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590 A memória histórica do Palácio Tiradentes em disputa nas páginas do Correio da Manhã (1960-1963) Thiago Figueiredo Martins 1 Resumo: O presente artigo pretende analisar a representação das disputas em torno da memória histórica do Palácio Tiradentes, veiculadas pelo jornal carioca Correio da Manhã. Até o ano de 1960, o Palácio foi a sede da Câmara dos Deputados federais e, portanto, espaço da cobertura especializada da grande imprensa e das discussões dos grandes temas nacionais. Com a transferência da capital da cidade do Rio de Janeiro para Brasília, o prédio perdeu sua função histórica, como sede do poder legislativo. Essa função, de sede do poder legislativo foi recuperada no âmbito estadual pelo recém-criado Estado Guanabara, que se utilizou do espaço para funcionar como sede da ALEG (Assembleia legislativa do Estado da Guanabara) até 1963 e da constituinte estadual no ano de 1961. Palavras chave: Palácio Tiradentes. Estado da Guanabara. Correio da Manhã. Memória. Imprensa. Abstract: The present article intends to analyze the representation of the disputes around the historical memory of the Tiradentes Palace, published by the newspaper Correio da Manhã. Until the year 1960, the Palace was the seat of the Federal Chamber of Deputies and, therefore, space of the specialized coverage of the great press and the discussions of the great national subjects. With the transfer of the capital from the city of Rio de Janeiro to Brasilia, the building lost its historic role as seat of the legislative power. This function of seat of the legislative power was recovered at the state level by the recently created Guanabara State, which used the space to operate as the seat of ALEG (Legislative Assembly of the State of Guanabara) until 1963 and the state constituent in the year 1961. Keywords: Tiradentes Palace. State of Guanabara. Correio da manhã. Memory. Press. 1. Introdução O Correio da Manhã veiculou, em sua capa do dia 25 de fevereiro de 1960, a visita do presidente norte americano Dwight D. Eisenhower no Brasil. A cerimônia de recepção ocorreu no Palácio Tiradentes, que até aquele momento o espaço era a sede da câmara dos 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História social da UFRJ. E-mail para contato: [email protected]

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590

A memória histórica do Palácio Tiradentes em disputa nas páginas do Correio da

Manhã (1960-1963)

Thiago Figueiredo Martins 1

Resumo: O presente artigo pretende analisar a representação das disputas em torno da

memória histórica do Palácio Tiradentes, veiculadas pelo jornal carioca Correio da Manhã.

Até o ano de 1960, o Palácio foi a sede da Câmara dos Deputados federais e, portanto, espaço

da cobertura especializada da grande imprensa e das discussões dos grandes temas nacionais.

Com a transferência da capital da cidade do Rio de Janeiro para Brasília, o prédio perdeu sua

função histórica, como sede do poder legislativo. Essa função, de sede do poder legislativo foi

recuperada no âmbito estadual pelo recém-criado Estado Guanabara, que se utilizou do espaço

para funcionar como sede da ALEG (Assembleia legislativa do Estado da Guanabara) até

1963 e da constituinte estadual no ano de 1961.

Palavras chave: Palácio Tiradentes. Estado da Guanabara. Correio da Manhã. Memória.

Imprensa.

Abstract: The present article intends to analyze the representation of the disputes around the

historical memory of the Tiradentes Palace, published by the newspaper Correio da Manhã.

Until the year 1960, the Palace was the seat of the Federal Chamber of Deputies and,

therefore, space of the specialized coverage of the great press and the discussions of the great

national subjects. With the transfer of the capital from the city of Rio de Janeiro to Brasilia,

the building lost its historic role as seat of the legislative power. This function of seat of the

legislative power was recovered at the state level by the recently created Guanabara State,

which used the space to operate as the seat of ALEG (Legislative Assembly of the State of

Guanabara) until 1963 and the state constituent in the year 1961.

Keywords: Tiradentes Palace. State of Guanabara. Correio da manhã. Memory. Press.

1. Introdução

O Correio da Manhã veiculou, em sua capa do dia 25 de fevereiro de 1960, a visita do

presidente norte americano Dwight D. Eisenhower no Brasil. A cerimônia de recepção

ocorreu no Palácio Tiradentes, que até aquele momento o espaço era a sede da câmara dos

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História social da UFRJ. E-mail para contato:

[email protected]

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deputados. Estamos analisando a representação da cerimônia em suas páginas, nesse caso

específico na capa do Correio da Manhã, a fim de demonstrar a centralidade que o Palácio

teve nessa representação no jornal.

Estamos mobilizando o conceito de poder simbólico de Pierre Bourdieu, a fim de

demonstrar como os rituais, os símbolos e os mitos são mobilizados por grupos que possuem

os meios de produção da representação do mundo social e dessa forma construir um discurso

hegemônico no conjunto da sociedade. Os jornalistas, no nosso caso específico, por meio da

sua atividade, são produtores de bens simbólicos que funcionam tanto para integração da

classe dominante como para dominação dos que não possuem esses recursos. A necessidade

de construir a hegemonia cria a possibilidade de posições divergentes no conjunto desses

discursos2.

A representação do Palácio é explicitada nas três fotografias publicadas pelo jornal

Correio da Manhã. As três fotografias que aparecem na capa, pela disposição, mostram as

etapas de um mesmo processo: a chegada do presidente na Câmara sendo saudado pela

população, na parte de fora do prédio; a recepção de parlamentares, no saguão do Palácio, e

por fim o presidente aparece discursando na tribuna. Fica nítida nessa composição das

imagens, que o Palácio é retratado como espaço privilegiado da política e do exercício

democrático. A relação entre representantes e representados se expressa em uma espécie de

“teatro do poder”, no qual o Palácio é parte constituinte da encenação.

