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A MISÉRIA DO MEIO ESTUDANTIL - CONSIDERADA NOSSEUS ASPECTOS ECONÔMICO, POLÍTICO, SEXUAL EESPECIALMENTE INTELECTUAL E DE ALGUNS MEIOS PARA PREVENIR.texto: Mustapha Khayati. revisão: Guy Debord1ª edição: Estrasburgo, 1966
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A MISÉRIA DO MEIO ESTUDANTIL
Considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e, mais
particularmente, intelectual, e sobre alguns meios para remediá‐la(*)
(*) Texto Situacionista publicado por conta da seção de Strasbourg da União Nacional dos Estudantes da
França em 1966 e redigido, na quase totalidade, por Mustapha Khayati
Tornar a vergonha ainda mais vergonhosa entregando‐a a publicidade
Pode‐se dizer, sem grandes riscos de errar, que o estudante na França é, depois
do policial e do padre, o ser mais universalmente desprezado. Os motivos por que ele
é desprezado são, com freqüência, falsos motivos produzidos pela ideologia
dominante. Já os motivos por que ele é efetivamente desprezível e desprezado do
ponto de vista da crítica revolucionária são recalcados e dissimulados. No entanto, os
partidários da falsa oposição sabem reconhecê‐los, e se reconhecer neles. Por isso,
eles invertem esse desprezo real transformando‐o numa admiração complacente.
Assim, a impotente inteligentsia esquerdista (da revista Temps Modernes ao L’Express)
fica pasma ante a pretensa “subida dos estudantes”, e as organizações burocráticas
decadentes (do Partido Comunista à stalinista UNEF – União Nacional dos Estudantes
da França) travam enciumadas batalhas pelo apoio “moral e material” dos estudantes.
Iremos mostrar as razões de tal interesse pelos estudantes e como elas participam
positivamente da realidade dominante do capitalismo superdesenvolvido. E
utilizaremos este trabalho para denunciá‐las, uma por uma: a desalienação segue
exatamente o mesmo caminho da alienação.
Todos os estudos e análises empreendidos até agora sobre o meio estudantil
sempre negligenciaram o essencial. Nunca ultrapassaram o ponto de vista das
especializações universitárias (psicologia, sociologia, economia) e permanecem assim
fundamentalmente errôneos. Todos esses estudos e análises produzem aquilo que
Fourier já denunciava como leviandade metódica, “visto que toca regularmente nas
questões primordiais”, mas ignorando a visão total da sociedade moderna. Diz‐se tudo
dessa sociedade menos o que ela efetivamente é: mercantil e espetacular. Os
sociólogos Bourderon e Passedieu, em sua pesquisa Os Herdeiros: os Estudantes e a
Cultura, ficam desarmados perante algumas verdades parciais que eles acabaram por
provar. E, apesar de toda a sua boa vontade, recaem na moral dos professores, a
inevitável ética kantiana da democratização real através da racionalização real do
sistema de ensino, ou seja, do ensino do sistema; enquanto seus discípulos, os Kravetz,
julgam‐se milhares a despertar, compreendendo sua amargura de pequenos‐
burocratas pela mixórdia de uma fraseologia revolucionária ultrapassada.
A instalação da reificação no espetáculo[1], sob o capitalismo moderno, impõe um
papel a cada um dentro da passividade generalizada. O estudante não pode fugir a
essa regra. Ele desempenha um papel provisório, que o prepara para o papel definitivo
que irá assumir, como elemento positivo e conservador, dentro do funcionamento do
sistema mercantil. É apenas uma iniciação, e nada mais que isso.
Essa iniciação reencontra, magicamente, todas as características da iniciação mítica.
Ela permanece inteiramente desconectada da realidade histórica, individual e social. O
estudante é um ser dividido entre o status atual e o status futuro – nitidamente
distintos –, cuja fronteira será cruzada de forma mecânica. Sua consciência
esquizofrênica lhe dá condições de se isolar numa “sociedade de iniciação”, ignorando
seu futuro e encantando‐se pela unidade mística que lhe é oferecida por um presente
ao abrigo da história.
A mola mestra desse mecanismo é muito simples de descobrir: é duro olhar de
frente a realidade estudantil. Numa “sociedade da abundância”, o status atual do
estudante é de extrema pobreza. Originários, pelo menos 80 % deles, de camadas cuja
renda é superior a de um operário, e 90 % deles dispõem de renda inferior à do mais
modesto assalariado. A miséria do estudante está aquém da miséria da sociedade do
espetáculo, da nova miséria do novo proletariado. Numa época em que uma parcela
crescente da juventude está se liberando cada vez mais dos preconceitos morais e da
autoridade familiar para, cada vez mais depressa, fazer parte do mercado, o estudante
se mantém, em todos os níveis, numa “menoridade prolongada”, irresponsável e dócil.
Se a crise juvenil tardia o coloca de alguma forma em conflito com sua família, ele
aceita sem problemas ser tratado como uma criança nas diversas instituições que
regem a sua vida cotidiana.[2]
A colonização dos diversos setores da prática social encontra sempre no mundo
estudantil sua mais gritante expressão. A transferência para os estudantes de toda má
consciência social mascara a miséria e a servidão de todos. Mas as razões que
fundamentam o nosso desprezo pelo estudante são de outra ordem. Elas não se
referem apenas à sua miséria real mas também à sua complacência com relação a
todas as misérias, sua propensão doentia a consumir alienação beatamente, nutrindo
a esperança, face à falta de interesse geral, de chamar a atenção para a sua miséria
particular. As exigências do capitalismo moderno fazem com que a maioria dos
estudantes acabem conseguindo ser apenas pequenos funcionários (ou seja, o
equivalente à função de operário qualificado no século XIX[3]). Diante do tão previsível
caráter miserável desse futuro mais ou menos próximo, que irá “indenizá‐lo” pela
vergonhosa miséria do presente, o estudante prefere se voltar para o presente e orná‐
lo com prestígios ilusórios. A própria compensação é lamentável demais para que
alguém se prenda a ela. Os amanhãs não cantarão, e ele fatalmente se banhará na
mediocridade. Eis porque ele se refugia num presente vivido de modo irreal.
Escravo estóico, o estudante acredita que quanto mais numerosas forem as cadeias de
autoridade que o prendem, mais livre ele será. Como sua nova família, a universidade,
ele se julga o mais “autônomo” ser social, sem se perceber atado, direta e
conjuntamente, aos dois mais potentes sistemas de autoridade social: a família e o
Estado. Ele é o filho bem comportado e agradecido de ambos. Conforme a mesma
lógica da criança submissa, ele participa de todos os valores e mistificações do sistema
e as concentra em si. O que eram ilusões impostas aos empregados torna‐se ideologia
interiorizada e veiculada pela massa dos futuros pequenos funcionários.
Se a miséria social antiga gerou os mais grandiosos sistemas de compensação da
história (as religiões), a miséria marginal estudantil só encontrou consolo nas mais
desgastadas imagens da sociedade dominante, na repetição burlesca de todos os seus
produtos alienados.
O estudante francês, na qualidade de ser ideológico, chega sempre tarde
demais em tudo. Todos os valores e ilusões que fazem o orgulho do seu mundo
fechado já estão condenados como ilusões insustentáveis, há muito ridicularizadas
pela história. Recolhendo um pouco do prestígio em frangalhos da universidade, o
estudante ainda se sente feliz por ser estudante. Tarde demais. O ensino mecânico e
especializado que lhe é ministrado já se encontra tão profundamente degradado (em
relação ao antigo nível da cultura geral burguesa)[4] quanto seu próprio nível
intelectual no momento em que ele tem acesso a esse ensino. Pela simples razão que a
realidade que domina tudo isso, o sistema econômico, exige a fabricação maciça de
estudantes incultos e incapazes de pensar. Que a universidade tenha se tornado uma
organização – institucional – da ignorância, que a própria “alta cultura” se dissolva ao
ritmo da produção em série dos professores, que todos esses professores sejam
cretinos e que em sua maioria provocariam risos em qualquer público de liceu – isso o
estudante ignora. E continua a ouvir respeitosamente seus mestres, com a vontade
consciente de perder qualquer espírito crítico de modo a melhor comungar da ilusão
mística de ter se tornado um “estudante”, alguém que está tratando seriamente de
aprender um conhecimento sério, na esperança de que irá realmente receber o
conhecimento das “derradeiras verdades”. Trata‐se de uma menopausa do espírito.
