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À minha Família À Marginalfilmes E aos Amigos · O artista em conformidade com a obra, com a sua ideia, e também a coerência e a harmonia ... improvização, sem o consentimento

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À minha Família

Ao António

À Marginalfilmes

E aos Amigos

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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Índice Páginas Dedicatória 1

Índice 2

Agradecimentos 4

Introdução 6

Escolha do Tema (Intenção; Objecto de Estudo) 10

Capítulo 1 – Rússia contexto histórico, político e cultural

1.1 - Dziga Vertov 15

1.2 - O Comunismo de Guerra na Rússia e a Revolução de Outubro 19

1.3 - Tensões e Nova Política Económica 23

1.4 - A Rússia de Lenine: O Reconhecimento Oficial do Cinema 26

1.5 - O Decreto da Nacionalização 29

Capítulo 2 – “ O Homem da Câmara de Filmar como uma Obra Futurista

2.1 - O Documentário e o Documentarista 30

2.2 - O Documentário como ferramenta de exposição, observação

Interacção e reflexão. “O Homem da Câmara de Filmar” como

Documentário Reflexivo 37

2.3- Dziga Vertov: “cinema-verdade”, “cinema-olho” e “cinema-directo” 43

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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2.4 - “O Homem da Câmara de Filmar” como uma obra futurista 50

2.5 – A Montagem 65

Capítulo 3 – O Posicionamento ético de Dziga Vertov

3.1 - A Moral e a Ética 76

3.2 - O posicionamento ético de Dziga Vertov 82

3.3 - O Documentário, a Propaganda e a Ética 90

3.4 - Relatos pessoais/profissionais sobre posicionamentos éticos 97

Conclusão 103

Bibliografia Próxima 106 Bibliografia Complementar 110 Filmografia 113 Anexos

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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Agradecimentos «Não há nada que seja superior a um amigo verdadeiro:

Nem a riqueza, nem o poder real. É incalculável,

Em termos numéricos, o valor de um nobre amigo.»

(EURÍPIDES, Orestes)

É evidentemente difícil escrever um agradecimento. Por aquilo que se diz, dada a diversidade

e diferente natureza das variegadas contribuições para a elaboração de uma dissertação de

mestrado; e também, e sobretudo, por aquilo que inevitavelmente fica por dizer, por

incapacidade de expressão, para encontrar linguagem apropriada para dizer da minha mais

sincera gratidão.

No entanto, é de inteira justiça lembrar as pessoas e instituições que, das mais diversas

formas – do relevantíssimo apoio e estímulo moral à indispensável propiciação de condições

materiais de trabalho – deram o contributo que tornou possível a concretização deste meu

projecto pessoal.

A todos, e para além das insuficiências de expressão, e das eventuais omissões (de que aqui

me penitencio), quero deixar a mais profunda expressão da minha gratidão.

Assim, agradeço a disponibilidade e colaboração de:

Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Universidade Católica Portuguesa

Cinemateca Portuguesa

Marginalfilmes, especialmente o Realizador José Carlos de Oliveira.

Fundação Calouste Gulbenkian.

Biblioteca Nacional, em Lisboa.

Biblioteca Municipal Central, em Lisboa.

ICAM – Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia.

ADDOC – Association des Cinéastes Documentaristes.

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Por fim, e de importância não despicienda, uma palavra especial de agradecimento, pela

compreensão e dedicação, pelo incentivo e também pela inspiração. Dirijo-me, naturalmente,

ao Professor Doutor José Alexandre Cardoso Marques, orientador nesta dissertação, que, para

além da disponibilidade demonstrada, constituiu uma fonte de inspiração com a experiência

de campo inter-cultural; ao empenho especial do Dr. Jorge Campos; à vívida experiência do

Cineasta e Professor Joan Gonzalez; à amável erudição do Argumentista e Critico de Cinema

João Lopes; e à inteligente capacidade de fusão do Professor Doutor José Ribeiro.

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Introdução

Esta dissertação é o resultado duma urgência em reflectir e conhecer mais, sobre cinema

documentário.

“O Homem da Câmara de Filmar1 como uma obra futurista e o posicionamento ético de

Dziga Vertov”, é o título escolhido para dar nome a esta dissertação de mestrado em Cultura

e Comunicação, na variante de Documentário.

A escolha deste título tem como intenção, reflectir sobre o “cinema-verdade” de Dziga

Vertov e o seu posicionamento ético enquanto autor desse mesmo cinema.

Numa atitude consciente, e quase compromissória, pretendo nesta dissertação suscitar uma

reflexão sobre contextos: políticos, sociais, estéticos e éticos que pautaram a vida de Dziga

Vertov, mas principalmente os princípios éticos e artísticos que estiveram na génese e

conclusão do seu documentário “ O Homem da Câmara de Filmar”.

Ao longo destas páginas pretendo salientar, essencialmente, dois aspectos, que constituem o

objecto de estudo deste trabalho – A Arte e a Ética no documentário “O Homem da Câmara

de Filmar”.

Esta dissertação é composta por três capítulos.

O Capitulo 1 tem como base de apoio uma investigação minuciosa à volta de notas

biográficas e referências históricas e políticas. Justifico esta opção afirmando que uma

investigação deve ter o seu próprio contexto espácio-temporal (aderindo aqui a um postulado

estruturalista), pois retirando-lhe estes elementos, excluímos as causas, as condições, as

motivações, as circunstâncias que explicam por que é que um determinado acontecimento se

passa assim e não de outra maneira.

1 Documentário realizado em 1929 por Dziga Vertov.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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“ Toda a obra é filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos”2.

Na verdade, a descontextualização ou o niilismo não serviriam para analisar estas questões.

Faço neste primeiro capítulo uma incursão pelas revoluções sociais próprias do Marxismo, o

comunismo de guerra na Rússia.

As reformas políticas tais como a liberdade de expressão, de reunião e o direito de sufrágio.

O reconhecimento oficial do cinema como a arte por excelência.

Após uma contextualização generalista sobre os contextos: histórico, político, social e

artístico, os dois capítulos que se seguem constituem o verdadeiro objecto de estudo desta

dissertação.

No capítulo 2, não é minha intenção elaborar uma análise muito profunda sobre – o que é o

documentário; quando surgiu; quais os seus progenitores; quais os seus géneros e sub-

géneros; o que deve ou não ser um documentarista; ou, que deve ou não deve ser um

documentário, todavia penso que será metodológico e correcto abrir espaço neste trabalho

para uma pequena e geral abordagem sobre, o documentário e o documentarista.

Se me é permitida a audácia, tenho como objectivo a defesa deste documentário como obra

futurista.

É aqui desenhado um retrato do movimento futurista e construtivista. Traçando assim os

contornos do contexto cultural. Destaque para os princípios inerentes ao manifesto futurista e

a recusa dos valores tradicionais da cultura generalizada, e consequente revolução de valores

estéticos em oposição a modelos académicos.

2 In KANDINSKY, Wassily, Do Espiritual na Arte, Dom Quixote, 5ª Edição, 2002, p. 21.

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A mise-en-scène, a montagem, os enquadramentos de câmara do documentário “O Homem

da Câmara de Filmar” como indicadores da instauração do futurismo russo.

A exaltação do “cine-olho”3, “cinema-verdade”4 e “cinema-directo”5 dentro da escola

soviética.

O contra-ponto de Werner Herzog quanto ao “cinema-verdade”. Através das transformações

sociais e políticas, pretendo reflectir sobre a forma como estes acontecimentos influenciaram

a visão de Vertov, que, muito ligado à estética do improviso, filmava estes acontecimentos,

mas não de uma forma figurativa.

A montagem, breve resenha histórica, a sua funcionalidade técnica e estética neste

documentário.

Como fundamentação desta dissertação enuncio os vários elementos que compõem a obra de

arte nas suas diferentes épocas históricas e nas suas correntes filosóficas. Com efeito, a

concepção de “obra de arte” não é estática, antes variando historicamente, de acordo com as

concretas condições materiais da vida e com as variadas visões do mundo e concepções

ideológicas e filosóficas.

Tenho como intuito analisar o “O Homem da Câmara de Filmar” nas suas várias concepções:

narrativa dramática, opções estéticas e técnicas de montagem. De que forma estes elementos

3 Constituiu uma das principais construções teóricas preconizadas por Dziga Vertov, o cine-olho (Kino-Glaz), é definido como um meio de registar a vida, o movimento, os sons e organizá-los através da montagem. Dziga Vertov outodenomina-se como sendo o cine-olho, o Construtor. In.www.mnemocine.com.br/aruanda/vertov.htm 4 Em 1960 Jean Rouch em conjunto com Edgar Morin realiza o filme “Crónica de um Verão” (Chronique d' un été), apoiado em novos recursos técnicos como câmara leve, na mão e gravador de som directo (Nagra). Esse filme, uma investigação sobre o comportamento e as ideias dos moradores de Paris, inaugura um método de trabalho de documentário que ficou conhecido como cinema-verdade (cinéma-verité). 5 Tanto o cinema-verdade como o cinema- directo são inaugurados em 1960 com os filmes Primary (EUA) de Robert Drew e Chronique d' un été (França) de Jean Rouch e Edgar Morin. O contexto histórico mundial nos anos 60, era marcado pela Guerra-fria, o movimento hippie, as manifestações contra a Guerra do Vietname, o questionamento do papel da mulher na sociedade e o feminismo.

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cinematográficos influem na classificação desta obra dentro da enorme miríade de obras de

arte dos anos 20 e 30.

O artista em conformidade com a obra, com a sua ideia, e também a coerência e a harmonia

interna da obra como reflexo do mundo interno e externo do seu criador.

O capítulo 3 preconiza a distinção entre moral e ética para posteriormente analisar a ética do

documentário em questão. Apoiando-me nas distintas correntes teórico-filosóficas pretendo

questionar o posicionamento de Vertov quando filmava as personagens com o seu estilo de

improvização, sem o consentimento informado destas.

Não seria necessário para Vertov que as pessoas filmadas estivessem informadas do que

estava a acontecer (numa linha de pensamento transpersonalista)?

Ou, simplesmente, porque Vertov, partilhava o ideal de Lenine (1917-1924), (continuou a

filmar com Estaline contudo a partir de 1934 ninguém filmava, a censura impôs-se), este

consentimento era já só por si consentimento informado desprovido de qualquer contrato

verbal ou escrito.

O que interessava seria o resultado final “O Homem da Câmara de Filmar” com toda a sua

arte e propaganda ou também, o processo, os meios através dos quais se conseguiria tal

resultado, que por sinal é magnífico?

De que forma a vertente estética do “cinema-verdade” ao estilo do improviso se sobrepunha à

honestidade profissional do artista?

Pretendo fazer uma pequena abordagem sobre o cinema propaganda e as dificuldades e êxitos

em prol do partido, características que não são estranhas ao primado dos valores colectivos

em detrimento do indivíduo.

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A Escolha do Tema (Intenção; Objecto de Estudo)

Terminei uma licenciatura em Som e Imagem na Escola das Artes da Universidade Católica

no Porto em 2002. Nesse ano como projecto de final de curso realizei e produzi um

documentário de 23 minutos sobre “Metadona”.

Este projecto decorria do plano curricular de uma cadeira denominada “Projecto Final”.

Foram 15 os dossiers elaborados pelos alunos para apreciação dos professores/júris.

Estes dossiers foram elaborados como se se tratasse de um projecto para concurso no ICAM

(Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia).

Os projectos poderiam ser de documentários ou de curtas metragem de ficção.

Era um documentário que eu queria produzir e realizar.

De entre estes 15 projectos só cinco seriam seleccionados.

Durante um semestre elaborei um dossier de pré-produção, que continha: duas sinopses, uma

mais alargada e um pitch line, um guião, caracterização de personagens, pois já tinha a

personagem principal escolhida, a qual funcionaria como fio condutor de toda a narrativa,

fotografias, um orçamento, uma réperage, algumas cartas dirigidas a instituições cujo

objectivo era a autorização formal para gravar em determinado dia, dia esse sujeito a

alterações de agenda da pessoa entrevistada e gravada, agenda com a marcação das salas de

pós-produção vídeo e áudio, recortes de artigos de revistas e jornais com a temática que eu

pretendia retratar no documentário, entre outros elementos que eu considerei preponderantes

para enriquecer a forma e o conteúdo do projecto apresentado.

No ano anterior, 2001, o Porto afirmava-se Capital Europeia da Cultura 2001 e o Dr. Jorge

Campos assumia funções de programador cultural e programador oficial da Odisseia nas

Imagens.

Durante o ano de 2001, o Porto atacou em várias frentes culturais. Através da programação

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da Odisseia nas Imagens grandes nomes ligados ao cinema-documentário tiveram

reconhecimento nacional – artistas de renome internacional6

A Odisseia nas Imagens, fez vingar uma dialéctica muito apelativa para estudiosos e curiosos

do cinema-documentário, pois se por um lado foram exibidos filmes de culto7 por outro lado

a filmografia contemporânea também foi introduzida no programa de visionamentos.

De todos os filmes de culto que vi o que me ficou cristalizado na memória foi – “The Man

with the Movie Camera” de Dziga Vertov, vi-o nesta altura pela segunda vez e tive a

confirmação que estava perante uma Obra de Arte.

Assisti a muitas destas sessões e o interesse pelo documentário foi-se alastrando, até que

ficou impregnado, motivando-me em 2002 a apresentar para o “the end” da licenciatura um

projecto de documentário, com a certeza de que o iria realizar quer fosse ou não escolhido de

entre as 15 propostas apresentadas.

O meu projecto foi escolhido, produzido, realizado, exibido e classificado com 17 valores.

Finalmente tinha demarcado um caminho que iria seguir – o documentário.

Quando acabei a licenciatura ingressei no mestrado em Cultura e Comunicação, na variante

de Documentário, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Este curso de Mestrado pretenderia ser uma incisão pessoal, um salto qualitativo na

historiografia do documentário, percurso iniciado na Licenciatura e na Odisseia nas Imagens.

Durante as aulas deste curso de Mestrado voltei a visionar o documentário “O Homem da

Câmara de Filmar”, e comecei a esboçar interiormente um tema de dissertação de Mestrado,

numa altura em que a escolha deste documentário como o meu objecto de estudo já era firme

6 William Klein, Roy Andersen, Nina Rosenblum, Margarida Ledo, Lorenç Soler, Javier Rioyo, Irit Batsry, Joan Barderman, Fernando Lopes, Brian Winston, Amir Labaki…, entre outros. 7 Through the Wire – Nina Rosenblum, Messiah – William Klein, Havana Mi Amor – Ulli Gualke, Mr Death – Errol Morris, El Juego de Cuba – Martin Cuenca, Blind Child – Joan van der Keuken…, entre outros.

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no meu espírito.

Em Março de 2003 começou a Odisseia “Vertoviana”.

Para além da vontade deliberada e confiante de defender nesta dissertação o documentário

“O Homem da Câmara de Filmar” como uma Obra Futurista, existe também um grande

interesse pessoal em reflectir sobre algumas questões éticas decorrentes deste documentário.

Esta questão “do estudo da ética”não tem uma génese isolada.

Aquando da produção do documentário “Metadona”, deparei com uma questão fulcral que

me refreou no objectivo de pretender exibir este documentário em televisões, escolas e ou

festivais; esta questão que deveria ter sido por mim levantada aquando das gravações e ou

pré-produção ficou esquecida devido, essencialmente, à minha inexperiência.

O consentimento informado, materializado através de uma autorização onde se deveria

mencionar que os entrevistados anuíam à exibição dos testemunhos no grande ecrã, não foi

elaborado.

Houve um consentimento informado mas não materializado numa autorização escrita.

Considero que um documentário deve consubstanciar um compromisso social e moral, de

produzir efeitos com vista ao bem comum. Assim, o documentário é um bem público e um

bem para o público.

No documentário “Metadona”, trabalho de intervenção social e política e formação

pedagógica foi meu objectivo alertar a sociedade para os perigos em administrar metadona a

pessoas dependentes de opiáceos, ou vulgarmente chamados de heroinómanos.

Penso que este objectivo foi cumprido.

Uma vez cumprido o meu objectivo, pretendia levar os meus personagens, seus cenários e

testemunhos ao grande público, ou seja, a responsabilidade social que deste trabalho emergia

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era importante de mais para se revestir de secretismos.

Não considero que um documentário tem de ter espectadores para o ser, contudo tem de ter

espectadores para cumprir o seu propósito - responsabilidade social.

O documentário “Metadona” não cumpriu este propósito, cumpriu sim o propósito legal de

salvaguarda da imagem das pessoas envolvidas, pois não havia uma autorização escrita.

Esta experiência, e o entusiasmo com o qual contemplo a obra de Vertov levou-me a

questionar a legitimidade das imagens do documentário “O Homem da Câmara de Filmar”.

Como podia Vertov filmar e exibir pessoas que não eram informadas que estavam a ser

filmadas pelo Homem da Câmara de Filmar?

Acredito que o consentimento informado constituiu uma etapa fundamental no processo de

execução cinematográfico, seja ele de documentário ou de ficção.

Para haver Belo8 numa obra de arte, tem que haver respeito e verosimilhança para com a

realidade, que constitui o primeiro informante de todo o processo artístico, a pedra angular do

processo criativo.

O Kino-Pravda vertoviano afigura-se inovador na forma e no conteúdo. Filmar o improviso

das ruas apresenta uma ruptura com os cânones do cinema de guião e de estúdio, estes meios

poderão justificar os fins? Fins estes submetidos a um regime que lutava pela autonomia do

cinema como propaganda política, mas que ao mesmo tempo impulsionou não só a

8 Existe uma vinculação dialéctica, negativa, entre o belo e o feio. O valor positivo será o belo e o feio será a falta de beleza. A beleza está associada ao bem e à verdade, o feio associa-se geralmente ao horror, ao mal. Excluindo algumas excepções a beleza sempre foi a lei da arte. No mundo real o belo e o feio estão mesclados. Ao longo da história foram várias as considerações tecidas para o belo, refiro-me ao belo, quando na obra de arte existe verdade e universalidade.

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historiografia do cinema, mas também abriu portas a novos rumos no cinema-documentário.

Será “O Homem da Câmara de Filmar”, uma obra de arte imoral por falta de consentimentos,

uma obra engajada com pretensões artísticas ou uma luta idealista materializada neste

documentário.

Pretende-se objectivar o estudo do documentário “O Homem da Câmara de Filmar” e o

posicionamento ético subjacente. A Ética aplicada à metodologia cinematográfica, a ética das

imagens e a ética utilizada no processo, desde a captura até à exibição ao público.

Pretende-se analisar os diversos tentáculos da questão ética inserida no processo criativo de

toda a narrativa fílmica.

A questão do consentimento, a verdade da câmara oculta de Dziga Vertov. A verdade na e da

narrativa do “Homem da Câmara de Filmar”.

O acto de criação aliado ao lado redutor da ética.

A análise do documentário “O Homem da Câmara de Filmar” como obra de arte.

A questão do belo, da forma, da universalidade, do processo, a verdade, o conteúdo.

A montagem como manipulação de imagens e a sua narrativa e leitura final.

Foram estas questões que me lançaram numa busca, que culminará na defesa desta

Dissertação de Mestrado.

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1.1 – Dziga Vertov

Dziga Vertov é um dos grandes génios do cinema.

Um homem com um olhar absolutamente particular da imagem em movimento, cuja obra

espanta até hoje pelo vigor, coragem e modernidade. Para Vertov, o cinema deveria buscar

sua identidade própria e se afastar de maneira definitiva da literatura, do teatro e de toda e

qualquer ficção. Para ele a ficção era algo menor, que não era digno do potencial do veículo.

No dia 2 de Janeiro de 1896 nasceu Denis Arkadievitch Kaufman em Bialysto, na Polónia,

que então era uma província anexada à Rússia czarista.

Foi o filho mais velho do casal Kaufman, bibliotecários de profissão.

O irmão Mikail nasceu no ano seguinte, a 5 de Setembro.

Mikail trabalhou muitas vezes com Denis Kaufman como operador de câmara. Desconhece-

se a data de nascimento do irmão mais novo, Boris, que se supõe ter nascido pouco depois de

1900.

Frequentou o liceu, tendo uma educação que o orientou para o estudo da literatura e da arte,

revelando um gosto muito acentuado pela poesia. O que o levou, naturalmente, a escrever os

seus primeiros poemas em 1906.

Interessado por música, seguiu o curso do conservatório da sua cidade natal, o que ocorreu de

1912 a 1915.

Os acontecimentos da Primeira Guerra Mundial e a consequente invasão da Polónia pelos

alemães, levaram a família Kaufman a abandonar esta província em 1915, fixando-se em

Moscovo.

Acentuou-se o seu gosto pelas letras nos estudos que prosseguiu em Moscovo. Escreveu

vários poemas, como “Marcha” ou “A Jovem Sardenta”, ensaios como a “Caça à Baleia” ou

“A Pesca à Linha”, bem como romances de antecipação nos quais imaginava o que poderia

ser o futuro da humanidade: “A Mão de Ferro” ou a “A Insurreição Mexicana”.

Esta actividade desenvolvia-se em contacto com círculos de jovens e de intelectuais que

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naquela época proliferavam em grande número na cidade de Moscovo, influindo

consideravelmente na revelação de novos autores.

Adoptou oficialmente o nome de Dziga Vertov, inscrevendo-o no registo civil como nome

definitivo.

A escolha deste nome é um verdadeiro símbolo do que vai ser a sua vida futura. Dificilmente

poderia ter escolhido melhor nome para a sua complexa personalidade de artista. De facto,

Dziga é uma palavra de origem ucraniana que significa toupeira ou roda que gira sem parar

ou ainda movimento perpétuo, mantendo afinidades com a palavra cigano. Quanto a Vertov,

as raízes deste vocábulo encontram-se no verbo russo vertet, que significa girar, dar voltas em

torno de um eixo.

Nos anos de 1916 e 1917 estudou Medicina em São Peterburgo, não deixando todavia de

aprofundar o seu gosto pelas letras, observando com atenção os vários movimentos artísticos

que fervilhavam em seu redor.

Foi nesta altura que iniciou uma actividade muito do seu agrado: experiências no domínio do

som. Deste modo criou um “Laboratório do Ouvido” que consistia em avaliar as

possibilidades do registo sonoro em vários aspectos. Socorrendo-se de um fonógrafo9

especialmente adaptado para registar sons de diversas proveniências, desde a fala humana aos

ruídos quotidianos das ruas e das fábricas, estabeleceu diversos tipos de montagem sonora

que adaptou a verdadeiras encenações de poemas.

Na Primavera de 1918 decidiu apresentar-se ao Kino-Komitet do Narkompros, em Moscovo,

manifestando a firme intenção de trabalhar em qualquer actividade relacionada com o

cinema. Foi nomeado redactor e responsável pela montagem do primeiro jornal de

9 Constitui o primeiro aparelho capaz de gravar e produzir som. Inventado em 1877 por Thomas Alva Edison, utiliza um sistema de gravação mecânica analógica no qual as ondas sonoras são transformadas em vibrações mecânicas.

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actualidades cinematográficas produzido pelo Governo soviético: Kino-Nedelia10.

A sua missão consistia essencialmente em organizar, sob a forma de filme acabado, o

material enviado pelos numerosos correspondentes que se encontravam nas diversas frentes

de combate. Vertov desenvolvia a técnica da montagem.

No dia 1 de Junho de 1918 saiu o seu primeiro trabalho no cinema: o número 1 do Kino-

Nedelia, no qual se podia ver, entre outros aspectos, a comemoração do Primeiro de Maio na

Praça Vermelha, em Moscovo, e também a partida de um contingente de soldados para as

primeiras linhas de fogo. Já aqui se pronunciava de uma forma inquestionável o trabalho

artístico a favor de uma linha de pensamento político, ao qual era quase impossível renunciar.