2 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomas. 12. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2009.

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Imagem 1: a reportagem mostra a visita do presidente norte americano ao Brasil

Fonte: Correio da Manhã, capa 25 de fevereiro de 1960.

O Palácio Tiradentes (antiga sede do parlamento) adquiriu novos significados e usos

políticos a partir de 1960, quando a capital foi transferida do Rio de Janeiro para Brasília.

Analisaremos as notícias veiculadas no jornal Correio da Manhã que mostravam os usos e a

disputa pela memória do Palácio Tiradentes. Partimos da hipótese que o Correio da Manhã

retratou o prédio como espaço estruturante da política carioca. O jornal, além de ser um

veículo de informação, era um espaço de embate político e de sociabilidade de uma elite

intelectual, que tinha forte influência na política nacional. O objetivo desse artigo é analisar a

representação que a imprensa carioca, especificamente do jornal O Correio da Manhã,

construiu da atividade política, em torno do peso simbólico do Palácio Tiradentes. E como a

cobertura dessa atividade política no prédio convergiu com a recuperação da memória

histórica, que segundo Robert Frank é a apropriação oficial e seletiva de elementos da

História, por parte de um grupo3.

Essa relação entre memória e história é fundamental para compreendemos nossa

problemática, não se trata de analisar de forma antagônica memória e história, mas de

compreender suas interações. E a memória histórica é essencial nesse processo, ela é formada

pela interação entre o trabalho historiográfico, de criação de uma história nacional e a

3 Ver FRANK, Robert. La memoria y la historie. Historia del presente, ISSN 1579-8135, Nº 3, 2004.

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construção da memória de determinados grupos com força política, para se apropriar de forma

oficial dessa história nacional. O Palácio Tiradentes é um exemplo de como a memória

histórica é formada, pois sua construção remete justamente a história nacional (oficial), e a

memória construída sobre o espaço é alimentada por essa construção historiográfica é

justamente a disputa em torno do sentido dessa memória que estamos analisando.

O historiador Fernando Catroga definiu o século XX como o século da história, e

demonstrou como o Estado nacional utilizou a História e a memória, para legitimar a sua

própria existência, através dos manuais escolares, da construção de monumentos e da criação

de novos rituais, constituindo uma história nacional e oficial pelo viés pedagógico.

A historiografia também funciona como fonte produtora e (legitimadora) de memórias e

tradições, chegando mesmo a fornecer credibilidade cientifica a novos mitos de (re)

fundação de grupos e da própria nação (reinvenção e sacralização de das origens e de

momentos de grandeza, simbolizados e heróis individuas e coletivos). A modernidade

acentuou essas características4.

O processo de construção da memória não é consensual. Partindo da perspectiva que

há múltiplas memórias em disputa, os esquecimentos e recordações fazem parte desse

processo negociado e não consensual entre grupos. Podemos perceber que a memória que

emerge é a resultante dessas disputas, entre aqueles que são silenciados e os que conseguem

reivindicar no espaço público a sua memória.

A memória é instancia construtora e cimentadora de identidades, a sua expressão coletiva

também atua como instrumento e objeto de poderes mediante a seleção do que se recorda e

do que, consciente ou inconscientemente, se silencia. E quanto maior é sua circunscrição

nacional, mais se corre o risco de o esquecido ser a consequência lógica da invenção ou

fabricação de memória(as)5.

Ao analisar a construção da memória devemos sempre pensar nos atores que

mobilizam ou a usam a partir dessa relação entre o esquecido e o recordado. É necessário

pensar tanto nas motivações, como no tipo de construção que se pretendia fazer. Essas três

instâncias: quem? como? por quê? estão diretamente interligadas. O nosso objeto de estudo,

o Palácio Tiradentes, não será analisado como um mero depósito das memórias, ou como se

uma determinada memória estivesse cristalizada nele, na sua arquitetura. Partimos da

compreensão que a memória é parte de uma disputa na sociedade, que os sentidos atribuídos a

determinado local ou à sua história fazem parte de uma relação constante de poder e, portanto,

4 CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p73

5 CATROGA, Fernando. Memória, História e historiografia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p74-75

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utilizaremos a imprensa para compreender pelo viés não institucional de como as memórias

ser articulam.

Pierre Nora desenvolveu o conceito de lugares de memória, estamos mobilizando o

conceito, sem com isso aceitar todas as suas premissas para compreender como o as disputas

em torno da memória histórica e da apropriação desta em relação ao prédio se processou nesse

período. Para o autor, os lugares de memória surgem nas sociedades contemporâneas como

produto da desarticulação das memórias tradicionais. A nossa época é marcada pela formação

dos lugares, que podem ser físicos ou apenas simbólicos e surgem como resposta a esse

processo de desarticulação da memória tradicional, da institucionalização da disciplina

História e da formação do estado nação moderno.

Pensemos nessa mutilação que representou o fim dos camponeses, essa coletividade

memória por excelência cuja voga como objeto da história coincidiu com o apogeu do

crescimento industrial. Esse desmoronamento central da nossa memória, só é, no entanto, um

exemplo. É o mundo inteiro que entrou na dança pelo fenômeno bem conhecido da

mundialização, da democratização, da massificação e da mediatização6.

