A memória tatuada - epifania corporal - daniel lins

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  • 7/29/2019 A memria tatuada - epifania corporal - daniel lins

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    Daniel Lins

    A memria tatuada - epifania corporalda ordem comunitria

    Para Abdelkebir Khatibi, filsofo maior, cujos livros: La memoire ta-toue. La blessure du nom propre abriram novas perspetivas para a presente

    pesquisa.

    Eis sobre a pele, em superfcie, a alma mutvel, ondulante e fugaz, a

    alma estriada, nuvem escura e espessa, tigrada, zebrada, matizada, rodo-piante, incendiria; eis a a tatuagem. Aqueles que sentem necessidade dever para saber ou crer desenham ou pintam e fixam o lago da pele, mutvel eossificada, tornam visvel, por meio das cores e das formas, o puro tctil...

    Michel Serres

    A tatuagem, fundada numa instabilidade de sistemas semiticos,ostenta sua maneira o movimento pictogrfico. Testemunha de uma escritaagora morta, a tatuagem age segundo um trao quase imutvel no campo deuma diferena to esquecida e to sumria que a cena torna-se livre para umameditao que pretende decifrar a morte. Unir essas duas palavras -meditao e morte - no um acaso: penso que a perda absoluta do sentido eda leitura a maior violncia que possamos usar contra os saberes.

    A tatuagem como jogo grfico se situa no encontro de uma certametafsica do ser: a perda de contato provoca a perda do objeto percebidooriginalmente; o geometrismo conduz por sua vez figurao do sujeito.Assim, pois, um simples tema decorativo ajuda a arruinar delicadamente adialtica sujeito/objeto, engendrando sujeitos geogrficos alheios idia desujeito unificado, configurado, solitrio... Isto , no mais a gramtica:singular, plural, masculino, feminino, neutro, mas uma geografia corporal,uma cartografia do desejo marcada pelo rapto, pela ddiva, e pelo signo:

    (...) uma dana sobre a terra, um desenho sobre a parede, uma marcasobre o corpo so um sistema grfico, um geografismo, uma geografia. Essasformaes so orais precisamente porque elas tm um sistema grfico,

    independentemente da voz, que no se alinha sobre ela e no se subordina aela, mas lhe conectado, coordenado em uma organizao de certa maneiraradiante e pluridimensional.1

    Se desapropriar assim do corpo, trair a hierarquia de seus valores, eanotar, por um artifcio rodopiante, uma falsa mscara da morte; a tatuagem

    1 Deleuze, Gilles e Guattari, Flix. O anti-dipo Capitalismo e esquizofrenia. TraduoGeorges Lamazire, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 239.

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    s pode ser invocada nesse ritmo: um corpo decorado cuja nudezescritural reitera a morte.

    No se trata nem de feitiaria nem de passe de mgica terico arespeito da escrita, mas de pensar conosco/contra ns o simplesprolongamento de um ponto de vista sob o ngulo do qual o corpo-objetono existe mais no corpo tatuado: o corpo marcado, que a memria tatuada,trabalha com a carne e escreve na epiderme o pr-histrico da humanidade:

    (...) servir-se da mnemotcnica mais cruel, em plena carne, paraimpor uma memria das palavras sobre a base do recalcamento da velha

    memria bio-csmica.

    2

    Amortecer pois um certo saber sobre a escrita, transformar o corpo em

    decorao, ir de uma maneira instvel extremidade do desinteresseprodutivo, salvo se entrarmos na codificao anarco-desejante da mquinaprimitiva que ignora a troca pois, semelhante ao desejo, ela s conhece oroubo e o dom :

