A Mente Modernista e o Exercício Da Revisão

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    MATLIT 3.1(2015): 274-278. ISSN 2182-8830http://dx.doi.org/10.14195/2182-8830_3-1_22

    A Mente Modernista e o Exerccio da Reviso

    MANARAAIRESATHAYDECLP | Universidade de Coimbra

    Bolseira da CAPES

    Hannah Sullivan, The Work of Revision. Cambridge,Massachusetts, Harvard University Press, 2013,349 pp. ISBN 978-0674073128

    evisar.Numa apreenso distinta da ecdtica que naturaliza aideia de revisar enquanto ato de correo, em The Work ofRevision, livro publicado em 2013 por Hannah Sullivan, pro-

    pe-se refletir sobre as implicaes da reviso no entendimento de uma obrano enquanto um texto acabado, mas enquanto exemplo de variaes tex-

    tuais, e dos seus efeitos no processo criativo do autor. Neste estudo, mais doque conceber a reviso como o exerccio de rever provas tipogrficas paracorrigir eventuais erros ou gralhas, trabalha-se a ideia da reviso enquantoprtica que implica repensar e reconsiderar o que foi escrito. Entra-se aqui,sobretudo no domnio da epigenesis, isto , da gnesis que continua depois dapublicao.

    Para a investigadora, a crtica literria no tem conseguido responder questo sobre como a temtica de um texto ou as suas preocupaes fo r-

    mais esto ligadas sua gnese?. A tendncia continua a ser assumir que otexts coming-to-be irrelevante diante do texto publicado e concebido como

    definitivo, ou mesmo que se d pouca importncia ao que o texto em proces-so capaz de acrescentar ao texto final. Aponta, tambm, que muitas vezesos estudos criam de forma arbitrria as relaes entre o texto ainda em seuestado de pr-publicao e o texto publicado.

    The Work of Revisioncircunscreve uma anlise metodolgica que se preo-cupa tendo em conta que os gneros, as formas e os tipos de escrita no

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    podem ser tratados da mesma maneira em analisar casos de diferentesmtodos de reviso e de que maneira eles criam efeitos formais distintos.O estudo de Hannah Sullivan se insere na linha de trabalhos genticos querelativizam a noo de concluso de uma obra, contribuindo para rever aconcepo de texto fixo e definitivo ao trabalharem as ideias de mobilidadecomplexa e de estabilidade precria das formas. Neste sentido, o livro apre-senta a comparao entre manuscritos e edies de vrios escritores, a partirde uma estrutura que tem em boa parte origem no mtodo estemtico pro-posto por Karl Lachmann. Este mtodo visa constituir uma espcie de rvo-re genealgica para definir a relao hierrquica das variantes textuais, ass i-

    nalando a conexo e a derivao entre elas. No caso de Sullivan, a interpreta-o dessas relaes entre os testemunhos (manuscritos, datiloscritos ou

    impressos que transmitem a obra) prevalece sobre o registro e a classificao,para os quais o modelo de stemmade Lachmann foi largamente empregado.

    Outro ponto importante do livro a distino feita entre reviso inten-cional e a ideia de corrupo. A autora argumenta que para a crtica textualtradicional a principal preocupao a corrupo, e no a reviso, pois o queinteressa que o processo de escrita resultar numa verso que ser conside-

    rada a melhor (livre o mais possvel de corrupes, consideradas erros) eque por isso a publicada, merecendo sobreviver em relao s demais

    verses. A crtica textual tradicional parte do princpio, aponta Sullivan, deque a ideia de verso nica orienta o autor desde o primeiro momento. Nestecaso, a variao textual, s existe enquanto tentativa de alcanar aquele textomelhor que acredita vir a atingir. Para investigadores como Jerome

    McGann, esta perspectiva serve apenas para o crtico isolar e remover o queconsidera como erro acumulado, sem perceber as complexas dimensestrazidas pelas e com as variaes textuais.

    Em The Work of Revisionafirma-se que a reviso intencional s possvelno perodo modernista, quando se instauram novas questes relacionadascom a conscincia e com a percepo. As narrativas modernistas exploramum novo uso criativo do ponto de vista, com vrias perspectivas e focos,com nfase na subjetividade, nos estados de conscincia, na fragmentao ena descontinuidade. Ao contrrio do romantismo, com a sua herana positi-

    vista de linearidade progressiva e a viso do artista como o ser recluso em quea escrita muitas vezes inspirao, e no ofcio, trabalho, labor, como no

    modernismo. Deste modo, no de se estranhar que sejam os escritores doperodo modernista, como argumenta Sullivan, os que revisam mais do queos seus antecessores em diversos sentidos: com mais frequncia; em maispontos ao longo da construo do texto e em vrios momentos de escrita; demodo estrutural e experimental em vez de pontos isolados de substituiolexical; e mais auto-conscientemente, deixando muitas vezes os vestgios dareviso no produto final.