Tudo aquilo que hoje acontece nas salas das escolas e faculdade será, na futura
sociedade revolucionária, condenado como barulho, socialmente nocivo. Desde já, o
estudante provoca risos.
O estudante não se dá conta nem mesmo do fato que a história altera também
o seu irrisório mundo “fechado”. A famosa “crise da universidade”, mero detalhe da
crise mais geral do capitalismo moderno, permanece objeto de um diálogo de surdos
entre diferentes especialistas. Ela traduz simplesmente as dificuldades de um ajuste
tardio desse setor especial da produção a uma transformação global do aparelho
produtivo. Os resíduos da velha ideologia da universidade liberal burguesa se
banalizam no momento em que a sua base social desaparece. A universidade
conseguiu julgar‐se uma potência autônoma na época do capitalismo de livre troca e
de seu Estado liberal, que lhe concedia uma certa liberdade marginal. Na realidade, ela
dependia essencialmente das necessidades desse tipo de sociedade: fornecer cultura
geral apropriada à minoria privilegiada que nela estudava antes de se integrar às
fileiras da classe dirigente, da qual havia se ausentado apenas por um breve momento.
Daí o ridículo desses professores nostálgicos[5], amargurados por terem trocado sua
antiga função, bem menos nobre, de cães pastores conduzindo, segundo as
necessidades planificadas do sistema econômico, levas de “colarinhos brancos” para
seus respectivos escritórios e fábricas. São eles que opõem seus arcaísmos à
tecnocratização da universidade e continuam imperturbáveis a recitar fragmentos de
uma cultura dita geral para futuros especialistas que dela não saberão o que fazer.
Mais sérios e, portanto, mais perigosos são os modernistas de esquerda e da UNEF,
liderados pelos “ultras” da FGEL (Federação Geral dos Estudantes Laicos), que
reivindicam uma “reforma da estrutura da universidade”, ou seja, a sua adaptação às
necessidades do capitalismo moderno. De fornecedoras da “cultura geral” para uso
das classes dirigentes, as diversas faculdades e escolas, ainda ornamentadas de
prestígios anacrônicos, são transformadas em centros de criação apressada de
pequenos e médios funcionários. Longe de contestar esse processo histórico que
subordina diretamente um dos últimos setores relativamente autônomos da vida
social às exigências do sistema mercantil, nossos progressistas protestam contra os
atrasos e deficiências a que ficam submetidos. São os partidários da futura
universidade cibernetizada que já se anuncia aqui e ali.[6] O sistema mercantil e seus
servidores modernos: eis o inimigo.
Mas é normal que todo esse debate passe por cima da cabeça do estudante,
pelo céu de seus mestres, escapando‐lhe inteiramente: o conjunto de sua vida e, com
mais razão, da vida, escapa‐lhe.
Por força de sua situação econômica de extrema pobreza, o estudante está
condenado a um certo modo de sobrevivência pouquíssimo invejável. No entanto,
sempre satisfeito consigo, ele erige a sua miséria trivial como um “estilo de vida”
original: o miserabilismo e a boemia. Ora, a “boemia”, já longe de ser uma solução
original, nunca será autenticamente vivida sem uma ruptura prévia completa e
irreversível com o meio universitário. Seus partidários da boemia entre os estudantes
(e todos se vangloriam de assim o serem de alguma forma) nada mais fazem a não ser
se agarrarem a uma versão artificial e degradada daquilo que não passa, na melhor das
hipóteses, de uma medíocre solução individual. São merecedores até mesmo do
desprezo das velhas provincianas. Estes “originais” continuam – trinta anos depois de
W. Reich[7], esse excelente educador da juventude – a ter comportamentos erótico‐
amorosos dos mais tradicionais, reproduzindo as relações gerais da sociedade de
classes em suas relações intersexuais. A aptidão do estudante para se tornar um
militante de qualquer natureza atesta claramente a sua impotência. Dentro da
margem de liberdade individual autorizada pelo espetáculo totalitário, e apesar de sua
utilização de tempo, mais ou menos relaxada, o estudante ignora ainda a aventura
preterindo‐a por um espaço‐tempo cotidiano estreito, dirigido em sua intenção pelas
barreiras de proteção do mesmo espetáculo.
Ele próprio separa, sem a isso ser obrigado, o trabalho do lazer, enquanto
proclama um desprezo hipócrita pelos “burros de carga” e “CDFs”. Ele ratifica todas as
separações e em seguida vai gemer em diferentes “círculos” religiosos, esportivos,
políticos ou sindicais, sobre o tema da não‐comunicação. Ele é tão tolo e infeliz que
chega ao cúmulo de se abrir espontaneamente e em massa ao controle parapolicial
dos psiquiatras e psicólogos, implementado para seu uso pela vanguarda da opressão
moderna; controle este, portanto, aplaudido pelos seus “representantes”, que vêem
naturalmente nos Centros de Apoio Psicológico Universitário uma conquista
indispensável e merecida.[8]
Mas a miséria real da vida cotidiana estudantil encontra a sua compensação
imediata, fantástica, naquilo que é o seu ópio principal: a mercadoria cultural. No
espetáculo cultural, o estudante reencontra com naturalidade o seu lugar de discípulo
respeitoso. Próximo do local da produção sem nunca a ele ter acesso – o santuário lhe
será proibido – o estudante descobre a “cultura moderna” na qualidade de espectador
contemplativo. Numa época m que a arte morreu, ele continua sendo o principal fiel
dos teatros e dos cineclubes, bem como o mais árido consumidor de seu cadáver
congelado e difundido em celofane nos supermercados para as donas‐de‐casa da
abundância. Ele participa disso sem nenhuma reserva, sem segundas intenções e sem
distanciamento algum. É o seu elemento natural. Se os “centros culturais” não
existissem, o estudante os teria inventado. Ele confirma com perfeição as análises mais
banais da sociologia norte‐americana do marketing: consumo ostentatório,
estabelecimento de uma diferenciação publicitária entre produtos idênticos em
nulidade (Pérec ou Robbe‐Grillet, Godart ou Lelouch).
E basta que os “deuses” que produzem ou organizam o seu espetáculo entrem
em cena, para ele mostrar que é seu público principal, o devoto ideal. Assim, ele
assiste em massa às mais obscenas demonstrações de seus “deuses”. Quem mais,
além dele, o estudante, lotaria as salas quando, por exemplo, sacerdotes de diferentes
igrejas vêm expor publicamente seus diálogos intermináveis (semana do pensamento
dito marxista, reunião de intelectuais católicos) ou quando os escombros da literatura
vêm constatar que são impotentes (5 mil estudantes em O que Pode a Literatura?).
Incapaz de sentir paixões reais, ele se delicia com polêmicas se paixão entre os
ícones da ininteligência a respeito de falsos problemas cuja função é disfarçar os
verdadeiros: Althusser – Garaudy – Sartre – Barthes – Picard – Lefebvre – Levi‐Strauss
– Halliday – Chatelet – Antoine. Humanismo – existencialismo – estruturalismo –
cientismo – novo criticismo – dialeto‐naturalismo – cibernetismo – planetismo –
metafilosofismo.
