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27 CAPÍTULO 1 A MISSÃO DE 1961: ONDE TUDO COMEÇOU O quiromante armênio Sana Khan era um homem franzino, de cabe- los escuros, que tinha entre seus clientes artistas do teatro e do rádio, políticos e banqueiros. Corria o ano de 1936 e o místico havia acabado de ler a mão de um rapaz num prédio no Centro de São Paulo. Ficou espantado com o que viu. E sentenciou: Professor, estamos diante de alguém com um destino excepcional e es- tranho. Vejo este moço prefeito, deputado, governador de São Paulo e presidente da República. Será assassinado como Lincoln no segundo período de governo numa cidade do interior. * O dono da mão que causou surpresa a Sana Khan era um homem esguio, de olhos esbugalhados, óculos de aros pretos e grossos e cabelos fartos e desalinhados. Atendia pelo nome de Jânio Quadros, um estudante de Direito, de 19 anos, pobre, nascido em Campo Grande, hoje capital de Mato Grosso do Sul. Jânio tentava a vida em São Paulo, depois de passar a infância no Paraná. Já Sana Khan foi um “guru de celebridades” desde meados dos anos 1920 e nas três décadas seguintes. Ganhou fama após profetizar que Getúlio Vargas, então presidente ** do Rio Grande do Sul, * BRANCO, 1996, p. 100. ** Naquela época, os estados eram chamados de províncias, e seus governadores, de presiden- tes. Isso durou até a promulgação da Constituição de 1946.

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CAPÍTULO 1

A MISSÃO DE 1961: ONDE TUDO COMEÇOU

O quiromante armênio Sana Khan era um homem franzino, de cabe-los escuros, que tinha entre seus clientes artistas do teatro e do rádio, políticos e banqueiros. Corria o ano de 1936 e o místico havia acabado de ler a mão de um rapaz num prédio no Centro de São Paulo. Ficou espantado com o que viu. E sentenciou:

Professor, estamos diante de alguém com um destino excepcional e es-

tranho. Vejo este moço prefeito, deputado, governador de São Paulo e

presidente da República. Será assassinado como Lincoln no segundo

período de governo numa cidade do interior.*

O dono da mão que causou surpresa a Sana Khan era um homem

esguio, de olhos esbugalhados, óculos de aros pretos e grossos e cabelos

fartos e desalinhados. Atendia pelo nome de Jânio Quadros, um estudante

de Direito, de 19 anos, pobre, nascido em Campo Grande, hoje capital de

Mato Grosso do Sul. Jânio tentava a vida em São Paulo, depois de passar

a infância no Paraná. Já Sana Khan foi um “guru de celebridades” desde

meados dos anos 1920 e nas três décadas seguintes. Ganhou fama após

profetizar que Getúlio Vargas, então presidente** do Rio Grande do Sul,

* BRANCO, 1996, p. 100.** Naquela época, os estados eram chamados de províncias, e seus governadores, de presiden-tes. Isso durou até a promulgação da Constituição de 1946.

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Capítulo 1 – A missão de 1961: onde tudo começou

ocuparia dentro de pouco tempo o cargo máximo da República não pelo

voto, mas pelas armas.*

O encontro entre os dois ocorreu quando Jânio deixava o escri-tório do jurista Vicente Rao. Aquela ! gura esquisita chamou a atenção de Sana, que pediu ao “professor” que o chamasse de volta para ler sua mão. Amigo do místico, Rao foi ministro da Justiça e chanceler de Var-gas e, no governo, notabilizou-se por sua cruzada contra os comunistas. Após o golpe de 1964, seria o autor do Ato Institucional no 2, que, entre outras arbitrariedades, extinguiria os partidos políticos e permitiria ao presidente decretar estado de sítio por 180 dias sem consulta prévia ao Congresso.

Das previsões sobre o futuro do então estudante de Direito feitas pelo quiromante armênio, apenas uma não se concretizou: a do assassi-nato, que ocorreria num eventual segundo mandato. Talvez por falta de tempo, já que, uma vez na Presidência da República, Jânio renunciou ao cargo sete meses depois de empossado, em 25 de agosto de 1961, criando uma das maiores crises institucionais já vividas pelo Brasil e que acabaria resultando no golpe militar de 1964.

O jornalista Carlos Lacerda foi um dos principais ! adores do apoio da União Democrática Nacional (UDN) à coligação de parti-dos nanicos que lançou Jânio Quadros, o ex-governador de São Paulo, à Presidência, nas eleições de outubro de 1960. Inicialmente, Lacerda estranhou os trejeitos de Jânio. Pareceu-lhe “paranoico, sinistro e deli-rante virtuose da felonia”.** O primeiro encontro entre os dois desfez a má impressão: o futuro governador da Guanabara, eleito também em 1960, mostrou-se encantado com o homem de “bigodes de Nietzsche e olhos de Bette Davis”.*** Jânio obteve 5,6 milhões de votos, 48% do total, e tomou posse em 31 de janeiro de 1961. Foi a maior votação obtida no Brasil até então.

O sucesso eleitoral do homem da vassoura — símbolo que adotou por toda a sua vida política e com a qual, dizia, iria varrer a corrupção do Brasil — não se re$ etiu na campanha do vice-presidente. O jurista

* NERY, 2002, p. 137.** MARKUN e HAMILTON, 2001, p. 32.*** Idem, ibidem.

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O caso dos nove chineses

Milton Campos, que compunha a chapa com Jânio, foi derrotado pelo trabalhista João Goulart.* O resultado inusitado foi consequência de um movimento em prol da chapa informal Jan-Jan, lançada pelo industrial paulista Roberto Gusmão e que logo ganhou o Brasil sem que houvesse nenhuma oposição dos candidatos.** Em treze anos, o advogado e profes-sor de português, que alternava elegância e desalinho, passou de vereador a presidente, numa carreira política meteórica na qual viveu de renúncia em renúncia. Dos mandatos que exerceu, somente o de governador de São Paulo conseguiu concluir.

Na Presidência, Jânio seria tão instável como sempre foi. Interna-mente, conduziu uma política econômica ortodoxa, guiada pelo recei-tuário do Fundo Monetário Internacional (FMI), que desvalorizou a moeda corrente, o cruzeiro, em 100% diante do dólar. Externamente, lançou uma política cujo objetivo aparente era transformar o Brasil em potência mundial, visando a ampliar os mercados para os produtos bra-sileiros, especi! camente o da nascente indústria automobilística. Era a Política Externa Independente (PEI). Nela, o presidente rompia com o tradicional alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos, que já não trazia mais os benefícios econômicos esperados pelo país; defendia a autodeterminação dos povos — inclusive o apoio a Cuba contra a intervenção militar e econômica norte-americana — e o livre--comércio com todas as nações do mundo, em especial com os paí ses do bloco socialista, como União Soviética e China Comunista. Na verdade, Jânio buscava no comércio externo uma saída para a agonizante econo-mia do país, que havia herdado do governo Juscelino Kubitschek.

