12
A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE REPRESENTAÇÃO E DE CONTRIBUIÇÃO AOS DEBATES CONTEMPORÂNEOS Gueise de Novaes Bergamaschine UFOP [email protected] A obra The Executioner’s song, do americano Norman Mailer, é baseada na vida e nos crimes de Gary Mark Gilmore. Em 1977 ele foi o primeiro homem executado com a pena de morte nos Estados Unidos, após um intervalo de dez anos em que esse tipo de pena havia sido abolido em solo americano. Ela é citada por Hayden White para exemplificar o que ele trata como “docudrama”, “faction” ou “metaficção histórica”. Em nossa pesquisa buscamos, através da análise da obra de Mailer, discutir a categoria da metaficção histórica como um modo de representação de eventos próprios ao nosso tempo e como forma de contribuição da historiografia para os debates sociais contemporâneos. Nesse artigo, dividido em duas partes, analisaremos a metaficção historiográfica como integrante de uma poética pós-moderna e depois buscaremos refletir sobre suas possibilidades de contribuição. 1. A metaficção historiográfica Na mesma linha de Linda Hutcheon, não vamos discutir aqui a questão da pós- modernidade. Em vez de “enaltecer ou ridicularizar” essa condição, vamos, como a autora, tomar a existência de uma poética pós-moderna como um fenômeno cultural atual que existe, tem provocado muitos debates públicos e por isso merece uma atenção crítica” (HUTCHEON, 1991, p. 11).

A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

  • Upload
    others

  • View
    3

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE

REPRESENTAÇÃO E DE CONTRIBUIÇÃO AOS DEBATES

CONTEMPORÂNEOS

Gueise de Novaes Bergamaschine

UFOP

[email protected]

A obra The Executioner’s song, do americano Norman Mailer, é baseada na vida

e nos crimes de Gary Mark Gilmore. Em 1977 ele foi o primeiro homem executado com

a pena de morte nos Estados Unidos, após um intervalo de dez anos em que esse tipo de

pena havia sido abolido em solo americano. Ela é citada por Hayden White para

exemplificar o que ele trata como “docudrama”, “faction” ou “metaficção histórica”.

Em nossa pesquisa buscamos, através da análise da obra de Mailer, discutir a

categoria da metaficção histórica como um modo de representação de eventos próprios

ao nosso tempo e como forma de contribuição da historiografia para os debates sociais

contemporâneos. Nesse artigo, dividido em duas partes, analisaremos a metaficção

historiográfica como integrante de uma poética pós-moderna e depois buscaremos refletir

sobre suas possibilidades de contribuição.

1. A metaficção historiográfica

Na mesma linha de Linda Hutcheon, não vamos discutir aqui a questão da pós-

modernidade. Em vez de “enaltecer ou ridicularizar” essa condição, vamos, como a

autora, tomar a existência de uma poética pós-moderna como um “fenômeno cultural

atual que existe, tem provocado muitos debates públicos e por isso merece uma atenção

crítica” (HUTCHEON, 1991, p. 11).

Page 2: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

Não discutir a questão da pós-modernidade não significa, no trabalho da autora,

um esvaziamento teórico da análise de uma poética pós-moderna. De forma contrária, há

um esforço enorme para se estabelecer as características dessa poética e se evitar alguns

problemas. O primeiro deles, a utilização do termo, pura e simplesmente, para se referir

ao que é contemporâneo. Ela também aponta problemas nos trabalhos de alguns detratores

do pós-modernismo que, fazendo “generalizações polêmicas” (HUTCHEON, 1991, p.

19) e agrupando obras muitos diferentes sobre o mesmo rótulo, “nos fazem perguntar o

que se está exatamente chamando de pós-modernista, embora não deixem dúvidas quanto

ao fato de que ele é indesejável” (HUTCHEON, 1991, p. 20).

Hutcheon chama a atenção para o simples fato verbal do termo pós-modernismo

conter o moderno, ou seja, o fato de ele incorporar justamente aquilo que pretende negar.

Para ela “o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e

depois subverte, os próprios conceitos que desafia” (HUTCHEON, 1991, p. 19). Atuando

dentro dos próprios sistemas que deseja subverter, ele provavelmente não constituiria um

novo paradigma, embora “possa servir como marco da luta para o surgimento de algo

novo” (HUTCHEON, 1991, p. 21).