    Neste ponto, antes de mais, importante que se diga que a investigadoraopta por no sistematizar os conceitos da crtica textual e da periodizao que

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    adota. Por um lado, cria um texto fluido e bem articulado, aliando consisten-temente teorias a importantes estudos de casos. Por outro, por vezes, deixa oleitor atnito sem saber se ou no consensual determinado uso terminol-gico e sem saber a prognie de alguns dos conceitos empregados. precisoressalvar tambm que o livro apresenta uma grande capacidade de sntese eencadeamento, com smulas em pontos estratgicos para relembrar aspectosque foram tratados e encade-los com o que ser trabalhado a seguir.

    Hannah Sullivan destaca trs tipos de reviso. Em casos mais bsicos, areviso emerge como uma necessidade de corrigir problemas ortogrficos ou

    vcios estilsticos num primeiro esboo de composio. Outro tipo de reviso

    a que visa alterar o propsito, a direo ou as caractersticas de um trabalho.Neste caso, a reviso pode resultar num texto com um novo gnero, distintodo gnero de sua verso anterior. Entretanto, o seu trabalho centra-se numterceiro tipo: o da reviso que intensifica, refina ou improvisa no texto conce-bido anteriormente. Da o enfoque nos processos de substituio, em que ha preterio de palavras ou trechos por outros; de exciso, que se desdobrasobre a remoo de partes textuais; e de adio, com o acrscimo de novaspalavras, frases, pargrafos ou mesmo captulos ou partes inteiras. Argu-

    menta-se que estes dois tipos de reviso so prolficos no perodo do AltoModernismo e so os responsveis pela produo de determinadas estruturasliterrias com novos graus de dificuldade e padres estilsticos que reconhe-cemos como modernistas. Para trabalhar com as ideias de exciso e de adioso escolhidos os escritores James Joyce, Marcel Proust e T. S. Eliot.

    Em Excision and Textual Waste, captulo trs da obra, o argumento

    construdo partindo-se da preocupao dos escritores modernistas com oequilbrio entre economia textual e resduo textual. No caso de MarcelProust, demonstra-se que a partir de 1910 o escritor passou a desenvolver

    uma estratgia de composio que viria a produzir efeitos de concentrao ede foco a partir do tratamento do texto. Nesse processo de exciso, o autorassocia a escrita contida e controlada, com poucos conectivos e adjeti-

    vos, a valores exortados pelas tendncias culturais e tecnolgicas da poca,como a rapidez, a eficincia, a limpeza.

    Num compositional counterpoint, como denomina Sullivan, est James Joy-ce, que teria encontrado uma forma diametralmente oposta de Proust paralidar com as fronteiras entre economia textual e resduo textual. A autora

    argumenta que Joyce desenvolveu uma radical excision, na qual numerosostrechos do texto so cortados, na tentativa de isolar determinados grupostextuais que reforcem ideias que se querem enfticas na narrativa. A revisoaditiva esfora-se para incorporar todas as alteraes no texto, at mesmopara conter a histria (como o prprio Proust alegou). Por seu turno, aexciso possibilita que, com a remoo de partes textuais, fragmentos quepermaneceram possam ganhar nfase no conjunto textual, privilegiando aselipses sintticas mais do que a elaborao.

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    com esta perspectiva que se explora a ideia de elipse na obra de JamesJoyce. Hannah Sullivan questiona: se a forma modernista pode ser resumidacomo um conjunto de prticas de estilo, incluindo a simultaneidade, a

    justaposio, a montagem, a fragmentao, o paradoxo, a ambiguidade e aincerteza, ento que melhor maneira de conseguir um efeito modernista doque seguindo um protocolo escrito que inevitavelmente leva simultaneidadee fragmentao? A exciso enfatiza o instantneo visual ou fonopoticosobre o argumento discursivo e a narrativa convencional, pelo que, tornando-os mais curtos, tende a aumentar o grau de dificuldade do texto. Se a adiocria textos com alta complexidade por meio da abrangncia, da proliferao,

    da complexidade de dico e da parataxe, a exciso permite a criao de textosmais duros por pedirem aos leitores para preencherem as lacunas, as elipses.