A aproximação com países do bloco comunista não era uma novi-dade na carreira de Jânio. Ainda como deputado federal, e já candidato à Presidência, em março de 1960, foi a Cuba encontrar-se com Fidel Castro, o líder revolucionário que um ano antes derrubara o governo do ditador Fulgêncio Batista e que tirava o sono dos Estados Unidos. Diante dos jornalistas e políticos brasileiros que o acompanharam na viagem, elogiou a reforma agrária cubana e defendeu que o Brasil reatas-

* Naquele tempo não se votava em uma chapa única, composta por candidatos a presidente e a vice. Os eleitores os escolhiam separadamente, o que poderia resultar em eleições de postu-lantes rivais, como ocorreu no pleito de 1961.** MARKUN e HAMILTON, 2001, p. 34.

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Capítulo 1 – A missão de 1961: onde tudo começou

se relações diplomáticas com a União Soviética.* Também se declarou a favor do reconhecimento da República Popular da China e da legaliza-ção do Partido Comunista. A estada em Cuba, que começara no dia 29 de março com uma histriônica performance de Jânio — que se deixou fotografar usando um chapéu típico e empunhando maracas durante a recepção o! cial no aeroporto de Havana —, acabou antes do previsto. Fidel Castro não se convenceu de que aquele deputado de aspecto es-tranho estaria muito perto de ser o próximo presidente do Brasil. Em pouco tempo, a visita o! cial perdeu o sentido e Jânio resolveu encurtar sua viagem, deixando a ilha no dia 1o de abril, a caminho da Venezuela.

Sua visita foi embaraçosa. A senhora Vasco Leitão da Cunha [embaixa-

dor do Brasil em Cuba] teve di! culdades em convencer Fidel Castro de

que Jânio seria dentro de alguns meses presidente do Brasil e, portanto,

uma peça no sistema americano. Parece que inicialmente os revolucio-

nários cubanos se interessavam apenas pelo aspecto propagandístico da

viagem. Realizado o programa vistoso, a missão de Jânio caiu no vazio,

a tal ponto que o candidato precipitou seu embarque, seguindo para a

Venezuela, onde passou dois dias, quando se previa apenas uma rápida

escala em Caracas. Jânio, por sua vez, não parecia ter, na época, noção

muito nítida da revolução castrista.

Na Venezuela, Rômulo Bettancourt [presidente do país], numa conver-

sa bastante livre, advertiu o aspirante à Presidência do Brasil:

— Pero, Quadros — disse Bettancourt. — Fidel no es un demagogo como

nosotros, como yo y usted.**

Ao mesmo tempo que tomava atitudes que desa! avam o status quo das relações internacionais polarizadas pela Guerra Fria, o presidente tam-bém adotava medidas que afetavam os costumes no Brasil, contribuindo para aumentar o folclore sobre seu estilo. Proibiu as corridas de cavalo em dias úteis, as rinhas de galos, o uso de maiôs nos des! les de misses e o de lança-perfumes nos bailes de carnaval. Diz a lenda que, neste último caso,

* As relações comerciais com a União Soviética haviam sido restabelecidas em dezembro de 1959; em novembro de 1961, o Brasil reataria relações diplomáticas com o país, rompidas em 1947.** BRANCO, 1996, p. 95-96.

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O caso dos nove chineses

legislava em causa própria: o uso da droga havia provocado o acidente que causara problemas em um de seus olhos.* Tentou lançar a moda do slack ou safári — um conjunto de calça e camisa esporte, largas e confor-táveis, com grandes bolsos — que usava quase o tempo todo.

Em outra vertente, determinou o estabelecimento de cinco co-missões de sindicância para averiguar supostos casos de corrupção no governo de Juscelino. Uma delas, dedicada a investigar desvios na Pre-vidência Social, atingia diretamente seu vice, João Goulart, que ocu-para o mesmo cargo na gestão anterior. Jango a& rmou que seu nome havia sido envolvido sem provas e pediu esclarecimentos à comissão. Não obteve resposta. Dias depois, teve seu nome novamente citado nas investigações. Irritado, escreveu uma carta ao presidente cobrando-lhe explicações para “o propósito de me atingir pessoalmente, de modo in-tencional e irresponsável”.**

O episódio, ocorrido em maio de 1961, marcou o rompimento pes-soal entre o presidente e seu vice. Uma grave crise institucional se armava. Raul Ry( , secretário de Imprensa de Jango, e José Aparecido de Oliveira, secretário particular de Jânio, trabalharam incansavelmente para que a crise fosse superada. Nas conversas de coxia entre os dois “bombeiros”, surgiam insinuações de uma missão do vice-presidente à China.

O mal-estar e o gelo foram gradativamente quebrados pela ação pertinaz de Raul Ry( , o qual, sentado horas a & o no gabinete de Aparecido, pro-vocava irritação aos o& ciais da Casa Militar e até a ministros de Estado. Muitas vezes acordava eu no quarto de hotel com os cochichos de Ry( e Aparecido. Parece que, nessas conversas em tom menor, surgiu a pri-meira insinuação relativa à missão de Jango à China.***

Foi o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado de Jango, porém, quem deu o primeiro passo ao sugerir que a che& a da missão o& cial à China deveria ser dada ao vice-presidente. A proposta chegou a Jânio por escrito, num relato que o jornalista Carlos Castello

* SKIDMORE, 1976, p. 243.** FERREIRA, 2011, p. 221.*** BRANCO, 1996, p. 36.

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Branco, secretário de Imprensa da Presidência, fez sobre a conversa que tivera com Brizola.*

A China entrara na discussão porque, naquele momento, estava no Brasil uma missão comercial daquele país, che& ada pelo presiden-te do Conselho Chinês para o Fomento do Comércio Internacional (CCPIT, na sigla em inglês), Nan-Han Chen. O grupo havia estado em Cuba — país com o qual a República Popular da China já tinha intercâmbio comercial — e viera ao Brasil a convite do próprio Jânio Quadros. Os chineses & caram quase um mês por aqui, visitaram vários estados e conversaram com políticos e empresários de diversos setores. Em Brasília, no dia 10 de maio, Nan-Han Chen e seu grupo se avista-ram com o presidente.

