignora as obras ue freRentou. *haucer, GoQer,Spenser, *hristopher

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    nem artificial demais (nicht all$u glatt und gekünstelt). Essa mesma ra(/o levou7o amisturar suas metáforas.

     %y way of life

     &s fall'n into the sear! the yellow leaf.

    *erta manh/ discerni uma culpa no fundo de sua mem%ria, N/o procurei defini7la;Shakespeare o fe( para sempre. $ara mim, basta declarar ue essa culpa nada tinha emcomum com a pervers/o. *ompreendi ue as tr-s faculdades da alma humana, mem%ria,entendimento e vontade, n/o s/o uma fic1/o escolástica. A mem%ria de Shakespeare n/o

     podia revelar7me outra coisa ue as circunst6ncias de Shakespeare. L evidente ue estasn/o constituem a singularidade do poeta; o ue importa é a obra ue eecutou com essematerial inconsistente.

    ngenuamente, eu havia premeditado, como #horpe, uma biografia. N/o demorei em

    descobrir ue esse g-nero iterário reuer condi19es de escritor ue por certo n/o s/ominhas. N/o sei narrar. N/o sei narrar minha pr%pria hist%ria, ue é bem maisetraordinária ue a de Shakespeare. Além do mais, esse livro seria in!til. ' acaso ou odestino deram a Shakespeare as triviais coisas terr0veis ue todo homem conhece; elesoube transmutá7las em fábulas, em personagens muito mais vividos ue o homemcin(a ue sonhou com eles, em versos ue as gera19es n/o deiar/o desaparecer, emm!sica verbal. $ara ue destecer essa rede, para ue minar a torre, para ue redu(ir sm%dicas propor19es de uma biografia documental ou de um romance realista o som e af!ria de

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     > Toc- uer a mem%ria de ShakespeareI Sei ue o ue lhe ofere1o é muito sério. $ense bem.

    Dma vo( incrédula replicouK

     > Enfrentarei esse risco. Aceito a mem%ria de Shakespeare.

    "eclarei as condi19es da dádiva. $aradoalmente, sentia ao mesmo tempo a nostalgiado livro ue eu deveria ter escrito e ue me foi proibido escrever e o temor de ue oh%spede, o espectro, nunca me deiasse.

    "esliguei o telefone e repeti como uma esperan1a estas resignadas palavrasK

    +imply the thing & am shall make me lie.

    Eu havia imaginado disciplinas para despertar a antiga mem%ria; tive de buscar outras

     para apagá7la. Dma entre tantas foi o estudo da mitologia de Filliam ?lake, disc0pulorebelde de SQedenborg. *omprovei ue era menos complea do ue complicada.

    Esse e outros caminhos foram in!teis; todos levavam7me a Shakespeare.

    Encontrei, enfim, a !nica solu1/o para povoar a esperaK a estrita e vasta m!sica, ?ach. P+. *,- / 01 sou um homem entre os homens. Na vig0lia sou o professor eméritoHermann Soergel; manuseio um fichário e redi&o trivialidades eruditas, mas na aurorasei, algumas ve(es, ue auele ue sonha é o outro. "e ve( em uando, surpreendem7me peuenas e fuga(es mem%rias ue talve( se&am aut-nticas. Ap%s sua leituraconsidere seriamente a possibilidade de aduirir o original, pois assim voc- estaráincentivando o autor e a publica1/o de novas obras.

    2. *ompreende tr-s contos inseridos em diferentes publica19es, anteriores a 28V4, e umintitulado )A mem%ria de Shakespeare+ B28VWC, n/o inclu0do até agora em livro.

    2. )' meio ambiente cotidiano.+ BN. da #.C