É bastante significativo que Hutcheon trate as contradições da poética pós-

moderna como as contradições da própria sociedade capitalista, mas acrescidas de um

fator, a “presença do passado”:

(...) aquilo que quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente

contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político. Suas

contradições podem muito bem ser as mesmas da sociedade governada pelo

capitalismo recente, mas, seja qual for o motivo, sem dúvida essas contradições

se manifestam no importante conceito pós-moderno da ‘presença do passado’

(1991, p.20).

E esse passado estaria presente na poética pós-modernista de uma forma sempre crítica e

nunca nostálgica. Ao contrário do que dizem os detratores do pós-moderno, ele não seria

anistórico ou desistorizado. Sem ser nostálgico ou saudosista em sua reavaliação crítica

da história, ele agiria como uma força problematizadora sobre aquilo que constitui o

conhecimento histórico, desafiando o senso comum e o que está naturalizado por ele.

Colocadas as linhas gerais do que seria uma poética pós-moderna, chegamos à

metaficção historiográfica. Para a autora, a metaficção historiográfica é a forma

Page 3: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

predominante de escrita ficcional da pós-modernidade. Nela estaria colocado o paradoxo

que se estabelece quando “a autonomia estética e a auto-reflexividade modernistas

enfrentam uma força contrária na forma de uma fundamentação no mundo histórico,

social e político” (HUTCHEON, 1991, p. 11). A necessidade de incluir as considerações

históricas e ideológicas contidas na metaficção (e que acabam por constituir o paradoxo

pós-moderno) atuam “no sentido de desafiar todo o nosso conceito de conhecimento

histórico e literário, bem como a consciência que temos sobre nossa implicação ideológica

na cultura que predomina à nossa volta” (HUTCHEON, 1991, p. 12).

A metaficção historiográfica levantaria as mesmas questões levantadas pelos

trabalhos de Hayden White, Paul Veyne, Michel de Certeau, Dominick LaCapra, Edward

Said, entre outros, sobre a relação entre o discurso histórico e o literário. Quais sejam:

questões como as da forma narrativa, da intertextualidade, das estratégias de

representação, da função da linguagem, da relação entre o fato histórico e o

acontecimento empírico, e, em geral, das consequências epistemológicas e

ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes era aceito pela

historiografia - e pela literatura – como uma certeza (HUTCHEON, 1991, p.

14).

Importante ressaltar que na poética pós-moderna não existiria dialética entre a

auto-reflexão e o contexto histórico-político no qual se encaixa. Os paradoxos e a

“frustrande ausência de resolução” podem causar prazer ou problemas ao leitor,

dependendo de seu temperamento (HUTCHEON, 1991, p. 12). Para Hutcheon

o resultado dessa deliberada recusa em resolver as contradições é uma

contestação daquilo que Lyotard chama de narrativas mestras-totalizantes de

nossa cultura, aqueles sistemas por cujo intermédio costumamos unificar e

organizar (e atenuar) quaisquer contradições a fim de coaduná-las (1991, p.12)

Nas metaficções prevalece a noção de movimento e as respostas, quando existem, tem

sempre um caráter provisório e contextualmente determinado.

Por fim, cabe ainda ressaltar uma consideração de Huntcheon. As contradições

entre auto-reflexivo e o histórico não são uma novidade pós-modernista. Elas estão

presentes em obras tão antigas quanto as de Shakespeare ou de Miguel de Cervantes. A

novidade pós-modernista seria sua presença “obsessivamente repetida” e a ironia no seu

tratamento. Para a autora isso talvez explique o fato de que grandes críticos culturais

Page 4: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

tenham sentido necessidade de abordar o tema do pós-modernismo (HUTCHEON, 1991,

p. 13).

2. Possibilidades de Contribuição

Nesse artigo, escrito em fase inicial de nossa pesquisa, queremos tratar não das

contribuições efetivas da metaficção historiográfica nos debates sociais que lhes são

contemporâneos e/ou correlatos. Esperamos poder apontá-las ao final de nossa pesquisa.

Nos interessa, por enquanto, apontar os fundamentos dessas possíveis contribuições, ou

as condições de possibilidades para que essas contribuições ocorram.

Mesmo em fase inicial de pesquisa, uma reflexão se impõe a quem estuda a

metaficção historiográfica: sua relação com o conhecimento histórico e as questões que

ela coloca, talvez de forma incisiva, à própria escrita da história.

