A missão jesuíta de Cabo Verde e o islamismo na Guiné (1607-1616) - Thiago Henrique Mota

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    A misso jesuta de Cabo Verde e o islamismo na Guin (1607-1616)Thiago Henrique Mota

    TemporalidadesRevista Discente do Programa de Ps-Graduao em Histria da UFMGVol. 5, n. 2, Mai/Ago - 2013 ISSN: 1984 -6150 www.fafich.ufmg.br/temporalidades Pgina | 137

    A misso jesuta de Cabo Verde e o islamismo naGuin (1607-1616)

    Thiago Henrique MotaMestrando em HistriaUFF

    [email protected]

    RESUMO:O presente artigo, decorrente de pesquisa em curso, objetiva analisar a obraEtipia Menor e descrio geogrfica da provncia da Serra Leoa, elaborada pelo jesuta portugusManuel lvares entre sua chegada misso de Cabo Verde (1607) e seu falecimento (1616).Buscamos destacar os conflitos vivenciados pelo missionrio frente presena e atuaoislmica na Guin, no tocante regio dos rios Senegal e Gmbia. Buscamos compreendero desempenho dos missionrios inacianos luz das necessidades do Imprio portugus e

    da recesso econmica de Cabo Verde. As fragilidades da misso jesuta, como o baixocontingente de padres e o envolvimento destes em questes comerciais e polticas, sosomadas aos conflitos com agentes islamizados que, em situao anloga, interessam-sepela converso das populaes ao islamismo e pelos benefcios econmicos e polticosatrelados s prticas religiosas.

    PALAVRAS-CHAVE:Padre Manuel lvares, islamismo africano, Imprio portugus.

    ABSTRACT: This article is part of research in development and aims to analyses thePortuguese Jesuit Manuel lvares narrative Etipia Menor e descrio geogrfica da provncia daSerra Leoa, elaborated between his arrived in the mission of Cape Verde (1607) and hisdeath (1616). We highlight the conflicts lived by the missionary face to the Islamic presence

    and agency in Guinea, especially in Senegal and Gambia rivers. We look for to understandthe missionaries performance dealing with the necessities of the Portu guese Empire andthe economic recession in Cape Verde. The fragilities of Jesuit mission in Guinea, like thelow contingent of priests and their engagement in commercial and political questions, areadded to conflicts with Islamized agents who, in similar situations, are interested in theconversion of peoples to Islam and its economical and political benefits linked to religiouspractices.

    KEYWORDS:Father Manuel lvares, African Islam, Portuguese Empire.

    Em 27 de setembro de 1540, em Roma, o papa Paulo III ratificava a bula Regimini

    militantis ecclesiae, dando existncia formal a uma das mais famosas ordens religiosas de

    todos os tempos: a Companhia de Jesus. Anos antes, em 1534, sete amigos no Senhor,

    dentre eles Incio de Loyola, tomaram a deciso de ir a Jerusalm, tomada pelos turcos

    otomanos, e oferecer-se ao papa para serem usados naquilo que lhe parecesse melhor. Em

    1535, mais trs homens juntaram-se ao grupo inicial, compondo aqueles que, depois,

    seriam os primeiros jesutas. A converso ao cristianismo e o auxlio aos necessitados

    foram os principais objetivos da ordem e, dentre os variados tipos que lhe compunham o

    O autor agradece agncia CAPES pela bolsa oferecida para a realizao do cu rso de mestrado.

    mailto:[email protected]:[email protected]:[email protected]
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    pblico alvo, destacam-se os turcos ou outros infiis, mesmo aqueles que vivem na regio

    chamada ndia ou quaisquer herticos, cismticos ou qualquer fiel1. Em 1539, porm,

    antes da ratificao da ordem, Paulo III censurou o desejo dos autodenominados membros

    da Companhia de Jesus de ir Terra Santa, afirmando que poderiam exercer suas atividades

    ali mesmo, em Roma.2

    No obstante, se a Terra Santa no se configurou como espao de embate entre

    jesutas e muulmanos, os confrontos entre diferentes sagrados desenvolveram-se noutras

    partes. Na ndia, o choque cristo com os ismaelitas constante: na documentao do

    Tribunal do Santo Ofcio de Goa, rea de misso jesuta, frequentemente se encontram

    relatos acerca do uso de trajes muulmanos e outras manifestaes heterodoxas dos

    cristos nativos, alm de prticas consideradas herticas ou idlatras pelos religiosos 3.

    Outro ponto de contato entre jesutas e mouros foi o continente africano,

    acentuadamente na costa da Guin.

    Roma tornou-se o centro da ao jesuta, que logo se dispersou pelo mundo.

    Como todas as ordens mendicantes, os inacianos pronunciavam os votos de pobreza,

    castidade e obedincia e, diferindo-se das demais, um voto especial a Deus,

    comprometendo-se a percorrer qualquer lugar do mundo para exercer os ministrios, logo

    que ordenados pelo papa. Esse quarto voto confrontou a Companhia com o problema

    fundamental da disperso de seus membros, destacado na partida do missionrio Francisco

    Xavier, rumo a Lisboa e, posteriormente, ao Oriente portugus. As necessidades de

    integrao e mobilidade exigiram a elaborao de uma arquitetura governativa que

    possibilitasse a centralizao da ordem e o contato constante com suas provncias mais

    perifricas. Numa poca em que o registro escrito firmava-se como instrumento essencial

    ao exerccio do poder, a Companhia de Jesus encontrou soluo para o problema da

    1 Constituies, apud OMALLEY, John W. Os primeiros jesutas. So Leopoldo: Editora da Unisinos. Bauru:Edusc. 2004. p. 22. Os turcos so muulmanos turco -otomanos que conquistaram Jerusalm, partes daEuropa Oriental e do Norte da frica, formando o Imprio Otomano, grande potncia poltica do perodomoderno. Muitas vezes, o termo turco utilizado em crnicas europeias para designar, de modo geral,muulmanos, sejam ou no integrantes dos domnios deste imprio, destacadamente na regio da Guin,perifrica s possesses otomanas.2OMALLEY, J . Os primeiros jesutas, p.61-62.3 GOMIDE, Ana Paula Sena. Inquisidores e jesutas em defesa do catolicismo: a experincia imperialportuguesa na ndia (sculos XVI-XVII). Revista 7 Mares, Niteri, ano 01, n.1, out. 2012, p.53.

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    disperso no estabelecimento de um complexo sistema de circulao de informaes

    atravs de cartas.4

    Trata-se de correspondncia oriunda de todas as partes do mundo trocadas pelos

    missionrios e centralizada em Roma, sobretudo a partir do ordenamento institucional daCompanhia, em 1558, atravs de suas Constituies, que estabeleceram o modo de proceder

    jesuta. Atravs das cartas, foi possvel garantir ao concertada dos missionrios,

    estivessem no Brasil ou na Guin. Alm disso, as missivas serviam a fins como publicidade

    da Companhia, anncio de vocaes, alcance de benesses por meio de mercs, estmulo

    f e oferecimento de conforto aos religiosos em misso, na solido das distncias

    percorridas.

    A principal documentao5

    aqui analisada produto desse processo de disperso einstitucionalizao da Companhia de Jesus e do contato com o muulmano e suas

    perspectivas religiosas e temporais, na frica. Tivemos acesso a Etipia Menor e Descrio

    Geogrfica da Provncia da Serra Leoa, de autoria do jesuta portugus Manuel lvares, atravs

    do site da African Studies Collectionda Universidade de Wisconsin6. O documento original7

    foi transcrito por Avelino Teixeira da Mota e Lus de Matos e encontra-se traduzido do

    portugus para o ingls por Paul Edward Hendley Hair. Em 1990, a traduo foi

    disponibilizada a um reduzido nmero de pesquisadores, na expectativa de que uma edio

    completa fosse publicada em Lisboa, juntamente com o texto original 8. Entretanto, tal

    publicao ainda no aconteceu e o referido material datilografado foi digitalizado e

    disponibilizado onlinepelo University of Wisconsin Digital Collections Center.