Na sua aplicação, ele se considera de vanguarda porque assistiu ao último
Godard, comprou o último livro argumentista[9], participou do último happening desse
Lapassede, uma besta. Ignorante, ele acredita serem novidades “revolucionárias”,
garantidas por certificado, as piores versões de antigas pesquisas efetivamente
importantes em seu tempo, edulcoradas para uso do mercado. A questão será sempre
a de preservar seu nível cultura. O estudante se orgulha de comprar, como todo
mundo, as reedições em livro de bolso de uma série de textos importantes e difíceis
que a “cultura de massa” dissemina num ritmo acelerado.[10] Só que ele não sabe ler.
Ele se contenta em consumi‐los com o olhar.
Sua leitura predileta continua sendo a imprensa especializada que rege o
consumo diante dos gadgets culturais. Docilmente, ele aceita determinações
publicitárias fazendo delas a referência‐padrão de seus gostos. Ele ainda se delicia com
L’Express e L’Observateur, ou então acredita que Le Monde, cujo estilo já é difícil
demais para ele, é realmente um jornal “objetivo” que reflete a atualidade. Para
aprofundar seus conhecimentos gerais, ele bebe da Planète, a revista mágica que
remove as rugas e os cravos das velhas idéias. É seguindo tais guias que ele acredita
participar do mundo moderno e se iniciar na política.
Pois o estudante, mais que qualquer outro, se sente feliz por se considerar
politizado. Só que ele ignora que participa disso através do mesmo espetáculo. Assim,
ele se reapropria de todos os restos dos frangalhos ridículos de uma esquerda que foi
aniquilada há mais de quarenta anos pelo reformismo “socialista” e pela contra‐
revolução stalinista. Isso ele ainda ignora, ao passo que o poder conhece bem
claramente o fato e os operários têm dele um conhecimento confuso. Ele participa,
com orgulho cretino, das mais irrisórias manifestações que atraem somente ele
próprio. A falsa consciência política é encontrada nele em seu estado mais puro, e o
estudante constitui a base ideal para as manipulações dos burocratas fantasmáticos
das organizações moribundas (do partido dito comunista à UNEF). Estas programam
totalitariamente suas opções políticas. Qualquer desvio ou veleidade de
“independência” entra docilmente, após um simulacro de resistência, numa ordem
que em momento algum foi colocada em questão.[11] Quando ele pensa estar
obedecendo, como essas pessoas que se autodenominam, em função de uma
patológica inversão publicitária, JCR (Juventude Comunista Revolucionária), não sendo
nem jovens, nem comunistas, nem revolucionários, é para aderir alegremente à
palavra de ordem pontificial: Paz no Vietnã.
O estudante tem orgulho de se opor aos arcaísmos de um De Gaulle, mas não
compreende que age assim em nome de erros do passado, de crime congelados (como
o stalinismo, na época de Togliatti – Garaudy – Krutchev – Mão), e assim a sua
juventude é ainda mais arcaica que o poder, porque esse dispõe efetivamente de tudo
aquilo que necessita para administrar uma sociedade moderna.
Não será um arcaísmo a mais que fará muita diferença para o estudante. Ele
acha que deve ter idéias gerais sobre tudo, conceitos coerentes do mundo que dão um
sentido à sua necessidade de agitação e de promiscuidade assexuada. Eis porque,
manipulados pelas últimas febres das igrejas, ele se precipita sobre a mais velha das
velharias para adorar a carcaça fétida de Deus e atar‐se às migalhas decompostas das
religiões pré‐históricas, que ele acredita serem dignas dele e do seu tempo. Não é
necessário frisar que o meio estudantil é, justamente com o das senhoras idosas de
interior, o setor onde se mantém o mais alto índice de prática religiosa, conservando‐
se como uma “terra de missões” ideal (ao passo que, nas demais, os missionários já
foram devorados ou expulsos), na qual padres‐estudantes continuam a sodomizar, às
claras, milhares de estudantes em suas latrinas espirituais.
É claro que, entre os estudantes, ainda existem pessoas com nível intelectual
suficiente. Essas dominam com facilidade os miseráveis controles de capacidade
previstos para os medíocres, sendo que essa dominação acontece justamente porque
eles entenderam o sistema, porque eles o desprezam e são seus inimigos de forma
consciente. Eles tomam o que há de melhor no sistema de estudos: as bolsas. Tirando
proveito das falhas do controle, que, na sua lógica própria, obriga aqui e agora a
conservar um pequeno setor puramente intelectual, a “pesquisa”, eles vão
tranqüilamente elevar a turbulência ao mais alto nível: seu desprezo declarado pelo
sistema caminha no mesmo passo que a lucidez que lhes permite justamente serem
mais fortes que os serviçais do sistema e, em primeiro lugar, mais fortes
intelectualmente. As pessoas de quem estamos falando já constam, na realidade, no
rol dos teóricos do movimento revolucionário que se aproxima, e orgulham‐se de
serem tão conhecidos quanto ele no momento em que se começar a ouvir falar dele.
Não escondem de ninguém que aquilo que tomam tão facilmente do “sistema de
estudos” está sendo utilizado para a destruição do mesmo. Pois o estudante não pode
se revoltar contra nada antes de se revoltar contra seus estudos, e a necessidade dessa
revolta se faz sentir menos naturalmente que no caso do operário, que se revolta
espontaneamente contra a sua condição. Mas o estudante é um produto da sociedade
moderna, tanto quanto Godard e a Coca‐Cola. Sua extrema alienação só pode ser4
contestada pela contestação de toda a sociedade. Esta crítica não pode, de modo
algum, ser feita no campo estudantil: o estudante, como tal, arroga‐se um pseudo‐
valor que o impede de tomar consciência do quanto ele é um “despossuído” e, por
causa disso, permanece no cúmulo da falsa consciência. Em todos os cantos onde a
sociedade moderna começa a ser contestada existe, contudo, revolta na juventude,
que corresponde imediatamente a uma crítica total do comportamento estudantil.
Não basta que o pensamento procure sua realização. É preciso que a realidade
procure o pensamento.
Após um longo período de sono letárgico e de contra‐revolução permanente,
esboça‐se há alguns anos um novo período de contestação do qual a juventude parece
ser a portadora. Entretanto, a sociedade do espetáculo, conforme a representação que
ela faz de si mesma e de seus inimigos, impõe suas categorias ideológicas para a
compreensão do mundo e da história. Essa sociedade do espetáculo procura classificar
tudo o que acontece na categoria dita da “ordem natural das coisas” e aprisiona as
verdadeiras novidades que anunciam sua caducidade dentro do âmbito restrito de sua
vontade ilusória.
A revolta da juventude contra o modo de vida que lhe é imposto é, na
realidade, apenas o sinal precursor de uma subversão mais ampla que englobará o
conjunto daqueles que se sentem cada vez mais impossibilitados de viver. É o prelúdio
da próxima época revolucionária. Só que a ideologia dominante, juntamente com seus
órgãos cotidianos, consegue, por meio dos mecanismos já eficazmente comprovados
de inversão da realidade, reduzir este movimento histórico real a uma pseudo‐
categoria socionatural: a Idéia de Juventude (que já traria a revolta em sua essência).
Dessa forma, rebaixa‐se uma nova juventude da revolta à eterna revolta da Juventude,
que renasce em cada geração para desaparecer quando o “jovem é tomado pela
seriedade da produção e pela atividade com vistas a fins concretos e verdadeiros”.
A “revolta dos jovens” foi e continua objeto de uma verdadeira inflação
jornalística que faz dela o espetáculo de uma “revolta” possível oferecida à
contemplação para impedir que seja vivida, ou seja, a esfera aberrante – já integrada ‐,
necessária ao funcionamento do sistema social. Essa revolta contra a sociedade
tranqüiliza a sociedade porque se faz crer que essa revolta permanece parcial, dentro
do apartheid dos “problemas” da juventude – do mesmo modo que haveria um
problema da mulher, ou um problema negro – e dura somente uma parte da vida. Na
realidade, se existe um problema da “juventude” na sociedade moderna é porque a
crise profunda dessa sociedade é sentida pelo jovem [12]com mais acuidade.