Vale observar o diagnóstico feito por Frank Lentricchia e com o qual Huntcheon

diz concordar:

Foi aí que meus interesses pessoais coincidiram com aquilo que Frank

Lentricchia considerou como uma crise nos estudos literários atuais, que estão

presos entre a urgente necessidade de essencializar a literatura e a linguagem

em um repositório textual exclusivo, vasto e fechado, e a contrastante

necessidade de proporcionar ‘relevância’ à literatura, localizando-a em

contextos discursivos mais amplos. Tanto a arte como a teoria pós-modernas

são a encarnação dessa própria crise, não ao tomarem um dos partidos, mas ao

sobreviverem à contradição de ceder a essas duas necessidades (1991, p. 12).

A arte, a teoria pós-moderna e, portanto, a metaficção historiográfica (como

integrante da poética pós-moderna), seriam a própria encarnação de um dilema bastante

semelhante ao que acomete os estudos historiográficos e é apontado por Hayden White

em “O fardo da história”. Talvez seja possível identificar nas metaficções

historiográficas, aspectos ligados às necessidades e às possibilidades colocadas à escrita

da história pelo linguistic turn.

Em The Practical Past, Hayden White destaca as questões levantadas pela obra

Austerlitz, de W. G. Sebald’s, sobre o fazer historiográfico:

As thus envisaged, Sebald’s ‘novel’ can be viewed as a contribution in a

peculiarly postmodernist mode to that discussion over the relation between

history and literature, or factual and fictional writing, or realistc and

Page 5: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

imaginative, or rational and mythical writing opened up by the so-called ‘crisis

of historism’ in the early twentieth century (2014, p.6).

Austerlitz desperta questões ligadas à crise do historicismo no início de século XX

ou ligadas ao próprio linguistic turn, se considerado segundo a forma mais abrangente

proposta por Araújo e Rangel em “Teoria e História da Historiografia: do giro linguístico

ao giro ético-político”. Segundo esses autores, após as questões colocadas pelo giro

linguístico, o seguinte horizonte se configuraria no interior da teoria da história e da

historiografia contemporâneas: “(1) o sujeito do conhecimento não pode produzir

enunciados privilegiados em relação à realidade a despeito das teorias e métodos em

questão e (2) a historiografia possui uma determinação específica, a de pensar e/ou

intervir no mundo que é o seu” (ARAÚJO; RANGEL, 2015, p. 328). Ou seja, o cenário

traçado por eles como uma resposta às reflexões feitas sobre o giro-linguístico aponta

para a constatação de uma impossibilidade e a reafirmação de uma necessidade.

Fica colocada a falta de transparência da linguagem, a não correspondência entre

a linguagem e seu referente e, portanto, a impossibilidade dos enunciados privilegiados

ou objetivos, no sentido de corresponderem exatamente ao passado que descrevem. No

entanto, resta reafirmada a necessidade de lidar com esse mesmo passado.

A questão da necessidade ou “acertando contas com o passado”

A necessidade de lidar com passados problemáticos é apontada por Rogério

Forastieri da Silva, e mais uma vez, para tratar do giro linguístico. Para ele, questões

complexas dentro de determinados contextos políticos, como o massacre dos armênios

ou os crimes japoneses contra chineses e coreanos em um passado recente, constituiriam

“fantasmas” que se configuram todas as vezes em que não “acertamos contas com o

passado”. E a história, com todas as limitações apontadas pelo giro linguístico, seria uma

“opção para o enfrentamento dessas questões”. Nas palavras dele:

“‘Acertar contas com o passado’ significa, entre outros aspectos, aprender a

lidar e conviver com estes fantasmas que nos rodeiam. Certamente não será

pela negação de sua existência – colocando-os sob o tapete ou punindo a quem

ousar transgredir o silêncio – que os fantasmas desaparecerão. Para nós, a

história é uma opção para o enfrentamento destas questões” (SILVA, 2015, p.

387).

Page 6: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

Pois são justamente essas questões complexas que Hayden White parece apontar

como determinantes para o ressurgimento do romance histórico no contexto da pós-

modernidade. Para ele, a nova forma de narrativa deve ser vista dentro do contexto do

pós-guerra, e considerando a necessidade de discussão de temas ásperos, como os crimes

nazistas contra a humanidade, o massacre dos judeus e homossexuais, enfim,

considerando todo o contexto de significação do holocausto (WHITE, 2018, p. 13).