    4PALOMO, Frederico. Corregir letras para unir espiritus. Los jesuitas y las cartas edificantes em el Portugaldel siglo XVI. Cuadernos de Historia ModernaAnejo IV. Madrid: Universidad Complutense de Madrid. 2005,p. 58-595Alm da crnica de Manuel lvares, dedicaremos ateno aos textos de Andr lvares de Almada TratadoBreve dos Rios da Guin do Cabo Verdee Andr Donelha Descrio da Serra Leoa e dos Rios da Guin do CaboVerde. Embora muito ricos e importantes, esses textos sero trabalhados como fontes de apoio, visto quenosso foco central encontra-se na documentao missionria jesuta.6 Disponvel em: http://uwdc.library.wisc.edu/collections/AfricanStudies, ltimo acesso em 23/12/2012.Destaca-se que todas as citaes decorrentes desta fonte, apresentadas neste artigo, so tradues livres doautor.7Paul Hair afirma que a transcrio de Avelino Teixeira da Mota partiu do documento original, preservado noReal Convento de So Francisco, em Lisboa, muito embora Walter Rodney afirme tratar-se de uma cpia dosculo dezoito, conforme Hair. O manuscrito conta com 143 flios e encontra-se na Biblioteca da SociedadeGeogrfica de Lisboa, Res 3, E-7 (Cartas e Relaes, 1607, 1616), cf. ONEILL, Charles; DOMNGUEZ,

    Joaqun Mara (d iretores). Diccionario Histrico de la Compaa de Jess: Biogrfico-Temtico. Roma: InstitutumHistoricum, S.I.; Madrid: Universidad Pontificia Comillas, 2001.8 HAIR, Paul. Introduction. In: LVARES, Manuel. Eth iopia Minor and a geographical account of th e province of

    Sierra Leone (c.1625). Trad. para ingls e introduo: Paul Hair. Liverpool: Department of History, Universityof Liverpool, 1990, p. 06.

    http://uwdc.library.wisc.edu/collections/AfricanStudieshttp://uwdc.library.wisc.edu/collections/AfricanStudieshttp://uwdc.library.wisc.edu/collections/AfricanStudies
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    Manuel lvares nasceu em Torres Novas, Portugal, em 1580. Em 1604, ingressou

    na Companhia de Jesus, em Coimbra, depois de haver estudado oito anos de Cnones e um

    ano de Filosofia. Em 1607, passados trs anos do incio das atividades jesutas em Cabo

    Verde, Padre Manuel lvares embarcou rumo ao arquiplago, com destino ilha de

    Santiago, de onde partiu para o porto de Bissau, na costa ocidental do continente africano9.

    Ainda em 1607, em Serra Leoa, encontrou-se com Padre Baltazar Barreira, superior da

    misso, com quem conviveu at 1608, ano em que este regressou a Santiago. Em 1609,

    lvares visitou outro jesuta em misso na frica e, entre 1613 e 1614, manteve contato

    com missionrios agostinianos. Afora estes curtos intervalos, o inaciano trabalhou a maior

    parte do tempo sozinho, vindo a falecer em 1616 (ou 1617), esgotado pelo trabalho .10

    O texto Etipia Menor..., dedicado ao Superior Geral da Companhia de Jesus

    (1581-1615), Padre Cludio Acquaviva, composto por um conjunto de informaes

    geradas a partir das experincias do jesuta no continente africano e de subsdios por ele

    recolhidos. Acredita-se que sua escritura tenha sido iniciada em 1608, como procedimento

    para envio de informaes anuais, e que, nos anos seguintes, o autor tenha feito vrios

    acrscimos, sendo provvel que a maior parte tenha sido realizada entre 1612 e 1613. Ainda

    em 1614 e 1615, houve acrscimos decorrentes de informaes prestadas pelo jesuta ao

    superior da misso, em Cabo Verde, para elaborao das respectivas cartas nuas.11

    O texto encontra-se dividido em duas partes: a primeira trata das populaes

    residentes na regio dos Rios da Guin (bacia dos rios Senegal e Gmbia) e mais ao sul, nas

    imediaes de Cacheu, Bissau e Guinala (Santa Cruz), correspondentes ao territrio da

    atual Guin-Bissau. A segunda trata dos povos de Serra Leoa, rea delimitada poca pelo

    baixo Rio Scarcus, ao norte, Porto Loko, a leste, e pelo esturio da ribeira de Serra Leoa

    ao sul e oeste (atual baa de Tagrin).

    No que tange s regies dos Rios da Guin e s proximidades de Bissau, Cacheu e

    Guinala, o texto formado a partir das vivncias de lvares, reduzidas a algumas semanas

    de observao direta, entre 1607 e 1608, e informaes derivadas de outras fontes escritas e

    9 ONEILL, C., DOMNGUEZ, J. Diccionario Histrico de la Compaa de Jess, p. 90. Os autores chamam aateno para uma confuso de dados biogrficos operada por Barbosa Machado e C. Sommervogel, queconfundem o jesuta com um seu homnimo (1572-1665), professor de filosofia e teologia em vora eCoimbra. interessante notar que a biografia proposta do Paul Hair, partindo de Sommervogel e de dadosjesutas, mescla os dois personagens, at ribuindo ao jesuta a data de nascimento e as o cupaes docentes noensino de Filosofia e Teologia do professor, acrescentando-lhe os dados conhecidos a partir de fontesinacianas.10ONEILL, C., DOMNGUEZ, J. Diccionario Histrico de la Compaa de Jess, p.91. 11HAIR, P. Introduction. p.02-03.

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    orais. O missionrio teve contato com uma edio de cartas jesutas publicadas pelo

    inaciano Ferno Guerreiro, em 1611. A publicao traz uma verso sumarizada do Tratado

    breve dos rios da Guin do Cabo Verde(1594), do luso-cabo verdiano Andr lvares de Almada,

    alm de outras cartas que tratavam da misso de Cabo Verde at 1610. Hair acredita que

    esse material tenha chegado s mos de lvares em 1612, pois ele o cita em 1613.

    No tocante oralidade presente no texto, o jesuta afirma que as fontes de suas

    informaes precisas derivam de vrios amigos, to experientes e conhecedores do objeto

    [a costa da Guin] quanto confiveis, destacando a falibilidade das descries anteriores

    sobre a frica Ocidental, visto que, em sua opinio, a preciso [de tais escritos] depende

    menos da boa f daqueles que os compilam que da veracidade que deveria ser mantida por

    aqueles que providenciam informaes sobre matrias to exticas 12. Ao defender o

    compromisso de seus informantes, o autor justifica seu objetivo ao p roduzir o tratado, j

    que considerei o tema o mais agradvel e no sem interesse, do ponto de vista de ganhar

    conhecimento sobre pontos muito importantes em relao ao tpico da servido e sobre

    outras questes discutidas no tratado 13. Paul Hair destaca o contato constante com

    comerciantes portugueses e mestios nas comunidades luso-africanas, responsveis pelo

    envio de Etipia Menor...a Portugal, uma vez que o autor permaneceu com o texto at sua

    morte.14

    Referindo-se a Serra Leoa, a maior parte das informaes decorre de observao

    direta e convvio constante, visto que o missionrio atuou muitos anos nessa regio, na qual

    veio a falecer entre 1616 e 1617. Embora a segunda parte do documento apresente maior

    riqueza etnogrfica e preciso de detalhes que a primeira, deter-nos-emos na anlise desta,

    por buscarmos compreender as relaes da misso jesuta na Guin com os povos

    islamizados da Senegmbia.

    A Companhia de Jesus e a misso de Cabo Verde: algumas aproximaes

    A presena portuguesa na frica demandava colgios e seminrios, sobretudo

    tendo em vista o nmero reduzido de padres atuantes na diocese de Cabo Verde, fundada

    em 1533, que compreendia o arquiplago e a extenso costeira desde o rio Gmbia at o rio

    Santo Andr (atual rio Sassandra, na Costa do Marfim) 15. Em 1570, o rei D. Sebastio

    12LVARES, M.Ethiopia Minor Prologue to the Reader, s/p.13LVARES, M.Ethiopia MinorDedications.s/p.14HAIR, Paul. Introduction, p.4-5.15 RECHEADO, Carlene. As misses franciscanas na Guin (sculo XVII). Dissertao de mestrado. Lisboa:Especializao em Histria Moderna e dos Descobrimentos, da Universidade Nova de Lisboa, 2010, p.1.

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    (1557-1578) fixou renda anual de 200 mil ris para a criao de colgio em Cabo Verde,

    encarregando o bispo D. Francisco da Cruz do assunto, que no teve prosseguimento.16

    No final da dcada de 1580, o jesuta Sebastio de Morais escreveu ao Superior

    Geral da Companhia de Jesus, padre Cludio Acquaviva, informando que Mesa deConscincia e Ordens do reino de Portugal pretendia enviar uma misso costa da Guin,

    composta por jesutas portugueses e um padre jalofo vindo de So Tom, Juan Pinto,

    ordenado naquele reino sob a superviso inaciana. Morais afirma que Juan Pinto pretendia

    regressar sua terra para divulgar o evangelho na costa africana e acrescenta que, embora

    da nao Jalofo, ele um bom homem, de excelente senso comum, virtude e zelo pelas

    almas. Entretanto, o jesuta prossegue afirmando que a experincia mostra ser preciso

    manter os africanos sob o domnio portugus para que sua converso seja efetiva17. O

    inaciano acreditava na possibilidade de se criar uma misso jesuta em Cabo Verde, que

    contribuiria com a formao de clero local sob a superviso lusa e, para tanto, remeteu suas

    impresses ao Superior Geral, em Roma.