A relação da memória com a criação de novas identidades e com a estrutura do poder

serão pontos de partidas importantes em nosso trabalho. Partindo desse segundo Marieta

Ferreira com perda dos sentidos do passado nas sociedades contemporâneas, as

comemorações funcionam para relembrar o passado e traçar novas identidades, mas a autora

aponta que essa construção não é consensual e podem nos revelar conflitos. Partindo dessa

perspectiva analisaremos os conflitos em torno da construção da memória.

As comemorações ocupam um lugar central no universo político contemporâneo, pois

contribuem para definir as identidades e as legitimidades políticas. Todavia, elas não

constituem somente um simples meio de produzir consenso; ao contrário, elas podem revelar

tensões e conflitos7.

A imprensa foi parte fundamental desse esforço de atribuir novos significados,

reafirmar antigos e, com isso, garantir a importância da cidade do Rio de Janeiro no cenário

nacional. Ela aparece em muitos trabalhos como uma das fontes de análise, mas o enfoque na

política parlamentar ou nas ações do executivo acaba por diminuir o papel da imprensa nesses

trabalhos, fazendo dela apenas um veiculador das ideias de outros grupos políticos. Segundo

Marly Motta, o debate sobre a transferência da capital começou em 1958 nas páginas do

Correio da Manhã, quando o periódico publicou um conjunto de 32 reportagens intituladas o

6 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. N°

10, p. 7-28. 1993.p7-8 7 FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral, comemorações e ética. Projeto História. Ética e História oral,

São Paulo, nº 15, p.157-164, abr. 1997. P157

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que será do Rio, com opiniões de figuras importantes como políticos e intelectuais sobre esse

processo 8.

O nosso objetivo aqui é demonstrar como mais do que simplesmente veículos de

informação, os jornais serviram para trazer o debate sobre a transferência da capital ao espaço

público. Sendo eles próprios atores interessados nesse processo de reafirmação política do

lugar do Rio de Janeiro no cenário nacional. Precisamos considerar que se tratava da imprensa

especializada na cobertura política na capital do país.

A imprensa carioca, sobretudo o Correio da Manhã, foi responsável por um esforço de

ressignificação da importância da cidade do Rio de Janeiro, com um conjunto de reportagens

sobre a cidade. Esse processo se deu em meio ao debate sobre a transferência do distrito

federal cujo posicionamento do Correio da Manhã foi negativo em relação à perda da

importância política da cidade.

A cidade do Rio de Janeiro deixava de ser a capital da República nos anos 1960, e, com isso,

as instituições que faziam parte da máquina administrativa do Governo Federal teriam o seu

destino selado. Com a Câmara não seria diferente, e esta seria transferida do Palácio

Tiradentes, no Rio de Janeiro, para o Planalto Central. O antigo prédio permaneceria, assim,

como resquício da memória de uma época, do Rio de Janeiro sede do poder central. A cidade

do Rio de Janeiro se tornaria um Estado e, com isso, manteria importância na federação. O

peso simbólico da antiga capital seria o principal trunfo da política carioca e os símbolos

dessa capitalidade foram apropriados pelas forças políticas que aqui atuavam.

A criação do Estado da Guanabara aparece como uma resposta de políticos cariocas

que desejam a autonomia da cidade na construção do campo político que estes faziam parte, e

estava muito associado ao distrito federal. Podemos pensar em um processo de

regionalização, de construção de uma identidade para Guanabara após o processo de

transferência da capital para Brasília, ou seja, uma nova capitalização que é assentada na

memória histórica do local dentro de uma importância nacional9.

Analisar a representação na imprensa das disputas em torno de um edifício com o peso

de ser um símbolo nacional, em um contexto de mudança institucional, nos permite pensar a

disputa pelo poder. O espaço é retratado pela relação do dentro e fora, no qual o lado de fora

é o local da manifestação popular, da ação dos representados frente aos seus representantes. Já

8 MOTTA, Marly Silva Da. O Rio de Janeiro: de cidade-capital a Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: Editora

FGV, 2001. 9 DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do

Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio

de Janeiro: UFRJ, 2000.

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o espaço de dentro é apresentado como o espaço da grande política, da ação dos

representantes e, por fim, a tribuna é o local de fala dos líderes. É possível dizer que o jornal

buscava criar entre seus leitores a ideia do espaço como local privilegiado da política

democrática e representativa.

2. A Guanabara e a construção de novas identidades.

A questão central do nosso artigo é analisar a representação das disputas em torno da

memória histórica do Palácio Tiradentes, e como isso pode ser traduzido no esforço político

para reafirmá-lo enquanto local central da política carioca. O processo de ruptura institucional

pelo qual passou a cidade do Rio de Janeiro, deixando de ser Distrito Federal, gerou como

consequência um processo de recuperação da memória histórica da cidade capital, como

elemento legitimador da criação do Estado da Guanabara10

. Dessa forma, o Palácio Tiradentes

perderia suas funções legislativas e um novo destino teria que ser dado para o edifício.

Recuperaremos um pouco da história da ocupação do prédio até 1960, para que o leitor possa

ter dimensão da importância desse processo de construção da memória histórica.

A Câmara dos deputados ocupou o espaço de 1927 até 1937, quando o local se tornou

sede do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, durante a ditadura do Estado Novo,

voltando a ter funções legislativas em 1946. O local ficou marcado por dois grandes eventos:

as constituintes nacionais de 1934 e 1945. Esses momentos marcaram de forma significativa o

espaço e tiveram uma grande cobertura de imprensa carioca11

.