Para White esse esforço para se “chegar a um acordo com o passado” envolve uma

revisão do passado que implica em revisitar e questionar o que possa ter sido suprimido

ou escondido sobre o passado de povos, gêneros e raças. No limite, tal revisão é um

questionamento sobre o próprio conhecimento histórico tal como era produzido no final

do século XIX. É uma revisão do trabalho daqueles que “haviam sido autorizados a

determinar os tipos de perguntas que poderiam ser feitas pelo presente ao passado”, que

tipos de evidências poderiam ser apresentadas como resposta, e principalmente (para os

interesses desse artigo) uma revisão dos trabalhos dos responsáveis pela:

distinção entre um uso adequado e um uso indevido do ‘conhecimento’

histórico nas tentativas de se esclarecer ou iluminar os esforços

contemporâneos em responder à questão central de interesse social e moral: o

que Kant chamou de questão prática (...): o que eu (nós) devo (devemos) fazer?

(WHITE, 2018, p. 14)

Ou seja, o romance histórico do século XIX, após perder prestígio e autoridade e passar

por uma “desconcertante transformação nas mãos dos grandes modernistas literários”,

ressurge, pelas mãos de “cada escritor que poderíamos desejar louvar ou condenar com o

rótulo de ‘pós-moderno’”, em um contexto em que se questiona a própria validade e

utilidade do conhecimento histórico (WHITE, 2018, p.13).

Em The Practical Past, Hayden White só chega ao tema central de seu artigo após

abordar, longamente, a obra Austerlitz. Ele afirma ter sido necessário “toda a discussão

do romance histórico, da escrita literária pós-moderna” e da obra de Sebald para embasar

o que ele pretendia dizer sobre a frase de Michel de Certeau: “a ficção é o outro reprimido

da história”. Sutilmente, fica estabelecida a conexão entre a metaficção historiográfica e

o passado prático, tema que ele passará, então, a tratar (WHITE, 2018, p.14).

White então apresentará a distinção e os conceitos de Michael Oakeshott para o

“passado histórico” e o “passado prático”. Para ele a distinção é válida para tratar das

Page 7: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

diferentes formas de abordar o passado que teriam, de um lado, os historiadores

profissionais modernos, e de outro, os leigos e praticantes de outras disciplinas.

Toda a funcionalidade ou toda aplicabilidade que se atribui ao passado prático fica

bem clara através do grande número de verbos usados para defini-lo. O passado prático

estaria ligado a tudo aquilo que utilizamos quando precisamos “justificar, dignificar,

escusar, fazer um álibi ou defender ações a serem tomadas na busca de um certo projeto

de vida”. Ou ainda, ele seria uma versão do pretérito que a maioria de nós utiliza na

realização de tarefas diárias como: “julgar situações, resolver problemas, tomar decisões

e (...) responder às consequências das decisões feitas tanto por nós e para nós por essas

instituições das quais somos, mais ou menos, membros conscientes” (WHITE, 2018,

p.16).

Por outro lado, resta também clara a pouca ou nenhuma aplicabilidade do passado

histórico, definido, logo de início, através da negativa: “o passado histórico não ensinava

quaisquer lições de interesse para o presente; era um objeto de interesse estritamente

pessoal, neutro ou, no melhor dos casos, objetivo”. Ele era “construído por historiadores”

e “existia somente em livros e ensaios acadêmicos” (WHITE, 2018, p.17).

A história havia eliminado qualquer interesse no passado prático, contido em

“memórias, ilusões, porções de informações errantes, atitudes e valores” (WHITE, 2018,

p.16), enquanto postulava seu estatuto de “ciência para o estudo do pretérito” (WHITE,

2018, p.15). Para White, quando Lyotard publica The Postmodern condition: a report on

knowledge, em 1984, “poucas pessoas pensaram ser importante notar que o gênero e o

modo dominante da escrita pós-moderna é o (neo) romance histórico”. Mas alguns

lamentaram a “infeliz” ou “desastrosa” mistura “da distinção entre fato e ficção ou entre

realidade e fantasia” nele contida (WHITE, 2018, p.18).

A metaficção historiográfica seria, para White, uma forma de “passado prático”?

A resposta para essa questão, ao que parece, fica apenas implícita em seu texto. Mais

claro é seu posicionamento quando se opõe à disjunção radical entre arte e ciência ou

quando se opõe à “hipótese do historiador convencional de que arte e ciência são meios

essencialmente distintos de compreender o mundo” (WHITE, 1994, p.41). Tal

posicionamento é afirmado com clareza em “O fardo da história”.