    A mquina territorial primitiva codifica os fluxos, investe os rgos,marca os corpos. At que ponto circular (trocar) uma atividade secundriaem relao a essa tarefa que resume todas as outras: marcar os corpos que

    so da terra. A essncia do socius registrador, inscritor, enquanto ele seatribui as foras produtivas, e distribui os agentes de produo, reside nisso

    tatuar, excitar, incisar, recortar, escarificar, mutilar, cercar, iniciar.3

    Tatuagem , pois, diz Khatibi,

    o conjunto desenhado como um novo tecido decorando o corpo. Ora,na palavra-tecido h a idia de composio microfsica da matria, a idiade um espao ritmado e, em ltima anlise, a noo de escrita. Algunstecidos existem tanto nos tapetes como nos corpos tatuados. Estamos longede um jogo de palavras. O tecido no se articula com nenhuma sintaxeconhecida, que consiste em um repertrio de figuras geomtricas facilmentelocalizveis. Chamemos signos migratrios os tecidos e as formas

    geomtricas que atravessam diversos sistemas semiticos. O objetivo dissolver nosso discurso em uma tal animao.4

    Roupa escrita, a tatuagem possui um repertrio de signos bastante ele-

    mentar e que resiste as teorias da representao e, por amlgama, a identida-

    2Id., p. 239; cf. Lins, Daniel Esquecer no crime In: Nietzsche e DeleuzeIntensidadee Paixo. Daniel Lins, Sylvio Gadelha e Alexandre Veras (org.) Rio de Janeiro: RelumeDumar, 1999.3Id., p. 1834 Khatibi, Abdelkebir.La blessure du nom propre. Paris: Denol, 1986, p. 81; cf.La memo-ire tatoue. Paris: Denol, Lettres Nouvelles, 1971.

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    de. A tatuagem permite o duelo ertico entre simtrico e assimtrico, a eco-nomia viva de um gesto amoroso e de um desejo desdobrado, teatralizado.

    O corpo tatuado uma grafia que desfigura a noo deapropriao, uma escrita que exige ser lida, amada, desejada no seumovimento o mais emocionante, o mais perturbador.5

    O corpo tatuado, visto pois como um livro, um tecido, um perga-minho, uma outra pele onde o sujeito desterritorializado produz sua prprialgica que funciona no como uma estrutura, mas como um processo queengendra e desengendra o gozo, gozos. Sistema semitico, a tatuagem umatraduo do corpo e de seu gozo: do trao tatuado paixo incestuosa, odesdobramento de uma escrita eufrica. dela que depende a economia dotexto e do prazer.

    Mas o corpo tatuado tambm uma constelao de provrbios...Amor s de me! Sonha, ou morre! Teu nome teu destino. Amarfoi minha runa!

    Nenhum texto pode se demitir facilmente do trabalho mtico que osupe e o trespassa. aqui que a escrita no corpo encontra sua definio:

    A tatuagem como hiperescrita do signo vazio. Reduzidos ao passe demgica, os enigmas do texto no corpo tatuado entram em sncope sob a foradevastadora de uma iluso de um infinito lgico e classificador.6

    Entre o real e o possvel se aloja a conscincia retrica do eu-pele,7 doeu-tatuado cuja polissemia infinita de cores e traos organiza a ecloso deum eu singular, um eu gramatical numa massa de eus, numa multidoannima, num bloco eliminando, assim, a idia de estrutura. Tatuagem comoo desenho nu de minha solido: um ponto, uma ponta.

    8 A sabedoria

    selvagem de Nietzsche ter eclodido o discurso ocidental, sua tirania ce n-tralizadora. Pensamos com Derrida que o signo escrito (o trao) um signosem origem, um signo alojado na diferena, na mais violenta diferena, a di-ferena intratvel.9

    5Id.,p.234.6Id. Ibidem., p. 177 Cf. Anzieu, D. Moi-peau. Paris: Dunod. 19858 Khatibi, A. Id. Ibidem., p. 629 Cf. Derrida, Jacques. De la gramatologie, Paris: Minuit, 1967; cf. LINS, Daniel. Comodizer o indizvel In Cultura e SubjetividadeSaberes Nmades (Daniel Lins org.). Cam-pinas: Papiris, 2a ed., p. 69ss, 2000

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    Tatuagem e transgresso

    O mito exprime sempre uma passagem e um desvio. Lombroso contaa histria de Malassen. Assassino clebre, da Nova Calednia, ele se fez ta-tuar no peito uma guilhotina vermelha e negra com a legenda:

    o fim que me espera. Outros prisioneiros tatuam simplesmente umalinha pontilhada arrodeando o pescoo com a inscrio: "Cortar aqui.