Foi em 1918 que por iniciativa de Lenine se incentivou a organização de sessões de cinema

nas estações de caminho de ferro destinadas a soldados que partiam para as diversas frentes

de combate. Neste ano iniciou a sua actividade o primeiro “Comboio de Propaganda Lenine”,

igualmente conhecido como “Revolução de Outubro”. O comboio dispunha de uma sala de

conferências, uma sala de aula, uma biblioteca contendo sete mil volumes, material de

propaganda11, oficina de impressão editando um boletim diário de informação, material

cinematográfico para projecções no exterior, salas de montagem, laboratório de revelação e

impressão. Surge já a distribuição instantânea das notícias através dos média.

10 Kino-Nedelia ou "Cine-Semana", semanario cinematográfico de notícias de actualidade soviética, en Moscovo. 11 No seu livro “La Vérité des Images” Wim Wenders faz a seguinte afirmação: “ Un film fait naturellement usage de violence, ou menace d’en faire usage à chaque étape de sa creation. Commençons par la fin: quand le film est terminé, il fait usage de violence au moment de sa présentation puisqu’il risque de ne plus donner aux spectateurs la liberté de voir, se contentant de leur dire ce qu’ils ont à voir. (…) Le pire, c’est la publicité ou le film de propagande où tout est fait pour que le spectateur ne comprenne qu’un certain message. Dans les cas extreme, c’est effectivement la pire des manipulation, el la manipulation et un usage de violence.” WENDERS, Win, La Vérité des Images, L’Arche, Paris, 1992, p 45.

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Foram estes os começos de uma acção política e cultural que ficou conhecida como agit-

prop. Baseada numa concepção marxista da história e da arte, a agitação e a propaganda

visavam alcançar as grandes massas trabalhadoras difundindo a verdade da realidade

colectiva.

Esta consciência de colectividade, para além de constituir uma característica do Marxismo,

poderá ser já um prenúncio de globalização.

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1.2 O Comunismo de Guerra na Rússia e A Revolução de Outubro.

No ano de 1917 estava a Europa no ponto culminante da guerra mais atroz travada desde a

Guerra dos Trinta Anos, quando o enorme império da Rússia se viu sacudido por duas

revoluções consecutivas e ambas consideradas como dos acontecimentos mais decisivos do

nosso século.

Em Fevereiro12 de 1917 deu-se na Rússia a última das grandes “revoluções da burguesia

europeia”, na designação que lhe foi dada pelos historiadores marxistas13. Tinha deixado de

existir uma das monarquias mais antigas do continente europeu. Apenas oito meses depois,

em Outubro de 1917, dá-se aquela que foi dita ser a primeira revolução do proletariado que,

na História, obteve êxito.

12 “ Les travailleurs du film accueillirent avec joie la Révolution de février. Néanmoins, dans la confusion des premiers jours personne ne pensa à filmer quoi que ce soit. Ce n’est que le premier Mars que les cinéaste rassemblérent leurs esprits et que, caméra à la main, ils sortient dans les rues.” LEYDA, Jay, Kino – Histoire du Cinéma Russe et Soviétique, Ed. CIB, 1964, p. 163. 13 O Marxismo, é por assim dizer, uma série de instruções histórico-filosóficas para aplicar adaptando-se às diferentes realidades, com fundamentos manifestamente ideológicos. Invocando “razões” cientifico-económicas e políticas, assim como filosóficas, sofreu no princípio uma grande influência de Hegel. Ideia principal: É a realidade que forma a consciência do Homem. Quando os níveis de desenvolvimento das forças de produção e as suas condições sociais não coincidem ou são contraditórias, verificam-se mudanças revolucionárias na sociedade, no âmbito das circunstâncias históricas. A história da humanidade corresponde à evolução, desde a sociedade primitiva sem classes, até uma distribuição do trabalho e separação de actividades de actividades intelectuais e físicas: as classes superiores que surgem vivem do trabalho das classes inferiores produtoras e beneficiam das mais-valias, a diferença entre o valor real do trabalho e a remuneração do trabalho. Posteriormente, volta a definir-se uma nova classe superior, porque se apropriou da propriedade, dos meios de produção, como base para o seu domínio sobre as novas classes produtivas inferiores. A burguesia exige a conservação deste domínio através da propriedade dos meios de produção. Uma sociedade sem classes só será alcançada pela luta das forças produtivas oprimidas contra a classe superior; só ela poderá saber utilizar a técnica e ciência no sentido de terminar com a miséria, o que não pode suceder com a sociedade burguesa. No capitalismo verifica-se a acumulação e a concentração do poder económico (sindicatos industriais, multinacionais), levando à dependência cada vez maior de um número de pessoas. O marxismo apenas reconhece um factor de produção: a força do trabalho, que cria capital e aproveita as riquezas do subsolo (ao contrário do liberalismo, que divide os factores de produção em três: o trabalho, o solo e o capital), além de chamar a atenção para o papel dialéctico do mercado. Segundo a doutrina marxista, também as condições “objectivas” nos nossos dias estão predestinadas a uma subversão revolucionária pela divergência entre as condições de propriedade dos meios de produção, o nível técnico e científico e as condições de vida dos produtores. Não foi esta a evolução verificada. ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DA CULTURA, Verbo, Edição Século XXI, 2001, p. 130.

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Em poucos meses, no decurso da chamada fase de “comunismo de guerra” (1917-1921),

como a historiografia oficial soviética designa este período, a Rússia deixava de ser o

primeiro Estado que se tomava por comunista da História mundial recente – um destino que,

segundo as bases teóricas doutrinárias em que se apoiava, teria cabido melhor à Alemanha, à

França ou à Itália do que à Rússia. Não obstante, estes acontecimentos que se produziram não

foram meras circunstâncias.

Dziga Vertov estava atento a todas estas transformações, colocava-se “in loco” para com os

seus operadores e câmaras poder registar estas rebeliões que transformariam para sempre a

historiografia política, histórica e também cinematográfica.

O documentarista encarnava uma espécie de repórter de guerra, ao colocar-se na frente de

batalha com o intuito de captar as melhores imagens para posteriormente as levar para o

laboratório de montagem a fim de aí contar a sua história, que passaria a ser a história da

comunidade.

Lenine fixou claramente os seus objectivos: pôr fim à guerra, fundar uma república dos

sovietes, nacionalizar propriedades rurais e bancos e controlar a produção.

A “Revolução de Outubro” de 1917 criou um ambiente propício para a experimentação

fílmica, mas não deixa de ser irónico que essa mesma experimentação tenha as suas raízes

nas formas elitistas da arte pré-revolucionária.

Os bolcheviques14 estavam convencidos de que era possível evitar que se produzisse uma

nova revolução. Após a reorganização do governo, o fracasso das tentativas russas de romper

a frente e o início da ofensiva germano-austríaca do mês de Julho, com consideráveis

14 O Bolchevismo é uma modalidade russa do marxismo ideada por Lenine. Ideia principal: de acordo com a doutrina histórica do marxismo, o bolchevismo generalizava a opinião parcial de que o governo czarista, representante do sistema latifundiário, estava condenado ao fracasso. Esta ideia simplista facilitava o recrutamento dos oportunistas, de pouca qualidade intelectual, dominados pela avidez do poder. Exige, em todos os casos, a luta de classes e a “ditadura do proletariado”. HISTÓRIA UNIVERSAL, Círculo de Leitores, volume IV, 1990, p. 112.

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aquisições de territórios, produziu-se o golpe de Estado de Sampetersburgo por parte dos

bolcheviques, que foi entretanto rapidamente sufocado. Lenine fugiu para a Finlândia.

Entretanto, fundou-se um secretariado político do Comité Central, ao qual pertenciam Lenine,

Estaline, Trotzki, Zinoviev e Kamanev, que pretendia obter a maioria no seio dos conselhos

de operários e soldados. Além disso, manifestou a sua solidariedade com os camponeses em

insurreição e organizou quadros de partidos bastante rigorosos.

Trotzki assumiu as responsabilidades quanto às relações com o estrangeiro; Estaline

encarregou-se das questões das nacionalidades. Poucos dias depois estava conquistado o

aparelho de Estado e os bolchevistas alcançaram o poder noutras grandes cidades.

Foi organizada a nova polícia secreta bolchevista (Tcheka), que levou a cabo “limpezas” e

perseguições extraordinariamente sangrentas entre todas as forças não aderentes ao partido, a

fim de consolidar o novo regime. Estas medidas passaram a caracterizar a política do

Governo bolchevista e, na posterior direcção de Estaline, iria atingir um novo ponto

culminante.

O Congresso Soviético promulgou um decreto que abolia a propriedade privada das terras e

bens imóveis, enquanto os conselhos rurais determinavam a distribuição de terras. Deste

modo, os bolcheviques conseguiram chamar a si a maior parte da população camponesa, que

representava três partes da população do Império Russo.

Em 1917, ano em que Vertov inicia as suas experiências com o som e cria o “laboratório do

ouvido”, foi proclamada a Republica na Rússia, mas logo no mês seguinte agravou-se a crise

económica, social, e política: nesse momento, os bolcheviques chefiados por Lenine,

gozavam de grande apoio entre as massas populares, que instauraram uma insurreição. Em

Novembro teve lugar a “Revolução de Outubro”, com os soviets (conselhos) de deputados, de

operários, de soldados e de camponeses a tomar o poder. Em Janeiro de 1918 dissolveram a

Assembleia Constitucional, que havia recusado reconhecer como legítimo o poder deste

grupo.

A Rússia passou a ter o nome oficial de Republica Soviética Federativa Socialista Russa.

Estalou a Guerra Civil, em que houve intervenção estrangeira armada, contribuindo para o

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estabelecimento dos princípios do comunismo militar na organização da sociedade. Os

bolcheviques dissolveram e proibiram todos os partidos políticos, implantando no país a

ditadura do Partido Comunista.

Nesta altura Dziga interrompe os seus estudos em medicina e mostra ao Kino-Komitet o seu

interesse em prosseguir trabalhos em cinema.

Após o fim da guerra civil, a “politica de comunismo militar” provocou forte contestação por

parte dos operários e camponeses.

Nos anos 20, como resultado de uma feroz luta partidária interna, Estaline concentrara em si

nas suas mãos todo o poder do Partido e do Estado.

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1.3 Tensões e Nova Política Económica

No plano interno, pelo contrário, o país era exactamente o posto de uma grande potência. A

Guerra Mundial e a civil, as nacionalizações frequentemente feitas a partir de doutrinários e

amadores e quase sempre usando do terror, o isolamento face ao mercado internacional e,

finalmente as sucessivas más colheitas tinham conduzido a economia à catástrofe, que o

mundo ocidental de algum modo quis aproveitar. Foi preciso fechar parte das empresas, pelo

que o número dos trabalhadores na indústria e na manufactura era apenas metade do que

tinha sido antes da guerra. Cerca de oito milhões de pessoas tinham abandonado cidades, para

não falar no facto de a população ter sido destroçada pelas guerras. Assim, na realidade, a

situação em que se encontrava o país era de completa desolação. Mas o Estado, mercê de

fortíssimo aparelho repressivo continuava forte.

Em Março de 1921 as tensões rebentaram. Alguns radicais de esquerda, descontentes com a

situação e com a nomeação unitarista de Lenine, mas, sobretudo, os marinheiros da base

naval de Kronstadt, perto de Sampetersburgo, promoveram um levantamento, exigindo uma

“Terceira Revolução”. O motim foi brutalmente sufocado. Não obstante, os dirigentes da

União Soviética perceberam que era preciso mudar o curso da política até então seguida e de

forma que se tornasse bastante clara.

A nova política económica (NEP) pretendia superar as características do comunismo de

guerra, para o que era indispensável prescindir de alguns pontos do programa inicial dos

bolcheviques. Naturalmente que as grandes empresas industriais, os bancos e os organismos

de comércio externos tinham de permanecer nas mãos do Estado, mas, em contrapartida,

voltaram a autorizar algumas empresas privadas, na pequena e média indústria, assim como

no domínio do artesanato e do comércio.

Lenine conseguiu impor a sua ideia favorita, ou seja, fazer aprovar um plano para que todo o

país dispusesse de electricidade, na ideia simplista de que o comunismo se poderia assim

implantar melhor.

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Em 1922 foi reformada a moeda, muito inflacionada durante este período. Assim, a vida

económica recorrendo aos mecanismos de mercado parecia voltar à normalização. A

industrialização, já anteriormente iniciada, recebeu fortes impulsos e continuou a

desenvolver-se.

Lenine definiu, em 1921, o novo sistema económico como “capitalismo de Estado num

Estado proletário”, definição que tornou expressamente pública.

Argumentavam os comunistas: que a catastrófica situação económica em que o país

mergulhara depois da guerra civil teria sido consequência das inúmeras rebeliões verificadas

em tão pouco tempo, assim como das nacionalizações precipitadas e da economia planificada

que, a princípio funcionava mal.

As riquezas do subsolo, predominantemente exploradas por estrangeiros, poderiam ter dado

lugar a sistemas económicos mais justos. O abismo gigantesco entre os governantes e os

governados, encontrado pelos sovietes ao conquistarem o poder num período particularmente

inquieto, não se alterou e a diferença entre o povo russo e os seus governantes, em vez de

diminuir aumentou, embora se quisesse dar a ideia do contrário.

A isto se juntou o peso de uma guerra cruel e não desejada, em que a Rússia foi derrotada, e

duas revoluções sumamente importantes no prazo de poucos meses, seguindo-se uma guerra

civil sangrenta.

Acrescente-se que um tratado de paz negociado pelos bolcheviques e demagogicamente

aceite por eles para poderem dizer que lhes cabia o facto de terminarem com a guerra dá-nos

um cenário onde é difícil vislumbrar outra causa que não seja uma sociedade doente.

Contudo, beneficiando de uma atitude geral de expectativa e de limitada intervenção, a União

Soviética assimilou muita da tecnologia ocidental e converteu-se numa das potências

militarmente mais poderosas do mundo.

Em 1929, ano de criação do documentário “ O Homem da Câmara de Filmar”, a NEP foi

substituída por um sistema administrativo dirigido pelo governo.

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Durante o período de 1928 a 1937 houve grande aumento da produção industrial, entrando

em funcionamento 6000 fábricas. O ritmo do desenvolvimento da indústria pesada foi de

duas a três vezes mais acelerado do que antes da revolução de 1917, de forma que o país

alcançou um potencial económico comparável ao dos países capitalistas avançados. Segundo

os dados referentes ao volume absoluto da produção industrial, a URSS ocupava o segundo

lugar no mundo, depois dos EUA.

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1.4 A Rússia de Lenine: O Reconhecimento Oficial do Cinema

O maior propagandista saído do naufrágio da Primeira Guerra Mundial foi sem dúvida

Lenine, cuja carreira prática se iniciou em 1894. Depois de ter estudado o marxismo durante

cinco anos, tornou-se o dirigente da União para Libertação da Classe Operária de

Sampetersburgo. As suas primeiras campanhas consistiram na cópia em quadruplicado de

panfletos para distribuição aos trabalhadores de Semiannikov e no empacotamento de

panfletos em tubos para enviar aos operários da fábrica de tabacos Laferne. Rapidamente se

envolveu na impressão de manuais marxistas, disfarçados com capas falsas para evitar a

censura. Depois de ter sido preso e de ter sofrido o exílio de três anos na Sibéria, lançou em

Estugarda, em 1900, o seu primeiro jornal, o Iska, com a metáfora profética: “Esta Centelha

iniciará uma conflagração para a qual não haverá fim.”

Em 1917 havia 2700 salas de cinema na Rússia.

Com e Revolução o cinema entrou em crise.

Muitos cineastas e actores foram trabalhar para Paris.

A produção baixou e o número baixou para 500 salas. Tudo faltava mas, mas a guerra civil

não interrompeu a actividade cinematográfica.

Lev Kulekov ou Dziga Vertov filmaram documentários de actualidades, enquanto surgiam

filmes de fundo com interesse.

Em 1922 Lenine faz o reconhecimento oficial do Cinema.

É de salientar que Lenine foi o primeiro homem de Estado a reconhecer o cinema como uma

nova arte.

Correu e continua a correr mundo a célebre frase de Lenine acerca da importância do cinema.

Esta frase tem sido divulgada com inúmeras variantes. Escolho uma delas, a que Léon

Moussinac colocou no frontispício do seu volume Le Cinéma Soviétique, editado em 1928.

“ De todas as artes a mais importante para a Rússia, na minha opinião, é a arte

cinematográfica.”

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A produção passa a fazer-se sob o signo da vanguarda política, estética e cultural, num vasto

movimento criativo, desde o “Laboratório Experimental” de Kulekov, os kinoks, do operador

Dziga Vertov, cujo Kino-Pravda (jornal de actualidades) acompanhava as experiências do

cine-olho (Kino-Glasse), em que a montagem da vida apanhada ao vivo era o cerne de um

moderno cinema visual.

O cinema apreendido nos estúdios, nas universidades, e nas escolas especializadas, é um

instrumento da revolução, meio cultural e educativo da nova Rússia, ao serviço do realismo

socialista, método estético do materialismo dialéctico.

Durante a II Guerra Mundial a produção baixou para 25 filmes anuais e os estúdios foram

transferidos para Alma Ata, onde Eisentein15 viria a realizar o seu último filme, Ivan, O

Terrível.

O pós-guerra vem reforçar o estalinismo, o controlo burocrático, a ideologia dogmática dos

filmes, com peças de exaltação ou de divertimento, sem exame crítico da sociedade russa.

A construção teórica não acompanha os escritores revolucionários da primeira fase.

Os cinemas aumentaram para 50 000, embora a produção se tenha reduzido a apenas oito

filmes em 1952. Com a morte de Estaline, em 1953, suaviza-se o centralismo burocrático e o

realismo socialista procura documentar o “homem novo” da sociedade soviética.

É no mínimo curiosa forma a como um estrangeiro fala sobre o cinema e as salas de cinema

em Moscovo, no início de 1921.

“En géneral, les cinémas moscovites sont des endroits sombres et sans attrait,

15 Revolucionário e estadista soviético. Nome adoptado por Iossif Vissarionovitch Djugatchvilli. De família proletária, frequenta o Seminário de Tifilis entre 1894 e 1899, do qual é expulso pela sua militância socialista. A partir de então dedica-se à propaganda revolucionária. In THOMSON, Oliver, Uma História da Propaganda, Temas e Debates, Lisboa, 2000, p.62.

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sales et mal gérés. Dans leur majorité, ils ne montret que de vielles bandes à demi

effacées, qui datant-avant guerre. Il y a quelques salles où l’on peut voir les

actualités hebdomadaires soviétiques et des films de propagande mais la pénurie

de matériel technique a térriblement gêné le gourvernement dans le domaine de la

production des films. Toute l’industrie du cinéma est dans les mains du Kino-

Komitet, branche du Départemente de L’Education. On a dressé des plans –

magnifiques sur le papier – pour éduquer et divertir les masses par le cinéma, mas

bien peu de choses ont pu être réalisées.”16

Segundo Koulechov os estúdios estavam num estado ainda mais deplorável.

Koulechov diz:

“ Ils étaient en ruine, ou presque en ruine; le matériel avait été soit emporté par

les propriétaires, soit réduit en miettes. Je me rappelle la visite que je fis à une de

ces “fabriques de films” afin d’examiner si nous pouvions ou nom l’utiliser: sous

le toit crevé, un amas chaotique d’épaves bosselait la couche de neige et

j’apercevais, sur un bureau, elle aussi couverte de neige, une machine à écrire oú

demeurait encore une lettre à demi achevée, sur une feuille portant l’en-tête de

l’ancien patron”17.

16 LEYDA, Jay, Kino – Histoire du Cinéma Russe et Soviétique, Ed. CIB, 1964, p. 187. 17 LEYDA, Jay, Kino – Histoire du Cinéma Russe et Soviétique, Ed. CIB, 1964, p. 189.

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1.5 O Decreto da Nacionalização

No dia 27 de Agosto de 1919 assinou o decreto que estipulava a organização do cinema e a

nacionalização da indústria soviética do filme. Eis o texto deste decreto que se assinala

normalmente como a data de nascimento do cinema soviético:

“Decreto sobre a transferência das indústrias e comércio cinematográficos e

fotográficos sob a autoridade do Comissariado do Povo para a Educação”.

As indústrias e os comércios do cinema e da fotografia, na sua totalidade, compreende as suas

organizações, assim como as reservas e a distribuição de utensílios e de material a eles

referentes, são colocados, para o conjunto da RSFSR, sob a autoridade do Comissariado do

Povo para a Educação.

Para este objectivo, o Comissariado do Povo para a Educação é incumbido das seguintes

competências:

Nacionalizar, de acordo com o Conselho Supremo da Economia Nacional, as empresas

particulares de cinema e fotografia e todas as indústrias de cinema e de fotografia; requisitar

as empresas, bens materiais e instalações cinematográficas e fotográficas; fixar os preços

máximos estáveis para as matérias-primas e produtos manufacturados cinematográficos e

fotográficos.

Dirigir as indústrias e comércio de cinema e da fotografia na sua totalidade.

Organizá-los tomando decisões que terão força de lei para todas as pessoas e todas as

empresas, assim como para as instituições soviéticas na medida em que estejam relacionadas

com o cinema ou a fotografia.

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2.1 O Documentário e o Documentarista.

A terminologia vem a partir da palavra francesa documentaire, utilizada para designar os

filmes de viagens.

A palavra documentário utilizou-se em 1926 para escrever um artigo no The New York

Sun sobre o filme Moana de Robert Flaherty18.

O termo em latim é documentum compreende a compilação de material e documentos

escritos, sonoros e imagens. Estes materiais podem conter um carácter de prova ou de

justificação antes de qualquer argumentação, que todavia hoje se conserva em inglês,

castelhano, em francês para nos referirmos ao conjunto do campo semântico

documentary. E também por extensão pode-se aplicar ao conjunto da família de palavras:

documento, documentação, documentada, documental, documentalista. O carácter de

prova dos documentos – partes ou fragmentos da realidade – que em definitivo é a

matéria-prima dos documentários, é constatado por André Bazin quando nos fala da

“autenticidade poética que não fica datada”, ao referir-se à representação da realidade

clara e lógica sem desvirtuar a autenticidade poética do real. Neste caso encontramo-nos

frente a uma aproximação autêntica da realidade.

Erik Barnouw na sua obra “O Documentário, História e Estilo”, identifica o autor

documentarista como: explorador, repórter, pintor, advogado, fiscal, observador,

guerrilheiro….

18 American film-maker and explorer who pioneered the 'contrived' documentary, poetic, lyrical and cleverly romanticised accounts of life in the wilds. His main thought was to capture the true, primitive spirit of the far-flung lands to which he travelled, and he was not above taking people back to their long-forgotten roots to do it. His documentaries are among the most pictorially beautiful films ever seen, especially those films that he managed to complete without interference of one kind or another. In the early days of the 20th century, Flaherty's father explored Canada in a search for iron ore, taking his son with him. In http://www.britmovie.co.uk/biog/f/005.html

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Movido pela curiosidade o documentarista, tem vontade de conhecer e divulgar os

seus conhecimentos, normalmente, este interroga-se sobre aspectos da realidade.

Uma realidade mais ou menos próxima que lhe serve de objecto de estudo, para a

qual perspectiva diversos olhares, a fim de encontrar a ou as linhas condutoras do

seu trabalho; confronta-se com o que observa, obrigando o observado a confrontar-

se.