No Palácio do Planalto, Jânio anunciou que uma missão comercial brasileira seria enviada à China comunista para “fazer um levantamento dos produtos que poderão ser importados pelo Brasil, a & m de se iniciar o intercâmbio comercial entre os dois países”.** Logo depois da visita a Jânio Quadros, a comitiva seguiu para o Senado, onde era aguarda-da pelo vice-presidente. Nan-Han Chen rea& rmou o convite que havia sido feito pelo vice-presidente do Partido Comunista Chinês, Tung Pi--Wu, para que Jango fosse à RPC. Ele con& rmou que viajaria em caráter o& cial, conforme o pedido do presidente da República.

O convite de Pi-Wu, levado a Jango por volta de agosto de 1960, o cativou sensivelmente. Como líder de um partido de massas, Jango sempre tivera vontade de conhecer a China e sua revolução maoista. Em novembro de 1960, logo depois da con& rmação de sua reeleição, o vice-presidente conseguiu autorização do Congresso Nacional para uma longa viagem internacional. No roteiro, ele visitaria vários países, entre os quais União Soviética e China. Em Moscou, foi recebido pelo vice--presidente Leonid Brejnev e teve tratamento especial. Ficou hospedado no Sovietskaya, considerado o hotel o& cial dos dirigentes do Partido Comunista soviético, onde se reuniu com o líder cubano Che Guevara. A visita ao país de Mao Tsé-tung, porém, foi adiada “em virtude do mau

* BRANCO, 1996, p. 36-37.** Missão comercial do Brasil visitará a China Comunista. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11 de maio de 1961.

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tempo reinante na União Soviética, não tendo renunciado à sua viagem à China popular, a qual deseja realizar a todo custo”.*

O convite inicial a Jango havia sido feito para que ele viajasse na qualidade de presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi a fórmula encontrada para viabilizar a visita, uma vez que o Brasil reconhecia Taiwan (Formosa) como representante do governo chinês, e não a República Popular da China. Jânio, preocupado que seu vice ganhasse espaço nas questões de política internacional, buscava uma solução. Em & ns de abril de 1961, durante viagem a Cuiabá para uma reunião com governadores, o presidente fez questão de voar em companhia do vice. Mandou buscá-lo no Rio em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e, de Brasília, partiram para a capital do Mato Grosso no avião da Presidência. Ficaram o tempo todo a sós na cabi-ne presidencial. Jânio anunciou sua intenção de que Jango levasse para sua viagem à China “uma comitiva de pessoas ligadas à indústria, ao comércio, à atividade bancária, à produção, para o restabelecimento de relações comerciais com a China comunista”.** Por causa do incidente da carta, ocorrido duas semanas depois da reunião em Mato Grosso, a ideia do presidente foi deixada de lado por Goulart. O vice estava mesmo inclinado a viajar apenas na qualidade de presidente do PTB, levando dez convidados para os quais o governo chinês havia garantido passagens e hospedagem. Paralelamente, o Itamaraty, a pedido do presi-dente Jânio Quadros, vinha preparando um estudo sobre as viabilidades de comércio entre o Brasil e a RPC, dentro do espírito da Política Exter-na Independente. À frente desse trabalho estava o jovem diplomata Luiz Villarinho Pedroso, então terceiro-secretário.

Naquela ocasião, Nan-Han Chen rea& rmou o convite a Jango para vi-sitar a China na qualidade de presidente do PTB. Deu uma quantidade de passagens para ele. Jango iria à China de qualquer maneira. Por isso é que eu acho que o Jânio não quis deixá-lo fazer uma patacoada para a esquerda. O Jânio pensou: “Muito bem, ele vai [à China], mas vai na

* Inesperado regresso de Jango a Paris. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 de dezembro de 1960.** SILVA, 1997, p. 319-320.

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qualidade de chefe da minha missão.” Neste meio-tempo, as coisas cami-nhavam no Itamaraty. [...] Havíamos comprado por dois mil dólares um estudo sobre a China, produzido pela unidade de pesquisa da revista ! e

Economist. Era muito dinheiro na época. Baseado nele, & z o nosso traba-lho sobre o que era a RPC e como poderíamos fazer negócios com eles.*

Nesse contexto, a sugestão de Brizola de dar caráter o& cial à mis-são de Jango para pôr & m à crise institucional chegou na hora certa. Mas esse não foi o único motivo pelo qual o presidente acolheu a ideia do governador do Rio Grande do Sul. A viagem do vice à China estava incluída na estratégia da renúncia à Presidência da República, como se veria mais adiante. Numa conversa no Palácio do Planalto, o presidente, então, insistiu com Jango para representar o& cialmente o governo bra-sileiro na viagem à China, dando-lhe liberdade, inclusive, para negociar um acordo comercial, se fosse o caso. Goulart aceitou. No dia 13 de julho de 1961, o chanceler Afonso Arinos anunciava que o governo brasileiro enviaria uma missão o& cial à República Popular da China, de caráter comercial, che& ada pelo vice-presidente da República.

Assim se encerrava a crise aberta com o episódio da carta, e come-çava um novo capítulo nas relações do Brasil com a China. João Goulart che& ou aquela que passaria à História como a primeira missão de um representante de governo latino-americano ao país de Mao Tsé-tung. E que também provocou uma forte reação entre os grupos anticomunistas, graças às investidas do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e dos ministros militares. A caminho da China, Jango foi novamente recebido em Moscou com honras de chefe de Estado, no dia 10 de agosto de 1961. Encontrou-se mais uma vez com o vice-presidente Leonid Brejnev, com quem pediu para conversar a sós por 15 minutos. Não se tratava de um recado o& cial do chefe do governo brasileiro: queria transmitir o pedido da Varig “no sentido de obtenção de uma autorização de voo até Moscou”.**

A conversa mais esperada foi com o todo-poderoso primeiro-mi-nistro Nikita Kruschev, com quem Jango se reuniu em uma sala do Kremlin. O líder soviético disse que a URSS estava “fortíssima” e que,

* Embaixador Luiz Villarinho Pedroso em entrevista aos autores, setembro de 2013.** CASTRO, 1961, p. 14.