    Em 1595, o fidalgo da Casa Real e membro do Conselho de Estado, Lopes Soares

    de Albergaria, lembrava que

    Embora a Guin do Cabo Verde tenha sido descoberta antes do reino doCongo, Brasil e ndia e esta primeira descoberta tenha trazido ganhos

    para a Coroa deste reino e embora esta tanto ajude no descobrimento deoutros reinos, j que navios vem a esta parte obter suprimentos e gua,como pode ser visto esculpido em pedra viva na Serra Leoa, no Rio doMatimbo, embora seja este o caso, hoje a Guin permanece toesquecida quanto seu estado cristo (...).18

    O autor segue apresentando condies para o fortalecimento da cristandade na

    Guin, destacando o interesse dos negros na religio e o adiantado processo de latinizao

    em que se encontram, nas margens do rio So Domingos, em Cacheu, afirmando que

    muitos deles falam portugus e, de sua prpr ia e livre vontade, muitos receberam as guas

    do batismo, por viagem ilha de Santiago, para se tornarem cristos 19. A soluoapresentada pelo fidalgo, e com o aparente consentimento do bispo de Cabo Verde, D.

    Frei Pedro de Brando, seria a construo de um seminrio ou colgio na ilha de Santiago

    16______.As misses f ranciscanas na Guin..., p.11.17MORAIS, Sebastio. Carta do padre Sebastio de Morais para o Padre Geral da Companhia de Jesus. In:MOTA, Avelino Teixeira da; HAIR, Paul Edward Hedley. Jesuit documents on the Guinea of Cape Verde and theCape Verde Islands, 1585-1617: in English translation. Liverpool: Department of History, University ofLiverpool, 1989, s/p.18 ALBERGARIA, Lopes Soares de. Account of Guinea of Cape Verde and the college it would be

    appropriate to establish here, c.1559. In.: MOTA, Avelino. ; HAIR, Paul.Jesuit document ss/p.19______. Account of Guinea of Cape Verde

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    para receber os padres da Companhia de Jesus pois, a partir desse colgio, os missionrios

    poderiam pregar na costa da Guin, em cada povoao que fosse necessrio.20

    Caracterizando a necessidade de misses catlicas na frica Ocidental, com o fito

    de expandir e legitimar a presena lusa na costa daquele continente, o comerciante cabo-verdiano Andr Almada afirmava, em seu Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde, ser

    preciso olhar aquelas terras e perceber a cristandade que l se podia estabelecer, sobretudo

    tendo em vista as heresias que se desenvolviam na Europa. O autor tratava da Reforma

    Protestante e buscava convencer Felipe I da premncia de se enviarem clrigos para o

    continente africano, garantindo a colonizao da costa em busca de alternativas crise

    econmica vivenciada pelo arquiplago cabo-verdiano. Tal crise decorria da

    descentralizao do arquiplago no trato com a Guin. Reforando seu argumento, Almada

    comenta que h grande presena islmica na regio, que necessita ser combatida, sobretudo

    pelo fato desta seita, liderada pelos bexerins, estar em crescimento na costa .21

    Acreditamos que essa iniciativa deva ser analisada no conjunto do imprio

    portugus, tendo em vista a funo de posto avanado da colonizao muitas vezes

    desempenhado pela Igreja, no padroado lusitano22. Para tanto, cabe destacar a crise

    econmica vivenciada por Cabo Verde. Durante o sculo XVI, vigoraram as determinaes

    da Carta de Limitao de Privilgios, de 1472, que previa aos moradores do arquiplago o

    direito de comerciar na costa da Guin, at Serra Leoa, com as limitaes de negociar

    apenas produtos produzidos na ilha e destinarem-se costa africana em embarcaes

    prprias, por eles armadas e capitaneadas, sendo vedado estabelecimento de parcerias com

    estrangeiros e o atravessamento de produtos originrios de outras partes. Tal medida criava

    condies para consolidao da presena portuguesa naquelas ilhas, ligando os mercadores

    terra com o fito de produzir gneros a serem trocados por ouro, escravos e demais

    produtos na costa. Forma-se, ento, uma elite de terratenentes-mercadores.23

    Essa primeira elite era composta por membros da baixa nobreza portuguesa, que

    viram no comrcio com a costa da Guin a possibilidade de enriquecimento e inseriram-se

    nas tramas do poder local, buscando cargos camarrios e mantendo privilegiado canal de

    20ALBERGARIA, Lopes Soares de.. Account o f Guinea of Cape Verde 21FERRONHA, A. L. Tratado Breve dos Rios da Guin de Cabo Verde: feito pela capito Andr lvares de Almada, anode 1594.Lisboa: Grupo de Trabalho do Ministrio da Educao para as Comemoraes dos DescobrimentosPortugueses. 1994. p .132.22BOXER, Charles. O Imprio Martimo Portugus 1415-1825. So Paulo: Companhia das Letras. 2002.23 RIBEIRO, Francisco Aimara Carvalho. Terratenentes-Mercadores: trfico e sociedade em Cabo Verde, 1460-

    1613. 2011. 99 f. Dissertao (Mestrado em Histria Social) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio deJaneiro, 2011, p.30-37.

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    comunicao direta com o reino. Essa sociedade imperou durante a maior parte do sculo

    XVI e decaiu no XVII, quando o porto da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, perdeu

    importncia frente a Cacheu. A invaso da costa por piratas e a perda do monoplio sobre

    a regio para mercadores de Lisboa e Castela reduziram a participao Cabo Verde nas

    principais rotas de circulao mercantil.

    A decadncia do arquiplago levou seus moradores crena de que, para

    sobreviverem, deveriam colonizar a costa da Guin, caso contrrio, corriam o risco de

    perder o comrcio para os lanados e nativos. Os homens da ilha de Santiago fizeram

    povoao s margens do rio Cacheu (tambm conhecido como So Domingos) e enviaram

    Andr Almada a Portugal, como procurador de Santiago, com a incumbncia de tratar da

    colonizao de Serra Leoa. No conseguindo uma audincia, o Cavaleiro da Ordem de

    Cristo escreveu seu Tratado Breve, destinado a Felipe I, solicitando missionrios, padres e a

    colonizao da Guin. Seu relato rendeu frutos e, em julho de 1604, a Misso de Cabo

    Verde teve incio, quando quatro jesutas (trs sacerdotes e um irmo) desembarcaram no

    arquiplago.

    Acreditamos que um dos esforos para restabelecer a primazia cabo-verdiana no

    oeste africano possa ser notado na criao desta Misso, com o apoio do bispo e da elite

    local. Em dezembro do mesmo ano, o superior provincial, Padre Baltazar Barreira, dirigiu-

    se ao continente, onde, trs anos depois, encontrou-se com o recm-chegado jesuta,

    Manuel lvares. Embora o principal objetivo dos jesutas fosse construir um colgio 24, os

    inacianos logo se envolveram na economia local, o que representou uma de suas fraquezas.

    Vaniclia Santos afirma que os conflitos no trato de questes comerciais e religiosas,

    somados dificuldade encontrada diante do processo de expanso missionria muulmana,

    na Guin, restringiram o sucesso da misso jesuta25. A atividade missionria entrou em

    declnio com a morte de lvares, em 1616 (ou 1617), e foi formalmente finalizada em 1642.

    Presena muulmana na EtipiaMenor: misses em conflito

    24Em sua expanso pelo mundo, a Companhia se fez presente atravs d e dois tipos de estabelecimentos: oscolgios e as residncias, sendo que as segundas eram dependentes dos primeiros. As residncias nopossuam bens prprios e os missionrios que nelas habitavam viviam de doaes e de recursos fornecidospelos colgios. Estes eram a estrutura central das provncias jesutas e deveram-se ao processo deacomodao da Companhia ao mundo temporal. Ver. CASTELNAU- LESTOILE, Charlotte. Operrios de umavinha estril: jesutas e a converso dos ndios no Brasil 1580-1620. Trad. Ilka Stern Cohen. Bauru, SP: Edusc,2006. p.52.25SANTOS, Vaniclia Silva. Bexerins e jesutas: religio e comrcio na Costa da Guin (sculo XVII). Mtis:histria e cultura. v.10, n.19, p.187-213. jan/jun, 2011, p. 188.

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    Cristos e muulmanos atingiram as terras subsaarianas em busca de novas rotas

    comerciais, trocando tecidos, instrumentos de cobre, cavalos, sal e outros produtos por

    pedras preciosas, marfim e escravos. De acordo com Alberto da Costa e Silva, o trfico de

    ouro atravs do Saara anterior conquista rabe na regio: o estabelecimento de rotas que

    ligam as regies do Marrocos, Arglia, Tunsia, Lbia e Egito ao vale do rio Senegal, sul da

    Mauritnia, curva do Nger e lago Chade datado por volta dos sculos III e V d. C..