O documentarismo é um género ou escola de cinema. Outrora, a acepção corrente de

“documentário” correspondia a pequeno filme de índole informativa. Em sentido amplo e

impreciso chama-se muitas vezes documentário a qualquer filme de curta-metragem que

anteceda a projecção do filme principal no programa de uma sessão de cinema.

O documentário é muitas vezes definido por oposição ao cinema de “ficção”.

Mas em toda a ficção existem elementos documentais. E a realidade de uma fábula pode

ser mais verdadeira do que uma estatística. Em toda a exposição de factos, mesmo os

mais candidamente captados do mundo que nos rodeia, existe escolha, interpretação.

Qualquer processo artístico tem como pressuposto a interpretação, dois documentários

sobre o mesmo tema, têm indubitavelmente interpretações diferentes, uma pauta de

música tocada por dois músicos diferentes resulta necessariamente em duas músicas

diferentes.

A interpretação é o processo através do qual o artista mostra a sua criatividade, deposita

as suas emoções. A posição, o ângulo da câmara é uma opção, por isso uma

interpretação, os tempos mais ou menos longos das notas numa pauta, são igualmente

opções sendo vias adoptadas para provocar emoção do ouvinte.

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Nem a duração, nem os temas, nem sequer a intenção dos autores são suficientes para

distinguir o documentário de outros géneros cinematográficos. Pode-se dizer que o

documentário tem a preocupação de utilizar somente os dados ou até as imagens

preexistentes da vida real, seja em que termos for, para servir variadíssimos intuitos

possíveis.

De resto, assim nasceu o cinematógrafo, como culminação de tentativas imemoriais de

captação da imagem do mundo em movimento, como ele se nos apresenta.

No documentário filma-se o que existe, sem retoques. O resultado, depois, nunca será

evidentemente a imagem pura e simples da vida civil. Assim entendido, óbvio se torna

que o documentário é uma constante da história do cinema, desde os mais simples filmes

dos irmãos Lumiére ou do pioneiro português Aurélio Paz dos Reis, que recolhiam

imagens da vida quotidiana do seu tempo, até aos mais sofisticados produtos de

documentário mais recentes.

Muitas escolas documentaristas optaram por uma auto-designação grandiloquente e

muito própria: o Kino-Pravda (o primeiro “cinema verdade”) do propagandista Dziga

Vertov, na Rússia dos anos 20; o “cinéma vérité” dos anos 60 – actualizando a tradição

antropológica do documentário de Robert Flaherty – ou o “Free Cinema” dos anos 50 em

Inglaterra.

Houve a chamada Escola de Documentário Britânico, que floresceu nos anos anteriores à

II Guerra Mundial: um dos seus principais promotores foi John Grierson19, dizia que o

19 O termo documentário, foi usado pela primeira vez por John Grierson – Documentary. Em mais do que uma ocasião Grierson nega desejar alargar os seus argumentos especificamente formulados para apoiar o documentário e aplicá-lo a todos os filmes; é dele a aceitação pragmática de mais um tipo de cinema. Mas há na sua obra um claro sentido da atracção exercida pelo realismo – “ ar puro e gente autêntica” – e pela responsabilidade social, os factores que desenvolveu como notas dominantes do documentário. A crença de que o medium se deve divertir responsavelmente, aparece geralmente na sua crítica geral do cinema. “ Acontecimentos grandiosos” e “pessoas vulgares”, seriedade de intenções e uma espécie de populismo são os pontos essenciais de toda a obra de Grierson.

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documentário era o “tratamento criativo da realidade existente; não se trata de pequenos

filmes de índole informativa”.

Podem citar-se outros nomes pró-memória: o britânico Humphrey Jennings, o americano

Pare Lorentz ou o Luís Buñnel.

O cinema actual quase sempre apologético – e quase sempre de “esquerda” no sentido de

pretender retratar uma sociedade imperfeita, sim, mas que se pode aperfeiçoar a si

própria. Mais recentemente a evolução dos meios técnicos de captação de imagens e

sons, tornando a presença dos cineastas mais discreta, tornou o documentário mais

transparente, dando lugar a ambições mais modestas e teoricamente menos manipulativas

como o “cinema directo” de praticantes americanos como Pennebaker ou os irmãos

Maysles.

Mas cabe tudo no Documentário, desde a mais banal sucessão de bilhetes-postais do

travellogue turístico às mais refinadas construções abstractas, do mais ingénuo ou mais

boçal comercialismo à mais subtil dialéctica.

Não há dúvidas que desde o princípio, todo o processo de transformação da realidade está

relacionado com as inquietudes, a personalidade e a ideologia do autor, director ou

realizador.

Llorenç Soler20 afirma a 10 de Outubro de 2003 num Seminário organizado pelo núcleo

de Professores deste mestrado na casa da Animação no Porto:

“La autoría…el modo de pensar y la ideología del documentalista es

imposible que no quede reflejada en su obra.”

“Un documéntale constituye una ficción elaborada a partir de elementos

selecionados y extraídos de la realidad”.

20 Nasceu em Valência em 1936, é realizador de cinema e televisão, director de fotografia, escritor, professor de Artes Audiovisuais, poeta e pintor. Possui uma extensa produção de documentários e de ficção dedicada a aspectos sociais. A sua obra já foi exibida em diversos ciclos de cinema colectivos e individuais.

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“En el documéntale se parte de la realidad, pero eso sólo no basta para que el

resultado sea objectivo. El documéntale se interpreta la realidad, mediante la

selección del encuadre y la aplicación del montaje como base de du

andamiaje narrativo. Estas manipulaciones, por sí solas, tienden fácilmente al

falseamiento total o parcial de lo real. Resumindo: la ficción tiene como

vocación la construcción de una realidad. Mientras que el documental tiende

a su destrucción, a su enmascaramiento, porque filma y registra sólo las

apariencias de la realidad. Y, encima, se permite reinterprétala.”21

“Un documentale jamás erá, ni debemos pretenderlo, una obra redonda,

intocable. Un documentale no puede ser como Las Meninas de Velásquez o

como la Quinta Sinfonía de Beethoven. Un documentale es un trabajo

indeciso, trémulo, contradictorio, seguramente plagado de errores, sobre la

realidad. Pero esto mismo es lo estimulante: el camino que debemos seguir

hasta lograr el mayor grado de aproximación a esta realidad; la necessidad de

reducir al máximo la distancia que hay entre lo sentido y lo explicado.

Un documental es, en definitiva, un trozo de un camino.”22

Paul Rotha23 discípulo de Grierson e produtor inglês acredita que o método do

documentário está plenamente ligado com o nascimento do cinema criativo.

21 In, FRANCÉS, Miquel, La Producción de Documentales en la Era Digital, 1.ª ed., Catedra, Madrid, 2003, p. 8. 22 In, FRANCÉS, Miquel, La Producción de Documentales en la Era Digital, 1.ª ed., Catedra, Madrid, 2003, p. 9. 23 Paul Rotha was born in London on the 3 June 1907. At 17 he entered the Slade School of Fine Art to study design and graphics and a year later won an award for costume design at the Paris International Theatre Exhibition. Told by his professor that he would never succeed with his birth name, Paul Thompson, he changed his name to Paul Rotha. In 1928, Rotha, keen to get into the film business, took his portfolio of set designs to British International Pictures at Elstree Studios. He was offered work in the props department and rose to become assistant art director on one film before he was fired for writing an article bemoaning the lack of creative set design in British films. Within a few months of leaving BIP he was commissioned to write a book. The Film Till Now, published in 1930, was the first English-language history of silent and sound cinema and established Rotha's reputation as a film intellectual. The following year he met John

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35

O realizador, sob o seu ponto de vista, tem como objectivo colocar uma ordem na

realidade aleatória, com o intuito de dar um resultado final ordenado, perceptivo, de

linearidade narrativa e com um estilo explicativo na exposição dos seus conhecimentos

tomados a partir de fragmentos da realidade.

O autor pretende, dar autenticidade verosímil aos documentos filmados durante o

processo de ordenação de ideias, ou seja, mediante um acto pessoal de interpretação

dessa documentação que pretende ser objectiva, autêntica.

Neste sentido, Llorenç Soler fala-nos o seguinte:

“ (…) el compromiso del documentalista con la realidad pasa por un tamiz

artístico, al querer simular la realidad de la manera más fiel…atendiendo que

la objectividad es impossible…sin embargo, sí el acercamiento al…afán de

objectividad.”24

Documentário é um filme com uma ou mais mensagens e mesmo que a ou as mensagens

não tenham uma compatibilidade plena com a criação artística, o filme documentário é de

resto uma forma especial de arte. O documentário é uma obra aberta onde constantemente

se podem reconstruírem e recriarem elementos.

O espectador de documentários não só deve estar disposto a divertir-se ou entreter-se

como também receptivo a receber questões menos comuns. Em definitivo, o espectador

Grierson and Basil Wright and began making promotional films for the Empire Marketing Board documentary unit. However, Rotha's independent, maverick nature, which was to characterise his role in the documentary movement, led to conflicts with Grierson and he was again dismissed. In http://www.screenonline.org.uk/people/id/446796/index.html 24 In, FRANCÉS, Miquel, La Producción de Documentales en la Era Digital, 1.ª ed., Catedra, Madrid, 2003, p. 9.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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deve aspirar a ter ao seu alcance uma ferramenta de educação e ou de reflexão

permanente.

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2.2 O Documentário como ferramenta de exposição, observação, interacção e reflexão –

“O Homem da Câmara de Filmar” como Documentário reflexivo.

O Professor norte-americano Bill Nichols25 fala de quatro modalidades ou formas de

representar a realidade, com estas modalidades ele elabora uma classificação tendo como

base o conjunto de produções cinematográficas vigentes na galeria da breve história do

documentário.

“ (…) Expositiva, de observação, interactiva e reflexiva.”

O realizador tem um determinado tipo de atitude em cada relato com o objectivo de se

aproximar à realidade. Flaherty, Grierson26 e Buñuel27 são expositivos.

25 Bill Nichols is an American historian and theoretician of documentary film. His study Representing Reality. Issues and Concepts in Documentary covers the theory of documentary film, a topic neglected by mainstream film theory. He edited the two-volume anthology Movies and Methods which helped to define film studies. Bill Nichols is Professor of Cinema and Director of the Graduate Program in Cinema Studies at San Francisco State University. In http://en.wikipedia.org/wiki/Bill_Nichols

26 Grierson was born in Deanston, near Doune, Scotland. His father was the local school master, his mother an early feminist and ardent Labour Party activist. From an early age, both parents steeped their son in liberal politics, humanistic ideals, and Calvinist moral and religious philosophies, particularly the notion that education was essential to individual freedom and that hard and meaningful work was the way to prove oneself worth in the sight of God. After a stint working on minesweepers in the Royal Navy during World War I, Grierson entered the University of Glasgow, where he spent a good part of his academic career enmeshed in impassioned political discussion and leftist political activism. In 1924, after graduating from the university in moral philosophy, he received a Rockefeller Research Fellowship to study in the US at the University of Chicago, and later at Columbia and the University of Wisconsin-Madison. His research focus was the psychology of propaganda--the impact of the press, film, and other mass media on forming public opinion. Grierson was particularly interested in the popular appeal and influence of the "yellow" (tabloid) press, and the influence and role of these journals on the education of new American citizens from abroad. In http://en.wikipedia.org/wiki/John_Grierson

27 The founder of surrealist cinema, Luis Buñuel enjoyed a career as diverse and contradictory as his films: he was a master of both silent and sound cinema, of documentaries as well as features; his greatest work was produced in the two decades after his 60th year, a time when most directors have either retired or gone into decline; and although frequently characterized as a surrealist, many of his films were dramas and farces in the realist or neo-realist mode. Yet despite all the innovations and permutations of his work, Buñuel remained suprisingly consistent and limited in the targets of his social satire: the Catholic Church, bourgeois culture, and Fascism. As he once commented, "Religious education and surrealism have marked me for life."Buñuel described his childhood in Calanda, a village in the Spanish province of Aragon, as having "slipped by in an almost medieval atmosphere." Between the ages of six and fifteen he attended Jesuit school, where a strict educational program, unchanged since the 18th century, instilled in him a lifelong rebellion against religion. In 1917 Buñuel enrolled in the University of Madrid and soon became involved in the political and literary peñas, or clubs, that met in the city's cafes. His friends included several

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Leacock-Pennebaker28 e Frederick Wiseman29 são observadores. Jean Rouch30 e Connie

Field31 pertencem à modalidade interactiva. Dziga Vertov e Raúl Ruiz32 são reflexivos.

of Spain's future great artists and writers, including Salvador Dali, Federico García Lorca and Rafael Albertini. Within a few years the avant-garde movement had reached the peñas and spawned its Spanish variants, creacionismo and ultraísmo. 28 One of the founding fathers of "direct cinema", American filmmaker's adopted name of choice for "cinema verite", and perhaps its best known practitioner during the 1960s and early 70s, Pennebaker helped construct a style of storytelling and an attitude toward his subjects (often political figures or entertainers) that influenced a generation of nonfiction filmmakers. He is a proponent of a cinema which favors the filming reality in as unobtrusive a manner as possible, usually without narration. "You don't necessarily need a script or actors to tell a compelling tale," he has declared. "Finding a person at a key moment in his life and rendering the truth as you see it--that's the truest form of drama." In http://www.hollywood.com/celebs/fulldetail/id/1121876

29 Documentarian Frederick Wiseman has been noted for his ability to capture the nuances of life in American institutions such as prisons, hospitals, welfare offices, and high schools. He started out in 1963 by producing a fictional feature film, The Cool World, an examination of the lives of Harlem teenagers. In the beginning, Wiseman was a staunch social reformist, and his films were calls for change. Titicut Follies, his first documentary, is an exposé of life in a prison for the criminally insane in Bridgewater, MA. It was controversial and left Wiseman with the reputation of being a muckraker. His four subsequent documentaries were all exposés of other tax-supported institutions designed to show the ineffectiveness of the bureaucracy that not only threatens to destroy them, but also dehumanizes the people they were meant to serve. Wiseman toned down his message and began focusing more on American culture to point out the symbolism of daily activities in his film Primate (1974). In the '80s, he began examining institutions as they relate to ideology. Unlike other documentaries, Wiseman's work does not progress chronologically; rather, the segments are arranged thematically, like an essay, and are linked via rhetorical devices such as comparison and contrast to create a patterned structure. His films are never narrated, thereby forcing viewers to make connections between the sequences themselves. In http://movies2.nytimes.com/gst/movies/filmography.html?p_id=77063&mod=bio

30 Jean Rouch (31 May 1917 - 18 February 2004) was a French filmmaker and anthropologist. He began his long association with African subjects in 1941 after working as civil engineer supervising a construction project in Niger. However, shortly afterwards he returned to France to participate in the Resistance. After the war, he did a brief stint as a journalist with Agence France-Presse before returning to Africa where he become an influential anthropologist and sometimes controversial filmmaker. Rouch's films mostly belonged to the cinéma vérité school – a label that Rouch himself coined. His best known film, one of the central works of the Nouvelle Vague, is Chronique d'un été (1961) which he filmed with sociologist Edgar Morin and in which he portrays the social life of contemporary France. Throughout his career, he used his camera to report on life in Africa. Over the course of five decades, he made almost 120 films. He was killed in an automobile accident in February 2004, some 16 kilometres from the town of Birnin N'Konni in central Niger. In http://www.jean-rouch.de/

31 Producer/Director Connie Field has worked on numerous dramatic and documentary films, as well as independently producing her own work. Connie Field is a recipient of the John Grierson Award as most outstanding social.

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Bill Nichols apresenta a modalidade expositiva, onde o realizador está representado pelos

comentários omniscientes da narração em off. O poder do narrador, orador social é total

marca a continuidade e dá coesão às diferentes cenas narrativas.

Na modalidade de observação o realizador não intervém.

Esta modalidade caracteriza-se por longas capturas de som síncrono isentas de música,

narrações e introdução de testemunhos.

Neste caso a intervenção do realizador é importante na selecção de situações e

personagens e na montagem.

A etnografia, entre outras ciências sociais, fez um uso muito extensivo a partir da

reconstituição de relatos orais. É também o denominado cinema directo que nos fala Erik

Barnouw ou o cinema verdade segundo Stephen Mamber. A produção de documentários

que utilizam esta modalidade, preconizada por Fred Wiseman, teve uma grande tradição

em todo o percurso da história.

Outros formatos de documentário que apareceram recentemente, como os docusoaps,

também fazem uso de algumas técnicas de produção e realização desta modalidade com

uns níveis de audiência significativos em horários de prime time.

A reflexão de Bill Nichols é indubitavelmente uma reflexão e um ponto de partida

importante que nos ajuda muitas vezes a definir na actualidade o nascimento de formatos

televisivos de documentários.

32 Raúl Ruiz (born July 25, 1941) is a Chilean filmmaker and one of the most prolific filmakers of the last 50 years. He was trained as a painter. He spet some years at the University of Santa Fe, Argentina's cinema school. Back in Chile he directed his first feature films in the late sixties and early seventies. He was somewhat of an outsider among the politically oriented cinematographers of his generation such as Miguel Littin and Helvio Soto, his work beeing far more ironic, surrealistic and deeply experimental. In 1973 he left Chile and settled in France. After several years producing and directing low-budget telefilms, his career took off in 1996 with Three Lives and one Death, starring Marcello Mastroiani. Next year he directed Genealogies of a Crime, starring Catherine Deneuve. In http://en.wikipedia.org/wiki/Raoul_Ruiz.

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Neste sentido, o concurso televisivo Big Brother relata-nos acontecimentos do quotidiano

em tempo real e aproxima-se bastante da modalidade de observação. O Big Brother

constitui um programa televisivo (reality show) que poderia denominar-se de docushow

ou docugame.

Bill Nichols introduz em terceiro lugar a modalidade interactiva. Aqui a presença do

narrador é contínua, este intervêm e actua sobre os diferentes testemunhos, aponta

diferentes pareceres e pontos de vista ao novo discurso e dá à entrevista a aparência de

pseudomonólogo.

“El realizador: (…) actúa, participa, defiende, acusa, provoca a los actores

sociales reclutados… con el objetivo de darles la autoridad textual y de

continuidad en el montaje….”33

Na montagem é onde se tenta coordenar todos os pontos de vista captados durante a

rodagem. A exploração da entrevista por parte do realizador é neste caso a técnica mais

utilizada. O som diegético34 e síncrono dos participantes é a principal referência para

construir a parte sonora.

33 In, FRANCÉS, Miquel, La Producción de Documentales en la Era Digital, 1.ª ed., Catedra, Madrid,

2003, p. 26.

34 Diegese é um conceito de narratologia, estudos literários, dramatúrgicos e de cinema que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa. A diegese é a realidade própria da narrativa ("mundo ficcional", "vida fictícia"), à parte da realidade externa de quem lê (o chamado "mundo real" ou "vida real"). O tempo diegético e o espaço diegético são, assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor. Em Cinema e outras linguagens audiovisuais, diz-se que algo é diegético quando ocorre dentro da acção narrativa ficcional do próprio filme. Entende-se por som Diegético as sonoridades objectivas; todo o universo sonoro que é perceptível pelos personagens em cena, tais como a paisagem sonora (o som dos carros numa cidade, o ruído de uma multidão, os pássaros no campo, a música num bar, etc), ou o diálogo entre personagens. Os sons diegéticos podem decorrer dentro do enquadramento visual da cena ou não (on screen / off screen). In http://www.abarbosa.org/docs/som_para_ficcao.pdf

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Nos anos 20, foi introduzida esta forma de relação documental, que até hoje, teve uma

grande repercussão na produção de documentários. A antropologia ou a história oral

também usou de uma forma extensiva esta modalidade para os seus trabalhos de

investigação.

Os docusoaps fazem um uso polivalente destas duas modalidades utilizando estruturas

narrativas diferentes segundo a latitude cultural de onde são produzidos.

Assim, por exemplo, na Grã-Bretanha os docusoaps constituem uma visão descafeinada

das séries documentais de análise institucional, na Catalunha os docusoaps são uma

forma não periodista de analisar a realidade, que representa ao espectador uma realidade

muito quotidiana de uma maneira insólita e de grande repercussão popular.

De qualquer maneira, os docusoaps relacionam-se com a realidade sem deixar de

questioná-las ou criticá-la. Os documentários de criação ou de autor que utilizam esta

modalidade expressiva de interacção tomam sempre uma posição ideológica em relação à

realidade utilizada.

Em último lugar estão os documentários reflexivos, onde se situa “O Homem da Câmara

de Filmar”. Esta modalidade situa o realizador não como participante ou observador mas

como um agente que exerce autoridade sobre o discurso político ou formal.

Neste caso o realizador pode entrar em campo.

Agora o trabalho textual da narração principal marca novamente a continuidade, tal como

acontecia na primeira modalidade.

O realizador é um elemento intra diegético da máxima importância frente aos pontos de

vista das personagens e testemunhos.

A última opinião pertence ao director, esta modalidade representa um retrocesso na

presença discursiva dos actores sociais.

O realizador pode coincidir com o operador de câmara, poderão ter uma sintonia absoluta

de transmissão discursiva.

Dziga Vertov, Jill Godmilow e Raúl Ruiz foram os precursores na produção desta

modalidade.

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42

A montagem segue em grande parte a pauta dos comentários com uma ruptura espácio-

temporal. Sobre este assunto, em 1997 Bill Nichols diz:

“El montaje…suele servir para establecer y mantener la continuidad retórica

más que la continuidad espacial y temporal.”35

O enredo entre sequências e capítulos narrativos estabelecem sempre uma dialéctica de

causa e efeito com o intuito de dar soluções aos problemas apresentados gerando

expectativas no espectador. Esta modalidade trouxe consigo muitos documentários, desde

as aproximações antropológicas de Robert Flaherty com “Nanook O Esquimó” de 1922,

passando pela sátira com forte componente surrealista de Luís Buñuel em “Terra Sem

Pão” de 1932.

35 In, FRANCÉS, Miquel, La Producción de Documentales en la Era Digital, 1.ª ed., Catedra, Madrid, 2003, p. 26.

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2.3 - Dziga Vertov: “cinema-verdade”, “cinema-olho” e “cinema-directo”

A produção da época czarista ficou conhecida como “cinema branco”, uma denominação

usada para diferenciá-lo do “cinema vermelho”, nascido da revolução bolchevique. Era

um cinema de estúdio, produzido por Josef Ermoliev, o mais importante produtor russo

anterior à revolução e servido por técnicos, actores e realizadores de enorme craveira.

Dois dos principais realizadores foram Evgueni Bauer e Yakov Protazanov, a par do actor

Ivan Mosjukine e do encenador Konstantin Stanislavki.

O primeiro especializou-se nos dramas mundanos e policiais, dando provas de

originalidade; o segundo, com as suas adaptações de obras-primas da literatura,

contribuiu para que o cinema russo fizesse grandes progressos narrativos; o terceiro era a

vedeta e o rosto do cinema russo36, e o quarto moldou toda a geração de actores que

culminou no célebre “ Actor’s Studio” de Lee Stransberg e Stela Adler, em Nova Iorque.

Acusados pela revolução de fazerem um cinema burguês, Mosjukine exila-se em Paris e

Ermoliev transfere os seus estúdios para a Crimeia, levando consigo todos os que não

conseguiram refugiar-se em Paris. E aí prossegue tranquilamente a sua produção. Com a

chegada de Estaline ao poder, toda essa estética é recuperada e reciclada no cinema do

realismo socialista, uma vez que era mais acessível às massas.