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O caso dos nove chineses

no terreno da produção, iria superar os americanos em 1980.* A� rmou que os Estados Unidos faziam tudo para lançar o mundo em uma nova guerra, elogiou o presidente Jânio Quadros por defender a independên-cia de Cuba, e disparou: “Uns gostam de nós, outros não gostam; não há meio-termo e, neste terreno, não há neutralismo.”**

Era o auge da Guerra Fria. A fronteira entre Berlim Oriental e Ocidental seria fechada na madrugada do dia 13 de agosto, acirrando o temor da eclosão de um con� ito nuclear sem precedentes. Apesar da situação internacional delicada, a delegação brasileira viajara para a União Soviética e a China sem intérpretes e sem códigos telegrá� cos, o que impossibilitava qualquer contato de natureza con� dencial com o Itamaraty. Os passos dos visitantes ilustres eram vigiados a cada minuto pelos “intérpretes”, solícitos e afáveis, cedidos pelos an� triões.***

No mesmo dia 13 de agosto em que os soviéticos davam o primei-ro passo no que viria ser o Muro de Berlim, Jango e sua comitiva de-sembarcavam em Pequim. Atentos ao cenário internacional, os chineses viram na viagem do brasileiro a oportunidade de trabalhar dois dos seus objetivos principais: ampliar o mercado entre a China e a América Lati-na, que já vinha sendo explorado pela URSS, e, principalmente, buscar apoio brasileiro para ingressar na ONU, o que vinham tentando desde 1949, sem sucesso, por causa da resistência norte-americana.

No caso do ingresso da República Popular da China na ONU, o Brasil já havia dado um passo importante quando, no dia 22 de feve-reiro de 1961, menos de um mês depois da posse de Jânio Quadros, o chanceler brasileiro Afonso Arinos — seguindo à risca a Política Exter-na Independente do presidente — anunciou que o país votaria a favor da inclusão da questão chinesa nos trabalhos da próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, prevista para setembro daquele ano. A cha-mada questão chinesa resumia-se à proposta, apoiada pela URSS e pela Índia, de substituir a representação de Taiwan pela da China Comunis-ta na ONU. O assunto deixava os norte-americanos, aliados do general Chiang Kai-shek, de cabelos em pé.

* CASTRO, 1961, p. 12.** Idem, ibidem.*** Idem, p.11.

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Embora vitoriosos na sua estratégia de barrar a RPC desde 1950, os Estados Unidos vinham ganhando com margens cada vez menores com o passar dos anos, justamente por conta de votos contrários ou abs-tenções de países asiáticos e africanos recém-associados à ONU que não tinham compromisso com a política norte-americana. Em 1961, com a decisão de Jânio de romper com o alinhamento automático à posição norte-americana, o Brasil poderia atrair indecisos e mesmo inverter vo-tos de países contrários.

A expectativa na ONU é que, se em setembro próximo o Brasil votar a favor da discussão da questão, alguns outros países latino-americanos farão o mesmo. Até agora Cuba tem sido a única voz da América Latina a defender a admissão da China Comunista.*

A iniciativa brasileira indica que os Estados Unidos se verão pela pri-meira vez diante da possibilidade de serem derrotados na votação a res-peito do problema e de assistir à substituição do governo de Formosa, apesar de suas objeções, pelo da China. Esta será extremamente difícil de engolir.**

A derrota norte-americana nas Nações Unidas era iminente e, no tabuleiro das relações internacionais, cabia ao Brasil mover as peças. Uma vez na China, portanto, a missão che� ada por Jango tinha tudo para ganhar contornos marcadamente políticos, graças aos esforços dos an� triões e ao interesse de João Goulart. Logo no aeroporto de Pequim, a comitiva foi recebida com grande aparato militar e cerca de 2 mil es-tudantes e trabalhadores, como lembra o jurista Evandro Lins e Silva, um dos convidados de Jango:

Em Pequim, eles � zeram uma recepção extraordinária ao vice-presidente João Goulart, que era o primeiro dirigente latino-americano a ir à China depois do regime comunista. Trataram-no como se fosse presidente. As

* Quadros poderia in� uenciar outras nações das Américas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 de fevereiro de 1961.** A iniciativa do Brasil provocaria a derrota dos Estados Unidos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 de fevereiro de 1961.

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O caso dos nove chineses

ruas estavam cheias de faixas, de cartazes, havia um grande número de crianças com bandeiras brasileiras e chinesas. Estava presente o ministro do Exterior, Chen y-ii, que depois acompanhou permanentemente o doutor João Goulart durante todo o tempo da estada na China.*

Levado à subche� a da missão por decisão do presidente Jânio Quadros, o ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Tóquio, João Augusto de Araújo Castro, mostrou-se desde o início preocupado com essa possibilidade de a missão comercial assumir um caráter mar-cadamente político. Homem da diplomacia, advertiu Jango que o caso chinês era ainda mais complicado que o soviético, pois, para além da questão ideológica, o Brasil reconhecia Taiwan, e não a República Po-pular da China, como legítimo governo da China.

Dois dias depois da calorosa festa no aeroporto de Pequim, o vice--presidente foi recebido pelo primeiro-ministro Chu En-lai, o líder chi-nês que mais impressionou Araújo Castro. Apesar da pouca altura, Chu En-lai era um homem extremamente carismático, que preenchia os es-paços com sua presença. Nas palavras de Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos Estados Unidos, o premiê chinês, “com seu rosto expres-sivo emoldurando olhos luminosos, exercia seu domínio por meio de uma inteligência excepcional e uma capacidade para intuir os aspectos intangíveis da psicologia de seu interlocutor”.**

Chu En-lai era a cartada mais alta, depois de Mao, na estratégia dos chineses de convencer Jango — e, por sua vez, o presidente Jânio Quadros — a defender os interesses do país comunista na ONU. No encontro entre os dois, o premiê pediu ao vice-presidente que o Brasil, se não votasse contra, pelo menos se abstivesse de qualquer manobra norte-americana contra a RPC nas Nações Unidas.*** Em setembro de 1961, a questão chinesa foi, � nalmente, levada à discussão da Assem-bleia Geral da ONU. Os norte-americanos, porém, agiram rápido e apresentaram, na própria Assembleia Geral, uma resolução que obri-gava a aprovação por dois terços de seus membros, e não por maioria

* SILVA, 1997, p. 324.** KISSINGER, 2011, p. 242.*** CASTRO, 1961, p. 18.

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simples, de qualquer proposta sobre o problema da representação da China. A resolução número 1.668/61 foi aprovada por 61 votos a fa-vor, 34 contra e 20 abstenções. E o Brasil, que tanta marola fez sobre o assunto, votou com os Estados Unidos. A jogada adiou por dez anos o sonho dos comunistas chineses de ingressar na ONU, onde só � ncariam o pé, de� nitivamente, em 25 de outubro de 1971.

A missão comercial che� ada por Jango à China reunia 22 pessoas e era uma colcha de retalhos: havia seis convidados do vice-presidente, uma co-mitiva parlamentar com quatro integrantes e o grupo técnico, que incluía, além da equipe do Itamaraty, representantes da indústria brasileira e do Banco do Brasil — este último era o único que tinha procuração formal do governo brasileiro para assinar um acordo de comércio e de pagamentos com os chineses. O documento, aliás, foi a forma legal encontrada pelo Ita-maraty para justi� car a viagem e o relacionamento com um país cuja exis-tência o Brasil não reconhecia. Enquanto o grupo técnico buscava amarrar o tal acordo com os chineses, os parlamentares e o grupo de convidados de Jango deliciavam-se com os aspectos sociais e políticos da viagem.