    De qualquer maneira, patriticas ou anarquistas, diferentes ou irnicasem relao cultura das pessoas cultas, as tatuagens dos que vivem mar-gem obedecem ao princpio de McLuhan a mensagem o meio. A tatu-agem sem dvida a transgresso maior numa cultura de representao quetende ao afeito ilusionista, quer dizer neutralizao do suporte e da transpa-rncia dos signos.

    O quadro da representao, legitimador da objetividade, sedesestabiliza ento; treme, se deforma, se enche, suscitando no espectadoruma empatia epidrmica que curto-circuita a distncia visual. Essa relaodo corpo, tradicionalmente expurgada da representao, visto que o corposela a inerncia do sujeito com o objeto, toma necessariamente umatonalidade ertica. Ao endurecer seu bceps, o marinheiro incha as velas dacaravela tatuada no seu brao. Anamorfose

    *viva, a imagem flutuante

    entregue as dilataes musculares no pode deixar de evocar a tumescncia.Em suma, o suporte eletivo do trao, apto a avantajar odesenvolvimento da tatuagem, evidentemente o rgo ereto por excelncia,o pnis, mesmo se a tatuagem no pnis continua, segundo as estatsticas,pouco praticada pois uma das mais dolorosas.

    10

    Por outro lado, se tatuar deliberadamente reivindicar a excluso daqual se objeto, e fazer dela uma glria. Basta ler as inmeras obras de me-dicina, notadamente psiquitricas, consagradas tatuagem, sobretudo nosculo XIX, para discernir, sob a pseudo cientificidade afetada pelos seusautores, um oprbrio lanado contra a marca corporal, apresentada como osigno de uma decadncia moral.

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    Mas preciso no negligenciar o fato de que a tatuagem muitas

    vezes uma prtica daqueles que no se exprimem facilmente por meio dapalavra, que se ressentem confusamente como vtimas da ordem logocntrica

    * Anamorfose: deformao de uma imagem pelo sistema tico; arte de representar umaimagem ampliada.10 Cf. Lacan, Jacques.L'anamorphose, Le Sminaire XII, Paris: Seuil, 1973, pp. 75-84.11 Bourgeois, M. e Campagne, A. Tatouage et psyquiatrie. Annales mdico-psycholo-giques, 2, 1971, pp. 391-413; Britt, B. The incidence of tattooing In: A male criminal po-pulation. Behavior Neuropsychiatry 4, 1972, pp. 13-16.

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    e que reagem, numa contraveno espetacular, ao princpio cultural deintegridade do corpo. preciso tambm assinalar que o ato da tatuagem noquer apenas significar um "mal estar", caro aos psiquiatras. A representaonesse contexto no tem valor metafrico, mesmo se o desenho na pele temum valor simblico. A metfora no apenas portadora de sentido, ela "geradora" de Valores alegricos, ela determina uma empatia em si criadora.

    Memria tatuada, identidades tatuadas: nascimento da escrita

    Epifania corporal da ordem comunitria, a marca corporal primitivaafirma tanto a heterogeneidade das comunidades, no seu prprio interiorcomo tambm a heterogeneidade das individualidades. Poderamos mesmodizer que a tatuagem ou a marca corporal tem como funo prevenir o nive-lamento ou a massificao que so a ameaa interna de todo agrupamentoconstitudo.