O “cinema vermelho” vai ser influenciado pelas grandes correntes estéticas da vanguarda

do início do século, como o construtivismo e o futurismo. Se o construtivismo na

montagem se deve à aceleração do movimento das imagens, que reflecte a rapidez do

mundo urbano associada à apologia da máquina feita pelo futurismo, este é a declaração

de que a arte convencional tinha de ser destruída e que uma nova arte, baseada na era da

máquina tinha de ser implantada. Os cineastas, intimamente ligados à vida moderna,

36 Esta é uma das grandes diferenças do cinema russo e soviético que a revolução instituiu. O cinema vermelho não tinha vedetas, na maioria dos filmes os seus protagonistas eram anónimos e representavam sempre a figura do herói colectivo.

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exploraram uma técnica de justaposições baseadas no choque. A própria poesia de

Mayakovky era feita de palavras avulsas e remisturadas como imagens violentas.

Sendo o documentário uma forma de arte, é essencial referir as várias concepções de

verdade na arte.

Para os gregos a verdade da arte incidia na imitação da realidade, ou seja, o rasgo

essencial na arte era a verdade construída como imitação da realidade.

Existem duas formas de apreciar a verdade objectiva: a individual e a universal.

Na individual o artista tem que representar as coisas tal como existem, na universal, o

artista deve conservar o que é essencial e universal na obra.

Existem diferentes teorias do termo verdade na arte:

1. A verdade como adequação do intelecto à coisa, conformidade da mente com o

objecto,

2. A verdade como representação exterior e fidedigna do modo fidedigno da realidade,

3. No século XVIII a expressão “verdade” apareceu em tratados em sentido metafórico,

4. Verdadeiro significa autêntico,

5. No século XX, verdade na arte significava consistência com os seus fins e os seus

meios.

Com a modernidade a verdade estava unida conceptualmente com a beleza e o bem.

Convém explanar sobre a categoria da obra de arte na vanguarda.

Na vanguarda, a obra de arte assume a decomposição da tradicional unidade.

Existem correntes que preconizam uma ruptura com a estética Kantiana pois segundo

estas correntes, ela não parte duma definição de obra de arte, mas sim de juízos estéticos.

A obra vanguardista não nega a unidade geral, nega um determinado tipo de unidade, a

conexão entre a parte e o todo. Por exemplo, os actos dadaistas tinham como propósito

provocar o público, verifica-se assim a liquidação da categoria da obra.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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Apoiando-me em Roman Ingarden37, a correspondência entre o objecto representado e a

realidade, a representação adequada da ideia do artista, a sinceridade e a conformidade

interna, constituem requisitos para a verdade na arte. Ressaltam assim três significados: a

conformidade com a realidade, conformidade com a ideia da obra e conformidade interna

da obra.

37 Roman Ingarden (1893 -- 1970) was a Polish phenomenologist, ontologist and aesthetician. A student of Edmund Husserl's from the Göttingen period, Ingarden was a realist phenomenologist who spent much of his career working against what he took to be Husserl's turn to transcendental idealism. As preparatory work for narrowing down possible solutions to the realism/idealism problem, Ingarden developed ontological studies unmatched in scope and detail, distinguishing different kinds of dependence and different modes of being. He is best known, however, for his work in aesthetics, particularly on the ontology of the work of art and the status of aesthetic values, and is credited with being the founder of phenomenological aesthetics. His work The Literary Work of Art has been widely influential in literary theory as well as philosophical aesthetics, and has been crucial to the development of New Criticism and Reader Response Theory. In http://plato.stanford.edu/entries/ingarden/

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“Imagem da Realidade”, eis uma expressão que não se pode separar das teorias e das

obras de Dziga Vertov.

No começo do século XX, todos os pioneiros filmavam cenários da vida real, que se

podiam qualificar hoje de cenas do nosso quotidiano. Dziga Vertov defende a ideia de

que o cinema deve, fundamentalmente incidir sobre a vida real e separada da ficção.

Vertov falava assim do seu filme – “O Homem da Câmara de Filmar”.

“ É uma tentativa para representar os factos com uma linguagem inteiramente

cinematográfica. Rejeitamos totalmente as linguagens e os procedimentos do

teatro e da literatura.”

O importante para este cineasta soviético, que fazia sociologia sem o saber era captar o

real, as atitudes, o movimento frenético das máquinas e dos homens, ele filmou a

revolução física da máquina e deu-nos a atmosfera da revolução das mentalidades.

“ (…) il n est plus question de mise-en-scène, même sauvage, mais

d’enregistre des paquets de réalité…”.38

Muitas das inovações deste cineasta tinham como objectivo recriar regras numa nova

linguagem a fim de abrir fronteiras entre todas as civilizações. Com esta nova linguagem

cinematográfica surgiu a teoria do Kino-Pravda (cinema-verdade), um cinema sem

máscaras, sem actores, sem décors. O método consistia em captar a realidade tal como

ela se apresentava, o registo era improvisado o que fazia com que revelasse a “cine-

sensação”.

Em Theory of the Film, Béla Balázs39 discute o olhar ameaçado nos documentários de

guerra, dedicados a operadores de câmara mortos durante a filmagem.

38 In MARSOLAIS, Gilles, L’Aventure du Cinema Direct, Seghers, Paris, 1974, p. 34.

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Ele escreve:

“ Esse destino do artista criativo é (…) um fenómeno novo na história

cultural, específico da arte do cinema. (…) A apresentação da realidade por

meio do filme cinematográfico difere essencialmente de todos os outros

modos de apresentação porque a realidade que está apresentada ainda não se

completou; ela está sendo construída à medida que se prepara a apresentação.

O artista criativo (…) está presente ao próprio acontecimento e participa dele.

(…) O operador de câmera se encontra, ele próprio, na perigosa situação que

vemos em sua tomada e de forma alguma tem certeza de que sobreviverá para

ver seu filme. Até que a fita chegue ao fim, não temos como saber se será

concluída. É esse tangível “estar presente” que confere ao documentário a

tensão peculiar que nenhuma outra arte consegue reproduzir”.40

O objecto era filmado para que fosse revelada a verdade que lhe é inerente, sem

imposições de enquadramentos, luzes ou guiões. O fluir da vida acontecia

espontaneamente frente ao olho da câmara.

O “cinema-olho” é definido como um meio de registar a vida, o movimento, os sons e

organizá-los através da montagem. É um movimento que defende a acção pelos

acontecimentos contra a acção pela ficção, isto tem como intuito a descoberta da verdade.

Segundo Vertov, as actualidades devem viver da realidade e o documentarismo como um

fim em si mesmo nunca interessou Vertov.

“ L’histoire du Cinéma-Oeil est l’histoire d’un combat sans trêve pour

modifier le cours du cinéma universel, pour mettre l’accent, parmi les

39 Béla Balázs (August 4, 1884, Szeged – May 17, 1949, Budapest), born Herbert Bauer, was a Hungarian-Jewish film critic, aesthete, writer and poet. 40 In RAMOS, Fernão Pessoa, Teoria Contemporânea do Cinema – Documentário e Narrativa Ficcional, editora Senac, volume II, São Paulo, 2005, p. 151.

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production de l’écran, sur les films non joués, plutôt que sur les films joués,

pour substituer le cocuments à la mise en scène, pour rompre avec le cadre

étroit du théâtre, pour entrer dans la vaste arène où se déroule la vie même.”41

Nasceu nele a ideia de que a câmara de filmar era mais perfeita do que o olhar humano,

adquirindo uma força sobre humana. Vertov não podia admitir qualquer tipo de

reconstituições, de encenação perante a câmara de filmar. Este princípio era contestado

pelos cineastas seus contemporâneos e compatriotas, que não aceitava o primado absoluto

da objectividade tal como era praticado pelo Kino-Pravda.

Dziga Vertov diz:

“ O olho submete-se à vontade da câmara e deixa-se dirigir por ela para esses

momentos sucessivos de acção que, através do caminho mais curto e mais

claro conduzem à cine-frase em direcção ao cume ou ao fundo do

desenvolvimento.”

“ Eu, cine-olho, crio um Homem mais perfeito do que aquele criado por

Adão…”.

“ Eu sou o cine-olho.”

“ A bas les 16 images/secondes. Le tournage accéléré est un moyen pour

rendre visible l’invisible…Le Cine-Oeil se définit comme le microscope et le

télescope du temps.”42

Como ruptura Vertov desenvolveu o anti-estúdio e o “cine-olho”, baseado na captação de

imagens do quotidiano. A realidade é a matéria-prima do caleidoscópio da montagem e

41 In MARSOLAIS, Gilles, L’Aventure du Cinema Direct, Seghers, Paris, 1974, p. 35. 42 www.contracampo.com.br/60/cincoimagensdevertov.htm www.geocities.com/contracampo/dzigavertov.html www.geocities.com/Hollywood/Agency/8041/vertov.html

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não a realização, os argumentos, os actores ou os estúdios, que eram protótipos do

cinema burguês e que segundo ele deviam ser banidos. Não havia lugar para a ficção, ou

reconstituições históricas. O objectivo passava pela potencialidade da câmara captar

mecanicamente a “verdade” e o mundo sem a intervenção do Homem, porque

consideravam a máquina mais perfeita do que o olhar do Homem.

A utilização da câmara de filmar como “cine-olho”, movendo-se no tempo e no espaço,

cristalizou-se em toda a teoria “vertoviana”. A finalidade era mostrar a dualidade entre a

realidade perante os olhos do Homem e como é observada pela câmara.

Em 1923, o “cine-olho” era já conhecido, as caricaturas mostravam-no como um pequeno

burguês que espiava pelo buraco da fechadura. Vertov retira do mundo que o circunda

aquilo que o impressiona, atira o que capta e transpõe para a tela de cinema trabalhando

de uma forma profunda a psiqué do espectador.

O Kino-Pravda foi reabilitado cerca de 30 anos mais tarde pelo realizador francês Jean

Rouch.

Em 1963 Mario Ruspoli propõe o termo cinema directo em vez de cinema verdade.

O cinema directo visa questionar o problema da verdade no plano das relações humanas,

é antes de mais um cinema de comunicação. Vertov projectou o que viria a ser o cinema

directo, realizou um estudo experimental baseado naquilo que considerava um olhar

novo, mostrando a verdade nem sempre fácil de ver na sua totalidade. A experimentação

em Vertov era já um largo apelo ao espírito criativo no sentido de dar origem a uma

linguagem compreendida por vastas camadas de espectadores.

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2.4 “O Homem da Câmara de Filmar”, uma Obra Futurista.

A história da arte não é a de uma série de civilizações separadas, começando pelos

impérios próximo-orientais, continuadas pela Grécia e Roma, e daí por toda a arte

europeia, ficando as outras, da Ásia, África, América Pré-Colombinana e Oceânia, como

fenómenos culturais estranhos e sem parentesco.

A tendência actual seria, antes, a de considerar a arte43 ao modo de um conjunto de

formas expressivas, esquemáticas, mais ou menos recorrentes e constantes, em todos os

43 Para os medievais a arte era a recta ordenação dos meios práticos em relação a um fim. A arte tinha âmbito extenso, primeiro porque a visão do universo teocêntrico enobrecia coisas e actividades; depois porque, por influências aristotélicas, a arte era tida como imitação técnica. Entende-se por arte o fabrico consciente da beleza: “fabrico” porque pressupõe inspiração e criação, sendo o primeiro momento a iluminação do artista e o segundo o trabalho artístico da técnica; “consciente”, já que é calculada, pois, se o não fosse, tratar-se-ia de actividade espontaneamente bela. Modernamente tende a separar-se a arte da beleza, mas é porque se entende o belo ao modo helénico ou renascentista, como perfeição de arquétipos platónicos, cuja “forma” é feita de harmonia de proporções, de linha, de brilho e de aparências. Se, porém, tornarmos a beleza em acepção mais vasta, como manifestação de riqueza e plenitude do ser, então a arte é compatível com uma fealdade parcial quando, através dela, se revelam profundeza interior, humanidade plena e vida depurada. Nesse fabrico, a arte consistirá em imitar (mimesis) fielmente a realidade ou em expressá-la numa hipérbole transfiguradora? No seu livro Poética, Aristóteles refere o seguinte:

“ O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário (…).” Aristóteles define a arte como imitação, pois é esta que faz com que até o feio agrade. Noutros contextos sobretudo quando fala da seriedade da poesia parece deduzir-se que a imitação se deve considerar demanda de aprofundamentos ideais. Além disso, o que, em toda a mímica nos interessa não é a reprodução enquanto tal, porque, nesse caso, a fotografia, o gravador, ou até o espelho seriam a arte; o que nos agrada é a recriação do ser através de uma mimesis humana. Pois não será toda a arte a projecção técnica, exterior, de um conhecimento, é, através da intuição que o artista apreendeu a realidade. Realidade de sons, linhas, cores, gestos, palavras e conceitos. A arte é uma expressão de síntese, de ordem e proporção. Em Eça de Queirós, Fradique Mendes salienta: “ A Arte é um resumo da natureza feito pela imaginação” O que se dá na arte é que a inteligência concretizou a ideia na intuição sensível da imagem, e alargou a imagem a um significado universal. O artista não pensa, primeiro, a ideia para depois a revestir de imagem, mas pensa a ideia na e pela imagem. Temos pois simultaneamente síntese do homem e do universo. A arte é também a expressão vital de uma emoção. A intuição do objecto belo, ou o seu conhecimento íntimo, é, simultaneamente, adesão de simpatia, fusão de sujeito-objecto. Ninguém põe em dúvida que a arte se ressinta e se caracterize, em boa parte, com os condicionalismos económico-sociais. Mas o que a faz ser arte e não qualquer manifestação cultural da vida não são esses condicionamentos como tais. É uma qualidade de expressão plena de esplendor de verdade e de emoção profunda. Uma coisa é explicar e analisar conteúdos humanos, outra coisa é valorar a qualidade expressiva.

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povos conforme o respectivo estádio de civilização, ainda que separadas, no tempo, por

muitos séculos.

Cada época de uma civilização cria uma arte que lhe é própria e que jamais se verá

renascer. Tentar ressuscitar os princípios da arte dos séculos passados só pode conduzir à

produção de obras abortadas. Assim como é impossível fazer reviver em nós o espírito e

as formas de sentir dos antigos Gregos, todos os esforços tentados no sentido de aplicar

os seus princípios – por exemplo, no domínio da plástica – apenas levarão ao

aparecimento de formas semelhantes às gregas. A obra assim produzida jamais possuirá

uma alma. Esta imitação assemelha-se à dos macacos.

A verdadeira obra de arte nasce do “artista” – criação misteriosa, enigmática, mística.

Separada dele, ela adquire vida própria, converte-se numa personalidade, num sujeito

independente, animado por um sopro espiritual, um sujeito vivo com existência real – um

ser.

Ela não é um fenómeno fortuito que aparece, indiferentemente, algures no mundo

espiritual. Como qualquer ser vivo, é dotada de poderes activos, e a sua força criadora

não se esgota. Vive, age e participa na criação da atmosfera espiritual.

No documentário, a expressão do objecto pode muitas vezes confundir-se, com o objecto

expresso. Estes dois conceitos não são distintos; são dois comprincípios que se

completam um pelo outro. Daí que, diante de um documentário, possa haver duas

intenções, igualmente distintas: ou procurar, a qualidade estética, expressiva da obra, ou

procurar, a exaltação e o esplendor do objecto.

A primeira é a dos estetas puros, que fazem um documentário, com o pretexto de que a

qualidade estética é inconfundível e rebelde a outros interesses; a segunda é a de aqueles

que, movidos, talvez pela urgência dos problemas humanos, querem acima de tudo

comunicar. As duas intenções enquanto simples primazias das intenções psicológicas,

não se podem condenar. Mas rejeitando-se mutuamente, deixam de ser admissíveis.

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No documentário “O Homem da Câmara de Filmar” verificamos uma simbiose entre a

forma44 e o conteúdo, não se trata de um documentário esteta, mas sim de uma obra

44 O termo latino “forma” substituiu duas palavras gregas: morfé e eidos. Morfé aplicava-se às formas visíveis e eidos às formas conceptuais. Do lado oposto encontra-se o conteúdo, matéria, parte ou tema. É necessário, para uma melhor compreensão da forma e do conteúdo, tecer algumas considerações sobre a “forma”, existem pelo menos cinco teorias relevantes: Primeira teoria: “ A forma como disposição das partes”. O significado oposto à “forma” constituiu aqui as partes, ou seja, os componentes que essa forma inclui no todo. Assim a “forma” duma catedral é a disposição das suas pedras, a “forma” dum soneto é a disposição dos seus versos. Esta teoria pertence aos antigos e identifica-se com a noção de beleza. Na idade média a reflexão da “forma” e da beleza tomou dois rumos. De um lado estavam os seguidores puros da tradição grega, que defendiam que a beleza e a arte consistiam na “forma”. Sobre isto Sto. Agostinho dizia:

“ Quanto mais medida, figura e ordem tiverem as coisas, maior será o seu valor.” De outro lado estavam aqueles que diziam que a beleza não consiste só na “forma”. Sobre isto S. Tomás de Aquino dizia:

“ A beleza da luz não se baseia no número, nem na medida, nem no peso, mas na aparência.” Ambas as tendências estéticas persistiram durante o Renascimento. Esta concepção da arte baseada neste conceito de “forma” perdurou em França até ao século XVIII, decaiu com o Romantismo no final deste século. A segunda teoria: “A forma como percepção imediata dos sentidos”. Esta teoria faz referência à aparência das coisas, tal como aparecem e não à disposição que apresentam as suas partes. O conceito de correcta disposição alude ao conteúdo, na beleza que emana a sua aparência externa. Os escolásticos denominaram como conteúdo o “sentido interno” e como forma o “ornamento verbal externo”. Para Le Corbusier:

“Numa verdadeira obra de arte o mais importante é a forma.” Para Kandinsky:

“ A forma sem conteúdo constitui um grande vazio.” Terceira teoria: “A forma como limite exterior ou contorno duma coisa.” Considera-se o contorno, ou limite exterior e não todo o objecto como a teoria anterior. A “forma” constitui o contorno, a figura ou a superfície. Esta teoria só foi importante entre os séculos XV e XVIII. Quarta teoria: “A forma como forma substancial.” Já num plano mais filosófico e amplo, esta quarta acepção de “forma” refere-se à essência conceptual dum objecto e deriva de Aristóteles. Aristóteles: “Entendo por forma a essência de cada coisa.” Isto implicava uma identificação da “forma” com a acção, como elemento activo da existência. A “forma” significaria aquilo substancial pelo que um ser é o que é. A “forma” era entendida como aquilo que revela a substância última, a “forma” como princípio activo da individualização. Quinta teoria: “A forma como forma a priori, ou propriedade subjectiva da mente.” Esta teoria é fundamentalmente filosófica. Refere-se a um conceito da “forma” que se identifica com a contribuição da mente na constituição do objecto percebido. Este conceito de “forma” foi criado por Kant, que descreveu a “forma” como uma propriedade da mente que nos obriga a experimentar as coisas do mundo de “forma particular”. É uma “forma” a priori, que encontramos nos objectos, porque é o sujeito que se impõe a eles. É devido aos seus atributos subjectivos

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futurista que mostra a intenção e responsabilidade social do seu autor pelo conteúdo que

consegue comunicar. Dziga Vertov mostra a sua intenção formal e imediata de respeitar o

homem, embora sem a intenção de o fazer melhor.

“O Homem da Câmara de Filmar” inscreve-se no movimento futurista e construtivista,

tanto pelo modo como o operador apresenta as suas imagens, mise-en-scène, mas também

na forma como usa a montagem e pela ênfase que dá a determinados temas que retrata.

que a “forma” Kantiana está dotada de universalidade e necessidade. O conceito de “forma” é necessário e universal, mas não se pode aplicar à estética.

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A palavra “futuro”, com toda a sua carga, tem a sua raiz etimológica no latim futurus, que

é o particípio futuro de esse (ser). Assim, a sua origem como verbo, dá ênfase ao conceito

de “ o que está para acontecer”.

O Futurismo era sinónimo de avant-garde, surgiu como um fenómeno nacional e

internacional. A noção “futurista”, aplica-se não só a um avanço tecnológico

extraordinário como também a uma visão complementar da mente e do corpo

transformados, que dota os seres humanos de novos poderes mentais e físicos.

Assim, “futurista” tende a implicar as possibilidades infinitas do progresso, das quais se

detectam sempre indícios no presente – os modelos futuristas de automóveis, que hoje

nos é dado a conhecer em anúncios cada vez mais sofisticados, evocam esse mundo que

ainda está para acontecer.

Futurismo também sugere a ideia de segmento de tempo, derivada da estruturação da

nossa experiência e linguagem em torno de um esquema tripartido de passado, presente e

futuro.

Os filósofos, escritores e artistas dos séculos XIX e XX, desde os pré-rafaelitas e Marcel

Proust, passando por Umberto Boccioni45 Jean-Paul Sartre46 e Francis Bacon47 revelaram

grande preocupação com o tempo.

45 O pintor e escultor Umberto Boccioni foi o mais importante teórico do Futurismo. Formou-se em Roma, com Gino Severini, no ateliê de Giacomo Balla, nos primeiros anos do século XX. Aprendendo a pintura neo-impressionista, tornou-se um mestre menor do divisionismo italiano. Fixou-se em Milão, onde conheceu Marinetti, em 1908, e, em 1909, aderiu ao Futurismo, com Balla, Carlo Carrà e Luigi Russolo, assinando com eles o Manifesto dos pintores futuristas, em 1910; no mesmo ano, redigiria o Manifesto técnico da pintura futurista. Convocado para lutar na Primeira Grande Guerra, serviu na artilharia, em Sorte, próximo a Verona, onde morreu após uma queda de cavalo durante exercícios militares. HUMPHREYS, Richard, Futurismo, Editorial Presença, Lisboa, 2001. P.17.

46 Jean-Paul Sartre, novelista francês, teatrólogo, e maior intelectual do Existencialismo, - filosofia que proclama a total liberdade do ser humano. Foi premiado com o Nobel de literatura de 1964, que desconsiderou.

47 Foi um artista plástico britânico considerado, um dos mais importantes e inovadores da segunda metade do século XX. Este artista irlandês tratou com uma extraordinária complacência alguns temas que continuam a chocar a nossa vida em grupo. As fantasias masoquistas, a pedofilia, o desmembramento de corpos, a violência masculina ligada à tensão homo erótica, as práticas de dissecação forense, a atracção pela representação do corpo (um especial fascínio pelos fluidos naturais, sangue, bílis, urina, esperma, etc.)

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Em 1909 o jornal francês Le Figaro tem como primeira página o manifesto futurista.

Este famoso manifesto incidia sobre os seguintes pontos: a beleza da velocidade,

glorificação da guerra, o militarismo, o patriotismo, o desprezo pela mulher48, a coragem,

a audácia, a revolta, o carácter agressivo das obras.

O futurismo reclama os seguintes slogans:

“ (…) Um carro tonitruante, que parece rodar sobre a metralha, é mais belo

do que a Vitória de Samotrácia49.”

“ (…) O voo suave dos aviões, cujos motores tagarelam ao vento, quais

estandartes, e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta.”50

No imaginário futurista, as máquinas, a “força vital, o capitalismo e o impulso sexual

violento encontravam-se ligados a forças históricas, contra as quais acreditavam não valer

a pena lutar.