Em Pequim, sucederam-se essas recepções com autoridades. Todas as noi-tes havia sempre um espetáculo, uma Ópera de Pequim, com uma mensa-gem revolucionária, ou uma demonstração de ginastas, muito agradável... E havia almoços, jantares, naquele sistema em que eles botam dez, doze, catorze pratos em cima da mesa, em pequena quantidade. Havia soleni-dades, visitas — eu me lembro de que um dia fui fazer uma visita a uma siderúrgica com um grupo da delegação comercial, fui ao local onde foi fundado o Partido Comunista Chinês, visitei as muralhas, o Palácio Im-perial. Lá soubemos que o assessor principal para cuidar da conservação e da memória desses prédios antigos, ligado ao velho Império Chinês, era um membro da dinastia Manchu, que fazia parte do governo.*

Na China, os parlamentares exigiram que fossem hospedados na Vila de Hóspedes de Honra, em que estavam o vice-presidente e seus con-vidados. Tratava-se da residência o� cial, que oferecia mais conforto que o

* SILVA, 1997, p. 326.

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O caso dos nove chineses

Hotel Pequim, onde foram inicialmente acomodados, junto com os de-mais integrantes da missão. Um dos insatisfeitos era o senador Dix-Huit Rosado, do PTB do Rio Grande do Norte. Filho de uma família de coro-néis de Mossoró, o senador — cujo nome, “dezoito” em francês, devia-se a um costume de seu pai de batizar seus 21 � lhos com números ordinais em latim ou na língua de Napoleão — � cou revoltado com o fato de os chineses cobrarem a conta de seus telegramas, como lembra Villarinho:

Um dia, na China, Dix-Huit me chamou e disse: “Você tem que apre-sentar um protesto formal a esses chineses. Lá na Rússia me deram uma franquia e eu passei telegrama para todo mundo, para os jornais de Na-tal, para os meus cabos eleitorais, para a minha família. Chego aqui e esses chineses me apresentam uma conta imensa de telegramas.”*

O próprio Jango fazia questão de demarcar os limites da atuação de seu grupo e do grupo liderado por Araújo Castro. O posicionamento já havia � cado claro em Moscou. Uma noite, Villarinho foi levar um bilhete de Araújo Castro para Jango no hotel dos dirigentes soviéti-cos, onde ele se hospedara com seus convidados. O teor do bilhete era quente: os russos pressionavam por uma decisão do Brasil a respeito do reatamento de relações diplomáticas, temerosos de que os chineses con-seguissem o feito antes deles. A� nal, a União Soviética já tinha um acor-do comercial com o Brasil assinado desde dezembro de 1959 e cujo teor fora ampliado em abril de 1961, permitindo, inclusive, a instalação de delegações permanentes entre os dois países e linhas de crédito para em-presas privadas brasileiras no valor total de até 80 milhões de dólares.** Vale lembrar ainda que, já nessa época, soviéticos e chineses começavam a se desentender por questões de fronteira. O embate resultaria, anos depois, numa guerra e no afastamento dos dois gigantes comunistas.

Eu lembro que o Castro fez um bilhete e fui levar ao palácio, onde es-tavam hospedados Jango e sua turma. Bato na porta, alguém do grupo

* Depoimento de Villarinho aos autores, setembro de 2013.** Leão Moura assinou um protocolo de expansão do comércio Brasil-Rússia. Correio da Ma-nhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1961.

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Capítulo 1 – A missão de 1961: onde tudo começou

me reconhece e grita para o vice-presidente: “É o cônsul Villarinho.” Eu entro e me deparo com Jango de cueca tomando chimarrão com seus convivas. “O que o Castro quer?”, ele pergunta. Explico a preocupação dos soviéticos e ele diz: “Isso é coisa de vocês, do Itamaraty. Quem segu-ra isso é o Itamaraty.”*

Assim que voltou da viagem, Araújo Castro produziu um relatório secreto de 27 páginas sobre os aspectos políticos da visita. No docu-mento, uma crítica implacável ao comportamento de Jango durante a missão, o embaixador mostrava-se extremamente temeroso acerca da repercussão daquela viagem na política interna do Brasil.

A gravidade do momento político brasileiro impõe-me o dever de tudo narrar, fria e secamente, sem o receio de ser mal interpretado e sem o receio de quaisquer consequências que possam advir. [...] Olhando hoje para trás vemos os vinte dias de Rússia e China como um longo pesade-lo: uma interminável procissão de cortesias e gentilezas, um policiamen-to implacável, uma comprometedora preocupação de envolvimento, um nunca acabar de brindes à “indissolúvel amizade entre os dois países e entre os dois povos”. O fato de estar o vice-presidente da República do Brasil à frente da missão comercial tornava impossível, totalmente impossível, eliminar certos aspectos políticos indesejáveis.**

O relatório, nitroglicerina pura, revelava os bastidores da missão de Jango à China e os embaraços diplomáticos criados pela índole po-pulista do vice-presidente. Guardado por cinquenta anos nos cofres do Itamaraty, foi desclassi� cado e aberto à consulta. Apesar de sua extrema relevância como documento histórico, o relatório nunca veio a público integralmente. Uma segunda cópia do documento � cou em poder de Villarinho, então um jovem de 26 anos e com apenas dois na diplo-macia. Atualmente, é o único sobrevivente daquela missão. Villarinho conta que o grande temor era que o relatório chegasse às mãos dos

* Leão Moura assinou um protocolo de expansão do comércio Brasil-Rússia. Correio da Ma-nhã, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1961.** CASTRO, 1961.

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ministros militares, pois “dizia coisas do Jango que poderiam ser usadas contra ele naquele contexto”.* O documento de Araújo Castro foi � na-lizado em 4 de setembro de 1961. Nesse momento, a missão já tinha regressado ao Brasil, mas numa situação completamente diferente da-quela que existia quando seus integrantes embarcaram rumo ao Orien-te. João Belchior Marques Goulart viajou vice e voltou presidente. Jânio Quadros renunciara à Presidência em 25 de agosto, e o país estava sob regime parlamentarista — fruto de um acordo entre a classe política e os militares para garantir o retorno de Jango ao Brasil e sua posse, mesmo sem exercer o poder de fato para o qual fora eleito legitimamente.