    Entretanto, no sculo VIII, a presena rabe-berbere-islmica na regio j era notvel,

    buscando articular o Bilad al-Sudan, o Pas dos Negros, ao extenso imprio galgado pelos

    omadas. Em troca de produtos exticos, como plumas de avestruzes, e outros de alto

    valor, como ouro, marfim e escravos, esses comerciantes islmicos levavam tecidos,

    cavalos, perfumes, sal, alm de sua f, sua religio.26

    A presena portuguesa no litoral da Alta Guin, a partir do sculo XV,

    caracterizou-se como um alterador das rotas comerciais e das relaes sociais na regio. Os

    produtos que saam das savanas e atravessavam o deserto nas cfilas de berberes

    islamizados passaram, a partir de meados do sculo XV, a ser desviados para o litoral. As

    rotas interiores, nas quais o comrcio por zoneamento era muito importante, pouco a

    pouco foram cedendo lugar ao comrcio atlntico27. A presena portuguesa na Senegmbia

    desestabilizou a Confederao Uolofe, conjunto formado por povos Mandinga, Fula,

    Uolofe e Tuculor que, conforme James Sweet, passou por processo de islamizao no

    muito eficiente e tinha seu centro econmico na regio das savanas, a comerciar com os

    mercadores que atravessavam o Saara. Sweet afirma que o contato das provncias costeiras

    de Caior, Ualo e Baol com o comrcio atlntico levou-as a alcanar ndices de prosperidade

    econmica que superavam o centro da confederao, num processo de deslocamento do

    eixo econmico regional que possibilitou a ciso poltica e social do grupo.28

    Alm do comrcio, a presena portuguesa na costa africana estimulou a instalao

    de misses religiosas, bem como noutras partes do Imprio Portugus. Em 1604, iniciou-se

    a misso jesuta de Cabo Verde, com a chegada dos inacianos no arquiplago, em julho.

    Contudo, a reduo do comrcio portugus na regio, devido concorrncia com outras

    26SILVA, Alberto da Costa e. A Manilha e o Libambo: a frica e a escravido, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:Nova Fronteira. 2002. p.36-37.27 PERSON, Yves. Os povos da costa os primeiros contatos com os portugueses de Casamance slagunas da costa do Marfim. In: NIANE, Djibril Tamsir. Histria Geral da frica IV frica do sculo XII aoXVI. Braslia: UNESCO. 2010. p.338.28 SWEET, James H. Recriar a frica: cultura, parentesco e religio no mundo afro-portugus (1441-1770).Lisboa: Edi es 70. 2007. p.111-113.

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    naes europeias, limitou o alcance das aes missionrias29. No tocante ao islamismo,

    percebemos que seus principais representantes na Alta Guin estavam diretamente

    envolvidos com as prticas comerciais. Esses mercadores religiosos eram os bexerins,

    termo que, de acordo com Antnio Lus Ferronha, deriva da palavra rabe mubecherin, que

    significa propagandista do islamismo30. Considerados poca como os maiores

    comerciantes da regio, a presena dos bexerins era grande em toda a Guin, conforme

    destaca outro luso-cabo verdiano, Andr Donelha:

    H-se saber que os maiores mercadores que h em Guin so osMandingas, em especial os bexerins, que so os sacerdotes. Estes, assimpelo proveito que tiram como por semear a maldita seita de Mafomaentre a gente brbara, correm todo o serto de Guin e todos os portosdo mar, e assim se no achar nenhum porto, desdos Jalofos, SoDomingos, rio Grande at Serra Leoa, que neles se no achem

    Mandingas bexerins. E o que levam para vender so feitios em cornosde carneiros e nminas e papis escritos, que vendem por relquias, ecomo vender tudo isso semeiam a seita de Mafamede por muitas partes,e vo em romaria casa de Meca e correm todo o serto dEtipia.31

    Ao se tratarem de povos com influncia islmica, as atividades religiosas

    recorrentemente so adjetivadas como falsidades, afirmando que os bexerins dizem mil

    mentiras, e como falam pela boca do diabo, e como dizem muitas mentiras, fazem oraes

    ao seu maldito Mafoma32.Laura de Mello e Souza afirma que a linguagem dos contrrios

    foi o elemento mais importante da demonologia, por caracterizar o universo mental do

    mundo moderno. Reproduzidas por missionrios-etngrafos, essa estrutura de significao

    funcionou como recurso inverso, uma vez que permitia dar conta de mltiplos fatos

    culturais concretos anlogos s realidades europeias, mas opostos a elas devido ao do

    Diabo no sentido de parodiar as honras prestadas a Deus33.J o princpio da desordem

    mostrou-se um rico instrumento de anlise por dispensar o etnodemonlogo da

    compreenso dos costumes e hbitos nativos, exaustivamente inventariados. Considerando

    que emanavam da desordem, tais prticas seriam incognoscveis, oferecendo maior

    liberdade para as descries, ante a inutilidade da compreenso.34

    Embora tais redues estejam evidentes, preciso notar que elas no esgotam a

    questo. Ao tratar da maldita seita de Mafoma e sua presena junto ao comrcio, o

    29SANTOS, Vaniclia Silva. Bexerins e jesutas... p. 188.30FERRONHA, A. Tratado breve dos rios de Guin do Cabo Verde... p.133.31DONELHA, Andr. Descrio da Serra Leoa e dos Rios de Guin do Cabo Verde (1625) . Org. Avelino Teixeira daMota. Lisboa: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar. 1977. p.160.32______. Descrio da Serra Leoa...,p.150.33SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlntico: demonologia e colonizao sculos XVI-XVIII. So Paulo:

    Companhia das Letras. 1993, p. 33.34______. Inferno Atlntico..., p.33-34.

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    cronista aponta traos significativos da emergncia do islamismo na frica subsaariana, e

    no apenas relaciona prticas religiosas e comerciais no crists anttese de sua f.

    Informa-nos tambm da existncia institucional do islamismo na Guin, marcada por

    centros de formao, misses muulmanas e uso de utenslios religiosos, todos atrelados

    expanso das relaes comerciais com os ismaelitas do norte da frica, em rotas que os

    ligava at a cidade de Meca.

    Andr lvares de Almada afirma haver trs casas principais grandes, como entre

    ns conventos, de grande religio e devoo entre eles, nas quais residem estes religiosos e

    os que aprendem para esse efeito35, localizadas ao longo do rio Gmbia: a primeira junto

    foz, a segunda setenta lguas ao interior, na localidade de Malor, e a terceira distante

    cinquenta lguas da segunda, em Sutuco. H um esforo em traduzir, semanticamente,

    esses centros de formao de bexerins em equivalentes aos seminrios e conventos, bem

    como os pregadores figura do padre, como percebeu Vaniclia Silva Santos36. O cronista

    afirma ainda que nestes locais eram praticados jejuns e abstinncias, escreviam-se livros

    nos quais dizem muitas mentiras, e d o demnio ouvido aos outros para os ouvirem e

    crerem e praticavam-se transaes comerciais, sendo que em Sutuco havia um grande

    mercado de ouro, seja em p ou peas, o qual era trocado principalmente por manilhas de

    cobre, alm de materiais de luxo, como contarias da ndia e de Veneza, roupa branca da

    ndia, fio vermelho, papel cravo, bacias de barbear, entre outros.37

    Manuel lvares apresenta-nos a organizao desse islamismo, argumentando que

    havia diferentes nveis hierrquicos entre os religiosos: o nvel mais alto era ocupado pelos

    alemanes, que corresponde posio de bispo ou arcebispo entre ns, seguidos dos

    fodigues, que correspondem aos nossos vigrios gerais ou ordinrios e, por fim,

    encontravam-se os mozes (bozes ou bixirins), que so como padres entre ns. 38

    Amparado no modelo de traduo da alteridade, o missionrio apresenta uma estrutura

    eclesistica islmica, embora acrescente que a hierarquia de clrigos no bem

    desenvolvida, j que os alemanes esto acima de todos eles [fodigues e bexerins], mas, na

    35FERRONHA, A. Tratado breve dos rios de Guin do Cabo Verde..., p.54.36 SANTOS, Vaniclia Silva. As Bolsas de Mandinga no espao Atlnt ico sculo XVIII. 2008. 256f. Tese(Doutorado em Histria Social) Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas da Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. p.45.37FERRONHA, A. Tratado breve dos rios de Guin do Cabo Verde..., p.54-55.38LVARES, Manuel. Ethiopia Minor.. . Parte 1, cap. 3, p. 6.

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    prtica cotidiana, o ttulo em si no seja adequado j que eles tm mais poder [que os

    alemanes].39

    Amparando-se no princpio da traduo da alteridade, o religioso busca

    correspondncias entre a hierarquia eclesistica catlica e uma suposta estrutura anlogamuulmana. Contudo, Ioan Lewis afirma que no havia divises formais entre o corpo

    religioso muulmano africano nativo, o que possibilitava o recrutamento de discpulos nos

    mais variados meios sociais e contribua com a expanso da f maometana 40. Fazendo estas

    ponderaes s observaes de lvares, elas conduzem-nos percepo de que, mais do

    que uma traduo da religiosidade afro-islmica dentro do arcabouo cultural cristo,

    estamos diante de um contexto efetivo de islamizao, decorrente do avano da prtica

    comercial entre os negros e os berberes islamizados, atravs do Saara.