No período de 1945 até 1960, o Palácio continuou como a sede do parlamento e,

portanto, continuou coimo espaço da cobertura da imprensa da atividade parlamentar que

contribuiu para reforçar um imaginário social do prédio como espaço central da política

nacional. A cidade do Rio de Janeiro como um todo expressava os valores cosmopolitas de

uma capital, essa capitalidade poderia ser expressa em locais centrais de poder como o Palácio

Tiradentes.

Uma especificidade que o Palácio Tiradentes teria em relação a outros edifícios de

importância nacional é sua localização, na Praça XV de Novembro. O local foi a primeira

praça central de poder na cidade do Rio de Janeiro e, portanto, carrega consigo o peso da

centralidade. A importância da Câmara dos deputados ter funcionado por tanto tempo ali, que

é o local tradicional dos debates mais acalorados, e da política mais próxima das bases, o que

10

Estado criado em 1960 em decorrência da emenda constitucional de autoria do deputado San Tiago Dantas,

inclusive levando o nome dele, sobre esse processo ver MOTTA, Marly Silva Da. O Rio de Janeiro: de cidade-

capital a Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 11

BELOCH, ISRAEL. Palácio Tiradentes 70 anos de História. ALERJ

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contribuiu para construir a memória do local como casa do Povo, diferente do Senado, que

sempre foi visto como uma casa revisora, e não carrega consigo o peso de ser a casa do Povo.

O Senado na época ocupava o Palácio Monroe que, diferente do Tiradentes, não teria foi

construído com a função de ser a sede do poder legislativo.

Com a transferência da capital da cidade do Rio de Janeiro para Brasília em 1960, e a

criação do Estado da Guanabara, unidade político administrativo que sucedeu o antigo

Distrito Federal, a cidade passou por um processo de perda da sua centralidade. A

transferência pode ser entendida como uma ruptura institucional e uma perda do peso político

da cidade do Rio de Janeiro frente à federação. Ao mesmo tempo, representou uma

oportunidade de criação de novas identidades e de uma nova centralidade por partes de uma

intelectualidade e de setores da política carioca, com a criação do Estado da Guanabara.

A criação do Estado da Guanabara foi essencial para evitar que a cidade perdesse seu

peso político de centro nacional, caso torna-se capital do Estado do Rio de Janeiro. A

imprensa teve seu papel ameaçado á que os jornais que antes eram da capital e, portanto,

tinham uma abrangência nacional poderiam perder esse caráter com a descapitalização. Marly

Motta em seu trabalho Rio- Cidade capital explica que existiram três propostas em relação ao

destino da cidade do Rio de Janeiro: a criação do Estado da Guanabara, a criação da área

federal, e por fim a fusão com o Estado do Rio de Janeiro, sendo esse último descartado

inclusive por pressão dos políticos fluminenses que não queriam ver a importância do seu

estado reduzida por causa da cidade do Rio. A autora explica como a memória da antiga

capital foi acionada para defender que a Guanabara tivesse uma importância específica na

federação (MOTTA, 2004).

Por fim, o primeiro governador eleito do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, estava

disposto a utilizar a sua gestão no Estado para alavancar a sua carreira, como futuro candidato

à presidência da república pela UDN (União Democrática Nacional). Associando a sua

personalidade e seu estilo político a própria cidade do Rio de Janeiro.

Lacerda buscava recuperar a tradição política e administrativa da ex capital federal. Ao

imprimir como marca de sua candidatura o repúdio ao provincianismo, visava se apresentar

como herdeiro da tradição dos políticos da capital, que sempre teriam colocado os grandes

interesses nacionais acima das pequenas demandas locais12

.

Devemos relativizar o peso desses aspectos de caráter mais utilitaristas.

Evidentemente que eles são importantes para compreensão do que foi e do que representou a

12

MOTTA, Marly. Guanabara, o estado capital. in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade

na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

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criação do novo Estado, mas o nosso principal debate encontra-se no campo simbólico. A

cidade representava do ponto de vista político, o estatuto de capital cultural. A cidade do Rio

de Janeiro, por causa do seu cosmopolitismo, da memória construída enquanto capital, do

peso simbólico que tinha para o resto do Brasil e, sobretudo, por meio dos esforços de grupos

políticos cariocas e da imprensa, não deixou de ser o centro simbólico da política nacional.

O centro da cidade, sobretudo o eixo entre as praças XV e Marechal Floriano

(Cinelândia), expressa esse espírito, com os bares, os prédios públicos, as discussões nos

cafés, enfim, um ambiente cultural que propiciava as discussões e os grandes debates políticos

nacionais. A Praça XV foi o primeiro centro de poder da cidade, e passou a recuperar sua

função, do ponto de vista simbólico, segundo Rachel Sisson “A despeito das modificações

ocorridas atingindo os antigos centros, seus elementos remanescentes ainda atuam, porém,

como geradores de configurações espaciais historicamente significantes e valiosas” 13

.

Essa capitalidade não se perdeu da noite para o dia, muito pelo contrário, foi elemento

de capital político mobilizado na construção do novo Estado. Discutir a centralidade é um

elemento importante em nosso trabalho. Não apenas a centralidade da cidade do Rio de

Janeiro em um contexto nacional, mas da própria região central da cidade na qual o Palácio

foi construído. Estamos trabalhando com duas dimensões: uma dos embates políticos

envolvendo os diversos setores das elites políticas cariocas, e uma segunda do peso simbólico

do espaço, e como isso se expressa em uma determinada representação na imprensa.