A viagem ao Oriente e, principalmente, a epopeia chinesa, contribu-íram para transformar Jango, na avaliação dos militares e de anticomu-nistas como o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, no líder que iria implantar o comunismo no Brasil. De nada adiantaram os pedidos de prudência e cautela de Araújo Castro. Logo na chegada a Pequim, Jango referiu-se inadvertidamente ao reatamento das relações comer-ciais entre os dois países.

O discurso do então vice-presidente em um comício com 10 mil pessoas, no dia 17 de agosto, no Palácio do Povo, em Pequim, teve imensa repercussão no Brasil. Embora tenha ressaltado que falava como presidente do PTB, Jango defendeu abertamente o ingresso da RPC nas Nações Unidas, avançando sobre a posição o� cial brasileira, que se limitava a votar a favor do debate da questão chinesa na ONU. A declaração seria con� rmada por Jango no � m da viagem, no dia 24, durante uma entrevista coletiva em Hong Kong, na época uma colônia inglesa.

No Brasil, Jânio Quadros não deixava por menos. No dia 19, dois dias depois do discurso bombástico do vice-presidente, o presidente condecorava com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a comen-da mais importante da República, o líder revolucionário Che Guevara. A homenagem a Che, evidentemente, gerou polêmica nos jornais, no meio político e nas Forças Armadas — alguns militares, anteriormente agraciados com a condecoração, ameaçaram devolvê-la.

* Depoimento aos autores, setembro de 2013.

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Capítulo 1 – A missão de 1961: onde tudo começou

Enquanto isso, na China, a troca de afabilidades entre Jango e Mao Tsé-tung também assombrou os que enxergavam fantasmas do comunismo em cada sindicato ou organização de trabalhadores e estu-dantes no Brasil. O vice-presidente se encontrou duas vezes com o líder máximo dos comunistas chineses no balneário de Hangchow, vizinho a Xangai, local preferido de descanso do presidente do Partido Comu-nista Chinês.

A primeira reunião ocorreu no dia 18, quando Jango foi ao ga-binete o� cial de Mao. Ali, conversaram longamente e a sós. Segundo telegrama de Goulart a Jânio, o líder chinês destacara a “� rmeza” do presidente na defesa do princípio de autodeterminação dos povos.* No dia seguinte, o timoneiro da revolução comunista chinesa retribuía a visita de Jango, indo ao seu encontro no hotel onde o visitante estava hospedado em Hangchow.** O vice-presidente, por sua vez, também já havia prestado sua homenagem pública a Mao e à revolução chinesa no comício no Palácio do Povo:

A China Popular, debaixo da direção do grande líder Mao Tsé-tung, é uma realidade e um exemplo que explica como um povo, que sofria o desprezo de outros durante muitos séculos no passado, pode emancipar--se do jugo dos exploradores. [...] Como alguém estreitamente ligado com as gloriosas lutas da comunidade dos operários do meu país, que-ro expressar meu profundo apreço aos trabalhadores, tanto do campo como da cidade, por sua heroica e extraordinária participação na edi� -cação de uma Nova China livre e poderosa.***

Nem tudo, porém, se resumiu a elogios mútuos e vivas à amizade sino-brasileira. O fato é que o discurso pró-China de Jango no Palácio do Povo foi precedido, um dia antes, 16 de agosto, por momentos de tensão entre o vice-primeiro-ministro do Comércio Exterior, Lu Hsu--chang, e Araújo Castro, que estavam à frente das negociações formais entre os dois países. O embaixador brasileiro havia recebido do Ita-

* Trocas de US$ 56 milhões entre o Brasil e a China. Correio da Manhã, 24 de agosto de 1961.** Homenagens a João Goulart na China. Correio da Manhã, 20 de agosto de 1961.*** MARKUN e HAMILTON, 2001, p. 16.

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maraty instruções para assinar apenas um acordo interbancário e de comércio, mas Lu Hsu-chang alegou que João Goulart e Chu En-lai, primeiro-ministro da RPC, teriam acertado algo mais abrangente, que incluía um acordo de governo a governo. Jango, certamente, havia sido capturado pelos “olhos luminosos” do premiê chinês, como di-zia Kissinger, e topara ir além. Preocupado com as consequências que um documento como esse poderia trazer para as relações entre Brasil e Taiwan, Araújo decidiu suspender as negociações naquele momento, até que conseguisse falar com João Goulart. Um grande impasse se ar-mara, já que Lu Hsu-chang insistia que não poderia mudar uma linha sequer do acordo.

Não consegui falar imediatamente com o vice-presidente, pois está-vamos todos convidados a um espetáculo de acrobacia por artistas da Ópera de Pequim e, somente, às onze horas da noite, na antevéspera da partida do vice-presidente, pude expor-lhes o grave impasse em que nos encontrávamos. Com efeito, num intervalo de representação dos acrobatas, o vice-ministro de Comércio Exterior me disse que o gover-no chinês, por uma questão de dignidade nacional, não poderia ceder sobre esse ponto. Não podia ele conceber que o Brasil, que dava agora à China a honra de enviar-lhe uma delegação che� ada pelo próprio vice--presidente da República, quisesse tratar o governo de Pequim como um grupo de particulares. [...] O argumento era realmente irretorquível e, por isso, silenciei. Nun-ca, na história das relações diplomáticas entre os povos, foi um governo não reconhecido tratado com tanta deferência o� cial. O vice-presidente João Goulart foi inteiramente honesto comigo. Disse-me que talvez ti-vesse compreendido mal a proposta de Chu En-lai e talvez tivesse anuí-do à mesma, sem pleno conhecimento da causa. [...] Em nossa missão, apenas o doutor Eleutério Proença de Gouveia [representante do Banco do Brasil] trazia poderes para � rmar um acordo com os chineses [...] Nem ele, vice-presidente, nem eu possuíamos carta formal de plenos poderes e não tínhamos saída senão suspender as negociações.*

* CASTRO, 1961, p. 21-22.

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Capítulo 1 – A missão de 1961: onde tudo começou

Dadas as di� culdades de comunicação com Brasília por conta da ausência de códigos telegrá� cos na delegação, Araújo Castro aconselhou Jango a falar diretamente com Chu En-lai, expondo o impasse e sua incompetência, mesmo sendo vice-presidente, de autorizar um acordo como aquele. O primeiro-ministro da República Popular da China, po-rém, viajava pelo interior do país em companhia do presidente de Gana, Kwame Nkrumah. A solução foi apelar para a terceira maior autoridade chinesa: o vice-presidente e ministro da Fazenda, Li Nien Sien.