Houve, dois pensadores cujas ideias assumiram um significado particular na formação do

futurismo e, na verdade, na formação do modernismo primitivo enquanto um todo:

Friedrich Nietzsche51 e Henri Bergson52.

e, no geral, com tudo o que está directamente ligado à transgressão seja relacionada com o sexo, a religião (são paradigmáticos os seus retratos do Papa Inocêncio X. 48 Embora o Futurismo seja conotado com o “machismo”, houve algumas mulheres futuristas como por exemplo: Valentine de Saint-Point, a poetisa e dançarina francesa é o expoente do apelo à “supermulher” nietzscheana, escreveu em 1913, um Manifesto Futurista da Luxúria”, que define sucintamente a relação entre sexualidade e modernismo: “ A LUXÚRIA EXCITA A ENERGIA E LIBERTA FORÇA”. In HUMPHREYS, Richard, Futurismo, Editorial Presença, Lisboa, 2001. P.11. 49 Vitória de Samotrácia é uma escultura que representa a deusa Atena Niké (Atena que traz a vitória). Actualmente está em lugar de destaque numa escadaria do Museu do Louvre, em Paris (França). 50 In HUMPHREYS, Richard, Futurismo, Editorial Presença, Lisboa, 2001. p.11.

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A filosofia de Nietzsche, escrita em estilo híbrido e aforístico, em obras como “Assim

Falava Zaratustra” e “A Vontade do Poder”, tentou penetrar no racionalismo fragmentado

da cultura e moralidades modernas53, ir “além do bem e do mal”. A sua rejeição do

cristianismo, ao ter anunciado a morte de Deus, e o retorno à cultura da Grécia clássica

exigiam que o indivíduo contemporâneo criasse o seu próprio sistema de valores.

Para Nietzsche a arte é o produto de uma alma inquieta, trágica e dionisíaca.

Enquanto Nietzsche se preocupava com a ideia de novos valores, o filósofo francês Henri

Bergson54 preconcebia ideias do tempo e do “devir”. Bergson na ânsia em ressalvar a

dificuldade de expressar as suas ideias, designou de “duração” a experiência humana

através do tempo. Para Bergson o tempo mecânico era a antítese da “duração” e o próprio

relógio, o símbolo rígido de um tipo de morte-em-vida. As suas ideias complexas foram

51 Friedrich Nietzsche was a German philosopher of the late 19th century who challenged the foundations of traditional morality and Christianity. He believed in life, creativity, health, and the realities of the world we live in, rather than those situated in a world beyond. Central to Nietzsche's philosophy is the idea of "life-affirmation," which involves an honest questioning of all doctrines, which drain life's energies, however socially prevalent those views might be. Often referred to as one of the first "existentialist" philosophers, Nietzsche has inspired leading figures in all walks of cultural life, including dancers, poets, novelists, painters, psychologists, philosophers, sociologists and social revolutionaries. In http://plato.stanford.edu/entries/nietzsche/ 52 Filósofo e escritor francês. Esmeradamente educado, em 1900 é nomeado professor no Colégio de França, onde as suas aulas obtêm um êxito sem precedentes. Membro do Instituto de França desde 1901, ingressa na Academia Francesa em 1914. Em 1928 obtém o Prémio Nobel de Literatura. Morre durante a ocupação alemã de França após expressar a sua adesão moral ao catolicismo, apesar da sua origem judia. 53 Mais adiante irei retomar esta questão, aquando da análise dos pressupostos éticos de Dziga Vertov. 54 French philosopher who was awarded the Nobel Prize for Literature in 1927. Bergson argued that the intuition is deeper than the intellect. His Creative Evolution (1907) and Matter and Memory (1896) attempted to integrate the findings of biological science with a theory of consciousness. Bergson's work was considered the main challenge to the mechanistic view of nature. He is sometimes claimed to have anticipated features of relativity theory and modern scientific theories of the mind. "In reality, the past is preserved by itself automatically. In its entirety, probably, it follows us at every instant; all that we have felt, thought and willed from our earliest infancy is there, leaning over the present which is about to join it, pressing against the portals of consciousness that would fain leave it outside." (from Creative Evolution). In http://www.kirjasto.sci.fi/bergson.htm

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interpretadas de múltiplas formas contraditórias por vocabulário ricamente sugestivo, que

dominou o período intelectual anterior a 1914.

Duração, intuição, evolução, força vital, o hábito – todos estes termos ressaltam da trama

densa de discussões entre artistas, escritores e teóricos e influenciaram todos os níveis de

pensamento e criatividade na Europa.

O ponto central é o facto de o mundo experimentado pelos habitantes da cidade do novo

século XX se caracterizar pelo movimento, dinamismo, transparência e luz de cores

radiosas55.

A percepção do Homem neste mundo é inquieta e multidimensional, não permite encarar

o Homem como o centro da vida universal.

Entre 1907 e 1908 registou-se uma mudança fundamental nos critérios artísticos na

Rússia. A validade na concepção simbolista da arte foi sendo cada vez mais posta em

causa. Reinava a procura de fontes de inspiração directas e intensas. O novo grupo de

artistas “ Valete de Ouros” (Karo Bube), ao qual pertencia Kasimir Malevich56, foi

primeiramente inspirado pela arte folclórica, mas com tendências manifestas para a arte

francesa.

O Futurismo russo irrompeu na Rússia no final dos anos 10 como uma acerba recusa dos

valores tradicionais da cultura generalizada, introduzindo nas artes, no teatro, na poesia e

na ficção novos valores estéticos que contestavam os modelos académicos.

55 “O Sol derrete toda a cidade de Moscovo, reduzindo-a a uma mancha que, tal como a trombeta, põe todo o interior, toda a alma em vibração. Não, não é esta uniformidade vermelha o momento mais belo! É apenas o acorde final da sinfonia que confere a cada cor o paroxismo da vida, que faz ressoar e que arrebata toda a cidade de Moscovo como o fortíssimo de uma orquestra gigantesca”. In HUMPHREYS, Richard, Futurismo, Editorial Presença, Lisboa, 2001. P.21. 56 Kasimir Malevich's art and his Suprematist manifesto are amongst the most vital artistic developments of this century. Most of his paintings are limited to geometric shapes and a narrow range of colors, but the pinnacle of his Suprematism was his White on White series. He claimed to have reached the summit of abstract art by denying objective representation. In http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/malevich/sup/

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Vertov sofreu forte influência do poeta Vladimir Maiakovskii57.

Os poemas eram recitados tendo um fundo sonoro constituído por música e ruídos

ambientes. Esta experiência sonora integrava-as Vertov numa atitude estética que muito o

interessava – o futurismo.

Esta corrente artística, directamente inspirada no poeta italiano Marinetti58, procurava

cantar o Homem que segura o volante, tal como este autor afirmava no seu manifesto de

1909, declarando que não há beleza senão na luta. E Vertov sensível a tudo o que fosse

injustiça, identificava-se com as palavras de Marinetti59:

“ (…) Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou

pela revolta (…)”60.

57 Foi um dos principais representantes da vanguarda futurista do início do século XX. Um dos principais integrantes do movimento futurista em seu país, Maiakovski distinguiu-se como o mais ousado renovador da poesia russa no século XX. Aparentemente retórico e essencialmente prático, foi dos primeiros poetas a usar um vocabulário destituído de aura estética, urbano, com o qual soube, no entanto, expressar-se em metáforas brilhantes e de meticuloso tratamento artesanal. Vladimir Vladimirovitch Maiakovski nasceu em 19 de Julho de 1893 na Geórgia, então Império Russo. Bagdadi, sua cidade natal, chamou-se Maiakovski durante o período soviético. Após a morte do pai, em 1906, mudou-se com a família para Moscou. Em 1908, filiou-se ao partido bolchevique.

58 Filippo Tommaso Marinettifoi um escritor, ideólogo, poeta e editor italiano, e iniciador do movimento futurista, o chamado futurismo, cujo manifesto publicou no jornal parisiense .

59 Líder do movimento e muitos dos seus seguidores entendem por “futurismo”, tanto a rejeição do passado como uma preocupação com o futuro. Para eles o futurismo era uma filosofia de vida altamente politizada, com a rejeição de forças que acreditavam ser inimigas do progresso e da modernidade. Marinetti chegou a Moscovo envolto numa onda de publicidade e numa série de eventos públicos, proferiu insultos contra o Kremlin, Tolstoi e a arte russa. Perante isto o pintor russo Mikhail Lavionov recomendara que Marinetti fosse vaiado com ovos podres. Embora poucas dúvidas possa haver quanto à importância do futurismo italiano para os artistas da Rússia, também é verdade que Marinetti teve um limitado discernimento da natureza complexa e altamente inovadora da arte avant-garde russa. Também deve ter achado difícil compreender as circunstâncias particulares da sociedade e culturas russas da época. 60 In HUMPHREYS, Richard, Futurismo, Editorial Presença, Lisboa, 2001. P.9.

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O futurismo russo deixava transparecer uma noção de moderno, de novo e de futuro

diferente da noção de Marinetti. No futurismo russo há poucos carros, aviões e locais de

construção. Em vez disso há um profundo compromisso com a experimentação formal e a

cisão da sintaxe visual e verbal em nome do renascimento espiritual nacional.

Vladimir Tatlin61 fundou o construtivismo, que em comparação com o suprematismo foi

um movimento muito mais temporal, orientado para a tecnologia e as suas aplicações. O

suprematismo62 russo bem como o seu sucessor, o construtivismo63 estavam enraizados

no desejo de mudar o mundo e de criar uma arte funcional, normativa. Todos os artistas

envolvidos em ambos os movimentos, à excepção de Kasimir Malevich64, rejeitaram os

61 Vladimir Yevgrafovich Tatlin worked as a painter and architect. With Kazimir Malevich he became one of the two most important figures in the Russian avant-garde art movement of the 1920s.Tatlin was born in Kharkiv, Ukraine, the son of a railway engineer and a poet. He worked as a merchant sea cadet and spent some time abroad. He began his art career as an icon painter in Moscow, and attended the Moscow School of Painting, Sculpture and Architecture. Tatlin's Tower. Model of the Monument to the Third International Tatlin achieved fame as the architect who designed the huge Monument to the Third International, also known as Tatlin's Tower. Planned in 1920, the monument, was to be a tall tower in iron, glass and steel which would have dwarfed the Eiffel Tower in Paris (it was a third taller at 1,300 feet high). Inside the iron-and-steel structure of twin spirals, the design envisaged three building blocks, covered with glass windows, which would rotate at different speeds (the first one, a cube, once a year; the second one, a pyramid, once a month; the third one, a cylinder, once a day). High costs prevented Tatlin from executing the plan. In http://en.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Tatlin 62 Este neologismo expressa a ideia de conferir supremacia aos meios básicos da arte – cor e forma – sob a mera representação de fenómenos do mundo visível. 63 O movimento correspondente na Holanda denominava-se De Stijl. A estética de De Stijl desenvolvida em 1917, no pico do cataclismo europeu da primeira Guerra Mundial reflectia um desejo de paz e era por isso essencialmente estático. As pinturas do grupo são como que projectos para a concepção de um futuro melhor. A sua arte limita-se ao contraste de linhas verticais com horizontais, levadas a um equilíbrio; a sua paleta de cores limita-se às três cores primárias – azul, vermelho e amarelo – ampliadas pelas não cores – preto, branco e cinzento. De Stijl propõe-se criar uma arte pura composta de elementos puros, cuja ordem feita pelo homem, se oporia à proliferação selvagem da natureza e às linhas tortuosas, curvas ou intermitentes das formas naturais. Não surpreende que este movimento tenha nascido na Holanda, país do Calvinismo e dos iconoclastas, país clássico da burguesia e dos seus valores. O estilo de De Stijl não era anarquista mas sim burguês. O artista proeminente deste movimento foi Piet Mondrian. 64 Malevitch iniciou o Suprematismo, falou da “supremacia da sensação pura”, o que revela a tendência romântica do seu pensamento e arte e exclui a possibilidade de considerar os seus quadros como um resultado de processos exclusivamente intelectuais. O significado revolucionário da sua pintura reside no percurso, no processo de deslocação em direcção ao infinito, em direcção a essa zona de perfeição não objectiva em que as oposições entre homem e natureza, espírito e matéria seriam ultrapassadas. Malevitch

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conceitos tradicionais de belas-artes, que para eles não eram suficientes. Ambos os

movimentos ambicionaram uma arte universal, colectiva, para todos, uma arte aplicada

no melhor dos sentidos, bem distante de qualquer individualismo e subjectividade.

O construtivismo russo, em especial a sua fase suprematista, enraizada numa anarquia

pré-revolucionária e mais tarde condenada por Lenine, pode ser caracterizado como o

lado “romântico” do movimento.

O suprematismo e o construtivismo tendiam para o infinito e o absoluto, exibindo o

suprematismo uma tendência mais mística e patética e o construtivismo uma tensão mais

futurológica e tecnológica.

Como salienta Ryszard Stanislawski:

“ A história da arte europeia do século XX repousou na inspiração recíproca,

numa contínua troca de ideias entre Ocidente e Leste.”

Dez anos antes da Revolução de Outubro foram levados para a Rússia quadros de

Cézanne65, de Gauguin66, dos Fauves e dos cubistas; artistas russos viajaram para França e

para a Alemanha.

foi o primeiro artista que tentou seriamente chegar à pintura absoluta, purificada de qualquer referência objectiva. Visava uma nova realidade da cor. Através da experiência do voo descobre o potencial expressivo do espaço vazio. WALTHER, Ingo F. (Org.), Arte do Século XX – Pintura, Escultura, Novos Media, Fotografia, 2 volumes, Taschen, Colónia, 2005, p. 161. 65 Paul Cézanne (19 de Janeiro de 1839, Aix-en-Provence-22 de Outubro de 1906, Aix-en-Provence) foi um pintor francês. Filho de um abastado comerciante piemontês, teve facilidades em sua vida, diferente de muitos pintores famosos como Van Gogh, por exemplo, que viveu e morreu na miséria. ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DA CULTURA, Verbo, Edição Século XXI, 2001, volume 7 p. 832. 66 Paul Gauguin foi um pintor do pós-impressionismo ligado a Cezanne e Van Gogh. Fez uma arte muito pessoal onde utilizou a estampa japonesa nas suas formas planas e simplificadas que fechava com a linha a negro. Pintor de evasão e também da vida moderna. ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DA CULTURA, Verbo, Edição Século XXI, 2001, volume 13, p. 96.

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A primeira arte programática de origem russa, foi praticada por volta de 1911 por

Mikhail Larionov, fundador do Rayonismo, um estilo baseado no futurismo e no cubismo

que procurava libertar a cor e a forma. Manchas e raios de cor correspondem às linhas de

força dos futuristas, eram dispostos em composições auto-suficientes, completamente

independentes do tema.

El Lissitzki juntou-se ao grupo suprematista/construtivista pouco antes da sua exposição

histórica de 1919 que exibiu os seus feitos até à data e apontou para um novo e

revolucionário futuro. Dois anos depois do abrupto e nada revolucionário anúncio que

Lenine fez de uma “ Nova Política Económica” cortou este futuro sem mesmo o deixar

iniciar-se. Por conseguinte foi colocada a pedra angular da retrogradação simplória –

cimentada em 1932 pela exaltação de Estaline ao Realismo Socialista quando declarou

que esta era única verdadeira arte proletária de massas – em que a arte russa oficial se iria

encontrar durante as décadas seguintes.

Raparigas heróicas, super soldados e operários nobres e auto-sacrificados substituíram a

arte genuinamente revolucionária da Rússia soviética, arte que foi banida e desapareceu

oficialmente de cena. Mesmo assim as indesejadas obras de arte não foram destruídas,

como aconteceu sob o nazismo; foram guardadas em armazéns, de onde começaram a

reemergir mesmo antes da perestroika.

Convém, reflectir de que forma esta corrente artística influenciou o documentário “O

Homem da Câmara de Filmar”. Levando-me a considerá-lo como uma obra futurista.

A estética utilizada na mise-en-scène, deste documentário assenta no futurismo, Vertov

em conjunto com o seu operador de câmara e irmão Mikail Kaufman procuravam

enquadramentos que reproduzissem e sublinhassem o patriotismo, o militarismo e uma

vincada apologia das máquinas.

Por exemplo, Vertov inicia o seu documentário com a apologia à máquina, nesse mesmo

plano surge um operador que transporta uma câmara ainda maior, esta câmara é maior

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que o próprio homem que a transporta, ou seja, é evidente logo aqui a sobreposição da

máquina ao homem, está patente duma forma explícita a glorificação da máquina.

Vertov dá-nos planos de pormenor de máquinas de escrever, o grande plano de um carro,

e de um comboio.

A imagem que mostra a saída dos bombeiros do quartel, dá-nos a ideia de militarismo, de

grande harmonia e organização.

A ideia de patriotismo é transmitida pelo grande plano do cine teatro do proletariado e

pelo Clube Lenine.

Os diversos planos de pormenor dos instrumentos musicais, o som de um relógio que

para além de uma intenção dramática tem indubitavelmente uma intenção estética, um

close up do teclado de uma máquina de escrever, o grande plano da frente de um carro,

planos de várias peças de maquinaria, a roda de um carro que anda num pavimento

quadriculado, um comboio, o movimento de uma objectiva que abre e fecha o seu

diafragma, uma gare de eléctricos, uma grande chaminé industrial que entra em campo e

preenche todo o plano, um plano freeze de várias bobines de filme, em todos estes planos

e sequências montadas vemos a superioridade, a apologia da máquina.

O elemento gráfico – a linha – é assumido como uma espécie de manifesto futurista. Os

planos mais minimalistas valorizam a linha, curva e recta. Nos planos figurativos

percebemos que existe uma preocupação em captar as linhas dos objectos filmados com

perspectiva dando dimensão, e por outro lado cirando muitas vezes um padrão através da

harmonia das linhas conseguida através da posição da câmara e sentido estético, existe a

consciência de que a câmara tem que dizer muito mais do que uma leitura imediata, não

existe apenas uma só leitura.

O ideal futurista da beleza da velocidade é-nos mostrada não só pela montagem rítmica

mas também pelo conteúdo da narrativa, ou seja, temos pessoas apressadas que correm

pelas ruas, uma cabine telefónica pública de onde saem e entram pessoas em rodopio, um

elevador que sobe e desce a uma velocidade violenta, as cadeiras do teatro que abrem e

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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fecham abruptamente, um plano bipartido de eléctricos que circulam em sentido contrário

dá-nos a ideia de evolução.

Levando a apologia da velocidade quase ao seu expoente máximo, Vertov utiliza a

técnicas de montagem para acelerar os movimentos das rodas dos carros, duma bicicleta,

de uma pessoa que dança ballet, de um jogo de basketball e futebol.

A ideia de progresso e dinâmica está sempre presente no “Homem da Câmara de Filmar”.

Na verdade, o progresso só existe se houver avanço, movimento, ruptura e oposição,

Vertov exemplifica este pensamento com as seguintes sequências cinematográficas: a

celebração de um matrimónio de seguida um divórcio, a consagração de um enterro com

imagens intercaladas de um parto, imagens de cidade e imagens de campo. Esta

dicotomia dá ideia de duração.

Há uma grande preocupação com a procura da beleza visual, com a geometria, com a

contemplação e aplicação dos cânones do movimento futurista.

Defendo que “O Homem da Câmara de Filmar”, sendo em primeira análise um

documentário é também uma obra de futurista.

Apesar de os seus filmes serem um turbilhão de planos que navegavam as ideias

convencionais da narrativa.

Em Vertov há, portanto, dois pólos teóricos opostos: a captação do real tal como é

(documentário) e a sua manipulação levada ao extremo na montagem (ficção).

As técnicas de Vertov eram baseadas na experimentação causada pela escassez de

película. Utilizava “velhas actualidades” como fragmentos dos seus filmes e descobriu

que novos significados podiam ser gerados pelo choque da montagem. O choque era um

elemento vital na construção de sentido dos seus filmes. Mas a montagem não era

dialéctica, mas diferencial, fundada na noção de intervalo – uma diferença visual ou

ideológica entre planos.

Também Esfir Schub seguiu uma estética semelhante à de Vertov, ao remontar “velhos

filmes de actualidades czaristas”.

Com o tempo, novas necessidades geram novas invenções formais.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

64

A evolução do documentário, a disputa entre formas centrou-se na questão da “voz”.

A “voz” no documentário é aquilo que nos transmite o ponto de vista social, a maneira

como o documentarista organiza o material que nos apresenta. Nesse sentido, “voz” não

se restringe a um código, não é o diálogo ou o comentário narrado. A “voz” é a

interacção de todos os códigos.

A “voz” neste documentário não é a voz do narrador, neste documentário existem

essencialmente duas vozes, a posição da câmara, que nos dá o enquadramento, e a

montagem, que nos dá a leitura levando-nos a uma determinada conclusão da história.

“É indispensável que o documentarista reconheça o que realmente está

fazendo. Não para ser aceite como moderno, mas para produzir

documentários que correspondam a uma visão mais contemporânea de nossa

posição no mundo, de modo que possam emergir estratégias políticas/formais

efectivas para descrever e desafiar essa posição. Já existem estratégias e

técnicas para fazer isso. No documentário, elas parecem derivar directamente

de “O Homem da Câmera de Filmar” e de “Crônica de Um Verão”67.

67 In RAMOS, Fernão Pessoa, Teoria Contemporânea do Cinema – Documentário e Narrativa Ficcional, editora Senac, volume II, São Paulo, 2005, p. 50.

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65

2.5 A Montagem

É interessante notar que Dziga Vertov, o verdadeiro percursor do construtivismo no

documentário, está ausente do panteão documentarista ocupado por Sergei Eisenstein68,

que defendia sem receios a força ideológica do cinema de ficção.

A “vida de improviso”, não encenada, do cine-olho, não parecia causar atracção aos

britânicos, do mesmo modo que a sensibilidade construtivista de Vertov.

Em 1930 “O Homem da Câmara de Filmar”, é percebido como um maneirismo

estilístico, explorando de modo vazio as potencialidades maquínicas da câmara. Vertov

atravessa toda a primeira metade do século incógnito para ser recuperado, inicialmente,

por George Sadoul, em um engano que o próprio crítico reconhece posteriormente.

Hoje a montagem é valorizada como procedimento estilístico, ocupando lugar de

destaque na metodologia analítica desenvolvida para mostrar o trabalho do discurso.

Tecnicamente a montagem é uma etapa a última na produção de um filme, onde se

misturam os diversos planos69, esta etapa designa-se muitas vezes de pós-produção de

imagem e áudio.

68 Eisenstein was born in Riga, Latvia. Latvia was a place of many cultures and ethnicities at the time, and this is duely exhibited by Eisenstein's own heritage. His father, Mikhail Eisenstein, was an architect of Baltic German, Jewish, and Swedish descent while his mother, Julia, was an ethnic Russian and a member of the Russian Orthodox Church. During the rise of Nazism, Eisenstein was often thought to be a German Jew,[citation needed] primarily because of his surname, though he was only of one-eighth Jewish descent, and religiously, his various ethnic ancestors assimilated into Russian society and the Russian Orthodox religion. Eisenstein was a pioneer in the use of montage, a specific use of film editing. He believed that editing could be used for more than just expounding a scene or moment, through a "linkage" of related scenes. Eisenstein felt the "collision" of shots could be used to manipulate the emotions of the audience and create film metaphors. He developed what he called "methods of montage". In http://en.wikipedia.org/wiki/Sergei_Eisenstein

69 Podemos definir o plano como uma unidade de filme sobre um acontecimento, gravado no espaço delimitado pela câmara. Estes acontecimentos exprimem uma acção, uma descrição, uma emoção que assemblados com outros pontos de vista dão-nos a sequência.

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A montagem não existe desde o aparecimento do cinematógrafo. Por exemplo George

Méliés70 usava cores para efectuar trucagens, montagens de efeitos.

Em cinema a montagem abrange dois aspectos: técnico e estético.

No primeiro caso, será a junção dos planos filmados, de acordo com a planificação,

através da colagem, feita numa mesa de mistura71 ou moviola72, do material positivo ou

cópia de montagem.