    Descrevendo os Jalofo, o jesuta percebe a relao direta estabelecida entre as

    prticas comerciais e o desenvolvimento da religio islmica. Ele afirma que a terra habitada

    pelos Jalofo era rica e possua muito comrcio. Havia navios de vrias partes, a comerciar

    escravos, tecidos e roupas de algodo, peles, marfim e cera. Era encontrado ouro, que

    vinha dos sertes por intermdio de mercadores Mandinga, cujas redes comerciais

    estendiam-se por toda a costa Sahel e atravessam o deserto do Saara, destacadamente

    mercadejando noz de cola,

    muito valorizada por toda a Etipia. contada como uma ddiva do cue os mercadores Mandinga carregam-na para todas as partes da Barbriae, na forma de p, at Meca. L eles so feitos bexerins superiores eretornam com a recompensa normal de nminas, que eles oferecem portodas essas provncias.41

    Alm da noz de cola, ouro e escravos aproximaram a Senegmbia aos domnios

    rabe-islmicos, ligando as duas partes do deserto. preciso destacar que o fazer-se

    bexerim em Meca fundamental formao do poder religioso destes homens. A viagem

    terra santa dos muulmanos compreende um dos cinco pilares essenciais ao islamismo aperegrinao Meca e era vista como uma peregrinao capaz de atribuir a barakaaos

    marabutos, cacizes ou bexerins que a realizassem. Baraka o vnculo que mantm os

    homens santos do islamismo ligados a Deus. Clifford Geertz explica que baraka significa

    beno, como um favor divino. Esse significado nuclear delimitado em sentidos como

    prosperidade material, bem-estar fsico, satisfao corporal, plenitude, sorte e, aspecto

    39LVARES, Manuel.Ethiopia Minor.. ., Parte 1, cap. 3, p.7-8.40LEWIS, Ioan M. O Islamismo ao Sul do Saar. Lisboa: Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expresso

    Portuguesa/Universidade Catlica Portuguesa. 1986.41LVARES, Manuel. Ethiopia Minor.. ., Parte 1, cap. 3, p.1-2.

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    mais ressaltado pelos escritores ocidentais ansiosos para incluir esse significado na mesma

    categoria do mana, poder mgico42. Tais elementos podem ser percebidos nas prticas de

    cura, proteo, manuseio de fatores naturais, e outros fatos que destacaremos agora.

    A recompensa normal de nminas um dos elementos mais presentes nadocumentao a caracterizar o islamismo. Como nos disse o comerciante cabo-verdiano

    Andr Donelha, o que os mercadores islamizados levam para vender so feitios em

    cornos de carneiros e nminas e papis escritos, que vendem por relquias, e como vender

    tudo isso semeiam a seita de Mafamede por muitas partes, e vo em romaria casa de Meca

    e correm todo o serto dEtipia43. Esses amuletos, bolsas de mandinga resignificadas e

    disseminadas pelo mundo portugus, eram bolsas de couro cozido, costuradas, contendo

    dentro trechos do Alcoro escritos em papel. Eram utilizadas amarradas no corpo e a elas

    era atribudo grande poder para proteo do indivduo. Entre os Jalofo, por exemplo, as

    armas que usam na guerra e na paz so as nomeadas, e alm delas seis azagaias pequenas de

    umas farpas, e uma grande.44

    A partir do comrcio, o isl desenvolveu-se nos vales dos rios Senegal e Gmbia e

    os bexerins conquistaram grande importncia nas altas esferas sociais e polticas,

    aconselhando reis em assuntos de guerra, cura a enfermidades e exerccio do poder. Manuel

    lvares descreve o mecanismo de poder desses ministros:

    Quando vo para a guerra ou expedio, alm de cobrir suas camisas,escudos e arcos com um grande nmero de amuletos e cobrindo seusbraos com outros e pendurando alguns em seus pescoos, os bexerinspreparam para os guerreiros certos medicamentos, os quais dizem, e osreis acreditam, que se carregados providenciam segurana para o reicontra perda da vida. Afirmam isso no porque acreditem ou pensem serverdade, mas, como disseram para alguns portugueses, porque issoproporciona um meio de se manterem em boas graas com os nobres,porque, atentando deste modo para o que os nobres desejam ouvir, osbexerins obtm as melhores partes das terras deles. 45

    Ao apontar o uso pragmtico da religio para obteno de benefcios temporais, ocronista no consegue lanar seu olhar para a prtica anloga desempenhada pelos

    missionrios portugueses, que usam do proselitismo cristo para obter grande proveito

    para a Fazenda de Sua majestade46. No obstante, ele chama a ateno para o uso de

    amuletos e mezinhas, como formas de proteo. Esses elementos so produtos da

    42GEERTZ, Clifford. Observando o Isl:o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonsia. Trad. PlnioDentzien. Rio d e Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Op. cit, p.55.43DONELA, Andr. Descrio da Serra Leoa...,p.160.44FERRONHA, A. Tratado breve dos rios de Guin do Cabo Verde..., p.28-29. Grifo nosso.45LVARES, M.Eth iopia Minor... Parte 1, cap.1, p.9.46FERRONHA, A. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde... p. 131.

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    confluncia da cultura religiosa islmica com prticas tradicionais africanas, caracterizando

    adaptaes da religio ao contexto social no qual acontece seu exerccio. Embora a

    presena dos bexerins e suas relaes nominais com o islamismo no possam caracterizar

    os povos da Guin em sua totalidade como estritamente islmicos, necessrio atentarmos

    para o uso pragmtico do misticismo religioso, prprio do isl popular, nessas paragens.

    Como recurso ao alcance de melhores posies sociais, o papel desempenhado por esses

    indivduos oferece-lhes um retorno social em statuse privilgios nas sociedades em que se

    estabelecem.

    O desenvolvimento do islamismo na Guin deu-se por meio de instituies, como

    as escolas islmicas:

    Eles tm mesquitas; e os bozes ou bexerins mantm escolas para ensinara ler e escrever em letras arbicas, as quais usam em seus amuletos, j queesses malditos relicrios consistem em certos preceitos escritos em rabe.A tarefa dos bexerins educar meninos que, depois, serviro comoclrigos da seita. Eles aprendem do mesmo jeito que ns, fazendo cpiasde exerccios, luz normal, durante o dia, luz do fogo, noite. impressionante ver o nmero de fogos em volta daqueles que sentampara ler e repetir suas lies, os quais leem com vozes to estridentes queaborrecem quem v (e escuta) estes discpulos infernais. Eles pedemesmolas dia e noite e vivem delas.47

    A tarefa de educar os meninos que posteriormente tornar-se-o bexerins

    desenvolvida por homens dotados de carisma e respeitados pela comunidade, devido aos

    poderes msticos que a eles se atribuem. lvares explica que:

    O alemane guarda o Coro e somente a ele permitido entrar na Casa deMeca. Sua funo ensinar a seita, e ele vive no reino que lhe pareamais adequado para preservao e continuidade da vida e no qual elepossa mais facilmente enviar o ordinrio ou qualquer dos religiososmenores (...) para visitar as terras e vilas sob sua jurisdio. O alemane muito respeitado: quando ele chega numa vila, todos beijam suas vestes eseus ps. Ele muito rico e, portanto, distribui grandes esmolas por

    amor aAllah.48

    Percebemos uma liderana espiritual; um mestre dotado de carisma, ao redor do

    qual se renem discpulos interessados em seus conhecimentos. Os centros de formao se

    estabeleceram no rastro dos mercadores, uma vez que as novas comunidades muulmanas,

    formadas por migraes e interaes com a populao local, necessitavam de mestres para

    instruir os jovens, formar novos pregadores e dirigir a vida religiosa dos crentes49.

    47LVARES, M.Eth iopia Minor..., Parte 1, cap. 3, p. 7.48LVARES, M.Eth iopia Minor... Parte1, cap. 3, p.7-8.49LEWIS, Ioan M. O Islamismo ao Sul do Saar..., p.49.