    Ora, a tatuagem no uma expresso puramente individualista.Digamos que ela marca a imposio diferencial da lei e da ordem simblicanos corpos dos indivduos. Mas essa assuno ou epifania corporal indicamuito bem a encarnao da ordem comunitria. O smbolo de certamaneira coextensivo ao organismo social. No existe funcionamento nemsuporte separados; seus elementos de articulao so os prprios indivduos

    que se diferenciam uns dos outros como as letras dessa inscrio feito carne,feito memria tatuada, que constitui o grupo.Ora, a passagem da comunidade primitiva - sociedade sem Estado ou

    contra o Estado - sociedade com Estado, significa a instituio de um apa-relho especializado, exterior aos indivduos, e codificado independentementedeles, e marca tambm o nascimento da escrita.

    12

    O nascimento da escrita est efetivamente ligado constituio decidades e imprios, quer dizer hierarquizao social, a diviso do trabalhoe a explorao do homem pelo o homem. Como observou Lvi-Strauss,

    necessrio admitir que a funo primria da comunicao escrita facilitar a subjugao. O uso da escrita para fins desinteressados, em vistade dela tirar satisfaes intelectuais eestticas, um resultado secundrio,

    mesmo se ela no se reduz, maioria das vezes, a um meio de enterrar,justificar ou dissimular outro.

    13

    Se a lei do grupo no mais (no sculo XXI) figurada no corpo dosindivduos, porque, desde logo, ela transcrita num pergaminho, quer dizernuma pele annima que a pele de todo mundo, e que, portanto, ningum

    12Cf. Pierre Clastres.A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 199013 Strauss-Lvi. C.La pense sauvage. Paris: Plon, 1962, p. 26

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    sensato ignor-la. Ela deixa apenas de ser atualizada para cada membro dogrupo. So exclusivamente os que tm acesso a escrita que podem se arrogaro direito de conserv-la, formul-la e aplic-la. Entramos assim no campodos diversos capitais: lingstico, cultural, semitico, intersemitico etc.

    14

    A tatuagem no desaparece pois com o acontecimento da escrita: elafica apenas em reserva. Se a lei difere assim sua inscrio e se pe em inst-ncia para marcar sua desindividualizao e sua universalizao. No ,pois, por respeito ao corpo que a lei o livra, ao contrrio para significar queos corpos tornaram-se a seus olhos essenciais e intercambiveis. Nas socie-dades com Estado as diferenciaes das instituies econmicas, jurdicas,militares, polticas implicam uma indiferena e uma eficcia dos Indivduos.Esses sero sociveis medida de sua disponibilidade. Ao recusarem a in-tertrocabilidades eles se excluem do jogo social e se expem, nesse caso, marca infamante que sanciona sua regresso associabilidade e selvageria.

    A marca corporal no foi abandonada; com a constituio, todavia,dos Estados centralizados, ela inverte pouco a pouco sua significao, indi-cando no mais a incluso, porm, a excluso social, ou em todo caso a re-gresso a uma condio marginal. A marca tende a s se aplicar aos conde-nados, aos escravos e, s vezes, as mulheres (ela conserva nesse caso umcarter mgico, decorativo ou repressivo).

    Essa trajetria geral em todos os grandes imprios, quer seja na

    Europa, no Mdio Oriente, na sia etc.15

    O mercado de escravos - portugus,espanhol, holands, ingls ou francs - instituiu e praticou a marcao dosescravos com as iniciais de seu mestre, de forma a garantir sua identificaoem caso de evaso.

    Com a acelerao das atividades econmicas, os escravos comearama escravo a acrescentarem novas marcas. Houve uma superposio demarcas de tal forma que os prprios senhores se confundiam. Essa reabsor-o de tatuagem por inflao pode ser considerada como prdromo s mud-anas ou crises socioeconmicas: a sociedade industrial exige a liberao damo de obra sobre o mercado de trabalho, a mobilidade e a intertecambiali-dade de trabalhadores, ou seja seu anonimato. Personagens prteses, prt--porter, descartveis, os escravos tatuados, marcados, assim considerados

    pelos proprietrios, perdiam a singularidade e tornavam-se os exilados dadiferena.