A entrevista com o ministro da Fazenda realizou-se, sem a minha presen-ça, na manhã do dia 17 de julho. À tarde, ao encontrar-me, o vice-presi-dente anunciou-me que, à vista das razões “políticas” por ele apresentadas, os chineses aceitavam agora “a assinatura de qualquer acordo”. Essa inter-venção do vice-presidente removeu o grande obstáculo ao prosseguimen-to das negociações, que assim puderam decorrer livremente.*

Com o � m do impasse, o acordo de comércio e pagamentos entre o Banco do Brasil e o Banco Popular da China pôde ser assinado em 21 de agosto de 1961. As negociações também incluíram a troca anual de delegações comerciais entre os dois países. Nas reuniões técnicas para discussão do documento, um dos negociadores era Wang Yaoting, en-tão vice-diretor da Companhia Nacional Chinesa para Exportação e Importação de Têxteis (China Tex, abreviatura usada no mercado inter-nacional). Em três anos seu destino mudaria drasticamente: se tornaria um dos nove chineses presos pela ditadura militar brasileira. Em 1961, porém, Wang Yaoting integrava o grupo de negociadores chineses que, em conjunto com seus pares brasileiros, iria discutir o intercâmbio co-mercial entre os dois países e apontar uma lista de mercadorias para possíveis trocas comerciais.

A China Tex era uma das mais poderosas entre as 15 organizações estatais de comércio da China. No � m dos anos 1950 e início dos 1960, a indústria têxtil tinha um peso signi� cativo nas exportações chinesas. Mais de 20% da pauta de importações da União Soviética, principal comprador de produtos chineses, eram compostos por tecidos e matérias-primas para

* CASTRO, 1961, p. 22.

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a indústria têxtil, como lã, seda e algodão.* A companhia de Wang Yaoting também se responsabilizava pela compra de algodão destinada à indústria nacional. Embora fosse uma tradicional produtora da matéria-prima, a China precisava importá-la em quantidades crescentes para atender à ascen-dente demanda do setor. Na época, os principais fornecedores dos chineses eram Índia, Paquistão, Birmânia e, em menor quantidade, Egito e Síria. O Brasil � gurava como um fornecedor eventual, pois não tinha relações comerciais com a República Popular da China. O acordo interbancário e de comércio, assinado durante a visita de Jango, poderia mudar esse quadro — pelo menos, era o que chineses e brasileiros almejavam dali para a frente.

O fato é que a abrupta renúncia de Jânio Quadros embaralhou todo o quadro político-institucional do Brasil. Com di� culdades de lidar com o Congresso, onde não tinha maioria, e sofrendo pressão de sua base aliada, em especial do governador Carlos Lacerda, que não aceitava os rumos de sua política externa, Jânio achava que, ao usar o recurso extremo, poderia dar o golpe e voltar nos braços do povo, com poderes napoleônicos. A via-gem do vice-presidente à China fazia parte da estratégia. No dia 24, véspera da renúncia, Jânio ligou para o chanceler Afonso Arinos. Os dois mantive-ram um diálogo revelador, como conta o jornalista Carlos Castello Branco:

— Ministro, onde está Jango hoje?Arinos respondeu-lhe que não havia lido ainda o despacho diário que lhe enviava do Oriente o ministro Araújo Castro, designado para acom-panhar o vice-presidente.— Vou veri� car — disse — e depois transmitirei a notícia a Vossa Excelência.— Não, ministro, veri� que agora. Eu espero no telefone.O chanceler mandou buscar o despacho e informou:— Chega amanhã a Hong Kong.Seguiu-se um silêncio. O presidente a� nal observou:— Longe, não é?Agradeceu e despediu-se.**

* PEDROSO, 1961.** BRANCO, 1996, p. 75.

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No dia 25 de agosto de 1961, Jânio renunciava à Presidência da República, dizendo-se “esmagado” por “forças terríveis” que se levanta-vam contra ele e seu governo. Após surpreender o país, o presidente em-barcou para São Paulo com a faixa presidencial a tiracolo, num indício de que sua decisão não era séria. A faixa, porém, voltou a Brasília, mais tarde, pelas mãos do seu ajudante de ordens. O plano foi revelado pelo próprio presidente em entrevista ao neto anos depois.

Tudo foi muito bem planejado e organizado. Mandei o João Goulart em missão o� cial à China, no lugar mais longe possível. Assim, ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta de renúncia a 19 de agosto e entreguei para o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Eu acreditava que não haveria nin-guém para assumir a Presidência. Pensei que os militares, os governa-dores e, principalmente, o povo, nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu � casse no poder. [...] O Jango era inteiramente inacei-tável para a elite. [...] Achei que eu voltaria de Santos para Brasília na glória. Na verdade, renunciando, eu pedi um voto de con� ança à minha permanência no poder. Fui reprovado e o povo pagou um preço muito caro. Deu tudo errado.*

João Goulart soube da renúncia em Cingapura, no dia 26. Vol-tou ao Brasil pelo caminho mais longo. Saiu de Cingapura, fez escala na Malásia e voou até Paris, onde, numa entrevista a jornalistas, que o indagaram se era comunista, respondeu: “Sou católico praticante. O trabalhismo brasileiro nada tem a ver com o materialismo dialético.”** Optou por ir para Nova York, pela rota do Pací� co, pois, se voltasse pela Europa, teria que, obrigatoriamente, pousar em um aeroporto do litoral brasileiro e poderia, assim, ver a ameaça de prendê-lo ser cumprida pelo ministro da Guerra, Odílio Denys. De Nova York, Jango embarcou para Buenos Aires em um voo com escalas em Miami, Cidade do Panamá e Lima. No aeroporto de Miami, militantes anticastristas estenderam faixas contra ele, que reproduziam a radicalização da época — “Castro e

* MARKUN e HAMILTON, 2001, p. 135-136.** VILLA, 2003, p. 49.

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Goulart são comunistas”, “Brasil sim, China, não” e “Democracia para o Brasil, comunismo, não”.*

Da capital argentina, Jango embarcou para Montevidéu. Entrou em solo brasileiro por Porto Alegre, onde o governador Leonel Brizola já o esperava no Palácio Piratini, no dia 1o de setembro de 1961. Da renúncia de Jânio até a volta do vice-presidente, Brizola articulou, com o apoio do comandante do 3o Exército, general Machado Lopes, uma cadeia de rádio em prol da posse do vice. O movimento tomou o Rio Grande do Sul e se espalhou pelo Brasil. Entrou para a História como a Campanha da Legalidade.