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    Narrativas miraculosas so somadas s descries da ao dos alemanes e bexerins, sempre

    com conotao demonaca. Dentre vrios casos, como de curas de doenas como a

    hansenase50ou proteo a exrcitos em guerra, destacamos a capacidade que um bexerim

    tinha de fazer chover. Manuel lvares descreve a cena, amparado em relatos de

    portugueses, que vivenciaram a experincia:

    Antes de abordar o assunto dos verdadeiros legados de Mafamede, querodiscutir algo notvel que aconteceu com um destes clrigos emBambaceita, na terra de Boralo, uma cidade de Bezeres, e seu Alcoro.Aqui existe uma escola comum onde a leitura e a escrita so ensinadas namaneira a ser descrita mais tarde. A este lugar, veio um desses peregrinosperversos, vestido como um homem pobre, todo em trapos. Foi umapoca de grande seca e as colheitas de gros tinha sido perdidas. Osmembros da parquia do infernal Mafemede apressaram-se a este agentemaldito para pedir-lhe ajuda diante de to grande desastre. Como se ele

    tivesse os favores dos cus a seu comando, ele ordenou queles emnecessidade que lhe providenciassem uma boa refeio. Eles vieram comcuscuz, leite, etc. Quando ele teve o suficiente, ele prometeu-lhes quechoveria. Todos eles riram e zombaram deste homem louco. Ele pediuuma bacia de gua. Quando lhe deram, ele se afastou, gravemente, comose quisesse ser muito sagrado. Ele derramou a gua sobre umformigueiro, fazendo lama, e untou-se com isto, ento fez uma cruz demadeira e fixou-a no monte, passando a noite gritando e chamando, e aoamanhecer desapareceu. Tal quantidade de chuva caiu que os Mandingasvangloriaram e celebraram o feito com grande festa e grande espanto.51

    Aps ser procurado por seus reconhecidos dons (sua baraka), o bexerim

    apresentou-se aldeia necessitada e realizou o milagre esperado. Trajando roupas simples,o homem apresentou-se como de maneira anloga aos membros das ordens mendicantes

    catlicas, sem ostentaes e realizando servios para a glria de Deus. Aps a cerimnia e

    realizao da chuva, o muulmano desapareceu. lvares afirma que mais surpreendidos

    com o fato ficaram os portugueses que estavam nesta aldeia, no tempo do milagre, e o

    informaram acerca do evento. Admirado com o acontecido, um nobre perguntou ao

    missionrio a que ele atribua o feito. O jesuta respondeu-lhe que:

    Foi por permisso divina, como diariamente experimentamos aqui emvrias outras questes, nas provaes por ferro em brasa ou pela guavermelha, em respostas do Inimigo atravs de dolos, aqueles que sogenunos e assim por diante. Eu no duvido disso, disse o portugus,j que eu tambm vi outros acontecimentos. E o clrigo fez a mesmacoisa em outra aldeia, da primeira ele tinha partido na manh (eledesapareceu da primeira), e a qual estava sofrendo da mesma falta dechuva, e l ele foi venerado e regalou-se com todas as coisas boas daterra.52

    50FERRONHA, A. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde... ,p. 24-26.51LVARES, M.Eth iopia Minor..., Parte 1, cap. 3, p. 452______.Eth iopia Minor..., Parte 1, cap. 3, p. 4.

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    O inaciano ctico diante do milagre atribudo ao bexerim, que teria se repetido

    em outra aldeia que sofria a mesma intemprie. Para lvares, o resultado positivo,

    verdadeiro ou genuno das prticas realizadas pelos clrigos islmicos indica tratar-se de

    manifestao divina, mesmo em cerimnias destinadas ao Inimigo. Em busca da verdade

    e da justia, o autor aponta a utilizao dos juramentos do ferro em brasa e da gua

    vermelha, aplicados pelos juzes ou soberanos africanos diante de querelas duvidosas,

    apresentadas pelos sditos, nas quais no h provas ou testemunhas.

    O juramento do ferro, que se realizava no reino do Boralo, constitua-se da

    seguinte maneira:

    Trazem ali um ferreiro ou o vo tomar a sua casa, e este pe um pedaode ferro ao fogo, e tange os foles at que se faa o ferro to vermelho

    como uma brasa. Diz a parte que h de tomar o juramento: Deus sabe averdade; se eu fiz tal cousa ou tal, que se ma impe, este ferro mequeime, e a minha lngua, de maneira que jamais fale. Acabando dedizer estas palavras, mete-lhe o ferreiro com a tenaz o ferro na mo,lanando de si mil fascas, e a parte que disse as palavras toma a tenaz namo, e com a lngua lambe aquele ferro vermelho trs vezes e, ficandolivre, ele e seus padrinhos escaramuam e tm a sentena por si. E noousando de tomar esse juramento ficam condenados.53

    O resultado do juramento a condenao ou absolvio do ru. Vale destacar que

    o sistema viciado e opera em duas frentes: por um lado busca evitar dissenses entre a

    populao, inspirando o medo da prtica irreversvel, por outro busca produzir culpados,uma vez que a pena a alienao dos bens e, em muitos casos, escravizao das famlias

    dos rus. Mas este tipo de justia no ocorria apenas no Boralo. Na terra dos Casangas,

    acontecia o juramento da gua vermelha quando o exerccio da justia fica nublado pela

    ausncia de provas e testemunhas que sustentassem as afirmaes das partes envolvidas.

    Trata-se do seguinte evento:

    Chama-se este Juramento o da gua vermelha, que eles temem muito; aqual trazem, quando se d, em uma panela, e a gua em si vermelha,

    como pisada de cortia de algumas rvores desfeita em gua, ou quetenham sumo que baste para este mister. E esta gua do s partes, eaquele que primeiro vomita fica livre. Muitos morreram tomando estagua, e so aquelas pessoas que quer o Rei que morram se so ricas, etm este ardil.54

    O interesse do rei na morte de determinada pessoa decorre da pena aplicada aos

    culpados aps o veredito do juramento: se a gua for vomitada, a pessoa est livre, se no

    for e a pessoa vier a morrer, ela dada como cul pada, seus bens so confiscados pelo rei e

    53FERRONHA, A. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde... , p.44-45.54______. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde..., p.69.

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    h casos por onde as geraes ficam cativas do Rei e se vendem. Almada informa que o

    ministrante do juramento, sob ordens rgias, passa um veneno muito fino no dedo da mo

    que sustenta o pote com a gua. Primeiro a d a beber aos mais pobres que tm menos a

    oferecer. Por ltimo, ficam os ricos e aqueles que se deseja que morram. Ento, o

    ministrante mergulha o dedo na gua, discretamente, e a d a esses homens. Percebe-se que

    a prtica tem sentido anlogo quela representada no juramento do ferro em brasa.

    Esses exerccios de justia so compreendidos por lvares como permisso

    divina, uma vez que se acredita que Deus interceder em favor dos justos e reprimir os

    culpados pela prtica de delitos, de forma semelhante a certas punies realizadas na

    cristandade europeia, como a queima de bruxas ou o lanamento de mulheres suspeitas de

    bruxaria em abismos: a morte indica que a suspeita era verdica. A mentalidade catlica e os

    preceitos adequados compreenso da alteridade, como a inverso dos valores mediados

    pela certeza absoluta da ao divina medeiam a compreenso inaciana da realidade e das

    prticas africanas.

    Contudo, o jesuta no se contenta apenas em apresentar uma justificativa

    teolgica ao milagre atribudo ao muulmano. Ele analisa os significados da prtica religiosa

    na vida mundana dos homens santos do isl, buscando compreender seus motivos de se

    apresentarem como porta-vozes dos desgnios divinos:

    Eu no vou esconder uma coisa notvel sobre estes lobos em peles decordeiro, seu mtodo de pedir esmolas. Os verdadeiros Mandingas sotodos muito gentis e companheiros e, assim, muito caridosos. (Estaspessoas) vm aos acampamentos ou casas dos portugueses, apoiando-senuma lana, e pedem os presentes normais, inteiramente para o amor deDeus: eles se agacham e pedem com extrema cortesia, derramandopalavras de forma que obtm tanto quanto buscam, como resultado desua enorme persistncia. Que nao astuta essa! Ento eles ganham ecompletam tudo que desejam.55

    Perceber a formao teolgica inaciana fundamental para que compreendamos o

    sentido da interpretao feita pelo missionrio. A Companhia de Jesus caracterizava-se pela

    primazia da vida nos ministrios, prticas que contribussem com a divulgao da religio e

    valores cristos e com a captao de fiis. O ideal de vida no mundo o que melhor a

    representa por ligar-se ao princpio da Devotio Moderna, concepo que prega a manifestao

    de Deus na realidade objetiva, esta que, por sua vez, a casa d os jesutas56. O exerccio

    da religiosidade no mundo seria capaz de ligar os homens a Deus. Por outro lado, o uso

    55LVARES, M.Eth iopia Minor..., Parte 1, cap. 3, p.4.56OMALLEY, John W. Os primeiros jesutas...p.74-76.

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    vo da palavra divina e a apropriao da graa para benefcios terrenos so condenados

    pelos jesutas e explicitamente atribudos a seus adversrios nas arenas religiosas e sociais:

    lobos em pele de cordeiro. assim que o inaciano interpreta as aes maometanas e o

    cumprimento de um dos cinco pilares da f islmica a esmola , entendendo-os como

    falsidade alicerada no interesse de obter benefcios materiais.

    At aqui discutimos a existncia de centros de formao islmica, as escolas

    cornicas e a proliferao de pregadores e divulgadores da f maometana, atrelados ao

    comrcio. A crena no poder transcendental destes homens abenoados, capazes de

    realizar milagres, um fator importante em sua identidade social. Contudo, sua disperso

    pelo espao ocidental africano decorre de outro aspecto desta identidade dos religiosos: seu

    carter nmade ou transeunte, ainda que tenha residncia nalgum reino, visitando aldeias e

    cidades.

    Como j apresentamos, os alemanes percorreram grandes extenses de terras,

    fazendo pregaes e praticando o comrcio. s vezes, difcil analisar o papel

    desempenhado pelos comerciantes e pelos religiosos, separadamente, na islamizao da

    frica Ocidental, visto que comum o mesmo homem praticar as duas atividades. Assim

    como o mercador, o religioso est em constante deslocamento e, em peregrinaes entre

    centros religiosos formados em grandes emprios comerciais, eles adquirem

    conhecimentos mais aprofundados da doutrina islmica e tornam-se referncias locais de

    santidade e devoo: adquirem a baraka, que os faz admirados pela populao local e traz

    seguidores para seu entorno, que logo se tornaro novos mestres.