Page 8: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

As metaficções historiográficas talvez se encaixem no conceito de Michael

Oakeshott de “passado prático”. Não nos parece simples afirmar que elas teriam toda a

aplicabilidade sugerida por ele. Mas, atuando em uma esfera em que arte e a ciência não

se dissociam, elas parecem vir ao encontro da necessidade de “acertar contas com o

passado” que sempre impera, mesmo após todas as impossibilidades apontadas pelo giro

linguístico. Surgidas no contexto do pós-guerra, diante da necessidade de enfrentamento

de passados problemáticos, elas parecem uma possibilidade de representação para

passados que teriam como alternativa serem silenciados, ou colocados “sob o tapete”.

Dave Eggers encerra de forma bastante significativa a apresentação escrita por ele

para a edição de 2012 de The Executioner’s song. Referindo-se à obra de Norman Mailer,

ele afirma:

Maybe it’s not what we learn that’s crucial, but the questions we’re left with.

Will we always be a manic-depressive nation of the greatest and most vile

achievements? Will we always be a nation of both astronauts and mass-

murders? The Executioner’s song doesn’t answer these questions, but it come

as close to solve the enigma of America as any other work of art we have (1980,

p. XIII).

A obra de Mailer é resultado de enorme trabalho jornalístico e foi vencedora do

Prêmio Pulitzer na categoria de Não-Ficção em 1980. Sua contribuição para solucionar o

“enigma da América” é comparada por Eggers como a contribuição de qualquer trabalho

artístico, mas ainda assim, é afirmada.

A questão da impossibilidade dos relatos privilegiados e talvez a possibilidade

da metaficção historiográfica

Todos os questionamentos sobre a relação entre pensamento, realidade e

linguagem, todas as considerações feitas pelo linguistic turn a respeito da falta de

transparência da linguagem, apontam para a impossibilidade dos enunciados

privilegiados ou objetivos, no sentido de corresponderem exatamente ao passado que

descrevem.

Outros fatores para essa impossibilidade ou para essa falta de correspondência,

ainda seriam apontados por Hayden White para um novo tipo de evento, que ele chamaria

Page 9: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

de “evento modernista”. Tais eventos teriam uma “natureza anômala”, uma “resistência

a se enquadrar em categorias e convenções herdadas” e minariam “não apenas o status

dos fatos em relação aos eventos, mas também o status do ‘evento’ em geral” (WHITE,

1999, p. 197). Essa dissolução do evento teria consequências importantes para a forma

com que relacionamos literatura e ficção, já que minariam o que White chama de

“pressuposto básico do realismo ocidental”: a oposição entre fato e ficção (1999, p. 192).

White trata de especificar e exemplificar os eventos aos quais se refere. Eles

seriam “acontecimentos que não só não poderiam ter ocorrido antes do século XX, mas

que, por sua natureza, alcance e implicações, nenhuma idade prévia poderia sequer tê-los

imaginado”. Seriam eventos como as duas Guerras Mundiais, pobreza e fome em escalas

jamais vistas, programas de genocídio levados a efeito por sociedades, ou seja, eventos

que agiriam no interior de certos grupos sociais da mesma forma como agem os “traumas

infantis”: “não podem ser simplesmente esquecidos ou tirados da cabeça nem, por outro

lado, adequadamente lembrados” (WHITE, 1999, p. 196). São eventos sobre os quais

paira uma dificuldade de se chegar a um acordo sobre o seu significado e, portanto,

dificuldades óbvias de representação.

Para White o Holocausto seria o “evento paradigmático ‘modernista’ da história

da Europa Ocidental. Ele chegaria “a escapar à compreensão por parte de qualquer língua

até para descrevê-lo e de qualquer meio – verbal, visual, oral ou gestual – para representá-

lo”. Nos interessa especialmente a forma semelhante como George Steiner e Emile

Fackenheim se manifestaram sobre ele. Para Steiner: “O mundo de Auschwitz fica para

além das palavras como fica para além da razão”. Para Fackenheim: “O Holocausto

resiste à explicação – do tipo histórico que procura causas, e do tipo teológico que procura

significado e propósito” (WHITE, 1999, p. 210).

O que parece estar colocado nas citações acima, é que esse tipo de evento desafia

nossa lógica humanista:

Acima de tudo, esses eventos não se oferecem a qualquer explicação em termos

das categorias aprovadas pela historiografia humanista, que conceitua a

atividade do agente humano como plenamente consciente e moralmente

responsável por suas ações e capaz de discriminar, claramente, entre as causas

dos eventos históricos e seus efeitos a longo e a curto prazo de maneira

razoavelmente sensata – em outras palavras, agente que, presumivelmente,

Page 10: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

compreende a história de maneira semelhante à dos historiadores profissionais

(WHITE, 1999, p. 198).