    14 Cf. Bourdieu "A crtica armada ou Mit den waffen der kritik" In: O campo econmico - Adimenso simblica da dominao. Daniel Lins (org.) Campinas: Papirus, 2000, pp. 35-5015 Cf. Jean-Thierry Maertes.Le dessein sur la peau. Paris: Aubier Montaigne, 1978, p. 31

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    O imaginrio do outro: o ndio "Nu e pintado"

    Ao ler a carta de Pero Vaz de Caminha, pode-se constatar que o quechama mais a ateno dos descobridores so os corpos nus e p intados dosndios. No dia 23 de abril de 1500, quinta feira, dia da chegada da frota,Caminha escreve: Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes co-brisse suas vergonhas.

    16

    Na sexta feira, dia 24, Caminha fala pela primeira vez dos beiosfurados, no sbado, Caminha faz referncia aos corpos pintados dos na-tivos:

    (...) a andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade delesda sua prpria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outrosquartejados de escaques (quadriculados).

    Tudo indica que os membros da nau portuguesa no tenham visto, aochegar, ndios tatuados. Hoje, sabemos, muitos ndios se tatuavam,notadamente os Tupi-guarani, os Munducuru etc. O comerciante francsPaulmier de Gonneville, que esteve no Brasil de 1503 a 1505, foi o primeiroa falar no de tatuagem, mas de escarificao:

    (...) l se encontraram os ndios rudes, nus como vindos do ventre dame (...); o corpo pintado, sobretudo de negro; lbios furados, os buracos

    guarnecidos de pedras verdes bem polidas e encaixadas; cortados emvrios lugares da pele, aos lanhos, (canibais) para parecerem maisgarbosos (...).

    S em 1512, os ndios da nao tupi foram vistos na Frana por HenriEstienne:

    Tem cor carregada e os lbios grossos, seus rostos so recortados decicatrizes, dir-se-ia que algumas veias azuladas partem das orelhas para seencontrarem no queixo (Em meados do sculo XVI, e tambm no sculoXVII, era moda no meio gr-fino francs contratar ndios como valetes oudomsticos).

    Claude D'Abbeville, no seu livro Histria da Misso dos Padres

    Capuchinhos na Ilha do Maranho e terras circunvizinhas (1614), conta queentre seis ndios levados para a Frana, um tabajara tinha tatuagem "desde asobrancelhas at os joelhos mais ou menos". Mas, antes de D'Abbeville, o je-suta Ferno Cardim em seus Tratados da escreve:

    16A carta de Pero Vaz de Caminha. Volume 7 das Obras Completas de Jaime Corteso.Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994.

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    Dali a certos dias lhe do o hbito, no do pelote, que ele no tem,seno na prpria pele, sarrafaando-o por todo o corpo com dente de cotia,que se parece com dente de coelho, o qual, assim por sua pouca sutileza,como por eles terem a pele dura, parece que rasgam um pergaminho, e seeles so animosos no lhe do as riscas direitas, seno cruzadas, de maneiraque ficam uns lavores muito primos, e alguns gemem e gritam com as dores.

    Acabado isto, tem carvo modo e sumo de erva-moura com que elesesfregam as riscas ao travs, fazendo-as arreganhar e inchar, que aindamaior tormento, e enquanto lhe saram as feridas que duram alguns dias, estele deitado na rede sem falar nem pedir nada (...) Depois de sarar, passadosmuitos dias ou meses, se fazem grandes vinhos para ele tirar o d e fazer ocabelo, que at ali no fez, e ento se tinge de preto, e dali por diante ficahabilitado para matar (...), vai-se para casa (...) e as mes com os meninosao colo lhe do parabns, esteiam-no para a guerra, tingindo-lhe os braoscom aquele sangue (...).