3. A criação da Guanabara e o papel do Correio da Manhã

Desde a primeira constituinte republicana o debate em torno da transferência da capital

para uma região central do país esteve presente. A cidade do Rio de Janeiro era considerada

tumultuada e a participação popular era vista como nociva pelo governo federal. Essa

transferência para o que seria a cidade de Tiradentes, projeto presente na primeira constituição

republicana 1894, mas que nunca se concretizou e o Rio continuou sendo a capital até a

década de 1950. A consequência desses debates foi a perda da autonomia política, processo

que se concretizou no governo de Campos Salles (1898-1902). Podemos dizer que o Rio de

Janeiro pagou um preço para continuar sendo a capital: o de não poder escolher seus

13

SISSON, Rachel. Espaço e poder: os três centros do rio de Janeiro e a chegada da corte portuguesa, Rio de

Janeiro. Arco, 2008.

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governantes e viver sobre intervenção federal. Os debates sobre a autonomia do distrito

federal foram muito importantes e trouxeram a discussão sobre o pacto federativo14

.

Um longo caminho foi trilhado até a conquista da autonomia, que só realmente

aconteceu quando a cidade deixou de ser distrito federal e passou a ser estado da Guanabara.

Os autonomistas sempre tiveram que lidar com o controle do governo nacional em relação aos

assuntos específicos da cidade. Se a perda do papel enquanto capital representou um duro

golpe nos políticos do Distrito Federal, podemos dizer que a reação foi à altura, com a criação

da Guanabara. Segundo Dias, em sua dissertação sobre a criação do Museu da Imagem e do

Som, qualquer possibilidade de regionalização só poderia ser possível no processo de

construção de uma nova identidade, que dialogasse diretamente com a importância do Rio de

Janeiro como capital15

.

Compreender como os políticos se colocaram de um lado ou de outro, em relação ao

direito da população carioca de escolher seus representantes, o que culminou também na

defesa da criação do Estado da Guanabara, é essencial para pensar o campo político16

carioca.

Não podemos dividi-los em cariocas e não cariocas e, com isso concluir que os políticos

formados na cidade adotaram uma postura de defesa da autonomia do distrito Federal.

Tampouco avaliar os interesses de cada político e também chegar a conclusões simplistas de

que uma postura foi tomada apenas pelo interesse particular, como se forças maiores não

influíssem sobre o campo político.

Buscaremos nas raízes politicas as razões dessas escolhas. Na realidade, ser favorável

à autonomia do distrito federal ou da sua intervenção teria muito mais a ver com a forma de se

compreender política e de fazer política do que com o posicionamento partidário ou mesmo

regional de cada parlamentar. A forma como a cidade era imaginada pelas elites políticas

nacionais conservadoras como PSD nacionalmente, colocou esse grupo político fortemente

contrário a autonomia, esses acreditavam que a capital deveria ser um espaço da

administração técnica e politicamente neutra. A constituinte de 1946 retirou autonomia do

legislativo municipal sobre os vetos do prefeito, passando essa reponsabilidade para o Senado

Federal, as forças conservadoras acreditavam que assim evitaria uma excessiva politização da

14

Para compreender melhor o debate sobre autonomia do Distrito Federal ver DANTAS, Camila e FERREIRA,

Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no processo de redemocratização pós-1945

in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 15

DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do

Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio

de Janeiro: UFRJ, 2000. 16

Sobre campo político ver BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomas. 12. Ed. Rio de

Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

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capital da república o que segundo esse grupo que estava no poder nesse momento

representaria uma ameaça a administração do governo federal17

O PCB (Partido Comunista do Brasil) nacionalmente foi o único partido em bloco que

ficou favorável a autonomia, antes de ser colocado na ilegalidade e ter seus parlamentares

cassados. Defendemos que isso tem relação direta com a defesa da forma de compreender o

papel do Rio de Janeiro e dos movimentos sociais na cidade. Importante compreender que

esse partido seguia de fato uma política centralizada nacionalmente, diferente dos outros que

eram segmentados regionalmente e ideologicamente.

O partido comunista foi o único partido que nacionalmente se posicionou a favor da

autonomia da capital, rejeitando o anteprojeto. Caires de Brito como orador do partido,

afirmou que vários pontos de caráter reacionário nos levam a rejeitar o projeto, desancando

entre eles a falta de autonomia para o distrito federal 18

.

O PSD (Partido Social Democrático) nacionalmente conseguiu além de colocar na

ilegalidade o PCB proibir os comícios na cidade. Esses aspectos correlacionados são

apontados por Dantas e Ferreira, como exemplos de como se pretendeu diminuir o peso do

PCB que era forte na capital e neutralizar o peso político da capital como um todo.

O Estado da Guanabara surgiu do processo de luta das forças políticas do Rio de

Janeiro, o momento de ruptura institucional que representou a mudança da capital seria

contrabalanceado pela proposta de transformar o antigo distrito federal em Estado, finalmente

concedendo autonomia e a possibilidade de escolha do seu governante por parte da população.

O primeiro governador eleito pelo voto direto foi Carlos Lacerda da UDN, vencendo uma

eleição apertada com um candidato do PTB, Sergio Magalhães, esse também deputado pelo

distrito federal, que esteve favorável a autonomia da cidade.