Jango conseguiu assumir a Presidência no dia 7 de setembro, treze dias depois de saber que se tornara presidente. A posse, porém, só foi possível graças à aprovação da Emenda Constitucional no 4, que insti-tuía o parlamentarismo no Brasil, prevendo um plebiscito para início de 1965 sobre a continuidade ou não do novo regime de governo. Essa foi a fórmula encontrada para que os militares o aceitassem. O plebiscito foi antecipado para 6 de janeiro de 1963 e o presidencialismo ganhou com larga maioria — mais de 80% dos 11,5 milhões de eleitores que foram às urnas votaram pela sua volta. João Goulart passou a ser presi-dente de fato e de direito.

Pouco antes, no dia 20 de novembro de 1962, havia desembarcado no Rio de Janeiro a segunda missão comercial chinesa, liderada pelo deputado Chi Chao Ting, vice-presidente do Conselho Chinês para a Promoção do Comércio Internacional. A visita era em retribuição à via-gem de João Goulart à China, e tinha como objetivo estudar o incre-mento comercial entre os dois países com base no acordo interbancário assinado em agosto de 1961. No Aeroporto do Galeão, porém, não foi armada nenhuma recepção triunfal, como a que fora oferecida ao então vice-presidente em Pequim. A delegação, composta por seis integrantes, foi recebida por um grupo de técnicos do Banco do Brasil. A institui-ção foi o interlocutor do governo brasileiro, e o Itamaraty limitou-se a acompanhar os entendimentos.

* VILLA, 2003, p. 50.

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Algo, no entanto, havia mudado, pelo menos da parte da delegação bra-

sileira. Do relatório sobre os encontros, constava a informação de que

“uma inexplicável atitude de hostilidade de parte de algumas pessoas

presentes (não as identi] cava) quase fez fracassar a primeira reunião”.

Prosseguiram, contudo, as conversações (graças à “hábil condução dos

trabalhos pelo gerente da Cacex”),* mas as perspectivas de resultados

concretos eram muito reduzidas, tal como, aliás, já antecipara Araújo

Castro, nas suas infrutíferas conversas com Goulart [...].**

A pouca perspectiva de trocas comerciais entre o Brasil e a China já havia sido vislumbrada antes mesmo da viagem de Jango ao país. O estudo feito pelo então cônsul Luiz Villarinho Pedroso, em maio de 1961, a pedido do presidente Jânio Quadros, já apontava nesta direção, ao a] rmar que “a pauta exportadora chinesa não tem sido [...] indicativa de produtos nos quais se possa fundamentar um intercâmbio regular entre os dois países”.*** O trabalho, de 62 páginas, feito com base em informações da divisão de pesquisa da revista � e Economist, chegava à conclusão de que Brasil e China tinham per] s muito semelhantes: eram, basicamente, países pobres e exportadores de matérias-primas e de alguns produtos de valor agregado. O apelo de Jânio, de que o Bra-sil não poderia “ignorar a existência de um país de 600 milhões de habitantes”,**** era uma mera ilusão quantitativa.

A delegação liderada pelo deputado Chi Chao Tang ] cou no Brasil por quase 15 dias, mas não chegou a ser recebida pelo presidente João Goulart. Além das reuniões com funcionários do Banco do Brasil e da Cacex, o grupo visitou empresas de Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e

* A Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil S.A. (Cacex) foi criada em 1953 no governo de Getúlio Vargas em substituição à antiga Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil. Entre suas principais funções estavam o licenciamento de exportações e importações, o ] nanciamento do comércio exterior brasileiro e a construção das estatísticas o] ciais sobre exportações e importações. Apesar de nunca ter sido o] cialmente extinta, a Ca-cex foi desativada no governo de Fernando Collor, em 1990. Atualmente, suas funções estão distribuídas pela administração direta, na Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e na Agên-cia do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).** AMADO, 1984, p. 59.*** PEDROSO, 1961, p. 53.**** CASTRO, 1961, p. 5.

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Porto Alegre. Apesar dos contatos e do interesse em importar algodão e açúcar, nenhum contrato foi fechado. Técnicos da Cacex alegavam que os dois produtos estavam “colocados no mercado mundial”. No caso do açúcar, o principal mercado brasileiro eram os Estados Unidos, que, in-clusive, “pagam preços acima da cotação mundial”. Já sobre o algodão, “só existe em pequena quantidade no norte do país”.*

Todos os passos dos visitantes, desde a chegada, no Aeroporto do Galeão, foram acompanhados de perto pelos compatriotas Wang Wei-zhen e Ju Qingdong, jornalistas da Xinhua, a agência de notícias o] cial da China. Os dois também estariam entre os nove chineses presos pela polícia política de Lacerda em abril de 1964.

Durante as reuniões técnicas com seus interlocutores do Banco do Brasil, os chineses lembraram que, na visita a Pequim, ] cou acertada a organização de uma mostra de produtos chineses. A exposição havia sido autorizada por Jânio Quadros. O presidente enviara, no dia 15 de maio de 1961, um dos seus famosos bilhetinhos para o ministro da Indústria e Comércio, Artur Bernardes Filho, comunicando sua decisão e determinando que organizasse um grupo de trabalho para estudar e preparar um relatório sobre a questão em vinte dias. No dia 31 de maio daquele ano, o Diário O] cial da União publicava o parecer favorável à realização da exposição.**

Para os técnicos, porém, parecia prudente adiar a realização do evento, em decorrência de todos os acontecimentos políticos ocorri-dos no país até aquele momento. Ficou previamente acertado, então, que uma missão preparatória do Ministério do Comércio Exterior da China seria enviada ao Brasil para visitar os possíveis espaços para a exposição. Em 6 de junho de 1963, desembarcavam no Rio de Janeiro os chineses Su Ziping, Wang Zhi, Zhang Baosheng e Hou Fazeng. Se-riam eles os responsáveis por achar o melhor lugar para a exposição de produtos da China.

A operação, que parecia ser simples — conduzir a missão prepa-ratória de produtos chineses no Brasil —, se revelou bem mais com-plicada que o previsto. O golpe militar pôs ] m aos planos chineses de

* Comércio Brasil-China promete. Correio da Manhã, 25 de novembro de 1962.** Superior Tribunal Militar. Processo de Apelação 34.582/65, 4o vol., folhas 1.642 e 1.643.

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vender seus produtos ao governo e a empresários brasileiros. O acordo interbancário e de comércio, assinado com pompa e circunstância, em agosto de 1961, foi denunciado unilateralmente pelo Banco Popular da China em 1965, abrindo-se, assim, um abismo nas perspectivas das relações sino-brasileiras. Os dois países só iriam voltar à mesa de ne-gociações em agosto de 1974, após o estabelecimento das relações di-plomáticas, articulada pelo mesmo regime militar que, dez anos antes, prendera e condenara os nove chineses.