Produto por excelência dessa sociedade moderna, o jovem é – ele mesmo –
moderno, seja para integrar‐se nela sem reservas, seja para recusá‐la radicalmente. O
que deveria surpreender não é tanto que a juventude seja revoltada, mas que os
“adultos” seja tão resignados. Coisa, aliás, que não tem uma explicação mitológica,
mas uma explicação histórica: a geração anterior conheceu todas as derrotas e
consumiu todas as mentiras do período da vergonhosa desagregação do movimento
revolucionário.
Considerada em si mesma, a juventude é um mito publicitário já
profundamente vinculado ao modo de produção capitalista, como expressão de seu
dinamismo. Essa ilusória primazia da juventude tornou‐se possível com o
reaquecimento da economia após a Segunda Guerra Mundial, com a entrada em
massa no mercado da toda uma categoria de consumidores mais maleáveis, um papel
que assegura o atestado de integração à sociedade do espetáculo. Mas a explicação
dominante do mundo encontra‐se novamente em contradição com a realidade
socioeconômica (pois está atrasada em relação a esta) e é justamente a juventude
que, primeiro, afirma uma irresistível fúria de viver e se insurge espontaneamente
contra o tédio cotidiano e o tempo morto que o velho mundo continua a secretar
através de suas diferentes modernizações. A fração revoltada da juventude expressa
recusa no estado puro de recusa, sem a consciência de uma perspectiva de superação
desta sua recusa niilista. Essa perspectiva é procurada e vem se observando em todos
os lugares do mundo. Ela precisa atingir a coerência da crítica teórica e a organização
prática dessa coerência.
À primeira vista, os blousons noirs exprimem em todos os países, com a
máxima violência aparente sua recusa a se integrarem. Mas o caráter abstrato da sua
recusa não lhes deixa nenhuma chance de escapar às contradições de um sistema de
que são o produto negativo e espontâneo. Os blousons noirs são produzidos por todos
os lados da ordem atual: o urbanismo dos grandes conjuntos, a decomposição dos
valores, a extensão do lazer consumível cada vez mais tedioso, o controle humanista‐
policial cada vez mais estendido a toda vida cotidiana, a sobrevivência econômica na
célula familiar privada de qualquer significado. Eles desprezam o trabalho mas aceitam
as mercadorias. Eles gostariam de possuir tudo quanto à publicidade lhes exibe, de
modo imediato e sem que tivessem de pagar. Essa contradição fundamental domina
toda a sua existência, e é ele o quadro que reprime suas tentativas de afirmação
através da busca por uma verdadeira liberdade no uso do tempo, da afirmação
individual e da constituição de uma espécie de comunidade. (só que tais micro‐
comunidades recompõem, à margem da sociedade desenvolvida, um primitivismo em
que a miséria recria inelutavelmente a hierarquia no bando. Esta hierarquia, que
somente pode se afirmar‐se na luta contra outros bandos, isola cada bando e, em cada
bando, o indivíduo.) Para escapar a essa contradição, o blousons noirs deverá
finalmente trabalhar para comprar mercadorias – e aí, todo um setor da produção é
expressamente dedicado à sua recuperação como consumidor (motos, guitarras
elétricas, vestuário, discos, etc) –, ou brigar contra as leis da mercadoria, seja de modo
primário, roubando‐as, seja de modo consciente, elevando‐se à crítica revolucionária
do mundo da mercadoria. O consumo adoça os hábitos desses jovens revoltados, e sua
revolta transforma‐se no pior dos conformismos. O mundo dos blousons noirs não tem
outra saída a não ser a tomada de consciência revolucionária ou a cega obediência
dentro das fábricas.
Os provos constituem a primeira forma que ultrapassou a experiência dos
blousons noirs, a organização da sua primeira expressão política. Eles nasceram ao
sabor de um encontro entre alguns detritos da arte decomposta em busca de sucesso
e uma massa de jovens revoltados em busca de afirmação. Sua organização permitiu a
estes e aqueles avançar e ter acesso a um novo tipo de contestação. Os "artistas"
trouxeram algumas tendências, ainda muito mistificadas, para o jogo, acompanhadas
de um caos ideológico; os jovens rebeldes só dispunham da violência da sua revolta.
Desde o momento em que sua organização foi formada, as duas tendências
permaneceram distintas. A massa sem teoria viu‐se imediatamente sob a tutela de
uma camada pequena de dirigentes suspeitos, que tentam preservar seu "poder" pela
secreção de uma ideologia “provotarista”. Em vez da violência dos blousons noirs
passar para o plano das idéias numa tentativa de deixar para trás a arte, foi o
reformismo neo‐artístico que venceu. Os provos são a expressão do último reformismo
produzido pelo capitalismo moderno: o da vida cotidiana. Enquanto é evidente que
será necessário nada menos do que uma revolução ininterrupta para mudar a vida, a
hierarquia provo acredita – da mesma forma que Berstein acreditava na possibilidade
de transformar o capitalismo em socialismo através de reformas – que basta implantar
algumas melhorias para que a vida cotidiana seja modificada. Os provos, ao optarem
pelo fragmentismo, acabaram por aceitar a totalidade. Para se firmarem numa base,
os dirigentes inventaram a ridícula ideologia do provotariado (uma salada artístico‐
política inocentemente montada a partir dos restos mofados de uma festa que eles
não conheceram), destinada, segundo eles, a se opor à pretensa passividade e ao
aburguesamento do proletariado. A tese favorita de todos os cretinos do século.
Porque perdem o ânimo de transformar a totalidade, eles desanimam também das
forças que – somente elas – trariam a esperança de uma possível superação total. O
proletariado é o motor da sociedade capitalista e, portanto, seu perigo mortal. Tudo
deve ser feito para reprimi‐lo (partidos, sindicatos burocratas, polícia – mais
freqüentemente do que contra os provos ‐, a colonização de toda a sua vida), pois ele
é a única força realmente ameaçadora. Os provos nada entenderam disso e, assim,
permanecem incapazes de realizar a crítica do sistema de produção, ficando, portanto,
prisioneiros de todo o sistema. E quando, durante um distúrbio operário anti‐sindical,
sua base juntou‐se à violência direta, os dirigentes perderam completamente o
controle do movimento e, em seu desatino, nada acharam de melhor para fazer do
que denunciar os “excessos” e conclamar ao pacifismo, renunciando lamentavelmente
a seu programa: provocar as autoridades para mostrar a elas o caráter repressivo
(gritando que eles estavam sendo provocados pela polícia). O cúmulo foi quando,
através do rádio, eles pediram aos jovens baderneiros para se deixarem educar pelos
“provos”, isto é, pelos dirigentes que demonstraram amplamente que seu vago
“anarquismo” não passava de mais uma mentira. A base rebelada dos provos só
poderá passar à crítica revolucionária no momento em que começar a se revoltar
contra seus chefes, o que significa unir‐se às forças revolucionárias objetivas do
proletariado e livrar‐se de um Constant, o artista oficial da Holanda Monárquica, ou de
um De Vries, um fracassado parlamentar admirador da polícia inglesa. Somente então
os provos poderão se integrar à contestação moderna autêntica, que já possui uma
base real no meio deles. Se quiserem realmente transformar o mundo, devem se livrar
daqueles que querem se contentar apenas em pintá‐lo de branco.
Ao se revoltarem contra seus estudos, os estudantes norte‐americanos
colocaram imediatamente em questão uma sociedade que necessita de tais estudos,
da mesma forma que a sua revolta (em Berkeley e outros lugares) contra a hierarquia
universitária afirmou‐se, de cara, como uma revolta contra todo o sistema social
baseado na hierarquia e na ditadura da economia e do Estado. Recusando‐se a
integrarem as empresas para as quais, naturalmente, seus estudos especializados se
destinavam, eles colocam profundamente em questão um sistema de produção em
que todas as atividades e o produto destas escapam totalmente de seus autores.