Justamente essa falta de relação entre causas e consequências, essa

impossibilidade de organizar ou enredar acontecimentos e ações, justamente isso marca

o que se chamou de “o fim da narrativa” que ocorre com a escrita modernista. Para White,

o fim da narrativa ocorre no sentido daquilo que Walter Benjamim chamou de “’relato

através do qual o conhecimento tradicional, a sabedoria e os lugares-comuns de uma

cultura são transmitidas de uma geração para a outra, sob a forma de uma história

sequencial” (1999, p. 203).

O historiador Christopher R. Browning parece corroborar o pensamento de White

segundo o qual o Holocausto configuraria uma nova classe de evento. Uma história

experimental do Holocausto seria algo “virtualmente impossível de conceber”. Segundo

ele, a “falha experiencial” do historiador que não viveu o Holocausto “é bem diferente do

não terem tido a experiência da Convenção Constitucional da Filadélfia ou da conquista

da Gália, por César” (WHITE, 1999, p.212). Para Browning esta falha está ligada à

natureza do evento e não às questões metodológicas. Dando um passo adiante, White

conclui que o problema não é mesmo de método, mas de representação. Os novos tipos

de evento, os “eventos modernistas” requereriam uma “completa exploração das técnicas

artísticas modernistas e pré-modernistas para sua resolução” (WHITE, 1999, p. 213).

Como White irá colocar claramente, o evento modernista não informaria sua

impossibilidade de representação, mas a necessidade de novas técnicas de representação.

Os novos gêneros de representação pós-modernista, entre eles a metaficção,

informam justamente o que Jameson chamou de “des-realização do evento” (WHITE,

1999, p. 203), e fazem isso através da “colocação em suspenso da distinção entre o real e

o imaginário” (WHITE, 1999, p. 193) ou da dissolução entre fato e ficção. Para seus

detratores, as metaficções fariam isso “em detrimento tanto da verdade quanto da

responsabilidade moral” (WHITE, 1999, p. 193). Para White elas seriam uma

possibilidade de representação de eventos traumáticos sem o risco da fetichização dos

mesmos. White chega a dizer que elas seriam a “única perspectiva de representações

adequadas para esses eventos ‘desnaturais’” (WHITE, 1999, p. 213).

Page 11: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

Observamos que as discussões sobre as metaficções giram em torno do cenário

traçado pelo linguistic turn e sobre as questões colocadas por ele em termos de

necessidades e possibilidades da escrita da história. Surgidas em um contexto de

necessidade de se lidar com passados problemáticos, elas também parecem se adequar ao

novo tipo de evento que esses mesmos passados representam. Em fase inicial de nossa

pesquisa não é possível afirmar colaborações efetivas da metaficção para os debates que

lhes são contemporâneos e/ou correlatos. Mas é possível perceber sua forte vinculação

com o passado e com a escrita da história, e é possível situá-las no horizonte da

historiografia. Trazendo o conhecimento histórico para o centro dos debates o colocando-

o sempre sob questionamento, é possível que as metaficções tragam questões e

possibilidades de contribuição para a própria escrita da história.

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Valdei Lopes de; RANGEL, Marcelo de Mello. Teoria e História da

Historiografia: do giro linguístico ao giro ético-político. História da Historiografia,

Ouro Preto, n.17, p. 318-332, abr. 2015.

EGGERS, Dave. Foreword. In: MAILER, Norman. The executioner’s song. New York:

Grand Central Publishing.

Page 12: A METAFICÇÃO HISTÓRICA COMO POSSIBILIDADE DE …

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Rio de

Janeiro: Imago, 1991.

SILVA, Rogério Forastieri da. A história da historiografia e o desafio do giro linguístico.

História da Historiografia, Ouro Preto, n.17, p. 377-395, abr. 2015.

WHITE, Hayden. O evento modernista. Lugar Comum. 1999. Disponível em: <

http://uninomade.net/wp-

content/files_mf/112811120216O%20evento%20modernisata%20%E2%80%93%20Hy

den%20White.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2019.

WHITE, Hayden. O passado prático. Tradução: ÁVILA, Arthur Lima de; NETO, Mário

Marcello; KRUGER, Felipe R. Art Cultura, Uberlândia, n. 37, p. 9-19, jul.-dez. 2018.

WHITE, Hayden. The Practical Past. Evanston: Northwestern University Press, 2014.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 1994.