    Alm da radical excision, todavia, ainda nos deparamos com outra estra-tgia assinalada na obra de James Joyce. O quarto captulo de The Work ofRevisionaponta que alguns episdios de Ulyssesconstituem um cenrio idealpara realizar o que Sullivan chamou de inside out-addittion. Neste sentido, as

    novas ideias ou velhas frases escritas num caderno puderam ser intercaladas,entre o datiloscrito e a prova concebida, numa estrutura pr-ordenada. O

    processo, denominado de adding material, caracterizado sob dois tipos:interlinear glossing, em que mais texto acrescido em pontos de um texto jexistente, pontos estes que originalmente se encontravam compactados,

    quer dizer, que permitiam ganhar novos desenvolvimentos; e multiplicativesctructure, em que a estrutura concebida com vrios pontos de entrada

    porque projetada para ter uma infinita extensibilidade, atendendo ao princ-pio do maximum inclusivity, em que se tem que criar uma forma que permita

    que algo no seja excludo meramente por no se encaixar.No obstante, para tratar dos problemas de substituio textual, Hannah

    Sullivan escolhe a obra de Henry James, um dos mais importantes nomes dorealismo literrio ingls do sculo XIX. No segundo captulo, a produo doautor trabalhada a partir da dcada de 1870 at o fim da sua carreira, focan-do-se o perodo posterior edio da coleo New York Edition (com 24

    volumes do escritor anglo-americano contendo romances, novelas e contos),publicada originalmente na Inglaterra entre 1907 e 1909. Este recorte tempo-ral fundamental para perceber as alteraes que levam Sullivan a concluirque, depois do fracasso de vendas de New York Edition, Henry James se tor-

    nou um escritor aditivo. O autor, reconhecido como um obsessivo revisor desua prpria obra, tinha por prtica mais comum, no incio de sua carreira, asubstituio (sobretudo a substituio verbal), de modo que nas primeirasobras era bem mais um escritor substitutivo do que um escritor de acrsci-mos.

    Ao contrrio, inclusive, da concluso a que a investigadora chega, no sex-to e ltimo captulo, Revision, Late Modernism and Digital Texts, quando

    conclui, a partir de leituras genticas de autores do perodo posterior ao AltoModernismo, centrando-se em W. H. Auden, Allen Ginsberg e David Foster

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    Wallace, que h um retorno substituio como principal ferramenta demudanas textuais. O valor literrio tornou-se estreitamente relacionado como que Hannah Sullivan chama de revisedness, em que os autores se tornammais abertos e at mesmo publicitrios de si mesmos e de suas prticas de

    escrita.The Work of Revision trata, ainda, no penltimo captulo, da reviso na

    escrita autobiogrfica. Reflete-se sobre como as especificidades do gneroautobiogrfico governam o processo de composio textual, trabalhando paratanto com obras de James Joyce, Leslie Stephen e Virginia Woolf. O argu-mento que, como as autobiografias lidam com a ideia do fim, elas so

    governadas por prosopopeias, numa espcie de vozvinda do alm-tmulo,o que significa que os escritores tendem a deixar autobiografias inacabadas,apesar de estarem constantemente a fazer revises. Assim, as autobiografiasso necessariamente incompletas e parecem ser mais passveis de reviso doque outras formas literrias, estando abertas a constantes reescritas. Almdo mais, ao exigirem uma retrospectiva da vida do autor, possuem uma estru-tura com foco duplo, na qual no momento presente da escrita o passado

    imprescindivelmente evocado. Sullivan alega que se trata de um processo

    semelhante ao da reviso que denomina de going over , pois o ato derevisar um texto requer associar o presente no qual se faz a reviso lem-brana de momentos passados em que o texto foi escrito.

    Eis aqui, portanto, um estudo atento historicamente e de notvel esforocomparatista. Um trabalho plural que abrange desde a crtica scio-textual de

    Jerome McGann e George Bornstein crtica gentica comparativa praticadapor Geert Lernout e por Dirk Van Hulle, bem como a crtica gentica france-sa. Ou mesmo mtodos de crtica textual desenvolvidos para problemasespecficos, como nos trabalhos de Karl Lachmann, W.W. Greg, Fredson

    Bowers e Thomas Tanselle. The Work of Revision, para mais, bastante originalao propor compreender a reviso em todas as suas mais complexas implica-es, inclusive nas possibilidades de um texto ser fixado de forma material.

    Ao confrontar manuscritos e edies, o trabalho segue vestgios materiais

    que refletem preocupaes literrias e estticas dos autores. Neste sentido,Hannah Sullivan prope uma compreenso da literatura no somente restrita textualidade, mas tambm composta pelas condies de produo materiale de circulao dos textos. Um dos maiores contributos de The Work of Revi-

    sion, sem dvida, provar que o estudo sobre o que muda e o que permaneceao longo de toda a vida de um texto, enquanto este revisitado pelo seuautor, constitui um instrumento poderoso para se entender um perodo lite-rrio.

    2015 Manara Aires Athayde.Licensed under theCreative Commons Attribution-Noncommercial-

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