A política de Lacerda se firmou como uma tentativa de recapitalizar a cidade, ou seja,

para preservar o estatuto privilegiado que a Cidade do Rio de Janeiro possuía, o governador

começou a investir na afirmação da memória da antiga capital. Essa política se deu,

sobretudo, no campo cultural, o governador foi responsável pela criação de instituições de

caráter cultural como o: Museu da Imagem e do Som, que foi criado com a finalidade de ser

um arquivo da cultura carioca, e a Sala Cecilia Meireles. Essas instituições foram criadas, e

17

DANTAS, Camila e FERREIRA, Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no

processo de redemocratização pós-1945 in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na

história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. 18

DANTAS, Camila e FERREIRA, Marieta. Os apaziguados anseios da Terra carioca: lutas autonomistas no

processo de redemocratização pós-1945 in FERREIRA, Marieta de Moraes. Rio de Janeiro: uma cidade na

história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

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suas sedes passaram ocupar prédios que tiveram no passado outra importância para cidade19

.

Mais do que simplesmente conseguir levantar a sua candidatura, ele queria fazer da cidade o

espelho da nação, transformar a Guanabara em um dínamo cultural, e com isso estabelecer

uma oposição em relação à Brasília. A sede do governo nacional não tinha o peso simbólico

do Rio de Janeiro, e por fim, a cidade do Rio representava uma forma oposta de entendimento

da política, de um espaço do embate e dos grandes temas da política nacional, enquanto

Brasília representaria a administração burocrática da nação.

A construção da memória para legitimar a importância da cidade do Rio de Janeiro na

federação se articula com dois processos. De um lado, era necessário criar uma nova

identidade e construir o regionalismo necessário para estabelecer uma nova unidade

federativa. Do outro, era preciso recuperar o peso cultural e a memória histórica construída

sobre a antiga capital. E a imprensa foi um elemento crucial na formação de uma cultura

política20

.

O Palácio Tiradentes pode ser compreendido como um símbolo da política como arena

de embates, já que as disputas pela ocupação e pelo poder simbólico nesse prédio foram mais

intensas e talvez até mesmo únicas, enquanto que em outras edificações como o Palácio das

Laranjeiras, do Catete e Pedro Ernesto foram inexistentes ou mais frágeis.

O Correio da manhã foi um dos grandes jornais da imprensa carioca, sua atuação na

cobertura da atividade parlamentar e nas eleições, seu caráter oposicionista foram marcas da

sua linha editorial, que em geral tinha uma perspectiva conservadora, mas em grande medida

podemos dizer que o periódico soube expressar opiniões contraias dentro das suas páginas.

Interessa-nos nessa pesquisa analisar não como a linha editorial do jornal determinava toda a

publicação, mas pensar como a elite intelectual e política carioca atuavam por meio desse

órgão, a fim de construir um pensamento hegemônico. O jornal veiculou em suas páginas uma

série de matérias, demonstrando a perda que seria para a República à Câmara ser transferida

do Rio de Janeiro para Brasília. Esse conjunto de matérias se articula com a linha editorial do

Jornal, que se colocou contrária à transferência da capital.

Aqui com rádio ou sem rádio tudo que se passa na câmara e no senado é fartamente

noticiado. Cada jornal tem seus representantes lá dentro, encarregados do noticiário e dos

19

DIAS, Cláudia Cristina de Mesquita Garcia. Um Museu para a Guanabara: um estudo sobre a criação do

Museu da Imagem e do Som e a identidade carioca (1960-1965) Cláudia Cristina de Mesquita Garcia Dias. Rio

de Janeiro: UFRJ, 2000. 20

Estamos utilizando o conceito de cultura política, para melhor compreender ver (BRESTEIN, Serge. A cultura

política in RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa Editora Estampa,

1998.).

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comentários de tudo que ocorre no Palácio Tiradentes e no Monroe. A nação é devidamente

informada dos procedimentos dos seus mandatários21

.

O prédio apareceria no Correio como um símbolo da boa política, a política marcada

pelo debate, pelos grandes discursos e pela relação entre o poder e o povo, pelo menos na sua

forma. O que não seria a forma como conduzia a nação o PSD, podemos perceber que essa

forma de ação política se concentrava em dois polos distintos que, de tão diferentes nos

programas, mas se aproximavam na sua ação. De um lado o PCB, que foi o único partido que

nacionalmente se colocou contrário à transferência da capital e, do outro lado, a UDN de

Lacerda, que fazia da tribuna o palco para a luta política. Ainda podemos incluir nessa

posição os radicais do PTB como Sérgio Magalhães. Importante ter clareza que diferente do

PCB que atuava em bloco fechado, os outros partidos eram segmentados, possuindo várias

alas e tendências internas.

O Correio da manhã, para além de uma preocupação com seu próprio futuro,

enquanto grande jornal de peso nacional mostrou-se um agente na elaboração de políticas para

a Guanabara e um espaço para o discurso político. Podemos citar alguns casos emblemáticos

que separamos em três momentos distintos e que mostram as disputas pela ocupação e pela

memória do Palácio Tiradentes nas páginas do Correio da Manhã.

O primeiro desses momentos o Palácio continua abrigando a Câmara dos Deputados e

surge o debate no espaço público sobre a perda que a saída da Câmara representaria para o

Rio de Janeiro e a para a própria democracia. Depois quando o espaço ganha uma nova

função, enquanto sede da constituinte do Estado e depois enquanto sede da Assembleia

Estadual do Estado da Guanabara (ALEG). Por fim, com o período marcado pela

radicalização, percebemos uma maior importância sendo dada para os comícios na parte de

fora do prédio (escadarias).

Em 10 de Fevereiro de 1960, o jornal noticiou que uma comissão de deputados foi

formada para averiguar a falta de espaço em Brasília para que a transferência fosse

concretizada22

. Essa discussão se correlaciona com uma série de matérias veiculadas no jornal

que questionam a viabilidade técnica para o funcionamento da Câmara em Brasília, sendo

pano de fundo para o problema político que representaria o abandono desse edifício. Podemos

perceber pela análise de uma série de crônicas publicadas pelo jornal, que essas tinham como

objetivo criar um discurso saudosista dos tempos do Distrito Federal, de uma época de ouro

da cidade que estaria chegando ao fim.