70 Georges Méliès (December 8, 1861 – January 21, 1938), full name Maries-Georges-Jean Méliès, was a French filmmaker famous for leading many technical and narrative developments in the earliest cinema. He was born in Paris, where his family manufactured shoes. He was very innovative in the use of special effects. He accidentally discovered the stop trick, or substitution, in 1896, and was one of the first filmmakers to use multiple exposures, time-lapse photography, dissolves, and hand-painted colour in his films. Because of his ability to seemingly manipulate and transform reality with the cinematograph, Méliès is sometimes referred to as the "Cinemagician." Before making films, he was a stage magician at the Theatre Robert-Houdin. In 1895, he became interested in film after seeing a demonstration of the Lumière brothers' camera. In 1897, he established a studio on a rooftop property in Montreuil. Actors performed in front of a painted set as inspired by the conventions of magic and musical theater. He directed 531 films between 1896 and 1914, ranging in length from one to forty minutes. In subject matter, these films are often similar to the magic theater shows that Méliès had been doing, containing "tricks" and impossible events, such as objects disappearing or changing size. His most famous film is A Trip to the Moon (Le voyage dans la lune) made in 1902, which includes the celebrated scene in which a spaceship hits the eye of the man in the moon. Also famous is The Impossible Voyage (Le voyage a travers l'impossible) from 1904. Both of these films are about strange voyages, somewhat in the style of Jules Verne. These are considered to be some of the most important early science fiction films, although their approach is closer to fantasy. Agents of Thomas Edison bribed a theater owner in London for a copy of A Trip to the Moon. Edison then made hundreds of copies and showed them in New York City.[citation needed] Méliès received no compensation. In http://en.wikipedia.org/wiki/Georges_Méliès

71 Actualmente, com a era do cinema digital são inúmeros os programas de montagem, quer no que concerne à película, quer ao vídeo. Destaco os seguintes programas de edição de vídeo: Adobe Premier, Final Cut Pro, Adobe After Effects. A televisão e as novas técnicas de captação de imagem e som alteraram significativamente as formas tradicionais da montagem, sobretudo a correspondência entre a planificação, que tende a desaparecer, e o trabalho final do montador. O filme nasce e realiza-se na câmara, de certo modo, e não na mesa de montagem. 72 The Moviola was the first machine for motion picture editing when Iwan Serrurier invented it in 1924. It allowed editors to study individual shots in their cutting rooms, thus to determine more precisely where the best cut-point might be. The vertically oriented Moviolas were the standard for film editing in the United States until the 1970s when horizontal flatbed editor systems became more common. Nevertheless, a few very high-profile filmmakers continue to prefer the Moviola. Not least on this list is editor Michael Kahn famous for his work with Steven Spielberg. In fact, given the motion picture industry's accelerating trend toward digitization, Mr. Kahn may have given this classic piece of equipment its last hurrah in 2005 when Spielberg's Munich received an Academy Award nomination for Best Film Editing. In http://en.wikipedia.org/wiki/Moviola

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67

Primeiro monta-se o positivo e a banda magnética de som, para obtenção de sincronismo,

a que se segue a montagem de negativo. A partir deste material montado é obtida no

laboratório, a cópia síncrona final.

No segundo caso, a montagem é a operação que faz nascer o ritmo, o significado

expressivo, a sequência visual nascida da junção de planos.

A montagem pode revestir várias formas: paralela, analítica, sintética, alternada,

simultânea, etc., e criar as mais diversas relações espaço-tempo dentro da obra.

São estas relações exigidas pela imagem fílmica, que constituem, através da montagem a

base expressiva do cinema.

A montagem praticada empiricamente nos primeiros mestres do cinema foi teorizada

pelos cineastas soviéticos, Eisenstein73, Pudovkine, Kulechov, Dovjenko e o grande

documentarista – Dziga Vertov.

“ Dziga Vertov est le premier cinéaste à organiser les plans (d’actualités) non

plus selon un ordre chronologique mais en les groupant autour d’une idée

centrale, d’un thème social déterminé, dépassant ainsi le niveau de la stricte

information. A la chronique, qui n’a qu’une valeur d’information, Vertov

73 Eisenstein distingue cinco tipos, ou bases de montagem: métrica, rítmica, tonal, sobretonal ou harmónica e intelectual. A montagem métrica gira à volta do compasso mecânico do corte, a base crucial da montagem reside nas extensões absolutas das tiras de filme, sem olhar ao que representam. As tiras têm uma relação constante e proporcional umas com as outras, este é o método mais simples de todos e um pouco desprezado por Eisenstein. A montagem rítmica toma em consideração parte do conteúdo visual dos planos envolvidos, em particular, o padrão do movimento dentro do plano. Na montagem tonal o movimento é percepcionado num sentido mais lato. O conceito de movimento abrange todos os efeitos de fragmento de montagem. Aqui a montagem baseia-se no som emocional característico do fragmento. A montagem sobretonal constituiu a “Quarta Dimensão” de Eisenstein. A ideia é desenvolvida por via de analogia musical, sendo a montagem construída com base nos estímulos tonais oferecidos por um plano e não nas dominantes particulares. A montagem intelectual tem a ver com os centros nervosos mais elevados. A montagem faz-se plano a plano, o primeiro plano pode não ter nada a ver com o segundo, todavia pode daí fazer-se uma conclusão, ou seja, se quer dizer algo através de uma negação ou de uma redundância. TUDOR, Andrew, Teorias do Cinema, Edições 70, Lisboa, 1985, p. 37.

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68

substitue donc une structure filmique qui est thématique, et partant,

idéologique.”74

74 In MARSOLAIS, Gilles, L’Aventure du Cinema Direct, Seghers, Paris, 1974,p. 34.

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“ Avec Vertov le montage devient une activité globale, tout film est en

montage depuis le début, où la prise de vue, éléments significatifs choisis en

fonction d’un thème précis et le choix des plans et séquence correspondent à

une ordre d’agencement déterminé propre à créer un sens neuf.”75

Os finais da década de 20 inícios da década de 30 praticaram um cinema com um grande

desmultiplicado de planos, que na Europa durou até ao final da guerra76.

Durante a consolidação do poder soviético, um activo grupo de operadores de imagens

arriscava a vida gravando planos de flagrante actualidade, desprezando tudo o que fosse

supérfluo. Por toda a parte encontrava-se um operador de cinema que participava

activamente nos combates e noutras operações militares.

Vertov procedia à montagem destes documentos que lhe chegavam em estado bruto, com

este material ia desbravando o domínio da técnica de montagem.

Não se tratava de colar simplesmente pedaços de filme, para Vertov era essencial que

através da montagem fossem vincados determinados momentos fixados pelos operadores.

Vertov montava as imagens com grande rapidez de maneira a que os documentos

circulassem o mais rapidamente possível.

No documentário “ O Homem da Câmara de Filmar”, Vertov conseguiu manipular duma

forma rápida as nossas reacções neurofisiológicas, o nosso sistema de sentido pressentido

vai muito além da montagem imagem a imagem. É tão rápida, tão contínua, tão poderosa

que é mais uma modulação magnética da nossa sensibilidade. 75 In NINEY, François, L’Épreuve du Réel à l’Écran – Essai sur le Principe de la Réalité Documentaire, De Boeck Université, p. 47. 76 Filmes como Citizen Kane de Orson Welles, criaram uma diferente noção de plano, em que a montagem não resultava tanto da junção das imagens como da criação de vários planos dentro do mesmo enquadramento (plano-sequência). Os formatos de ecrã largo dificultaram a Montagem e o dinamismo visual, tomando a sequência mais lenta mais próxima do teatro. O cinema moderno criando um espaço de contemplação explorou as possibilidades do plano-sequência, abandonando o dinamismo visual, o ritmo da imagem, o racord lógico e criando um cinema que é ao mesmo tempo, visão e reflexão. No final do filme, planificação e montagem são a mesma coisa, pois os planos previstos na primeira coincidem com os planos montados.

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70

No “Homem da Câmara de Filmar” a narração está na montagem. Muitas vezes a rapidez

com que Vertov corta e cola um plano seguido de outro, dá-nos a ideia que não se trata de

filmagem mas sim de fotografias.

Na historiografia do cinema a primeira imagem de um parto foi introduzida por Dziga

Vertov, também aqui a câmara (máquina) está ao serviço duma mudança de

mentalidades, de facto, ao contrário do que muitos modelos totalitaristas possam pensar

as mentalidades não se mudam com decretos-lei.

Vertov iniciou a sua aprendizagem na montagem com o Kino-Nedelia, consistia num

jornal de actualidades que se mostrava à nação soviética de uma forma organizada e

fervilhante. As dificuldades no fornecimento de película virgem levaram a uma

actividade irregular na saída do Kino-Nedelia, acabando por ser o motivo único da sua

cessação.

Vertov organizou e utilizou um vasto espólio de imagens, o produto final desta

montagem de imagens deu origem ao filme “ Aniversário da Revolução”.

Este filme foi apresentado como uma comemoração do segundo aniversário da

Revolução de Outubro. Este filme assinala a primeira tentativa de montagem encarada

como um acto criador.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

71

No cinema directo, o realizador e o operador de câmara constituem os primeiros

espectadores do filme. Quando se filma, existe já uma montagem.

Para Vertov a montagem começava a partir do momento em que ele escolhia o sujeito

que pretendia filmar, para ele a montagem começava logo na observação.

O segundo espectador é o montador. Segundo algumas teorias, o montador não deve

participar nas filmagens, ele deverá ser apenas o segundo cine-olho, não deve conhecer o

conteúdo, não deve ter conhecimento do contexto, o montador deve unicamente ver e

ouvir o que foi gravado, para conduzir o seu trabalho duma forma imparcial dando-lhe

consistência e coerência tanto de conteúdos como de formas.

Dziga Vertov é o primeiro cineasta a organizar os planos de actualidades não sob uma

ordem cronológica, mas agrupa-os em torno duma ideia central, de um tema social,

ultrapassando o simples objectivo informativo.

O cinema vermelho vai ser influenciado pelas correntes estéticas da vanguarda do início

do século, como o construtivismo e o futurismo. Se o construtivismo na montagem se

deve à aceleração do movimento das imagens, que reflecte a rapidez do mundo urbano

associada à apologia da máquina feita pelo futurismo, este é a declaração de que a arte,

baseada na era da máquina, tinha de ser implantada. Os cineastas, intimamente ligados

vida moderna, exploraram uma técnica de justaposições baseada no choque. Daí a

utilização da montagem em benefício da provocação do choque, ou seja, num mesmo

espaço Vertov coloca dois planos justapostos que muitas vezes se contradizem

principalmente no conteúdo, na dramatização, vejamos quando Vertov coloca um plano

tripartido com eléctricos que caminham em direcções opostas.

É utilizada a montagem não só para contar uma história, e criar ritmo, mas também para

evidenciar conceitos culturais.

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72

A própria poesia de Mayakovsky era feita de palavras avulsas e remisturadas como

imagens violentas, numa espécie de agit-prop.

O que caracterizou o cinema soviético foi a montagem tal como o que caracterizou o

americano foi a linguagem narrativa e o alemão, a concepção plástica e a direcção de

actores na sua fase expressionista. O trabalho que os soviéticos desenvolveram sobre a

montagem, baseou-se na teoria de que quando dois planos eram colocados lado a lado, a

audiência pensava que eles estavam relacionados de alguma maneira. Ou seja, o

espectador procurava criar um significado através da combinação das duas imagens.

A montagem do documentário “O Homem da Câmara de Filmar” foi iniciada duma

forma algo provocatória, Vertov coloca como primeira imagem uma câmara apontada ao

espectador, este plano e principalmente a sua localização no filme funcionam como um

manifesto. No mesmo plano sobrepõe-se duas câmaras, poder-se-ia dizer que se trata de

um manifesto visual futurista.

Em algumas sequências do documentário, a montagem é criada com um objectivo, com

uma preocupação gráfica, vejamos quando Vertov nos mostra um teatro, vai buscar

pormenores como por exemplo as linhas simétricas das cadeiras do teatro, de seguida

coloca o plano médio das cortinas franzidas do teatro, este franzido forma linhas

verticais, de seguida mostra-nos as linhas rectas dos candeeiros que compõem a sala de

teatro e a linha que a corda que prende essas cortinas insinua.

Na verdade, para além de grande sentido estético Vertov tinha uma grande preocupação

com a montagem e tinha consciência do poder que esta tem na mente do espectador.

Com esta montagem gráfica Vertov tinha consciência da ideia de harmonia que imprimia.

Através da montagem, Vertov consegue em algumas partes do seu documentário

incorporar um género, ou seja, muitas vezes, através do tipo de plano e montagem Vertov

dá-nos o suspense. Os planos curtos, ritmados criam tensão. Os planos contra picados dos

músicos na sala de teatro parecendo uma câmara de vigilância dá-nos a ideia de perigo,

de alerta. De seguida, Vertov com a ajuda da mulher e sua assistente de montagem

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Elizaveta Svilova mostram-nos planos em que o objecto ou pessoa filmada é apresentada

duma forma parcial, isto, é logo após o plano picado dos músicos seguem-se planos

gerais de rostos em que só metade desse rosto é colocado no enquadramento. Quando um

plano não nos mostra o objecto tal como o conhecemos realmente é-nos sugerido a

sensação de mistério, curiosidade pelo oculto. O operador e também o editor retiram

informação para: emocionar o espectador, obrigá-lo a construir lentamente a história na

sua cabeça, torná-lo cúmplice.

“ A montagem pode ser, portanto, trabalhada na sintonia que estabelece com

a dimensão da tomada. Como motor que realça e amplifica as ressonâncias

que a âncora da presença do sujeito-da-câmera espalha sobre a narrativa.”77

Há medida que esta participação do espectador vai acontecendo, o realizador em conjunto

com o editor e o operador, mas principalmente o realizador, vão dando signos, os quais

são interpretados pelo espectador segundo o seu mundo simbólico, a sua mundividência.

Toda a montagem do documentário tem um sentido dramático e arquitectónico.

As noções de simetria, perspectiva, proporção estão já presentes na montagem deste

documentário, o que terá certamente a ver com todo o contexto cultural que fervilhava

nesta época.

77 In RAMOS, Fernão Pessoa, Teoria Contemporânea do Cinema – Documentário e Narrativa Ficcional, editora Senac, volume II, São Paulo, 2005, p. 193.

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74

Segundo Vertov a montagem de filmes “artísticos” consistia somente em alinhar os

planos em relação ao guião, sendo que a montagem segundo a sua concepção era a

organização do mundo visível que pode ser decomposto da seguinte forma:

“ Montage pendant la période d’observation – l’oeil nu, sans intermédiaire,

s’oriente dans l’espace et dans le temps. Montage après l’observation – la

vision s’organise logiquement selon ou tel propos définit. Montage pendant

les prise de vue – l’oeil armé, soit la caméra, s’oriente; on recherche la

position la plus adéquate pour l’appareil; on s’adapte aux conditions diverses

et changeantes du tournage. Montage après la prise de vue – le matériel filmé

est monté grossièrement selon les grandes lignes du projet; on dresse

l’inventaire des plans qui manquent encore, quoique nécessaire. Jugement du

morceau monté – on recherche les possibilités de lier certaines juxtapositions;

pour cela, on use de la plus extrême attention, tout en mettant en pratique le

principe tactique: jugement rapidité attaque.

Montage terminale – les thèmes principaux sont exposés au travers de théme

plus limités et plus subtils. On réorganise tout le matériau sans perdre de vue

la signification globale de la séquence traitée; on montre le coeur même des

objectifs qu’on s’est fixé.”78

E foi dessa forma, sob essas condições, que alguns jovens cineastas militantes marxistas

mudariam para sempre o cinema. Os russos, ao rejeitarem o cinema tradicional como

burguês, individualista, alienado e alienante, acabaram, cada um a seu modo, por

revolucionar o cinema enquanto arte, linguagem e técnica. E essa revolução se deu

através do que é indubitavelmente o maior legado: a montagem.

Reside aí, sem dúvida alguma, a maior contribuição da vanguarda russa.

78 In MARSOLAIS, Gilles, L’Aventure du Cinema Direct, Seghers, Paris, 1974, p. 55.

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75

Os jovens cineastas perceberam que residia na montagem o grande potencial do cinema

de falar directamente às consciências soviéticas. No ímpeto de levar o cinema ao máximo

de sua expressão e potencialidade, para que a ideia comunista fosse vivida e revivida da

forma mais complexa e intensa possível, fizeram obras-primas irrevogáveis, peças

cinematográficas cuja complexidade é estudada, admirada e que saltam aos olhos mesmo

nos dias actuais, onde temos à nossa disposição um sem número de artifícios tecnológicos

sequer imaginados naquela sensacional década para o cinema, a década de 20.

Talvez, hoje, isso seja uma obviedade: todos sabemos que a montagem manipula, que

somos sugestionados por cores, ordem, alternâncias, volumes, massas, proporções e que

conceitos podem ser sugeridos ou mesmo criados. Basta que vejamos como funciona a

publicidade para constatarmos que tais procedimentos são utilizados há décadas. O que

pouca gente sabe é que, para que existam tais conceitos, tais técnicas de montagem, de

manipulação, alguém teve que ‘criá-las’ e desenvolvê-las. E são esses jovens, mais

especificamente dois deles, os responsáveis por tê-lo feito: Dziga Vertov e Serguei

Eisenstein79.

79 Assim como Vertov, Eisenstein trabalhou a serviço do Partido e da Revolução e erigiu toda sua obra buscando aperfeiçoar ao máximo a linguagem cinematográfica, dando à montagem o papel primordial do cinema.

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3.1 A Moral e a Ética.

“Le cinéaste jugée ce qu’il montre, et est jugé par la façon don’t il montre.”80

Porquê falar de Ética ou de Moral em cinema documentário quando o cinema não tem

como objectivo respeitar normas, cumprir tradições, ou até estar subordinado a um

conjunto de leis que se anulam diariamente tornando a nossa cultura uma aculturação de

pequenas fragilidades efémeras e descartáveis81.

Não serão também a ética e a moral as guilhotinas da criatividade, a castração do “obrar”

do artista. De que forma Dziga Vertov retirava imagens da vida real, como era feita a

gestão da linguagem cinematográfica – o improviso, com a filmagem legítima às pessoas.

Continuará a haver improviso quando a pessoa filmada sabe que está a ser filmada, ou, a

pessoa é filmada sem o saber em prol do improviso.

Por um lado se a pessoa é filmada sem consentimento está eticamente incorrecto, por

outro lado, se a pessoa sabe que está a ser filmada, a filosofia ou técnica do improviso é

anulada.

Na história existem várias opiniões sobre ética e moral. Para alguns teóricos ética e moral

são a mesma coisa, para outros são coisas diferentes. Na verdade o estudo do bem e do

mal remonta a centenas de anos atrás.

Na minha opinião Ética e Moral são a mesma coisa.

Ética vem duma palavra grega “Ethos” que significa carácter. Ética tinha a ver com o

carácter e não com o costume.

80 In Rivette Jacques, Cahiers du Cinéma, nº120, Juin 1961, Theories du Cinema, p. 38. 81 Até porque a memória hoje é muito volátil, está sujeita a um bombardeamento intensíssimo. Uma semana de televisão varre toda a informação.

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A partir de Aristóteles82 com o seu livro Ética Nicomaqueia, “êthos” passou a ser o modo

de ser ou a morada do ser. Os romanos na tradução deste termo só explicaram, traduzindo

“ethos” por “mors”, que veio a dar moral. Criaram o termo moral e codificaram-no à

maneira romana, à luz do direito. Não se ficaram só pelo costume, mas viram também a

lei que regula o costume – a moral.

Segundo algumas opiniões, a moral é a disciplina que estuda a codificação do que é bem

e do que é mal. Estuda a regulamentação das práticas humanas. Enquanto a moral se

apoia em diversos códigos, a ética estuda sobretudo como é que as pessoas se podem

sentir desafiadas para o bem e para o mal através das atitudes.

82 Uno de los más grandes filósofos de la antigüedad y acaso de la historia de la filosofía occidental. Fue precursor de la anatomía y la biología. Aristóteles fue discípulo de Platón y luego preceptor y maestro de Alejandro Magno. Antes de fallecer en Atenas en el año 322 a.C. a sus 62 años, Aristóteles se había convertido en uno de los filósofos de mayor renombre de su tiempo durante el cual su filosofía y su pensamiento científico gozaron de enorme prestigio. Su influencia fue mayor aún desde la baja Edad Media hasta el Renacimiento europeo. Este lapso de tiempo tan extendido provocó que muchas de sus ideas brillantes tuvieran extensa difusión. En Atenas, Aristóteles fundó su propia escuela (Liceo). Sus obras abarcan casi todo el saber de su tiempo: lógica ("Organon"); biología ("Historia de los animales"); filosofía natural ("De Caelo" y "Física"); ontología ("Metafísica"); psicología ("De Anima"); ética ("Ética a Nicómaco"); política ("Política"); gramática ("Retórica"); estética ("Poética"). La filosofía de Aristóteles es realista (no en el exacto sentido que tomó la posterior filosofía con ese nombre): la realidad por excelencia es el ser natural individual. El hombre, (compuesto por materia -en su caso, el cuerpo- ,y forma -en su caso, el alma-), es un ser perecedero y racional. De ahí parte su planteamiento ético: el bien y la felicidad consisten, en última instancia, en la vida contemplativa, en la que el hombre alcanza la perfección propia de su esencia, o de lo que es lo mismo, de su o racionalidad. La doctrina política de Aristóteles parte también de su concepción antropológica: el hombre es, por su esencia, un ser social. Fue creador de la teoría de que el mundo siempre existió. In http://es.wikipedia.org/wiki/Aristóteles

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No seu livro “A Genealogia da Moral” Friedrich Nietzsche84 diz:

“ (…) A consciência da superioridade e da distância, o sentimento geral,

fundamental e constante de uma raça superior e dominadora, em oposição a

uma raça inferior e baixa, determinou a origem da antítese entre “bom” e

mau”.85

Sob um olhar histórico, a luta entre o bem e o mal era projectado na relação entre duas

cidades, Roma e a Judeia. Roma personificava o bem e a Judeia personificava o mal.

A luta entre estes dois valores prolongou-se durante largos anos.

Segundo Nietzsche o povo que venceu esta luta foi o povo judeu.

“ (…) Note-se que hoje86na mesma Roma e em metade do mundo em toda a

parte onde o homem está civilizado ou tende a sê-lo, a humanidade inclina-se

diante de três judeus e de uma judia. (Jesus de Nazaré, Pedro, Paulo e Maria,

mãe de Jesus). Este é um facto notável, sem dúvida alguma Roma foi

vencida.”.

84 Friedrich Nietzsche was a German philosopher of the late 19th century who challenged the foundations of traditional morality and Christianity. He believed in life, creativity, health, and the realities of the world we live in, rather than those situated in a world beyond. Central to Nietzsche's philosophy is the idea of "life-affirmation," which involves an honest questioning of all doctrines which drain life's energies, however socially prevalent those views might be. Often referred to as one of the first "existentialist" philosophers, Nietzsche has inspired leading figures in all walks of cultural life, including dancers, poets, novelists, painters, psychologists, philosophers, sociologists and social revolutionaries. In http://www.kirjasto.sci.fi/nietzsch.htm

85 In NIETZSCHE, Friedrich, A Genealogia da Moral, 6.ª ed., Guimarães Editores, Lisboa, 1992, p. 21. 86 Esta indicação temporal remonta a 1877, altura em que foi publicada a Genealogia da Moral de Friedrich Nietzsche.

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A ética problematiza a acção humana face ao bem, pondera a qualidade da acção e da

realidade quanto ao bem. A moral estuda a normatividade quanto ao bem.