    Explicando como so as visitas missionrias islmicas e as formas adotadas para a

    catequese muulmana, lvares afirma ser costume dos alemanes fazer visitas anuais s

    vilas sob sua jurisdio, levando consigo alguns religiosos integrantes dos seminrios

    espalhados pela regio. Logo que chegavam s vilas, os missionrios maometanos

    anunciavam os dias em que se iniciariam as lies do Alcoro. Chegada a data divulgada, o

    inaciano informa que a populao se reunia em um espao aberto na vila, no qual o

    alemane e os bexerins entravam com grande espetculo.

    Ento, o alemane espalha algumas esteiras finas pelo cho e, de sua bolsabordada, retira a lenda infernal escrita em pergaminhos, que desenrolasobre as esteiras e inicia sua prtica cerimonial, ficando de p elevantando suas mos e olhos para os cus. Depois de ficar assim por ummomento, como se estivesse em contemplao, prostra-se no cho,diante dos touros infernais. O povo imediatamente faz grandes gestos

    de reverncia para ele. Quando estes so finalizados, ele fica de p e em

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    voz alta diz a todos para darem graas a Deus e a Seu Profeta por t-losreunido para perdoar-lhes seus grandes pecados, e fazem vrias outrasdeclaraes em louvor ao demnio. Depois disso, ele elogia o ensino dospergaminhos enquanto busca manter a ateno das pessoas, e elasconsentem de tal forma que, embora o religioso gaste mais de duas horaslendo e expondo partes das Escrituras, ningum conversa ou dorme ouse agita e, na grande audincia, ningum tira os olhos do religioso.57

    Acreditamos que o carter missionrio islmico esteja atrelado ao fenmeno do

    marabutismo e diga respeito ao compromisso com o ensinamento da crena maometana,

    leitura do livro sagrado dos muulmanos, o Alcoro, e expanso poltica e religiosa de

    seus lderes a partir de sucessivas migraes. Essa prtica competia frontalmente com a

    misso jesuta, que tinha os mesmos objetivos, a partir da expanso da f crist. Mais do

    que duas religies em confronto, notamos dois contextos missionrios bastante especficos,

    esforando-se mutuamente para atingir e conquistar o maior nmero de fiis para suasfileiras. A presena islmica era beneficiada frente crist, uma vez que suas rotas eram

    internas ao continente e seus representantes, em vrios momentos, integravam o corpo

    poltico e econmico das comunidades africanas, facilitando assim sua expanso e

    incentivando esforos para sua assimilao por parte da populao local.

    Ao contrrio da misso jesuta, que no chegou a instalar um colgio em Cabo

    Verde para atender a diocese e formar padres para aturem na costa da Guin, os ismaelitas

    obtiveram algum sucesso nesse empreendimento. A caracterizao das escolas cornicas,estabelecidas em mesquitas, informa-nos sobre um islamismo tanto mstico quanto ativo,

    que buscava aproximar as pessoas da prtica da f sem abrir mo do estudo e

    conhecimento da doutrina islmica, caractersticas do sufismo. Essa concepo religiosa foi

    percebida pelo jesuta e aproxima-se da teologia inaciana, ocupada com a manifestao de

    Deus no mundo atravs da compreenso, devoo e especulao espirituais. Entretanto, o

    cronista inverte os valores pregados pelo isl, na formao de discpulos infernais.

    Notamos uma competio por fiis, com ambos os adversrios assentados emconcepes teolgicas e prticas sociais especficas que as caracterizem e justifiquem: o

    exerccio dos ministrios jesutas anlogo, na descrio de lvares, aos objetivos islamitas,

    no tocante proteo da vida e expanso da f, neste caso, muulmana. Vaniclia Santos

    argumenta que a traduo operada pelos inacianos diante das prticas dos bexerins conduz-

    lhes estratgia de adaptao cultural para exerccio missionrio cristo na Guin. Por esta

    via, os padres exerciam atividades prximas quelas desempenhadas pelos maometanos,

    57LVARES, M.Eth iopia Minor..., Parte 1, cap. 3, p. 4.

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    como o recurso a amuletos e mezinhas. Este efeito espelho, na concorrncia por fiis,

    levou os padres a serem reconhecidos pela populao local como bexerins cristos .58

    Para entender o fenmeno marabtico na expanso islmica que se confrontou

    diretamente com a presena missionria jesuta, preciso compreender o contexto no qualele se insere: o desenvolvimento de uma concepo popular do Islamismo na

    Senegmbia, o sufismo. Antnio Dias Farinha explica-nos que sufismo o misticismo

    islmico. A origem do termo a palavra sf, utilizada para designar uma pessoa piedosa,

    idealista, afastada dos bens das honras. Trata-se de esforo mstico para experimentao

    pessoal de mtodos que possam aproximar o fiel e Deus, caracterizando um processo de

    aperfeioamento, estudo e contnuo ensaio de mtodos que conduzam a Deus. O autor

    afirma que a exigncia de aprendizagem e imitao originou a formao de escolas e

    confrarias em que os novios (mrid) procuravam, junto do mestre, conhecer ou encontrar

    esse anelo supremo de Deus, a beatitude do conhecimento ou o sentimento de integrao

    (...).59

    Clifford Geertz acrescenta que o sufismo desenvolve-se de diferentes maneiras ao

    longo do mundo islmico, sendo caracterizado pelo esforo em estabelecer uma relao

    efetiva entre o isl e o mundo, tornando a religio acessvel aos seus seguidores e estes

    acessveis a ela. Na frica Ocidental, o autor destaca que este parece ter significado a

    definio de sacrifcios, possesses, exorcismos e curas como rituais islmicos. Essas

    transformaes aconteceram em contextos institucionais diferenciados e, aqui, destaca-se

    aquele classificado pelo autor como complexo de siyyid: um culto dos santos centrado nos

    tmulos dos marabus mortos e envolvendo a definio de linhagens sagradas constitudas

    pelos descendentes patrilineares do marabu enterrado.60

    Caracterizado pela contemplao, estudo e valorizao da conduta moral, o

    sufismo permite a admirao dos santos do isl, chamados no Magrebe e na frica

    Subsaariana de marabutos, cacizes, bexerins, alemanes. Eram mestres religiosos, cujos

    exemplos de vida e piedade levavam sua reputao a muitos povos, trazendo discpulos

    para sua proximidade. O termo marabuto tem origem rabe (murabit) e significa atado,

    amarrado, acorrentado a Deus. Estudando a presena islmica em Portugal no sculo XVI,

    Rogrio Ribas afirma que os termos cacis e marabuto, alm de mulei, eram aplicados a

    58SANTOS, Vaniclia Silva. Bexerins e jesutas, p.192-193.59 FARINHA, Antnio Dias. O Sufismo e a islamizao da frica Subsariana. In: Antonio CustdioGonalves Alves (cord.). O Islo na frica Subsariana: A ctas do 6 Colquio Internacional, Estados, Poderes e

    Identidades na frica Subsariana. Universidade do Porto, 2003. p.29-30.60GEERTZ, Clifford. Observando o Isl...,p.60.

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    indivduos considerados pela comunidade mourisca como guias religiosos ou espirituais,

    santificados pela viso popular61. O autor esclarece ainda que o termo cacis foi usado de

    forma genrica pelos portugueses para designar personagens religiosos do Norte da

    frica, sendo substitudo, na documentao de meados do sculo XVI, por marabuto.

    Na regio da Senegmbia, o termo cacis aparece com frequncia na

    documentao, sobretudo no Tratado Breve... . Como exemplo, destacamos o momento em

    que Almada aponta a presena de um Caciz destes no reino da Casamana, no tempo do

    rei Masatamba, nosso amigo, e foi que se veio ao rei e lhe apresentou uma nmina muito

    bem guarnecida, dizendo que a trouxesse, porque jamais, trazendo-a, seria ferido com arma

    nenhuma (...)62, apontando a dimenso miraculosa e islmica representadas na nomina,

    conforme j discutimos.

    O carter sagrado dos cacizes expresso aps sua morte: seus tmulos

    transformam-se em lugar de peregrinao, onde acorrem os fiis procura de benes.

    Essas peregrinaes acontecem em formas de romarias, em poca fixas do ano. Clifford

    Geertz aponta que o tmulo uma construo colocada, geralmente, sob uma rvore, no

    topo de uma colina ou noutro lugar isolado, como uma caixa em meio a uma plancie 63.