21

Correio da Manhã, 3 de março de 1960. 22

Correio da manhã, 10 de Fevereiro de 1960.

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No dia 13 de março de 1960, a matéria intitulada “Conspirata Nua”, demonstra o peso

simbólico dado ao Palácio. A Câmara decidiu manter o prédio como um reduto para uma

possível e dramática volta às pressas se, por alguma razão, ela não se estabeleça em Brasília.

O personagem principal da nossa história é Sergio Magalhães, deputado do PTB

carioca e de uma ala mais radical de oposição ao governo do PSD. O jornal se coloca

claramente favorável a essa decisão, explicando que se trata de um confronto entre o

Legislativo e o Executivo, que estaria planejando um golpe na democracia, com uma

articulação para garantir um continuísmo do PSD e uma neutralização da Câmara em Brasília.

A Câmara ratificou a monção de desconfiança que sua Mesa votara contra o governo quando

decidiu manter seu prédio pronto pra a eventualidade de um retorno dramático para Brasília.

O plenário da câmara ratificou esse voto de desconfiança quando reconduziu à sua vice-

presidência contra a vontade do Executivo, o deputado da maioria, Sr. Sérgio Magalhães

autor da denúncia que motivou a decisão pela qual o prédio do Palácio Tiradentes fica como

último reduto do poder legislativo23

.

O interessante é perceber que a permanência ou não do Legislativo na cidade do Rio

de Janeiro, e consequentemente no Palácio Tiradentes, seria o elemento central desse possível

golpe arquitetado pelo Juscelino Kubichek. Na transferência das instituições para Brasília,

entre elas a Câmara, o presidente estaria tentando controlar o Legislativo, segundo o Correio.

Um comício organizado pelo PTB com a participação de João Goulart foi noticiado em 17 de

Fevereiro de 1960. Essa reportagem reforça a nossa ideia inicial da representação do espaço

da política e da encenação, da pressão das escadarias para dentro do saguão principal.

PSD-PTB, a ser oficializada amanhã. – foi especialmente convidado por uma comissão de lideres

trabalhista para ir ao Palácio Tiradentes. Nessa ocasião, fará um discurso dentro da convenção. Depois

sairá à rua com o Sr. João Goulart para comícios que os petebistas estão organizando para realizar nas

escadarias do Palácio Tiradentes24

.

Assim como no dia 25 de fevereiro, como iniciamos o artigo por conta da visita do

presidente americano, essa visita foi retratada como um momento de encenação política entre

a parte de dentro e as escadarias do Palácio. A política era vista como um teatro do poder, que

não há palco, já que esse é vazio de sentindo, nem mesmo um cenário que serve apenas de

ambientação para a ação política que se desenrola nele, o Palácio é próprio ator desse

processo. Estamos partindo da concepção de Georges Balandier, da encenação como forma de

exercício do poder, e da manipulação de símbolos em quadro cerimonial.

23

Correio da Manhã, 13 de março de 1960. 24

Correio da Manhã, 17 de março de 1960.

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O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma

existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da iluminação exclusiva da

razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se pelo domínio brutal e nem pela

justificativa racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de

imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial25

.

O Correio da Manhã, reivindicando a memória da antiga capital, escreveu como um

dos subtítulos “Adeus Rio” na matéria intitulada “Ultima instalação do congresso na atual

capital da República”. Essa matéria da última sessão da Câmara realizada no Palácio

Tiradentes é extremamente emblemática. A reportagem é construída mostrando a perda do

caráter do espaço, mas reforça a importância do prédio por ter sido sede da Câmara e como a

cidade ainda carregaria essa importância de ter sido capital, o que deixaria ela em um patamar

diferente de outras capitais estaduais.

As matérias exaltando as qualidades do Rio de Janeiro e do Palácio Tiradentes

seguiram pelos meses de fevereiro, março e abril, até que no dia 23 do mês de abril foi

veiculada uma matéria voltada para o caráter de denúncia ao presidente. O título “Recesso

Criminoso” apresenta o que seria a consequência dos problemas apontados, da dificuldade de

se estabelecer na nova capital as casas legislativas. O Senado tomou a decisão de fazer um

recesso justamente por não encontrar condições nas instalações em Brasília e o Correio da

Manhã novamente voltou a criticar o presidente acusando-o de conspirar para diminuir o

poder do Legislativo frente ao Executivo.

Ontem, o sr. Magalhães Pinto, com sua autoridade, advertiu o país contra ameaças de

perturbação do regiam. Terá, mais do que ninguém, porque inclusive íntimo amigo do sr

Juscelino, razões para essa advertência. Se o governo insistir em obter da Câmara o ato de

omissão arrancado sem dor ao senado, resta à Câmara cumprir sem menor hesitação a

decisão que adotou no Rio, por unanimidade, quando votou a proposta do sr. Sérgio

Magalhães de retornar ao Palácio Tiradentes26

.

Ainda no ano de 1960, com o Estado da Guanabara já regulamentado, temos o debate

sobre a ocupação física do espaço pelas instituições. A discussão onde deveria ser instaurada

a Assembleia Constituinte do novo Estado ganha as páginas do Correio da manhã é um

elemento fundamental para compreensão de como o Palácio Tiradentes seria importante para

a legitimação ação do Legislativo carioca. Mais do que isso, o Palácio seria a herança

simbólica dos tempos da capital, que agora as novas instituições precisavam se apropriar para

justificar a sua própria existência. O novo Estado seria o herdeiro da grande política, que tanto

fez parte da dinâmica da população carioca.