Assim, tateando em meio a uma confusão ainda muito grande, a juventude rebelada
norte‐americana chega ao ponto de procurar dentro da “sociedade da abundância”
uma alternativa revolucionária coerente. Ela continua fortemente atada aos dois
aspectos relativamente acidentais da crise norte‐americana: os negros e o Vietnã. E as
pequenas organizações que constituem a “Nova Esquerda” muito se ressentem disso.
Se, naquilo que diz respeito à forma, se faz sentir uma autêntica exigência de
democracia, a fraqueza de seu conteúdo subversivo as leva a recair em perigosas
contradições. A hostilidade à política tradicional das velhas organizações é facilmente
recuperada pela ignorância do mundo político, que se traduz por uma enorme falta de
informações, e por ilusões sobre aquilo que realmente se passa no mundo. A
hostilidade abstrata à sua sociedade leva as militâncias a admirar e apoiar seus
aparentes inimigos, isto é, as burocracias ditas socialistas, China ou Cuba. Assim,
encontramos num grupo como o Resurgence Youth Movement uma manifestação pela
morte do Estado e, simultaneamente, um elogio à “revolução cultural” executada pela
mais gigantesca burocracia dos tempos modernos: a China de Mao. Da mesma forma,
sua organização semilibertária e não diretiva corre o risco de, a qualquer momento,
por absoluta falta de conteúdo, recair na ideologia da “dinâmica dos grupos” ou no
mundo fechado das seitas. O consumo de drogas em massa é a expressão de uma
miséria real e o protesto contra essa miséria real: é a busca enganosa de liberdade
num mundo sem liberdade, a crítica religiosa de um mundo que já superou a religião.
Não é por acaso que a encontramos sobretudo nos meios beatniks (que é a direita dos
jovens revoltados), lares da recusa ideológica e da aceitação das mais fantásticas
superstições (zen, espiritismo, misticismo da New Church e outras podridões como o
ghandismo ou o humanismo...). Na sua busca por um programa revolucionário, os
estudantes norte‐americanos cometem o mesmo erro dos provos ao se proclamarem
“a classe mais explorada da sociedade”. Eles devem, desde já, compreender que seus
próprios interesses não são diferentes dos interesses de todos aqueles que sofrem a
opressão generalizada e a escravidão mercantil.
No Leste, o totalitarismo burocrático também já começa a gerar suas forças
negativas. A rebelião dos jovens lá é mais particularmente virulenta e conhecida
somente através das denúncias feitas pelos diferentes órgãos do “aparelho” ou das
medidas policiais que ele toma para contê‐la. Assim, somos informados que uma parte
da juventude não “respeita” mais a ordem moral e familiar (tal como essa ordem se
apresenta sob a sua forma burguesa mais detestável), entrega‐se à “libertinagem”,
despreza o trabalho e não obedece mais à polícia do partido. E, na antiga União
Soviética, nomeia‐se um ministro para a tarefa de combater o hooliganismo.
Mas, paralelamente a essa revolta difusa, uma contestação mais elaborada
tenta se afirmar e grupos ou pequenas revistas clandestinas surgem e somem ao sabor
das flutuações da repressão policial. O fato mais relevante foi a publicação pelos
jovens poloneses Kuron e Modzelewski de sua Carta Aberta ao Partido Operário
Polonês. No texto, eles afirmam expressamente a necessidade da “abolição das
relações sociais atuais” e constatam que, para atingir tal objetivo, “a revolução é
inelutável”. A intelligentsia dos países do Leste procura atualmente tornar conscientes
e formular claramente os motivos dessa crítica que os operários concretizaram em
Berlim Oriental, Varsóvia e Budapeste, a crítica proletária ao poder da classe
burocrática. Essa revolta sente profundamente a desvantagem de expor, de imediato,
os problemas reais e sua solução. Se, nos outros países, o movimento é possível, mas o
objetivo permanece mistificado, nas burocracias do Leste a contestação não tem
ilusões e seus objetivos são conhecidos. Trata‐se, para ela, de inventar as formas da
sua realização e abrir o caminho que leva a isto.
Quanto à revolta dos jovens ingleses, ela encontra sua primeira expressão
organizada no movimento antinuclear. Essa luta particular, reunida em torno do vago
programa do Comitê dos Cem – que conseguiu reunir até 300 mil manifestantes ‐,
cumpriu o seu mais belo gesto durante o verão de 1963, com o escândalo RSG6[13].
Ela só podia mesmo arrefecer por falta de perspectivas, sendo recuperada pelos restos
da política tradicional e pelas belas almas pacifistas. O arcaísmo do controle da vida
cotidiana, uma característica da Inglaterra, não conseguiu resistir ao assalto do mundo
moderno, e a decomposição acelerada dos valores seculares criou tendências
profundamente revolucionárias na crítica de todos os aspectos do modo de vida.[14] É
preciso que as exigências dessa juventude possam se reunir à resistência de uma classe
operária considerada uma das mais combativas do mundo, a dos shopstewards e das
greves selvagens, e a vitória de sua luta somente poderá ser atingida dentro das
perspectivas comuns. O esfacelamento da social democracia no poder dá mais uma
chance para a realização desse encontro. As explosões que ele provocará serão muito
mais fortes do que tudo o que se viu em Amsterdam. O distúrbio provotariano não
passará, diante delas, de uma brincadeira de criança. Somente daí poderá nascer um
verdadeiro movimento revolucionário, no qual as necessidades práticas terão
encontrado sua resposta.
O Japão é o único país industrializado desenvolvido onde essa fusão da
juventude estudantil com operários de vanguarda já aconteceu.
Zengakuren, a famosa Organização dos Estudantes Revolucionários, e a Liga dos
Jovens Trabalhadores Marxistas são as duas importantes organizações formadas sob a
orientação comum da Liga Comunista Revolucionária.[15] Essa formação tem já a
capacidade de resolver o problema da organização revolucionária de forma prática. Ela
combate, simultaneamente e sem ilusões, o capitalismo do Ocidente e a burocracia
dos países ditos socialistas. Ela já reúne alguns milhares de estudantes e operários
organizados numa base democrática e anti‐hierárquica, fundamentada na participação
de todos os membros em todas as atividades da organização. Assim, os revolucionários
japoneses são os primeiros do mundo a empreender desde já grandes lutas
organizadas, com um programa avançado e com ampla participação das massas.
Milhares de operários e estudantes saem às ruas, sem tréguas, e enfrentam
violentamente a polícia japonesa. No entanto, a LCR (Liga Comunista Revolucionária),
embora combatendo ambos com firmeza, não explica, concreta e completamente, os
dois sistemas. Ela ainda procura como definir com precisão a exploração burocrática,
da mesma forma que ainda não conseguiu formular explicitamente as características
de capitalismo moderno, a crítica da vida cotidiana e a crítica do espetáculo. A Liga
Comunista Revolucionária continua fundamentalmente uma organização política de
vanguarda, herdeira da melhor organização proletária clássica. Ela é atualmente a mais
importante formação revolucionária do mundo e deve ser, desde já, um dos pólos de
discussão e de reunião da nova crítica revolucionária proletária no mundo.
Criar finalmente a situação que torne impossível qualquer retorno
"Estar na vanguarda significa andar no passo da realidade."[16] A crítica radical
do mundo moderno deve agora ter como objeto e como objetivo a totalidade. Ela deve
inevitavelmente encarar o passado real deste mundo, aquilo que ele efetivamente é e
as perspectivas de sua transformação. É que, para podermos dizer toda a verdade do
mundo atual e, com mais razão, para formular o projeto de sua subversão total, é
preciso ter a capacidade de revelar toda a sua história oculta. Ou seja, ter uma visão
totalmente desmitificada e fundamentalmente crítica da história de todo o movimento
revolucionário internacional, inaugurada já faz um século pelo proletariado dos países
do Ocidente, e encarar seus "fracassos" e suas "vitórias".