    Partindo desses elementos, observemos a citao abaixo:

    Da banda do norte a terra algum tanto mais alta. Da mesma bandapassamos a raiz de um monte alto, s, alevantado; chama-se o monteVermelho. Tem pela sua costa acima, ainda que ngreme, rvorespequenas. Em cima deste monte tm os Mandingas um dolo deMafamede, aonde vo em romaria fazer salas ao maldito Mafoma,porque no h nao de negros que tenha tomado com mais fervor a leide Mafamede como os Mandingas.64

    Os indivduos reconhecem esse local como espao de peregrinao, afastado dos

    locais comuns de circulao, e recorrem a ele para o exerccio de um dos cinco pilares

    essenciais ao islamismo: o rito da salatou al-salat, apresentado na corruptela sala, a orao

    realizada cinco vezes por dia (embora esse nmero possa variar), com o fiel direcionando-se a Meca65. Ademais, a crena de que esses homens eram portadores de baraka sacraliza

    seus tmulos, onde as pessoas acorrem em busca de bnos e ddivas. O que o cronista

    chama de dolo de Mafamede pode, adequadamente, ser objetos funerrios que adornam o

    61 RIBAS, Rogrio de Oliveira. Filhos de Mafoma. Mouriscos, cripto-islamismo e inquisio no Portugalquinhentista. Tese (Doutorado em Histria Modernasociedades islmi cas). Universidade de Lisboa. Lisboa.2005, p.138.62FERRONHA, A. Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde... , p.99.63FERRONHA, A.Tratado Breve dos Rios da Guin do Cabo Verde..., p.61.64DONELA, Andr. Descrio da Serra Leoa..., p.146.65RIBAS, Rogrio de Oliveira. Filhos de Mafoma...,p.123.

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    tmulo de um cacis, bexerim ou alemane, sacralizado pela populao por seus atributos

    espirituais e sua liderana temporal.

    Jos da Silva Horta afirma que essa imagem distorcida (concepo idoltrica)

    sobre o que caracteriza o islamismo, conflitando entre religio e idolatria, era corrente nospases da Europa do Norte, durante o perodo moderno, mas no na Pennsula Ibrica.

    Esta gozou de longo convvio entre cristos e muulmanos e os praticantes destas religies

    conheciam os ritos que as caracterizavam66. Entretanto, os elementos apresentados dizem-

    nos tratar-se de uma modalidade popular praticada pelos filhos de Mafamede que,

    diferentemente da ortodoxa, valoriza a via mstica e a manuteno de um contato mais

    ntimo com Deus, atravs da adaptao da crena s prticas culturais desenvolvidas pelos

    povos que a aceitam e desenvolvem.

    Diante desse quadro, acreditamos haver um intenso processo de difuso do

    islamismo na frica Ocidental, muito superior ao convencionalmente acreditado pela

    historiografia. A difuso de escolas islmicas e a formao de um clero nativo na frica

    tropical ocidental, versados na escrita rabe ou aljamiada 67, so fenmenos a serem

    investigados com mais flego, para melhor compreenso da natureza e das prticas

    islmicas das populaes africanas.

    As impresses de Manuel lvares referem-se acentuadamente s etnias Mandingae Jalofo, a primeira oriunda do fragmentado imprio do Mali, a segunda marcada por serem

    os primeiros povos encontrados s margens do rio Senegal, no setor norte da Alta Guin.

    Reconhecidos como os maiores mercadores da Guin, os Mandinga tinham o comrcio

    como recurso para expanso do islamismo. J os Jalofo, acreditamos, no haviam sofrido

    um processo de islamizao pouco eficiente, como defendeu James Sweet, mas

    mantinham-no em curso, quando da chegada portuguesa ao litoral. Esse movimento

    religioso islmico, posteriormente, tornou-se vitorioso frente ao cristo, com o fracasso da

    misso jesuta e o pouco alcance de outras ordens, como os franciscanos, e da Propaganda

    Fide.

    Consideraes Finais

    66 HORTA, Jos da Silva. O Islo nos textos portugueses: noroeste africano (sc. XV-XVII) dasRepresentaes Histria. In: GONALVES, Antnio Custdio (org.). O islo na frica Subsaariana: actas do6 Colquio Internacional Estados, Poderes e Identidades na frica Subsaariana. Porto: Centro de Estudos

    Africanos da Universidade do Porto. 2004. p.174.67Ioan Lewis aponta que transcrio do vernculo local na escrita rabe foi adotada pelos Jalofo e Hauss, no

    ocidente africano, como estratgia muulmana para tornar a mensagem islmica acessvel a esses povos.LEWIS, Ioan M. O Islamismo ao Sul do Saar..., p.51.

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    Ao final do sculo XVII, percebe-se a expanso dos Fula muulmanos, que veem

    do serto rumo ao litoral ampliando sua rea de produo de couro, para atender a

    demanda europeia. Tambm os Mandinga expandem-se pelo litoral guineense, levando a

    cabo um processo de amandingao acompanhado da crescente presena muulmana s

    margens dos principais rios da regio, e participando de conselhos de reinos, atuando como

    comerciantes e desenvolvendo ritos islmicos, como a salacinco vezes ao dia, voltados para

    Meca68. Ao espalharem amuletos com versos do Alcoro, os Mandinga ofereceram s etnias

    no islamizadas formas de converterem-se a um islamismo resignificado, acessvel a elas.

    O islamismo guineense no foi o nico fator de fragilizao da misso jesuta na

    costa ocidental africana. A centralizao portuguesa nos reinos do Congo e de Angola

    diminuiu os investimentos na Guin e a regio tornou-se perifrica no Imprio Portugus.

    A periferizao da costa ocidental levou reduo das misses e dos incentivos

    converso da populao local, bem como reduo da participao das elites de Cabo

    Verde e Cacheu no trfico atlntico. Ainda assim, o contexto de competio entre as

    formas de acesso ao sagrado e resguardo do exerccio mundano foi um fator de peso no

    desenvolvimento das misses crists na regio. Tal elemento foi favorvel aos

    maometanos, que alcanaram as tramas polticas, atravs da liderana dos bexerins, cacizes,

    alemanes e marabutos; comerciais, por meio das rotas que os ligavam a Meca e a outras

    partes do mundo islmico, alm do comrcio litorneo, com cristos; e religiosas, por meio

    das escolas-mesquitas, que auxiliaram na propagao de missionrios e religiosos

    muulmanos na Guin. Esse ltimo tpico precisa ser destacado, devido ausncia de

    estrutura crist que pudesse competir com os ismaelitas: embora desejado e prometido, o

    colgio no chegou a ser efetivados no bispado de Cabo Verde, durante a misso jesuta.

    Os apontamentos de lvares mostram-nos sua percepo da ao missionria

    islmica, assentada em uma autoridade, o alemane, e exercida por vrios religiosos a ele

    ligados. O arcabouo significativo utilizado pelo jesuta a prpria ordem da qual faz parte,

    a Companhia, no qual percebemos as relaes entre a forma de gesto inaciana,

    hierarquizada e desenvolvida a partir de colgios, e aquela descrita. Muito embora, o

    prprio autor se relativiza ao apontar as limitaes de suas caracterizaes, afirmando que

    no parece haver muita hierarquia no exerccio das prticas missionrias.

    68COSTA E SILVA, Alberto da. O Jihaddo Futa Jalom. In: RIBEIRO, Alexandre; GEBARA, Alexsander,

    BITTENCOURT, Marcelo. frica passado e presenteII Encontro de Estudos Africanos da UFF. Niteri (RJ):PPGHISTRIA-UFF. 2010. p.19.

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    A teologia e os princpios jesutas, justificados pelo exerccio dos ministrios e

    pela expanso missionria pelo mundo, parecem chocar-se com atividades anlogas

    desenvolvidas pelos ismaelitas, no mesmo tom de acomodao cultural proposto pelos

    seguidores de Loyola. Entretanto, os filhos de Ismael esto melhor instrumentalizados,

    com suas mesquitas-escolas, e habilitados para o exerccio do poder poltico atrelado s

    suas prticas comerciais, que se prolongam por intrincveis veios pelo interior do

    continente.

    A misso jesuta de Cabo Verde e o islamismo na Guin se encontram nas tramas

    do Imprio portugus, que nasce como imprio cruzado, atravs das vitrias de Afonso

    Henriques sobre Ismar e os cinco reis mouros, na batalha de Ouriques. O Imprio agrega a

    essa caracterstica primeira a face do mercador e, inserindo-se em rotas comerciais, negocia

    poderes polticos com proselitismo religioso, justificando a escravido atlntica como

    resgate de gentios e combate ao infiel, transformando a escravido islmica africana, de

    carter domstico, em grande empresa comercial no mundo atlntico69. Nesse contexto,

    tanto poltico quanto religioso, tanto social quanto econmico, as misses crist e

    maometana se cruzam e repelem-se, semelhantes que so em suas prticas e devoes,

    ambas atendendo f que lhes sustentam e sustentando-se a partir dos recursos

    disponibilizados pelo avano da f.

    Recebido em: 16/01/2013

    Aprovado em: 16/08/2013

    69LOVEJOY, Paul. Nas fronteiras do isl.A Escravido na f rica: uma histria de suas transformaes. Rio deJaneiro: Civiliza o Brasileira. 2002.