25

BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1980. P7. 26

Correio da manhã, 23 de Abril de 1960.

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A Câmara dos Deputados cedeu o espaço, mas nunca abriu mão completamente dele?

Mantendo departamentos no quinto andar e exigindo o prédio de volta no ano de 1963. Nesse

momento, podemos observar a radicalização no período e o prédio apareceu novamente como

centro de embates. A tentativa fracassada de Brizola, Sérgio Magalhães, e da Frente

Parlamentar Nacionalista27

de fazer um ato pró-Cuba no Palácio Tiradentes foi veiculada nas

páginas do Correio. Podemos analisar o peso simbólico que teria para o governo de Lacerda

um ato com esse caráter no Estado governado por ele.

Esse ato foi proibido pelo Governador Carlos Lacerda, que utilizou a força policial

para cercar prédios que pudessem ser utilizados para ato, lembrando que a ideia original foi

que acontecesse no próprio Palácio Tiradentes. A matéria de capa “Deputados desistem de

realizar o congresso pró Cuba na Guanabara” mostra justamente a tentativa de apropriação de

lugares, com determinado peso simbólico, e como o governo da Guanabara impediu esse

processo.

Anunciada realização do Congresso de solidariedade a Cuba na Guanabara, com a garantia

de deputados filiados à frente Parlamentar nacionalista, fez com que autoridades policiais do

estado interditasse pela manhã, os prédios da UNE, da AIB, da faculdade de direito, do

Palácio Tiradentes e do sindicato dos metalúrgicos prováveis locais escolhidos para a

reunião28

.

O momento era extremante radicalizado havia uma tensão entre as forças políticas de

esquerda e direita e em março de 1963, o PTB convoca os trabalhadores para comícios nas

escadarias do Palácio Tiradentes. O governador do Estado da Guanabara Carlos Lacerda da

UDN solicita uma intervenção militar cercando o Palácio para impedir as manifestações,

dessa forma impedindo a ocupação do espaço por esse grupo político. Para controlar as greves

e comícios de trabalhadores que estavam sendo convocadas, as Forças Armadas fizeram uma

intervenção no Estado da Guanabara, e o Palácio Tiradentes foi um dos locais escolhidos para

ficar sob vigilância29

.

4.Considerações finais

Com a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, e com isso a mudança

da Câmara dos Deputados, o Palácio Tiradentes ficaria sem função, e com isso apareceu uma

oportunidade, desse local ser utilizado como tantos outros para legitimar a importância da

27

Frente parlamentar ampla, posicionada a esquerda no campo político nacional, mas que era formado por

políticos de várias tendências. 28

Correio da Manhã, 29 de março de 1963. 29

Correio da Manhã, 29 de março de 1963.

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cidade do Rio de Janeiro pós-descapitalização. O Correio da Manhã fez claramente uma

campanha da importância do Palácio Tiradentes, que fosse concedido um destino que tivesse

à altura da importância daquele edifício, que tinha sido na História recente do país a sede

máxima do poder Legislativo. A memória histórica que o prédio carregava foi mobilizada

pelas elites políticas cariocas e a imprensa foi fundamental para demonstrar, por meio de uma

série de reportagens, as disputas simbólicas pelo prédio, devido a sua importância histórica

para a cidade do Rio de Janeiro.

Ao retomar a nossa perspectiva inicial de quem constrói a memória e como o faz, e

como aspectos são silenciados e recordados nesse processo, podemos perceber que a imprensa

conseguia ir muito além de uma memória institucional, por mais que compartilhasse um

quadro de referência com a institucionalidade. As disputas e até mesmo os setores populares

foram trazidos à tona com a fonte que analisamos. A grande imprensa buscou criar uma

memória muito mais ligada à grande atuação parlamentar, mas não podemos esquecer que a

própria legitimidade da ação parlamentar se conecta com a pressão das massas nas ruas.

A disputa pela memória histórica do espaço, ou seja, o que ele representaria, é

contrastado por matérias que buscam relembrar a importância da cidade como capital federal

e do Palácio Tiradentes como sede da Câmara. Essa disputa também aconteceu entre as

próprias instituições e atores políticos. Particularmente, podemos retomar dois momentos que

a disputa pelo espaço físico foi representada pela imprensa e, com isso, nos permite pensar o

quanto o poder simbólico impactou as disputas no campo político.

Em 1960, com transferência da capital para Brasília , quando o poder Legislativo do

Estado da Guanabara utilizou o espaço para ser a sua nova sede, dessa forma recuperando a

memória histórica do espaço como forma de legitimação do poder político e da própria

existência do Estado da Guanabara. E podemos observar também ao longo dos primeiros anos

da década de 1960 o Palácio ser utilizado como “sede” dos comícios e manifestações

políticas, principalmente as promovidas pelo PTB E PCB. A memória histórica é um

elemento de formação da identidade, e da construção de nação, podemos perceber nessa

pesquisa como determinados projetos políticos podem utiliza-se dela nesse processo de

construção de identidade e de busca da sua própria legitimidade.

Fontes documentais

Palácio Tiradentes : 70 anos de história / Coord. Israel Beloch e Laura Reis Fagundes; textos

de Carlos Eduardo Sarmento]. -- Rio de Janeiro : ALERJ, 1996.

Correio da Manhã (RJ-1960-1963)

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