    Spix e Martius retratam no terceiro volume do livro Viagem peloBrasil (1817-1820) o uso da tatuagem nos ndios da tribo dos Munducuru.Urucum e jenipapo foram as principais matrias-primas usadas pelas naesindgenas para a fabricao de tintas que ornamentavam seus corpos. Apintura no corpo e a tatuagem marcavam os momentos mais importantes davida social e religiosa de algumas etnias de ndios brasileiros, sobretudo osTupinamb, Tabajara, Cabila, Guarani e Bo-roro: nascimento, entrada na

    puberdade, rituais religiosos, danas sagradas, culinria, medicina, erotismoe, em alguns casos, canibalismo:

    (...) e mais generalizadas so os sinais feitos pela tatuagem, sobretudo no rosto, que os pais comeam a praticar j na primeira infncia dos

    filhos, ferindo-lhes a pele com um feixe de espinhos de palmeira ou com ums deles e friccionando-a com o suco pardo do jenipapo ou do caruto (...),que produz uma tonalidade pardo-azulada, a qual transluz na epiderme enunca mais se apaga. Da resulta a mancha no rosto ou a malha (em tupi,

    sabkytam).

    A tatuagem fazia, por exemplo, parte do rito de passagem ou dainiciao na puberdade dos G, Tupi e Cabila. J os Auet e os Camarriturausavam a tatuagem como medicina ou magia com virtudes curativas. OsCariba e os Guan faziam da tatuagem um uso decorativo ou distintivo. Atatuagem, como decorao ou ornamento sexual, foi usada, notadamente,pelos Guan e os Cadiueu.

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    Cada tatuagem tinha, pois, sua significao. Para os Bororo, uma boacozinheira devia ter a mo tatuada. Mais ainda, a gastronomia bororo s

    17 Cf. De Alencar Neto, Meton e Nava, Jos. Tatuagens e desenhos cicatriciais. Belo Ho-rizonte: Edies MP 1966.

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    atingia o pice de sua qualidade de degustao quando preparada por umamulher tatuada. O sabor funciona aqui como uma espcie de eco simblicodo ergeno dessa mulher e de seus comensais sobredeterminando o alimento,transformando-o de produto bruto em objeto de cultura.

    O discurso socioeconmico selvagem ou primitivo circula nasestruturas lingsticas, e esta caracterstica determina a inscrio tegumentarno seu modo de transmisso e nas suas formas. Assim, a utopia social e oergeno individual se conjugam na realizao do desenho chegando a dit-lo, como na tatuagem dos Caduveo, as estruturas binrias e ternrias que orupo procura impor entre cls na repartio do territrio dos vilarejos.

    Na mesma perspectiva, a maior parte das tatuagens ditas selvagens ouprimitivas so transmitidas por uma gerao mais idosa uma gerao maisjovem, agindo assim numa continuidade repetitiva da inscrio do desejoparental sob a pele da criana, como se aqueles que vo viver devessem sermarcados pelo desejo dos que vo morrer. Por intermdio da tatuagem e daescariao o discurso , ao p da letra, incorporado, introduzido na pele,indissoluvelmente introjetado como uma memria tatuada.

    O sculo XX

    Evoluo da tatuagem no sculo XX: marginalizao, perda de sentido

    ou superposio de um imaginrio negativo?A Segunda Guerra mundial cristaliza a negatividade da tatuagem aoassociar, no imaginrio coletivo, tatuagem e marcao (odiosas marcas dematriculao usadas pelos nazistas contra os judeus nos campos deconcentrao, as tatuagens indicavam o grupo sanguneo do prisioneiro; j asmarcaes ao ferro rubro usadas pelas Volantes e por alguns cangaceiros, esobretudo por Jos Baiano, nos anos 20, no serto nordestino, contra"traidores" das Volantes, que marcaram e sua prpria me, ou mulheresinimigas, exacerbaram a cultura da vingana18. Poderemos, nesse caso, falarde estigma: palavra grega designando uma injeo de ferro rubro (vermelho)ou uma injeo com um instrumento pontiagudo.