De acordo com o pensamento de Aristóteles toda a arte e toda a investigação científica do

mesmo modo que toda a acção e escolha podem tender para algum bem.

O bem não é só uma apreciação, uma subjectividade, mas existe a probabilidade de

definir concretamente o que é o bem.

Gilles Deleuze87 preconiza a ideia de ética referindo que a ética é estar à altura do que

acontece.

Há desmoralização sempre que uma determinada imagem da realidade se corrompe.

A amoralidade implica a negação de qualquer moral e qualquer ética.

A moralidade é a consciência do bem e do mal mediante a qual o Homem se sente

responsável pelo acto cumprido ou omitido.

Segundo Nietzsche o homem estima valores e a moralização dos costumes e as camisas-

de-forças sociais estupidificam o homem.

A moralidade não é a submissão aos costumes, lei ou sanção. Não é fazer o que é

socialmente aceite, é uma resposta, uma responsabilidade. Não podemos reduzir a

moralidade à dimensão cultural ou jurídica, mas existe um relacionamento.

As acções, omissões e intenções constituem objecto predominantemente da moralidade.

Representam a totalidade do objecto da moralidade prática. Não representam contudo a

totalidade do objecto da moralidade.

Quando falamos de moralidade não falamos de tabelas mas de pessoas vivas, não se pode

falar de moralidade de quem não é livre. O livre-arbítrio é um pressuposto de qualquer

juízo moral. 87 Gilles Deleuze, an important figure in post-war French philosophy, began his career with a number of idiosyncratic yet rigorous historical studies of figures outside of the continental tradition in vogue at the time, before writing some of the more infamous texts of the period, in particular, Anti-Oedipus and A Thousand Plateaus. These texts collaborative works with radical psychoanalyst Félix Guattari. Deleuze is a key figure in what is known as 'postmodern' thought. Considering himself an empiricist and a vitalist, his body of work, which rests upon concepts such as multiplicity, constructivism, difference and desire, stands at a substantial remove from the main traditions of 20th century Continental thought. His thought locates him as an influential figure in present-day considerations of society, creativity.

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Liberdade é diferente de estar à solta, tem a ver com racionalidade. Se não avalias não és

livre.

Jean-Paul Sartre88 fala sobre a "má-fé". Segundo Sartre às vezes nós escapamos da

ansiedade fingindo que nós não estamos livres, como quando nós fingimos que nossos

genes ou nosso ambiente são a causa de como nós agimos. Nós nos permitimos ser auto-

enganados ou mentir para nós mesmos, especialmente quando isto toma a forma de

responsabilizar as circunstâncias por nosso fado e de não lançar mão da liberdade para

realizar a nós mesmos na acção. Quando nós fingimos, nós agimos de má fé.

A acção humana para ser responsável, tem que ser racional, livre. Ter um posicionamento

ético é conseguir não ser escravo nem das motivações nem dos castigos, é ser capaz de

querer e ser por si.

Friedrich Nietzsche diz:

“ Toda a moral, ao contrário do laisser aller, é uma espécie de tirania contra a

“natureza” e também contra a “razão”.(…) Os costumes representam as

experiências dos homens anteriores em relação ao que eles consideravam útil

e prejudicial, mas o sentimento dos costumes (da moralidade) não respeita às

suas experiências, mas à antiguidade, à santidade, ao carácter indiscutível dos

costumes. Eis por que este sentimento se opõe a novas experiências e à

88 Sartre was born in Paris to parents Jean-Baptiste Sartre, an officer of the French Navy, and Anne-Marie Schweitzer. His mother was of German-Alsacian origin, and was a cousin of German Nobel prize laureate Albert Schweitzer. When he was 15 months old, his father died of a fever and Anne-Marie raised him with help from her father, Charles Schweitzer, a high school professor of German, who taught Sartre mathematics and introduced him to classical literature at an early age.

As a teenager in the 1920s, Sartre became attracted to philosophy upon reading Henri Bergson's Essay on the Immediate Data of Consciousness. He studied in Paris at the elite École Normale Supérieure, an institution of higher education, the alma mater for multiple prominent French thinkers and intellectuals. Many aspects of Western philosophy influenced Sartre, absorbing ideas from Immanuel Kant, Georg Wilhelm Friedrich Hegel and Martin Heidegger.

In 1929 at the Ecole Normale, he met Simone de Beauvoir, who studied at the Sorbonne and later went on to become a noted thinker, writer, and feminist.

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modificação dos costumes: o que significa que a moralidade se opõe à

formação de costumes novos e melhores: ela embrutece.”89

A ética pretende apontar pistas, indicar direcções, oferecer o mínimo de regras de jogo,

descobrir uma dinâmica de base para se poderem encontrar portas de saída para cada

situação, seja ela pessoal ou comunitária.

Sartre acredita na capacidade de todo indivíduo de escolher as suas atitudes, objectivos,

valores e formas de vida. É uma ilusão a crença de que os valores existem objectivamente

no mundo, em vez de serem criados apenas pela escolha humana. Recomenda

honestidade, ou seja, que façamos nossas escolhas individuais com plena consciência de

que são autenticamente nossas e nada as determina por nó.

89 NIETZSCHE, Friedrich, A Genealogia da Moral, 6.ª ed., Guimarães Editores, Lisboa, 1992, p. 61.

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3.2 O posicionamento ético de Dziga Vertov.

Grande parte das imagens documentárias tem a sua origem em situações do mundo onde

existe uma homogeneidade espacial entre o campo da imagem e a circunstância do

mundo que a circunda. Tendo no horizonte a dimensão da captura da imagem, a sua

relação com a circunstância do mundo que a determina, estamos equipados para avançar

nesse emaranhado que são os campos éticos, dominantes na história do documentário no

século XX.

Na tradição documentária, o peso da circunstância da captura da imagem, tem uma

dimensão infinitamente maior do que no cinema de ficção. Na verdade, ignorar este dado

é ignorar a história do documentário.

Para o documentarista o importante é a liberdade total e ilimitada na escolha dos seus

meios.90 Esta liberdade sem limites que autoriza esta necessidade torna-se criminosa

quando não se fundamenta nesta própria necessidade.

Na vida como no documentário o que conta é a pureza dos objectivos.

90 Esta liberdade ilimitada deve fundamentar-se na necessidade interior chamada honestidade. O artista deve ter algo a dizer. A sua função não é apenas aperfeiçoar a forma, mas adaptá-la ao seu conteúdo. Ele não tem o direito de viver sem obrigações. Deve convencer-se de que cada um dos seus actos e pensamentos é a matéria imponderável de que serão feitas as suas obras. Tem que saber que não é livre, nem nos actos da sua vida nem do exercício da sua arte. Em comparação com quem se encontre desprovido de qualquer talento artístico, o artista tem uma tripla responsabilidade: 1º deve fazer frutificar o talento que já possui; 2º os seus actos, pensamentos e sentimentos, como os de qualquer homem, formam a atmosfera espiritual que transfiguram ou corrompem; 3º os seus actos, pensamentos ou sentimentos representam a matéria das suas criações que, por seu lado, criam uma atmosfera espiritual. Citando Martin Heidegger, no seu livro A Origem da Obra de Arte: “A obra surge através da actividade do artista, o artista é a origem da obra. A obra de arte, é com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa; ela é alegoria. A obra é símbolo. (…) Só essa unidade na obra, que revela um outro, essa unidade, que se reúne com algo de outro, é que é o elemento coisal na obra de arte.”

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Dziga Vertov mostra pureza de objectivos quando assume como prioritária a decisão de

mostrar o povo de Moscovo nos seus locais de trabalho e a maquinaria que mantém a

cidade em movimento.

Quando assumo a ambição de questionar o trabalho de filmagem, montagem e estilo de

Dziga Vertov, não pretendo absolutizar ou difundir o culto de normas ou regras de acção.

Todavia entendo que, uma obediência cega às leis científicas nunca é tão nociva como

negá-las sem sentido.

Na primeira hipótese, atinge-se uma imitação. Na segunda, resulta uma fraude que, como

qualquer falta, é seguida de uma longa série de consequências desastrosas.

A submissão às leis científicas esvazia a atmosfera moral do seu conteúdo, petrifica-a.

A sua negação, pelo contrário, envenena-a, infecta-a.

É necessário fazer uma análise ao comportamento, e intenções de quem faz a filmagem.

A captura da imagem é a circunstância a partir da qual, a imagem é constituída para/pelo

espectador pelo/para o sujeito que sustenta a câmara.

“A tomada é o recorte do mundo (constantemente actualizado) que se lança,

na forma de imagem, para o espectador, sendo determinada por sua

experiência.”91

São várias as técnicas de montagem utilizadas por Vertov, também são vários os tipos de

planos que ele faz, tanto na montagem como na captura; a adopção de um

comportamento ético é essencial para a honestidade de um trabalho cinematográfico.

No caso da montagem, que constituiu a manipulação de imagens tendo como objectivo

último contar uma história, convém ter em conta que uma imagem descontextualizada

pode dar origem a uma leitura completamente diferente, ganha novo significado, assim

91 In RAMOS, Fernão Pessoa, Teoria Contemporânea do Cinema – Documentário e Narrativa Ficcional, editora Senac, volume II, São Paulo, 2005, p.167.

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penso que será eticamente correcto que um realizador mostre às suas personagens o filme

ou documentário depois de este estar inteiramente montado.

Determinando a particularidade da questão ética no documentário a partir da dimensão da

“tomada”, ou captura, poderei afirmar que são evidentes duas conclusões: se por um lado,

os intervenientes em cada plano, ou melhor, as personagens reais, não têm conhecimento

que estão a ser tomadas pela objectiva da câmara, Vertov reforça e prova o “cinema-

verdade” através do estilo improvisado por si preconizado revelando falta de honestidade

para com as suas personagens reais e carência de ética profissional; se por outro lado, as

suas personagens reais tinham conhecimento de que estavam a ser filmadas, mesmo

tratando-se de um consentimento verbal, informal, então Vertov descurava

empiricamente o estilo da improvisação.

O primordial objectivo passava pela potencialidade da câmara captar mecanicamente a

“verdade” e o mundo sem a intervenção do Homem, mesmo que essa intervenção se

materializa-se num documento escrito, ou numa conversa entre operador, realizador e

personagem.

De facto, a paixão pela máquina envolta no contexto cultural do futurismo descurou até

neste ponto o direito de escolha do homem.

Não é por acaso que as caricaturas da época revelam o “cine-olho” como um pequeno

burguês que espreita pelo buraco da fechadura.

Confesso que não saberei provar com rigor se o “cinema-verdade” com o seu cariz de

improviso se sobrepôs à questão ética, ou vice-versa. Todavia através da análise deste

documentário, plano a plano, consigo apontar algumas direcções.

Vertov cria imagens socorrendo-se, essencialmente de planos gerais, grandes planos,

planos médios e de pormenor. Nos planos gerais e grandes planos não temos

protagonistas, a imagem vale pelo seu conjunto e não é sublinhado ninguém em

particular, o mesmo já não se passa com os planos médios e os planos de pormenor.

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Neste documentário, também denominado como excerto de um diário de um camaraman,

são mostrados planos médios de pessoas que dormem nos jardins públicos, num dos

planos, uma pessoa que estava deitada num banco ao aperceber-se da presença da câmara

levanta-se e sai do plano, neste caso, Vertov valorizou a filosofia do improviso em

detrimento da questão ética, de facto, se a pessoa filmada estivesse informada do que se

estava a passar e tivesse dado o seu consentimento não teria tido aquela reacção.

O facto de as personagens reais de Vertov não olharem directamente para a câmara

poderá levantar questões éticas, poderemos questionar se a câmara, apesar das suas

grandes dimensões, não estaria escondida. Ou se não olhando para a objectiva não

estariam a encenar.

Penso que uma personagem só age com naturalidade em frente a uma câmara quando não

sabe que esta lá está, ou quando a câmara se insere, já fazendo parte do quotidiano dessa

personagem, não lhe provocando qualquer de estranheza.

Por exemplo, um actor profissional, experiente não olhará para a câmara a não ser que o

seu olhar seja assumido e que tenha consigo uma intenção de comunicar, contudo este

actor, não é uma personagem real, é um actor que trabalha sob direcção e inserido num

cenário.

Podemos perceber num dos planos deste documentário que uma família que passeia numa

charrette numa rua de Moscovo encena o seu comportamento quando surpreendida pelo

operador de câmara. Neste caso, a improvisação aliada ao “cinema-verdade” só existe até

ao momento em que a família não sabe que está a ser filmada, por outro lado se a família

deu o seu consentimento para a realização de tal filmagem então a improvisação não

existiu, surgindo assim a falta de ética por parte do autor das imagens.

Se Vertov desconsiderava as encenações como linguagem cinematográfica, como poderia

ele encenar o registo de um casamento e de um divórcio como se vê num dos planos

médios, se de uma encenação não se tratasse, mas sim da filmagem de cenas do

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quotidiano revestidas pela técnica do improviso, as personagens de Vertov seriam

filmadas sem o direito de escolherem se queriam ou não que a sua imagem fosse usada

para a realização deste documentário.

Recentemente movida pelo entusiasmo de poder assistir na grande tela a um

Documentário, visionei o documentário “Grizzly Man” de Werner Herzog, surpreendeu-

me de uma forma positiva, uma vez que: utilizando a técnica ao serviço da criação, ou

melhor, fazendo uso das ferramentas vingou um apetrecho, apetrecho este que obedece a

cânones normativos indo para além disso, recria-os. Esta recriação trabalha

principalmente a favor do conteúdo, que provoca uma ruptura abrindo novos caminhos

aos mais atentos. “Grizzly Man” levou-me a pesquisar. Encontrei um Manifesto escrito

por Werner Herzog que passo a citar por pertinência e paralelismo com esta dissertação.

“Manifesto de Minesota: Verdade e Fato no Cinema Documentário – Lições das

Trevas.”92

1. “Por força de expressão o autodenominado “cinema-verdade” é desprovido de

“verdade”. Ele alcança uma verdade meramente superficial, a verdade dos

contadores.”

2. “Um conhecido representante do “cinema-verdade” declarou publicamente que a

verdade pode ser facilmente encontrada ao se pegar a câmara e tentar ser honesto.

Ele parece o porteiro da noite da Suprema Corte que reclama do tanto de

legislação escrita e procedimentos legais. “Para mim”, diz ele, deveria haver

apenas uma simples lei: os maus vão para a cadeia”, para a maioria, a maior parte

do tempo.”

92 Documento fornecido durante as aulas do Mestrado.

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3. “Cinema-verdade confunde fato e verdade, e então ara apenas pedras. Ainda

assim, fatos às vezes têm um poder estranho e bizarro que torna sua verdade

inerente parece inacreditável.”

4. “ O fato cria normas, a verdade, iluminação.

5. “ Os directores do cinema-verdade parecem turistas que tiram fotos de antigas

ruínas de fatos.”

6. “ Turismo é pecado, viagem a pé, virtude.”

Este Manifesto tem 12 pontos, todavia transcrevi parar esta dissertação os seis primeiros

pois só estes fazem referência ao “cinema-verdade”, uma vez que os seis últimos pontos

não se relacionam com os transcritos esta opção foi por mim feita com responsabilidade

ética, esta manipulação da informação recolhida não alterou o sentido original do

Manifesto realizado no Walker Art Center, Minneapolis, Minnesota a 30 de Abril de

1999.

Em “Nanook, O Esquimó” de Robert Flaherty (1922), as encenações são a regra

(encena-se a caça ao leão-marinho, encena-se a vida no iglu, encena-se a saída da canoa,

encena-se a surpresa de Nanook com o gramafone). O filme é inteiramente encenado,

como é próprio da narrativa documentária até 1960.

Contudo, a utilização de cenários em “Nanook, O Esquimó” deve ser vista em sua real

medida. Para filmar dentro do iglu, e ter a luz necessária, Flaherty obrigou Nanook e a

sua família a encenarem e dormirem (de verdade) dentro de um iglu maior que o habitual,

construído sem tecto. Embora a utilização desse iglu fosse um cenário há uma diferença

essencial com a tradição do cinema ficcional que determina a particularidade do cinema

documentário: Flaherty não estava num estúdio aquecido, mas estava no Canadá,

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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passando a noite com o Esquimó chamado Allakarialuk, num sítio onde realmente são

construídos os iglus. A presença do sujeito que filma, que faz a “tomada” transparece na

imagem, constituindo o que se pode chamar de intensidade da imagem da câmara.

A questão da ética no documentário deve ser pensada sempre em torno da captura da

imagem por parte da câmara, frente às circunstâncias do mundo que a determina, para e

pela experiência do espectador.

O documentário carrega consigo a ética da missão educativa. A valorização da

transparência das condições de constituição da imagem aparece para a antropologia

visual como um valor ético universal e a temporal.

Um dos padrões éticos que orienta a realização documentária em Vertov está focado na

valoração positiva de padrões de conduta vinculados à necessidade da preservação da

realidade - o quotidiano das ruas de Moscovo.

Vertov para melhor exprimir esta realidade deverá eticamente tomar uma posição de

recuo frente ao objecto/sujeito da tomada. A ética do recuo não questiona o saber em si

mas aponta para a necessidade de esse saber ser constituído pelo próprio sujeito no

exercício da sua liberdade.

Vertov realizou o “ Homem da Câmara de Filmar”, colocando a ou as câmaras nas ruas,

em cima dos telhados, em bicicletas. Começava a filmar sem qualquer consentimento

informado, o importante era a “cine-sensação”.

O consentimento escrito de quem está a ser filmado é um requisito deontológico e por

isso imprescindível para quem pretende filmar o homem, o qual tem o seu direito à

imagem consagrado a nível constitucional e formal.

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As normas éticas são frequentemente materializadas nas normas jurídicas. O direito, a

partir dos valores éticos essenciais, estabelece regras que mais não são do que uma

protecção jurídica de valores éticos.

O Artigo 79º números 1,2,e 3 do Código Civil é exemplo disto. Segundo este artigo o

retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o

consentimento dela. Só não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando se

trata de uma pessoa de notoriedade, ou de uma pessoa que desempenha um cargo público

(…). O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do

facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada. Esta

citação do Código Civil, serve para sublinhar que a norma jurídica é o eco da norma

ética, ou seja, a primeira retira da segunda o que é essencial, criando sanções para que ela

subsista.

É verdade, que este Código Civil é português e data de 1966 e que não é vinculativo para

“ O Homem da Câmara de Filmar”, documentário russo de 1929, as realidades são bem

diferentes.

Independentemente da inscrição espácio-temporal deste artigo 79º do Código Civil, a

ética reveste-se de alguma universalidade.

Também é verdade que a ética é um composto de cada cultura, que esta ética depende de

factores históricos, políticos, geográficos que são inerentes a cada cultura, no entanto, o

direito à integridade física, o direito à imagem são princípios pelos quais o

comportamento de qualquer Homem tem que responder de uma forma escrupulosamente

responsável. Na verdade, uma atitude responsável tem que brotar de um comportamento

livre.

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3.3 O Documentário, a Propaganda e a Ética.

Foi na última década do século XIX que o cinema se transformou num sério meio de

propaganda, e o seu poder era claramente apreciado, mesmo quando ainda não dispunha

de som.

Na Grã-Bretanha, este desenvolvimento coincidiu com a “Guerra dos Boers”, durante a

qual três empresas, incluindo a British Mutoscope, fizeram um enorme esforço para

promover a causa heróica dos exércitos imperiais.

Filmes como “The Entry os the Scots Guards into Bloemfontein e Setting to between John

Bull and Paul Kruger”, tiveram um efeito espectacular. Muitos destes filmes eram uma

mistura de filmagens documentais genuínas e de cenas filmadas com actores. Um filme

forjado do bombardeamento das tendas da Cruz Vermelha pelos Boers foi utilizado para

difundir o mito das suas atrocidades, oficialmente encorajado pelo governo britânico.

Significativamente, um dos primeiros filmes alemães foi “A Vida na Marinha Alemã” de

1902, patrocinado pelo Kaiser Guilherme, que constitui uma confirmação do especial

valor do cinema como meio de transmissão de propaganda de guerra de quase todos os

géneros. Os filmes alemães “O Apelo da Pátria e Vigília no Reno”, de 1914, encontraram

paralelos numa pletora de filmes tendenciosos de todos os lados feitos durante a Primeira

Guerra Mundial, que culminaram nas atrocidades do filme americano Beast of Berlim.

De maneira semelhante, o primeiro filme nacional a ser exibido no primeiro cinema

russo, em 1896, foi o filme da coroação do czar Nicolau II, a que se seguiram vagos

esforços para congregar sentimentos nacionalistas como Stenka Rasie, de 1910, “Abaixo

o Jugo Alemão” e “A Guerra Santa”, de 1914. Talvez, significativamente, kerenski e os

sociais-democratas russos da revolução de Março de 1917 não avaliaram adequadamente

o valor do cinema e cortaram o fornecimento de energia eléctrica às salas, enquanto

Lenine e os seus colegas da revolução de Outubro se apressaram a apoiar o cinema,

utilizando especialmente os agitki ou pequenos filmes, e organizando salas móveis em

comboios30, camionetas e vapores, para ajudar a difundir a mensagem do comunismo.

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91

Trotski chegou mesmo a comentar que o cinema “substituiria a religião e a vodka”.

No período entre as guerras, aumentou a sofisticação do cinema como forma de

propaganda consciente e inconsciente.

Os cineastas soviéticos foram os primeiros a saberem utilizar o cinema para a luta contra

o inimigo. Esta acção desenrolava-se em duas frentes complementares: a produção de

filmes de combate e a sua exibição.

A acrescentar ao que já se disse acerca do cinema como meio de comunicação

apresentam-se agora as recomendações elaboradas por Lenine e destinadas a um

comboio93 de propaganda em actividade no Turquestão, assinadas pelo dirigente soviético

em Janeiro de 1920:

Vigiar a parte administrativa do comboio, com as secções de agronomia, de técnica, uma

selecção de literatura técnica e filmes correspondentes.

Preparar as representações cinematográficas com filmes especiais para as fábricas,

mostrando as diversas formas de produção. Filmes agrícolas, anti-religiosos, científicos.

Vigiar com atenção uma selecção cuidada dos filmes conhecer as reacções do público

durante e após as projecções.

Organizar a colecta dos filmes, da película virgem, de todo o material existente.

Conceder a maior atenção à escolha de pessoal para trabalhar no comboio de propaganda.

A produção de filmes comerciais continuou a ser um meio de comunicação muito

influente nos últimos anos do segundo milénio.

93 “ (…) l’agit-train fut envoyé sur le front occidentale, pour une tournée de trois mois. Parmi les films qu’il transportait, le plus important était La Revolution d’Outobre, le premier montage de Dziga Vertov. Cette fois, l’agitation n’etait pas destinée aux seuls soldats; on s’adressait aussi aux civils. Dans le premier mois de sa tournée de gare en gare, l’équipe du train donna dix-sept représentations de films sans compter les vingt-huit pour enfants. Cette école sur roues n’enseignait pas que la résistance à l’ennemi. Elle luttait aussi contre l’analphabétisme; elle donnait des conférences – illustrées par l’ecran – sur l’hygiéne ou contre l’alcoolisme.” La Pravda, en février 1919, décrivait ainsi les méthodes de l’agit-train: “ Chaque fois que le train ne roule pas, le cinéma ambulant travaille presque sans cesse pour un public toujours renouvelé: des centainess d’enfants, d’ouvriers, de paysans. La nuit tombée, c’est en plein air, nom loin du train, que l’on montre les films”. LEYDA, Jay, Kino – Histoire du Cinéma Russe et Soviétique, Ed. CIB, 1964, p. 207.