"Esse movimento contrário ao conjunto da organização do velho mundo já se
acabou há muito tempo"[17] e fracassou. Sua última manifestação histórica foi a
derrota da revolução do proletariado na Espanha (em Barcelona, em maio de 1937).
No entanto, seus "fracassos" oficiais, assim como suas "vitórias" oficiais, devem ser
julgados à luz de seus prolongamentos, e suas verdades devem ser restabelecidas.
Podemos portanto afirmar que "existem derrotas que são vitórias e vitórias mais
vergonhosas que derrotas" (Karl Liebknecht, na véspera de seu assassinato). A primeira
grande "derrota" do poder proletário, a Comuna de Paris, é, na realidade, sua primeira
grande vitória pois, pela primeira vez, o proletariado primitivo afirmou sua capacidade
histórica de dirigir, de modo livre, todos os aspectos da vida social. Da mesma forma
que a sua primeira grande "vitória", a revolução bolchevique, é definitivamente a
derrota que lhe trouxe as conseqüências mais pesadas.
O triunfo da ordem bolchevique coincide com o movimento contra‐
revolucionário internacional que teve início com o esmagamento dos espartaquistas
pela "social democracia" alemã. O triunfo comum era mais profundo que sua aparente
oposição e essa ordem bolchevique não passava definitivamente de uma nova máscara
e de uma representação particular da ordem antiga. Os resultados da contra‐revolução
russa foram, internamente, o estabelecimento e o desenvolvimento de um novo modo
de exploração, o capitalismo burocrático estatal, e, externamente, a multiplicação de
seções da Internacional dita comunista, sucursais destinadas a defendê‐lo e disseminar
o seu modelo. O capitalismo, sob suas diferentes variantes burocráticas e burguesas,
reflorescia sobre os cadáveres dos marinheiros de Kronstadt, dos camponeses da
Ucrânia e dos operários de Berlim, Kiel, Turim, Xangai e, mais tarde, Barcelona.
A III Internacional, criada pelos bolcheviques aparentemente para lutar contra
os fragmentos da social democracia reformista da II Internacional e reagrupar a
vanguarda proletária nos "partidos comunistas revolucionários", estava
excessivamente ligada a seus criadores e aos interesses destes para poder realizar, em
qualquer lugar, a verdadeira revolução socialista. A II Internacional era, na realidade, a
verdade da III. O modelo russo logo se impôs às organizações operárias do Ocidente e
suas evoluções tornaram‐se uma única e mesma coisa. À ditadura totalitária da
burocracia, uma nova classe dirigente sobre o proletariado russo, correspondia, no
seio dessas organizações, o domínio de uma camada de burocratas políticos e sindicais
sobre a grande massa dos operários, cujos interesses se tornaram francamente
contraditórios com os dos burocratas. O monstro stalinista assombrava a consciência
operária, ao passo que o capitalismo, em vias de burocratização e
superdesenvolvimento, debelava suas crises internas e afirmava, com orgulho, sua
nova vitória, que ele pretende ser permanente. Uma mesma forma social,
aparentemente divergente e variada, está se apossando do mundo e os princípios do
velho mundo continuam a governar nosso mundo moderno. Os mortos continuam
assombrando os cérebros dos vivos.
No seio desse mundo, organizações pretensamente revolucionárias só ó
combatem de modo aparente, em seu próprio terreno, através das mais diversas
mistificações. Todas invocam ideologias mais ou menos petrificadas e, de fato, não
fazem mais do que participar da consolidação da ordem dominante. Os sindicatos e os
partidos políticos forjados pela classe operária para sua própria emancipação
tornaram‐se simples reguladores do sistema, a propriedade privada de dirigentes que
trabalham em prol de suas emancipações particulares e encontram um status dentro
da classe dirigente de uma sociedade que eles jamais pensam colocar em questão. O
programa real desses sindicatos e partidos apenas repete, de forma grosseira, a
fraseologia "revolucionária" e aplica, na realidade, palavras de ordem do mais
edulcorado reformismo, visto que o próprio capitalismo se torna oficialmente
reformista. Nos lugares onde conseguiram tomar o poder ‐ em países mais atrasados
que a Rússia ‐ isso só foi feito para reproduzir o modelo stalinista do totalitarismo
contra‐revolucionário.[18] Nos demais lugares, eles representam o complemento
estático e necessário[19] à auto‐regulação do capitalismo burocratizado. São a
contradição indispensável à conservação de seu humanismo policial. Por outro lado,
eles permanecem, em relação às massas operárias, os indefectíveis avalistas e os
incondicionais defensores da contra‐revolução burocrática, os dóceis instrumentos de
sua política estrangeira. Num mundo fundamentalmente mentiroso, eles são
portadores da mais radical mentira e trabalham em prol da perenidade da ditadura
universal da economia e do Estado. Como afirmam os situacionistas, "um modelo
social universalmente dominante que tende para a auto‐regulação totalitária é
combatido apenas aparentemente por falsas contestações colocadas sempre em seu
próprio terreno, ilusões que, pelo contrário, reforçam esse modelo. O pseudo‐
socialismo burocrático é a mais grandiosa das máscaras do velho mundo hierárquico
do trabalho alienado".[20] O sindicalismo estudantil não passa, dentro disso tudo, da
caricatura de uma caricatura, da burlesca e inútil repetição de um sindicalismo
degenerado.
A denúncia teórica e prática do stalinismo sob todas as suas formas deve ser a
obviedade de base de todas as futuras organizações revolucionárias. É claro que na
França, por exemplo, onde o atraso econômico ainda faz recuar a consciência da crise,
o movimento revolucionário somente poderá renascer sobre as ruínas do stalinismo
aniquilado. A destruição do stalinismo deve se tornar o Delenda Carthago da última
revolução da pré‐história.
Esta revolução deve, por sua vez, romper em definitivo com a sua própria pré‐
história e extrair toda a sua poesia do futuro. Os "bolcheviques ressuscitados" que
participam da farsa do "militantismo" dentro dos diferentes grupelhos de esquerda
são emanações bolorentas do passado e não anunciam o futuro de modo nenhum.
Destroços do grande naufrágio da "revolução traída", eles se apresentam na qualidade
de fiéis defensores da ortodoxia bolchevique: a defesa da União Soviética representa a
sua insuportável fidelidade e sua escandalosa renúncia.
Só mesmo nos famosos países subdesenvolvidos[21], onde eles próprios
ratificam o subdesenvolvimento teórico, podem ainda manter vivas suas ilusões. De
Partisans (órgão dos stalinistas‐trotskistas reconciliados) a todas as tendências e
semitendências que se digladiam por "Trotsky" no interior e no exterior da IV
Internacional, reina uma mesma ideologia revolucionarista, e uma mesma
incapacidade prática e teórica de compreender os problemas do mundo moderno.
Quarenta anos de história contra‐revolucionária os separam da revolução. Eles não
têm razão pois não estão mais em 1920 e, em 1920, eles já não tinham razão. A
dissolução do grupo "ultra‐esquerdista" Socialisme ou Barbarie, após sua cisão em
duas facções, "modernista cardanista” e "velho marxismo" (de Pouvoir Ouvrier), prova,
se necessário, que não pode haver revolução fora do moderno, nem pensamento
moderno fora da crítica revolucionária a ser reinventada.[22] Ela é significativa no
sentido de que qualquer separação entre esses dois aspectos recai, inevitavelmente,
seja no museu da pré‐história revolucionária acabada, seja na modernidade do poder,
isto é, na contra‐revolução dominante: Voz Operária ou Argumentos.