    Observe-se de passagem que as tatuagens ditas de fantasia

    provocaram, no contexto da Segunda Guerra mundial, uma vaga decolecionismo, particularmente perverso e mrbido: Ilse Koch faziaconfeccionar em Buchenwald abat-jour (quebra-luz) fabricado com pelehumana tatuada; um mdico diretor de campos de concentrao afirmou tercontemplado em Berlim as mais belas peles humanas.

    18 Lins, Daniel.La passion selon Lampio - Le roi des Cangaceiros. Paris: Seuil, 1995

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    Alm de tais lapsos, existe uma prtica mais caracterizada da inscriocorporal que assume seu carter transgressivo: as tatuagens que apareceramna Europa desde o sculo XVIII ou talvez antes. Elas foram primeiro umaprtica reduzida aos marinheiros, aos soldados e aos prisioneiros, quer dizerqueles que estiveram em contato com os primitivos" das colnias.

    Ser que no houve na origem uma vontade de provocao da partedeles, consistindo a se assimilarem aos selvagens?

    Essa prtica foi a seguir difundida em certos meios populares, massobretudo em indivduos em situao de infrao, malfeitores, prisioneiros eprostitutas. At o meio do sculo XX, havia muitos tatuados nos hospitaispsiquitricos, semelhantes s tatuagens dos crceres, e que por sinal, amaioria tinha sido feitas antes do internamento.19

    Alm dessa referncia, a tatuagem europia evoca certamente a marca,a desonra, a tatuagem no ombro dos criminosos e dos escravostradicionalmente marcada ao ferro rubro.

    Tatuagem: dissidncia ou produo de um romantismo bandido?

    Em toda evidncia, os temas das imagens tatuadas parecem contrad-izer em geral o imaginrio da tatuagem como desafio, revolta ou dissidncia,mesmo considerando que aqui e ali existe alguns exemplos de uso poltico

    da tatuagem. Os tatuados parecem sentir um certo prazer (diante da selvage-ria) em acordar o terror. Eles exibem suas marcas indelveis como uma re-cusa definitiva de integrao. Isso verdadeiro,

    sobretudo em se tratando de inscries que s se podem apagar com amorte de seu autor - desafio renovado de maneira fantstica pelos

    prisioneiros soviticos, nos gulagues, que tatuaram na testa a inscrio:'prisioneiro de Brejnev'

    20

    Mas, o que se v em geral so efgies ou alegorias patriticas queparecem dar um lugar importante figura do pai: Napoleo, Foch, Ptain, deGaulle esto muitas vezes presentes - em forma de tatuagem - no peito dossoldados, quando no a Ptria (USA: I love You!) a Repblica (Bleu,

    blanc, rouge, Ordem e Progresso) tatuadas nos peitos cabeludos demilitares, marinheiros, prisioneiros etc. Ou ainda, o retorno a uma situaoedipiana nem sempre bem resolvida: Mame eu te amo!; Para minhaquerida mame!; Amor de me no se acaba; Amor s de me; etc. A

    19 Bruno C. Tatous, qui tes-vous... Bruxelas: Ed. Feynerolles, 1970.20 Elbin, Vincent. Corps dcors. Paris: Ed. Du Chne, 1979; Belmont-Thlme. L'odyssedu tatouage.Les aspects sociologiques, psychologiques et pathologiques en 1980 . Tese deMedicina, Lyon, 1980.

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    Gioconda, A Primavera, de Botticelli, o assassinato de Henrique III, emsntese, os emblemas da grande pintura refratados na cultura popularaparecem tambm muitas vezes. Mas essas imagens estereotipadasconstituem apenas um registro entre outros temas ditos anti-sociais:morte polcia;corao de malandro; nem deus nem mestre;vingana; anda ou morre; a priso espera por mim; no sofrer. Ou a

    tatuagem de um tmulo com a inscrio resignada: aqui a gente encontra aigualdade.