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92

Para além da guerra, e da política, a sua grande força assenta na capacidade de projectar

normas morais, a ética do trabalho, a simpatia, a monogamia e a conformidade com os

valores correntes de cada sociedade. As possibilidades do cinema como meio subterrâneo

de comunicação foram evidenciadas por cineastas como Arkadi Ruderman, que andava

com o seu projector de um lado para o outro, exibindo filmes em segredo nos últimos

anos do comunismo soviético.

Muitas vezes gestores narcisistas pagam a artistas, documentaristas, para que estes

convençam um público, adito ao pequeno ecrã.

O documentarista Martín Patino diz-nos:

“Los documentalistas no investigan ni cuestionan la realidad, simplesmente la

retratan poéticamente, es decir, la maquillan a su placer. Ésta es la diferencia

entre la visión del mundo através de una cultura satisfecha y la de una cultura

crítica.”

Penso que esta concepção é demasiado extremista, pois na história do documentário

existem experiências de grande interesse e muitas obras de arte.

Pode afirmar-se que a gestão e o delineamento das produções de qualquer projecto para

um produtor de documentários passa quase sempre pelas empresas comerciais,

teledifusores ou instituições que fazem o sponsoring94 mediante fórmulas diversas

(barthering95, publicidade estática, patrocinadores, co-produções, etc). Este fenómeno

continua a propiciar a co-habitação entre a produção documental e a ordem estabelecida

pelo estado de direito. Todavia isto não quer dizer que a produção independente não 94 Patrocínios. Consiste no apoio dado por uma instituição para a realização de uma actividade cultural, traduzido em contribuição monetária, meios técnicos, serviços, geralmente com contrapartidas publicitárias ou de propaganda para essa instituição. 95 Intercambio de publicidad por servicios. Ejemplo: Si nos dedicamos a editar las empresas suelen dejar su software más barato (licencia de educación) con el fin de que los alumnos se familiaricen y, en caso de dedicarse a esa práctica profesional, se decanten por esos programas. In http://www2.canalaudiovisual.com/ezine/books/contjjpm/intpubli.htm#barthering

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tenha acesso à criação e distribuição de produtos menos mediatizados, ou que produtoras

ligadas a instituições ou empresas privadas não tenham níveis de credibilidade.

“Ciutadans lliures sota sospita” de 1993, de Llorenç Soler, é um exemplo de

documentário que dá um ponto de vista não habitual sobre pessoas negras, não mostram

uma cultura vitimizada, marginalizada e, onde o autor teve plena liberdade nos processos

de criação e produção. A vinculação do autor às ideologias patrocinadoras deve ser vistas

com cuidado e mais relatividade. Extrair generalizações de casos isolados é de todo um

péssimo método, assim como sacar modelos particulares a partir de generalizações

também.

“ O documentarista tem por objectivo e função dar-nos a ver o nosso mundo

ou, aliás, revelar-nos o nosso próprio mundo. Isso não significa que nos

mostre o óbvio.”96

Não fazem parte do Documentário os critérios de actualidade e ou de objectividade.

O documentarista pesquisa, escolhe e trata o tema segundo o seu olhar, não existe uma

fórmula matemática para a concretização dum documentário, penso que o importante, e o

imprescindível a qualquer artista que trate a realidade de uma forma criativa, é o estar

atento aos seus instintos e segui-los de uma forma atenta.

A Propaganda silenciosa encontrou no cinema o seu mais poderoso e persuasivo meio.

A arte ao serviço de causas.

Um documentário não é necessariamente mais objectivo, mais real, mais científico que

um filme de ficção. Isto comprova-se claramente quando se constata que em vez de ser

objectivo na representação da realidade, muitas vezes serviu para manipular a opinião

pública. Num sentido mais amplo pode muitas vezes considerar-se o documentário como

uma ferramenta de propaganda. 96 PENAFRIA, Manuela, O Filme Documentário – História, Identidade, Tecnologia, Edições Cosmos, 1999,p. 24.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

94

Muitos teóricos defendem que será necessário encontrar o conhecimento contemporâneo

nas fitas de ficção, pois objectivam de uma forma mais fidedigna as condutas e os

problemas da época.

Para Richard M. Barsam (1974), são documentários, aqueles que comportam em si uma

mensagem e que possam ser considerados obras de arte. O documentário diferencia-se do

cinema de ficção pelo seu propósito sociopolítico.

O mal não estará, pois, na paixão do artista, propícia a climas emocionais favoráveis, está

como diz André Malraux.

“ (…) Na paixão de querer provar”, ou então, o que ainda é pior, em que a

moção inspiradora venha de fora, imposta pelo Estado ou pelo partido, sem a

exigência íntima de dar forma e esplendor ao que apaixonadamente se ama.

Nesse caso mais do que arte de propaganda falar-se-ia de arte “dirigida” ou

de encomenda.”97

O documentário “O Homem da Câmara de Filmar” traduz, através das suas imagens uma

concepção comunitária, não personalista, assume-se por um lado como um documentário

reflexivo, uma vez que situa o realizador não como participante ou observador mas como

um agente que exerce autoridade sobre o discurso político ou formal, e por outro lado

pode dizer-se que se trata de um documentário funcional enquanto “dirigido”, pelo

partido para o homem.

Uma obra, seja ela uma pintura, escultura, um filme, um documentário ou um poema, ela

tem cristalizado uma mundividência.

O artista marxista dá, naturalmente, primazia psicológica ao objecto sobre os valores

expressivos.

97 THOMSON, Oliver, Uma História da Propaganda, Temas e Debates, Lisboa, 2000, p.62.

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

95

Neste documentário, Vertov coloca a componente estética e a riqueza do conteúdo ao

serviço da sua paixão pelo social, todavia, sendo a componente estética de grande

qualidade artística concentrando igualmente na sua obra uma coerente e rigorosa

argumentação de conteúdo, faz com que a arte funcional, empenhada em causas, ou

engajada em regimes, não seja bela só por ser arregimentada.

A arte é materialmente solidária do humanismo expresso, mas formalmente distinta desse

objecto expressado.

Deve notar-se que Marx e Engels, por exemplo, foram relativamente razoáveis neste

ponto e que o “endurecimento” na valoração social da arte data do leninismo, e sobretudo

do estalinismo.

Com o estalinismo o artista era perseguido independentemente de partilhar ou não o

ideal, cortavam-lhes a cabeça. Sergei Eisenstein, por exemplo para fugir à perseguição e

assassinato político fugiu para o México.

É verosímil que Vertov partilhava o ideal marxista-leninista. Porém a intenção de Vertov

não é apenas mostrar os benefícios do marxismo, mas sim apresentar uma experiência na

comunicação cinematográfica dos acontecimentos reais, sem a ajuda de legendas

intercalares, sem a ajuda de um cenário, sem palco e sem actores. Neste documentário,

cuja primeira imagem é uma câmara apontada ao espectador Vertov organizar o seu

arquivo de imagens, faz jogos de montagem e experimentando novas linguagens

cinematográficas cria uma obra futurista.

Ao longo de todo o documentário é-nos mostrado o frenesim da cidade para nos dar ideia

de progresso marxista, Vertov mostra-nos como as pessoas levam uma vida descansada,

livre e organizada onde podem polir a mente e o corpo.

Vertov mostra-nos a beleza arquitectónica da cidade por onde o povo passeia livre e feliz,

de seguida mostra-nos pessoas no seu dia-a-dia, vão ao cabeleireiro, andam de charrette,

vemos pessoas que praticam desporto, andam de bicicleta, dançam ballet, jogam futebol,

Sandra Fernandes Nunes “O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR” COMO UMA OBRA FUTURISTA E O POSICIONAMENTO ÉTICO DE DZIGA VERTOV.

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praticam equitação, pessoas que se passeiam nos jardins bem tratados, pessoas que vão ao

cinema. Percebemos que assim como o trabalho é importante para servir a comunidade,

também os momentos de lazer são importantes.

Convém aqui assinalar que a partir dos anos 20 até 195398 passaram pelos campos de

concentração e pelas colónias dos Gulag cerca milhões de pessoas, tendo a maioria

perdido a vida nesses lugares, onde havia simultaneamente milhões de prisioneiros.

Esta realidade, como havia de convir ao regime não era por Vertov retratada.

Penso que Dziga Vertov não era perseguido politica e artisticamente, teria alguma

liberdade de expressão na criação da sua obra. É evidente o cariz social e politico ao

longo da sua obra, não sendo fruto de uma ameaça, ou perseguição mas sim consequência

da partilha de um ideal.

Em conclusão: o ideal seria que o artista expressasse, com intenção estética, a abundância

e qualidade de vida interior que nele, como homem, pedem expressão enaltecedora.

98 Ano da morte de Estaline.

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97

3.4 Relatos pessoais/profissionais sobre posicionamentos éticos.

Os Kino-Pravda actuais, mais conhecidos por telejornais, não reflectem conhecimento

das causas que se propõem a tratar. O jornalista que deveria ser o repórter, a pessoa que

faz o relato da informação, vai por exemplo para a guerra do Golfo mas fica no terraço do

hotel de onde faz a noticia, que conhecimento tem este individuo, que deontologia, onde

está a honestidade profissional do jornalista.

Na verdade, esta informação mais não é do que uma conversa de paragem de autocarro, à

qual muitos assistem cegamente.

Este jornalista passou ser um contador de histórias ficcionadas, às quais teimam em

chamar de notícias.

Apoiando-me em Walter Benjamin99:

“ (…) E verifica-se que essa forma de comunicação não é menos estranha à

narrativa do que o romance, mas ameaça-a muito mais. Ela conduzirá aliás o

próprio romance a uma crise. Esta nova forma de comunicação é a

informação.”100

Da mesma forma que os elementos estruturais duma noticia: o que, quem, como, quando,

onde e porque, deixaram de ter relevância e obrigatoriedade, também o jornalista, o

repórter deixou de o ser, passando a ser um narrador.

Será até desprestigiante apelidá-lo de narrador, seria mais justo denunciá-lo como

charlatão.

Mundialmente o jornalista morreu, ou melhor, o jornalista morreu mundialmente.

99 Walter Benjamin (July 15, 1892 – September 27, 1940) was a German Marxist literary critic, essayist, translator, and philosopher. He was at times associated with the Frankfurt School of critical theory and was also greatly inspired by the Marxism of Bertolt Brecht and the Jewish mysticism of Gershom Scholem.

As a sociological and cultural critic, Benjamin combined ideas of Jewish mysticism with historical materialism in a body of work which was an entirely novel contribution to Marxist philosophy and aesthetic theory. As a literary scholar, he translated texts written by Marcel Proust and Charles Baudelaire, and Benjamin's essay The Task of the Translator is one of the best-known texts on the theory of translation. In http://en.wikipedia.org/wiki/Walter_Benjamin 100 BENJAMIN, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 1992, p.33.

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Citando Walter Benjamin:

“ Se a arte de narrar tem vindo a rarear, a divulgação da informação tem

contribuído decisivamente para isso. Cada manhã, somos informados sobre o

que acontece em todo o mundo. E no entanto somos tão pobres em histórias

maravilhosas! Isto, porque nenhum acontecimento nos chega que não esteja

impregnado de explicações. Por outras palavras, quase nada do que acontece

é favorável à narrativa e quase tudo o é à informação.”101

Quer o serviço público quer o privado apresentam os seus noticiários como sendo uma

dramatização da realidade, quando o que deveria estar na base destes seriam princípios

como a objectividade, a isenção, a imparcialidade e o rigor.

Na verdade, acredito mais facilmente numa história contada pelo meu avô, ou por alguém

que no leito da morte faz a sua última confissão, do que quando assisto a cinco ou dez

minutos de noticiários televisivos. Para visionar um romance prefiro que o seu criador

seja coerente com ele próprio e com o seu espectador e que assuma a seu trabalho como

um romance, uma ficção. Ao invés de mascarar a notícia com dramas, enredos e

sensacionalismos tão típicos da “janela que mudou o mundo”.

Estes noticiários audiovisuais, carecem de princípios e consequentemente de

comportamentos intelectualmente honestos, de ética profissional, todavia são espelhos

ricos em propaganda silenciosa, mas só para os mais atentos ou os mais rebeldes.

O futebol, esse desporto rei, ao qual todos prestam vassalagem serve para mascarar

problemas nacionais ou internacionais, ninguém quer saber quanto gasta o estado com

sistemas de saúde, com métodos de reinserção social, se o Irão fabrica ou não armamento

nuclear, se, se, se.

A televisão tornou-se escrava do regime e fala de nada apenas podemos deslindar o

politicamente correcto, é o que nos resta.

101 BENJAMIN, Walter, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa, 1992, p.34.

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99

O projecto que vou descrever foi concebido e dirigido pelo Realizador e Produtor da

Produtora Marginalfilmes - José Carlos de Oliveira102.

A nível profissional estou ligada a esta produtora de cinema.

Exerço as funções de assistente de realização e directora de produção.

Entre 7 de Abril de 2006 e 7 de Maio de 2006, desloquei-me a Moçambique com a

equipa da Marginalfilmes para leccionar um curso de cinema intitulado – Processo

Cinematográfico.

Foi leccionado em 4 semanas, no formato de 50% de contacto directo entre docentes e os

84 alunos inscritos provenientes das licenciaturas do ISPU e Universidade Eduardo

Mondlane, das instituições Associação Moçambicana de Cineastas e Teatro Gungu.

Este curso concretizou a teorização com práticas de: escrita de um guião e a produção e

realização de uma curta-metragem - NYELETI, FUTURO BRILHANTE.

Este projecto concretizou parcerias com a comunidade moçambicana, nos planos

universitários, empresarial e institucional. E despertou o interesse de alguns dos

principais Meios dos dois países, que quiseram acompanhar o desenvolvimento das

acções. Destaca-se, entre esses, a Rádio e Televisão de Portugal, RTP1, RTP África e

RTP I e, em menor grau, a SIC.

Na fase de pré-produção e produção desta curta-metragem, as equipas de produção e

realização organizaram uma sessão de casting da qual surgiram os actores, figuração

especial103e figuração104.

Nesta curta-metragem deparámo-nos com uma particularidade que não deveria ser

desprezada, uma vez que pertence ao foro deontológico profissional, a protagonista tem

11 anos, portanto é menor de idade e tem que ser filmada nua.

O Realizador José Carlos de Oliveira, preocupado com esta situação e numa atitude de

prudência faz alterações no guião. A ética profissional sobrepôs-se à gratuitidade das 102 Realizou e produziu os seguintes filmes para cinema e series de televisão: “Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra” ( 2005), “Preto e Branco” ( 2000), “Dragão de Fumo” (1999), “Inês de Portugal” ( 1997), “O Rosto da Europa” ( 1994), “Os Melhores Anos” ( 1992) e “O Quadro Roubado” ( 1992). 103 Aparecem fugazmente e têm diálogos. 104 Aparecem fugazmente e não têm diálogos.

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100

imagens. O Realizador conseguiu imprimir no filme a ideia prevista e trabalhada com os

alunos sem mostrar a menor de 11 anos nua.

Colocando a câmara em determinados ângulos imprimiu na narrativa os avanços e

códigos estéticos previamente pensados, e vestindo um biquíni à actriz preveniu a

exposição da sua imagem, nunca se desviando dos seus objectivos, mas pensando em

hipóteses de contornar situações.

Em bom rigor e ao abrigo dos parâmetros legais sendo menor não poderia assinar o

contrato de cedência de direitos de imagem. Uma vez colocado este obstáculo, que

imediatamente foi ultrapassado, foi o progenitor da actriz que deu consentimento,

formalizado na assinatura do contrato.

Neste caso a ética aplicou-se não só neste caso prático supra citado mas também no

respeito mútuo pelas culturas, uma vez que esta história foi escrita por Moçambicanos,

dirigida por Portugueses.

O curso PROCESSO CINEMATOGRÁFICO, consistiu em potenciar a apetência e

capacidade dos jovens moçambicanos para a utilização da teoria, estética e técnica

cinematográficas, como meio de expressão da sua cultura.

Esta curta-metragem foi exibida no dia 25 de Junho de 2006, na RTP África e TVM

(Televisão de Moçambique), integrada nas Comemorações da Independência de

Moçambique.105

Pode dar-se o caso de...

105 Ver secção de Anexos. Apresentação do Curricular do Curso PROCESSO CINEATOGRÁFICO, e Guião.

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101

Algumas vezes se introduzirem alterações no guião no dia anterior à rodagem de cenas,

ou até na própria altura. O conhecimento que o actor tinha aquando da assinatura do

contrato não é neste momento o mesmo, uma vez que o guião alterou-se.

Quando chegamos à montagem as coisas complicam-se ainda mais. Pode acontecer que

durante a rodagem tenhamos um filme que converge para a leitura de uma determinada

ideia, e quando chegamos à mesa de edição o montador que geralmente está

acompanhado pelo realizador e anotador tenha necessidade que a narrativa leve outro

rumo. Um actor que tinha sido contratado para 3 semanas de rodagem pode aparecer na

montagem final de um filme apenas 5 minutos durante 110 minutos de filme.

Claro que o actor é remunerado pelas 3 semanas de rodagem e não pelos 5 minutos

irreversíveis, impostos pela imprescindível fluidez e descodificação da narrativa.

É deontológico que o realizador ou o produtor depois de ter a sua fita concretizada, ou

aquando do corte do negativo informe o actor ou actores que a participação deste no

filme teve que ser reduzida.

Infelizmente isto nem sempre acontece.

Quando há a celebração de um contrato todas as partes deverão estar informadas, neste

caso informadas do que está previsto e do que não está previsto acontecer.

Deverá haver um comportamento de antecipação de ambas as partes, primeiro e segundo

outorgantes.

Depois de lerem o guião os actores concordaram com o papel que lhes foi destinado.

Após conhecimento do guião e da descrição de personagem apresentada pelo realizador e

ou guionista no caso europeu, e produtor no caso americano, o actor pode ou não aceitar

as condições apresentadas.

No caso do Documentário os procedimentos deontológicos complicam-se uma vez que

um documentário, ao contrário de uma longa-metragem não se executa em 8 ou 12

semanas, um documentário pode ter uma duração de execução de vários anos.

Daí o documentarista ter que se acautelar quanto a futuros acontecimentos que possam

colocar em perigo todo o seu trabalho.

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Qualquer processo cinematográfico, exige por parte de toda a equipa prudência na

salvaguarda da ética profissional, perseverança, e claro criatividade

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103

Conclusão É sempre difícil ter que concluir um trabalho de investigação e reflexão, quando achamos

que muito mais haveria que investigar e dizer. E principalmente quando se começa uma

investigação de forma apaixonada, que a investigação se tornou ultra-apaixonante. E que

esta ultra-paixão tem que se fechar, pelo menos, nesta dissertação.

A metodologia académica e científica impera.

A nível pessoal com a elaboração desta dissertação quis consolidar conceitos já

explorados no âmbito da licenciatura, workshops, introduzir e ampliar novos conceitos e

formas de pensamento, aprofundar conhecimentos.

A nível profissional este estudo constitui uma base de investigação e de apoio para

trabalhos de cinema documentário que neste momento estão em fase de desenvolvimento.

Todo este processo de investigação, organização de materiais, definição de uma estrutura,

desenvolvimento do objecto de estudo aliado à investigação de base previamente

realizada, é bastante moroso e exige um discernimento, uma responsabilidade, uma

escolha de prioridades. O elencado de uma lista de prioridades resulta numa dissertação.

E da dissertação resulta ter algo para dizer. Só se consegue comunicar, seja ela uma

comunicação oral, escrita, visual e/ou áudio se soubermos o que queremos dizer.

Numa investigação é essencial, que o sujeito tenha uma escolha objectiva nos seus temas

e sub temas, o sujeito não pode falar de tudo, tem que delinear e sintetizar.

Há uma grande dificuldade por parte do autor em conseguir afastar-se da sua obra e tecer

sobre ela uma análise objectiva.

Pode dizer-se que as fases de pré-produção e produção de uma dissertação fazem parte de

uma esfera individualista, pessoal.

A fase de pós-produção deverá ser integrada numa esfera conjunta, plural; nesta fase os

segundos olhares funcionam como um filtro e a posterior aproximação do autor constitui

o polimento do trabalho.

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O autor afastando-se da sua obra abre espaço, para que outras pessoas a possam ler e

avaliar duma forma imparcial, contribuindo para um refinamento cada vez mais sintético.

A obra em determinada altura da sua elaboração deverá abrir-se.

Em Portugal, o cinema documentário exige a atenção e também a investigação de todo o

sector audiovisual, realizadores, assistentes de realização, produtores, directores

artísticos, argumentistas, actores e outros que de certa forma contribuem para o cinema

português.

É imprescindível a colaboração académica e científica de profissionais ligados à história

da arte, à etnografia, à antropologia, às artes gráficas, ao jornalismo e à música. Todos

estes sectores têm a responsabilidade no avanço do cinema documentário.

Entrego esta dissertação no ano em que o Cinema, a mais jovem das formas de arte fará

111 anos. O momento é histórico e necessita de coesão dos vários sectores.

Com a realização desta dissertação tenho o desejo de contribuir para um conhecimento

público do cinema documentário, pretendo de uma forma mais específica valorizar o

documentário como obra de arte e sensibilizar os estudiosos e curiosos para as

metodologias éticas intrínsecas à execução de um documentário.

Sustento neste trabalho, o documentário O Homem da Câmara de Filmar” como obra

futurista.

Este documentário é não só uma ficção elaborada a partir de elementos seleccionados e

extraídos da realidade, mas também a expressão das emoções do realizador Dziga Vertov.

Podemos encontrar esta expressão emotiva e artística do autor, não só no tratamento

sobre as imagens utilizadas, mas, e principalmente, na técnica de montagem utilizada.

Existe uma desfragmentação dos planos, quase cubista, que provoca emoções no

espectador participando igualmente no avanço da narrativa.

A forma vanguardista parte da ideia fragmentada de unidade.

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Dziga Vertov não faz uma selecção aleatória das imagens, estas contribuem para a

estética e para o conteúdo do filme documentário. A simbiose destas duas componentes

mostra ao espectador a beleza e harmonia da obra, dando-lhe um carácter universal.

A ordem e a proporção, distribuídas ao longo do documentário de uma forma consciente

e autoral, fazem deste documentário uma obra futurista.

Levando ao extremo a imitação da realidade (mimeses), Dziga Vertov faz uma ruptura na

cinematografia e com “O Homem da Câmara de Filmar” inscreve o movimento cinema-

verdade na história do Cinema.

Vertov ao recusar palcos e estúdios, transforma o cinema-verdade num movimento

futurista e vanguardista, inscrevendo a sua obra na cinematografia universal.

Foi meu propósito questionar as questões éticas, deontológicas inseridas na realização de

um documentário.

A acção humana para ser responsável, tem que ser racional, livre. Ter um posicionamento

ético é conseguir não ser escravo nem das motivações nem dos castigos, é ser capaz de

querer e ser por si.

Dziga Vertov, defendia um ideal político, o qual está firmado na sua obra, não é menos

livre ou responsável por isso.

A honestidade intelectual do indivíduo, reflecte-se nas suas acções.

Vertov quando inicia a rodagem e lhe confere um estilo – o improviso, a filmagem da

vida como ela é, utiliza sujeitos, que constituem as personagens da sua história sem que

estes tenham conhecimento do objectivo último de tais filmagens.

Ainda que Portugal até há bem pouco tempo tenha sido o único país da EU, a carecer de

uma Regulamentação da Lei de Cinema, daí a falta de uma indústria de cinema, com a

problematização deste processo, método cinematográfico e comportamento ético julgo ter

contribuído para o enriquecimento do sector, ainda embrionário – o cinema

documentário.

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106

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