Quanto aos diversos grupelhos "anarquistas", prisioneiros em conjunto dessa
designação, eles nada possuem fora uma ideologia reduzida a um simples rótulo. O
incrível "Mundo Libertário", redigido evidentemente por estudantes, atinge o grau
mais fantástico de confusão e burrice. Essa gente tolera efetivamente tudo porquanto
se tolera mutuamente.
A sociedade dominante, que se orgulha de sua modernização permanente,
deve agora encontrar a quem falar, ou seja, a negação modernizada que ela mesma
produz: "Deixemos agora aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos e chorá‐
los”.[23] As desmistificações práticas do movimento histórico livram a consciência
revolucionária dos fantasmas que a assombravam: a revolução da vida cotidiana se
encontra frente a frente com as imensas tarefas que ela deve cumprir. A revolução, tal
qual a vida que ela anuncia, deve ser reinventada. Se o projeto revolucionário
permanece fundamentalmente o mesmo ‐ a abolição da sociedade de classes ‐ é
porque, em nenhum lugar, as condições nas quais ele é formado foram radicalmente
transformadas. Trata‐se de retomá‐lo com um radicalismo e uma coerência
fortalecidos pela experiência da falência de seus antigos portadores, a fim de evitar
que sua realização fragmentária acarrete uma nova divisão da sociedade.
A luta entre o poder e o novo proletariado só podendo acontecer na sua
totalidade, o futuro movimento revolucionário deve abolir, em seu seio, tudo aquilo
que tende a reproduzir os produtos alienados do sistema mercantil.[24] Ele deve ser,
simultaneamente, a crítica viva e a negação desse sistema, e é essa negação que traz
em si todos os elementos possíveis da ultrapassagem. Como bem percebeu Lukács
(mas para aplicá‐lo a um objeto que não era digno dele: o partido bolchevique), a
organização revolucionária é essa mediação necessária entre a teoria e a prática, entre
o homem e a história, entre a massa dos trabalhadores e o proletariado constituído
em classe. As tendências e divergências "teóricas" devem ser imediatamente
transformadas em questão de organização se quiserem indicar o caminho de sua
realização. A questão da organização será o julgamento derradeiro do novo
movimento revolucionário, o tribunal perante o qual será julgada a coerência de seu
projeto essencial: a realização internacional do poder absoluto dos Conselhos
Operários, da forma como foi esboçado pela experiência das revoluções proletárias
desse século. Uma organização dessas deve priorizar a crítica radical de tudo aquilo
que fundamenta a sociedade que ela combate, a saber: a produção mercantil, a
ideologia sob todas as suas máscaras, o Estado e as separações que ele impõe.
A cisão entre a teoria e a prática foi o rochedo contra o qual veio se arrebentar
o velho movimento revolucionário. Apenas os maiores momentos das lutas proletárias
ultrapassaram essa cisão para encontrar a sua verdade. Nenhuma organização jamais
realizou tal salto. A ideologia, tão "revolucionária" quanto é possível ser, está sempre a
serviço dos mestres, o sinal de alarme que denuncia o inimigo disfarçado. Eis porque a
crítica da ideologia deve ser, em última análise, o problema central da organização
revolucionária. Só o mundo alienado produz a mentira, e esta não poderia ressurgir no
interior daquilo que pretende carregar a verdade social sem que essa organização se
transforme, ela própria, em mais uma mentira num mundo fundamentalmente
mentiroso.
A organização revolucionária que projeta realizar o poder absoluto dos
Conselhos Operários deve ser a instância na qual são esboçados todos os aspectos
positivos desse poder. Assim, ela deve travar um combate mortal contra a teoria
organizacional leninista. A revolução de 1905 e a organização espontânea dos
trabalhadores russos em sovietes já era uma crítica em atos[25] dessa nefasta teoria.
Entretanto, o movimento bolchevique insistia em acreditar que a espontaneidade
operária não poderia ultrapassar a consciência "sindicalista", e era incapaz de captar a
"totalidade". O que equivalia a decapitar o proletariado para permitir ao partido
tornar‐se o "cabeça" da revolução. Não se pode contestar, de modo tão impiedoso
quanto fez Lênin, a capacidade histórica do proletariado de se emancipar por si
mesmo, sem contestar sua capacidade de gerir totalmente a sociedade futura. Dentro
de tal perspectiva, o lema "todo o poder aos sovietes" não significava nada mais do
que a conquista dos sovietes pelo Partido, a instauração do Estado do Partido no lugar
do "Estado" definhante do proletariado armado.
No entanto, esse é o lema que deve ser radicalmente retomado, livrando‐o do
oportunismo bolchevique. O proletariado só pode se dedicar ao jogo da revolução se o
objetivo for ganhar todo um mundo, caso contrário, não é coisa nenhuma. A forma
única de seu poder, a autogestão generalizada, não pode ser compartilhada com
nenhuma outra força. Sendo ele a dissolução efetiva de todos os poderes, não haveria
como tolerar nenhuma limitação (geográfica ou outra). Os compromissos que ele
aceitasse se transformariam imediatamente em comprometimentos, em renúncias. "A
auto gestão deve ser simultaneamente o meio e o fim da luta atual. Ela é não somente
aquilo que está em jogo na luta, mas também a sua forma adequada. Ela é, em relação
a si mesma, a matéria que ela trabalha assim como sua própria pressuposição."[26]
A crítica unitária do mundo é a garantia da coerência e da verdade da
organização revolucionária. Tolerar a existência de sistemas de opressão (por usarem a
velha farda "revolucionária", por exemplo) em qualquer ponto do mundo é reconhecer
a legitimidade da opressão. Da mesma forma, quando ela tolera a alienação numa
esfera da vida social, ela está reconhecendo a fatalidade de todas as reificações. Não
basta ser a favor do poder abstrato dos conselhos operários, é preciso mostrar o
significado correto deles: a supressão da produção mercantil e, portanto, do
proletariado. A lógica da mercadoria é a primeira e a última racionalidade das
sociedades atuais, ela é a base da autoregulação totalitária dessas sociedades
comparáveis a quebra‐cabeças cujas peças, aparentemente tão distintas, são, na
verdade, equivalentes. A reificação mercantil é o obstáculo essencial para uma
emancipação completa, para a livre construção da vida. No mundo da produção
mercantil, a práxis não é perseguida em função de um determinado objetivo de modo
autônomo, mas sob as diretrizes de forças externas. E, se as leis econômicas parecem
se tornar uma nova espécie de leis naturais, é porque a sua força repousa unicamente
na "ausência de consciência por parte daqueles que dela participam".
O princípio da produção mercantil é a perda de si dentro da criação caótica e
inconsciente de um mundo que escapa completamente a seus criadores. O núcleo
radicalmente revolucionário de auto gestão generalizada é, pelo contrário, a direção
consciente, por todos, do conjunto da vida. A auto gestão da alienação mercantil
tornaria todos os homens meros programadores da sua própria sobrevivência: é a
quadratura do círculo. A tarefa dos conselhos operários não será, portanto, a auto
gestão do mundo existente mas a transformação qualitativa e ininterrupta deste: a
superação concreta da mercadoria (enquanto gigantesco desvio da produção do
homem por ele mesmo).
Essa superação envolve, naturalmente, a supressão do trabalho e sua
substituição por um novo tipo de atividade livre: a abolição, portanto, de uma das
cisões fundamentais da sociedade moderna, entre um trabalho cada vez mais reificado
e um lazer passivamente consumido. Grupelhos atualmente em liquidação, como S. ou
B., ou o PO[27], embora unidos sob a palavra de ordem moderna do poder operário,
continuam a seguir, nesse ponto central, o velho movimento operário no caminho do
reformismo do trabalho e de sua "humanização". É o próprio trabalho que devemos
hoje atacar. Longe de ser uma "utopia", sua supressão é a primeira condição para a
ultrapassagem efetiva da sociedade mercantil, para a abolição ‐ dentro da vida
cotidiana de cada um ‐ da separação entre o "tempo livre" e o "tempo de trabalho",
setores complementares de uma vida alienada, onde se projeta indefinidamente a
contradição interna da mercadoria entre valor de uso e valor de troca. É somente além
dessa oposição que os homens poderão fazer da sua atividade vital um objeto de sua
vontade e de sua consciência, e contemplar a si mesmos num mundo que eles próprios
criaram. A democracia dos conselhos operários é o enigma resolvido de todas as
separações atuais. Ela torna "impossível tudo aquilo que existe fora dos indivíduos".