    Smbolos de violncia: um punhal, uma espada, um canho, emblemaserticos e outras manifestaes de um humor provocador: torneira doamor, experimente e compare tatuada sobre o pnis.21

    A apario dos dermgrafos eltricos (lpis dermogrfico, lpis espe-cial usado na medicina para marcaes na pele) no final do sculo XIX tor-nou a tatuagem menos dolorosa, foi sem dvida um fator de extenso datatuagem.

    Tatuagem e moda

    No sculo da comunicao, a tatuagem tornou-se um fato meditico:fenmeno de moda, ela objeto de artigos dentro e fora das universidadeseuropias e americanas e muito pouco no Brasil. Discusses srias, aprofun-

    dadas so todavia raras.Tatuados clebres, que se ressentem confusamente como vtimas daordem logocntrica e que reagem numa contraveno espetacular do princp-io cultural de integridade do corpo, so porm, at certo ponto, legitimadoresde um ato cujos aspectos narcsicos esto evidentes: Winston Churchill e aSra Franklin Roosevelt, Barry Goldwater, Harry Truman, J.F. Kennedy,Tito, Staline, Charles Trenet, Sean Connery, Robert de Niro etc.

    Na conferncia de Yalta, Roosevelt, Staline e Churchill estavamtatuados: Churchill com uma ncora da marinha no brao, Roosevelt comum blaso de famlia no bceps e Staline com uma cabea de morte no peito.Mas, com a guerra de Indochina e Arglia, a tatuagem ganhou, sobretudo nomeio militar francs, graduados e simples soldados, um lugar de destaque

    reinaugurando um imaginrio positivo do eu-tatuado, do eu-pele. Assim, amarca corporal se perpetua na sociedade ocidental mas sob uma formavergonhosa: ela no se mostra mais como tal, sob pena de oprbrio ou deridculo, ela deve somente fazer efeito de enganao. Ela responde nossademanda de realidade, ela se afeta de natural e s admitida sob o libi daintegridade do corpo que ela suposta reconstituir. Dito de outra maneira,

    21 Caruchet, William.Bas-fonds du crime et du tatouage. Mnaco: Ed. Rocher, 1981

  • 7/29/2019 A memria tatuada - epifania corporal - daniel lins

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    Daniel Lins

    A memria tatuada... 161

    ela faz hoje o objeto do recalcamento cuja maquilagem, um sintoma quepode tomar um carter quase histrico.

    Ritual social, a tatuagem tornou-se, no sculo XX, um signoindividual, com exceo de algumas comunidades ditas alternativas onde seconserva um valor inicitico de vinculao com um grupo. Mas o que restada tatuagem, uma vez perdidos os valores mgicos, religiosos e sociais?

    Resta a dimenso esttica, diria. Mesmo se em si, essa dimenso trspouca informao sobre o indivduo tatuado: quer dizer o carter indi-spensvel de uma abordagem antropolgica e notadamente esquizoanaltica,

    como maneira de aprofundar as motivaes secretas de cada um, de um atoque, por ter-se tornado individual, existe, porm, desde o tempo em que ohomem tem uma histria.

    Se preciso no limitar o estudo da tatuagem a um psicologismo-apressado, nem reduzi-lo uma nica interpretao psicanaltica, seria tristecoloc-la numa estrutura retirando da tatuagem suas mltiplas relaes eprodues subjetivas.

    Seja como for a imposio de uma marca hoje excepcional e s seaplica queles inseridos num determinado estatuto ou que, por rebelio in-dividual, seriam tentados a refutar a ordem social. Mas, com o nascimento dademocracia, o princpio de integridade corporal vai encontrar novas justifi-caes ideolgicas, novas produes de subjetividades capitalistas.