A dominação consciente da história pelos homens que a constroem, eis todo o
projeto revolucionário. A história moderna, como toda a história passada, é o produto
da práxis social, o resultado ‐ inconsciente ‐ de todas as atividades humanas. Vivendo a
época da sua dominação totalitária, o capitalismo produziu aquela que é sua nova
religião: o espetáculo. O espetáculo é a realização terrestre da ideologia. Nunca o
mundo funcionou tão bem de cabeça para baixo. "E, como a 'crítica da religião', a
crítica do espetáculo é hoje a primeira condição para qualquer crítica."[28]
É que o problema da revolução é historicamente colocado para a humanidade.
A acumulação cada vez mais grandiosa dos meios materiais e técnicos só pode se
comparar à insatisfação à cada vez mais profunda de todos. A burguesia e sua herdeira
no Leste, a burocracia, não podem ter o modo de uso desse superdesenvolvimento
que será a base da poesia do futuro, precisamente porque ambas trabalham no
sentido da manutenção de uma ordem antiga. Elas detêm, no máximo, o segredo de
seu uso policial. Elas só fazem acumular o capital e, portanto, o proletariado. Proletário
é aquele que não tem poder algum sobre sua vida, e que sabe disso. A chance histórica
do novo proletariado é de ser o único herdeiro conseqüente da riqueza sem valor do
mundo burguês, que transforma e supera, no sentido do homem total perseguindo a
apropriação total da natureza e da sua própria natureza. Essa realização da natureza
do homem só pode ter sentido através da satisfação ilimitada e da multiplicação
infinita dos desejos reais que o espetáculo recalca e expulsa para as zonas longínquas
do inconsciente revolucionário, desejos que ele é capaz de realizar somente na
fantasia, no delírio onírico de sua publicidade: É que a realização efetiva dos desejos
reais, ou seja, a abolição de todas as pseudo‐necessidades e desejos que o sistema cria
cotidianamente para perpetuar seu poder, não pode acontecer antes da supressão do
espetáculo mercantil e da sua positiva superação.
A história moderna só pode ser liberada, e suas inúmeras aquisições só
poderão ser livremente utilizadas, através da ação das forças que ela reprime: os
trabalhadores sem poderes sobre suas condições, sobre o sentido e o produto de suas
atividades. O proletariado, que já era, no século XIX, o herdeiro da filosofia, tornou‐se
agora, além disso, o herdeiro da arte moderna e da primeira crítica consciente da vida
cotidiana. Ele não pode se suprimir sem realizar, ao mesmo tempo, a arte e a filosofia.
Transformar o mundo e mudar a vida são para ele a única e a mesma coisa, as palavras
de ordem inseparáveis que acompanharão sua supressão, como classe, a dissolução da
sociedade presente, como reino da necessidade, o acesso enfim possível ao reino da
liberdade. A crítica radical e a livre reconstrução de todas as condutas e valores
impostos pela realidade alienada são seu programa máximo, e a criatividade liberada
na construção de todos os momentos e eventos da vida é a única poesia que ele irá
reconhecer, a poesia feita para todos, o início da festa revolucionária. As revoluções
proletárias serão festas ou não serão nada, pois a vida que anunciam será, ela própria,
criada sob o signo da festa. O jogo é a última racionalidade dessa festa, viver sem
tempo morto e gozar, sem impedimentos, são as únicas regras que ele poderá
reconhecer.
Strasbourg, novembro de 1966.
[1]Estes conceitos ‐ espetáculo, papel desempenhado etc. ‐ são utilizados aqui no
sentido situacionista
[2] Quando não estão a cagar‐lhe na cara, estão a mijar‐lhe no rabo
[3] Mas sem a consciência revolucionária. O operário não tinha a ilusão de ser
promovido.
[4] Não estamos falando da cultura da École Normale Supèrieure ou da Sorbonne, mas
da cultura dos enciclopedistas ou de Hegel.
[5] Sem coragem para se confessar adeptos do liberalismo filisteu, eles inventam para
si mesmos referências nas liberalidades universitárias da Idade Média, época da
“democracia da não‐liberdade”.
[6] Conforme a Internationale Situacionniste n.9 (redação: caixa postal 307.03, Paris).
Correspondência com um Ciberneticista e o panfleto situacionista A Tartaruga na
Vitrine, contra o neo‐professor Abrham Moles.
[7] Ver A Luta Sexual dos Jovens e A Função do Orgasmo.
[8] Para o restante da população, a camisa‐de‐força é necessária para fazê‐la
comparecer, na sua fortaleza, perante o psiquiatra. Para o estudante, basta anunciar
que os postos avançados de controle estão abertos no gueto: ele acorrerá com tal
frenesi que a distribuição de senhas será necessária.
[9] Sobre a gangue argumentista e o desaparecimento de seu órgão (a revista
Arguments) ver o panfleto Na Lata do Lixo da História, divulgado pela Internacional
Situacionista em 1963.
[10] A esse respeito, nnca será demais recomendar a solução, já praticada pelos mais
inteligentes, que consiste em roubá‐los.
[11] Ver as últimas aventuras da UEC (União dos Estudantes Comunistas) e de seus
homólogos cristãos, com suas respectivas hierarquias. Elas demonstram que a única
unidade entre todas essas pessoas reside na submissão incondicional aos seus
mestres.
[12] No sentido que o jovem não somente sente, mas quer expressar.
[13] Quando os partidários do movimento antinuclear descobriram a existência de
abrigos nucleares ultra‐secretos reservados aos membros do governo, tornaram o fato
público e, em seguida, os invadiram.
[14] Pensamos aqui na excelente revista Heatwave, cuja evolução parece orientar‐se
para um radicalismo cada vez mais rigoroso. Endereço: 13, Redclife Rd., Londres,
Inglaterra.
[15] Kaihosha: c/o Dairyuso, 3 Nakanoekimae, Tóquio, Japão. Zengakuren: Hirota
Building 2 ‐ 10, Kandajimbo, Chyioda‐Ku, Tóquio, Japão.
[16] Internationale Situationniste n. 8
[17] Internationale Situationniste, n 7.
[18] Sua efetiva realização é tender a industrializar o país por meio da clássica
acumulação primitiva às custas do camponês. E fazer isso de uma forma acelerada pelo
terror burocrático.
[19] Há mais de 45 anos que, na França, o partido dito comunista não dá um passo em
direção à tomada do poder. O mesmo acontece em todos os países desenvolvidos,
onde o exército dito vermelho não chegou.
[20] “Lutas de classe na Argélia”, Internationale Situationiste, n. 10.
[21] Sobre seu papel na Argélia, ver “Lutas de Classe na Argélia”, Internationale
Situationiste, n. 10.
[22] Internationale Situationiste, n. 9.
[23] Internationale Situationiste, n. 10.
[24] Definido pela permanência do trabalho‐mercadoria.
[25] Depois da crítica teórica empreendida por Rosa Luxemburgo.
[26] “Lutas de classe na Argélia”, Internationale Situationiste, n. 10.
[27] Socialismo ou Barbárie, Poder Operário etc. Um grupo como o ICO, pelo contrário,
ao se proibir qualquer organização e uma teoria coerente, fica condenado à
inexistência.
[28] Internationale Situationiste, n. 9.