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A Modernidade de Baudelaire

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Page 1: A Modernidade de Baudelaire

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Page 2: A Modernidade de Baudelaire

Copyright byEditora Paz e Terra, 1988

CapaDap Design

sobre óleo de Gustave Courbet: Portrait of Baudelaire, 1849.Revisão

Márcia Courtouké MeninOscar Faria Menin

Bárbara Eleodora BenevidesArnaldo Rocha de Arruda

CIP-Branil. CntSindicato Nacional dos Editor** de Livroe, KJ.

Baudelaire, Charle», 1821-18Í7.BMtm A modernidade de Baudelaire / apMwntagão de Teixeira

Coelho ; tradução, Suei y Caasal. — Bio de Janeiro : Paze Terra 1988.

l - Baude]aire, Charles. 1821-1867 - Visão política esocial. I . Título.

88-1065CDD - 8«.9

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Conselho EditorialAntónio Cândido

Fernando GasparíanFernando Henrique Cardoso

1.° trimestre de 1988

Impresso no Brasil / Printed in BraiU

Sumário

Introdução

A Modernidade de Baudelaire

Para que Serve a Crítica

Do Heroísmo da Vida Moderna

A Exposição Universal de 19 5 5

Salão d e 1859

O Pintor da Vida Moderna

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O Pintor da Vida Moderna *

O Belo, a Moda e a Felicidade

Há neste mundo, e mesmo no mundo dosartistas, pessoas que vão ao Museu do Louvre,passam rapidamente — sem se dignar a olhar— diante de um número imenso de quadros muitointeressantes embora de segunda categoria e plan-tam-se sonhadoras diante de um Ticiano ou deum Rafael, um desses que foram mais populariza-dos pela gravura; depois todas saem satisfeitas,mais de uma dizendo consigo: "Conheço o meumuseu". Há também pessoas que, por terem ou-trora lido Bossuet e Racine, acreditam dominar ahistória da literatura.

::" Trata-se do desenhista, aquarelista e gravador ConstantinGuys (1805-1892). Artigo incluído no volume L'Art Ro-mantique, coletânea de artigos de crítica de arte, publica-dos postumamente em 1869. (N. do T.)

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Felizmente, de vez em quando aparecem jus-ticeiros, críticos, amadores e curiosos que afirmamnem cudo estar em Rafael nem em Racine, queos pwtae minores possuem algo de bom, de sólidoe de delicioso, e, finalmente, que mesmo amandotanto a beleza geral, expressa pelos poetas e artis-tas clássicos, nem por isso deixa de ser um errenegligenciar a beleza particular, a beleza de cir-cunstância e a pintura de costumes.

Devo convir que o mundo, de alguns anospara cá, se corrigiu um pouco. O valor que osamadores atribuem hoje aos mimos gravados e co-loridos do século XVIII prova que houve umareação na direção reclamada pelo público: Debu-court, os Saint-Aubín e muitos outros entrarampara o dicionário dos artistas dignos de serem es-tudados. Mas eles representam o passado. Ora,hoje quero me ater estritamente à pintura de cos-tumes do presente. O passado é interessante nãosomente pela beleza que dele souberam extrair osartistas para quem constituía o presente, masigualmente como passado, por seu valor histórico.O mesmo ocorre com o presente. O prazer queobtemos cem a representação do presente deve-senão apenas à beleza de que ele pode estar reves-tido, mas também à sua qualidade essencial depresente.

Tenho diante dos olhos uma série de gravu-ras de modas que começam na Revolução e ter-minam aproximadamente no Consulado. Esses tra-jes que provocam o riso de muitas pessoas insen-satas, essas pessoas sérias sem verdadeira seriedadeapresentam um fascínio de uma dupla natureza,ou seja, artístico e histórico. Eles quase sempresão belos e desenhados com elegância, mas o queme importa, pelo menos em idêntica medida, e oque me apraz encontrar em todos ou em quase

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todos é a moral e a estética da época. A ideia queo homem tem <b belo imprime-se em todo o seuvestuário, toma sua roupa franzida ou rígida,arredonda ou alinha seu gesto e inclusive impreg-na sutilmente, com o passar do tempo, os traçosde seu rosto. O homem acaba por se assemelharàqui lo que gosuria de ser. Essas gravuras podemser traduzidas em belo e em feio; em feio, tor-nam-se caricaturas; em belo, estátuas antigas.

As mulheres que envergavam esses trajes separeciam mais eu menos umas às outras, segundoo grau de poesia ou de vulgaridade que as distin-guia. A matéria viva tornava ondulante o que nosparece muito rígido. A imaginação do espectadorpode ainda hoje movimentar e fremir esta tiínicaou este xale. Talvez, um dia desses, será montadoum drama num teatro qualquer, onde presencia-remos a ressurreição desses costumes nos quais nos-sos pais se achavam tão atraentes quanto nós mes-mos em nossas pobres roupas (que também têmsua graça, é verdade, mas de uma natureza so-bretudo moral e espiritual, e se forem vestidose animados por atrízes e atores inteligentes, nósnos admiraremos de nos terem despertado o risode modo tão leviano. O passado, conservando osabor do fantasma, recuperará a luz e o movi-mento da vida, e se tornará presente.

Se um homem imparcial folheasse uma a umaiodas as modas francesas desde a origem da Fran-ça até o momento, nada encontraria de chocantenem de surpreendente. Seria possível ver, sim, astransições organizadas de forma tão gradativaquanto na escala do mundo animal. Nenhuma la-cuna; logo, nenhuma surpresa. E se ele acrescen-tasse à vinheta que representa cada época o pen-samento filosófico que mais a ocupou ou agitou,pensamento cuja lembrança é inevitavelmente

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evocidi pela vinheta, constataria a profunda har-monia que rege toda a equipe da história, e que,mesmo nos séculos que nos parecem mais mons-truosos e insanos, o imortal apetite do belo semprefoi saciado.

Na verdade, esta é uma bela ocasião para es-tabelecer uma teoria racional e histórica do belo,em oposição à teoria do belo único e absoluto;para mostrar que o belo inevitavelmente sempretem uma dupla dimensão, embora a impressão queproduza seja uma, pois a dificuldade em discer-nir os elementos variáveis do belo na unidade daimpressão não diminui em nada a necessidade davariedade em sua composição. O belo é consti-tuído per um elemento eterno, invariável, cujaquantidade é excessivamente difícil determinar, ede um elemento relativo, circunstancial, que será,se quisermos, sucessiva ou combinadamente, aépoca, a moda, a moral, a paixão. Sem esse se-gundo elemento, que é como o invólucro aprazí-vel, palpitante, aperitivo do divino manjar, o pri-meiro elemento seria indigerível, inapreciável, nãoadaptado e não apropriado à natureza humana.Desafio qualquer pessoa a descobrir qualquerexemplo de beleza que não contenha esses doiselementos.

Escolho, se preferirem, es dois escalões extre-mos da história. Na arte hierática, a dualidadesalta à vista; a parte de beleza eterna só se ma-nifesta com a permissão e dentro dos cânones dareligião a que o artista pertence. A dualidade seevidencia igualmente na obra mais frívola de umartista refinado pertencente a uma dessas épocasque qualificamos com excessiva vaidade de civili-zadas; a porção eterna de beleza estará ao mesmotempc velada e expressa, se não pela moda, ao me-

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nos pelo temperamento particular do autor. Adualidade da arte é uma consequência fatal dadualidade do homem. Considerem, se isso lhesapraz, a parte eternamente subsistente como a al-ma da arte, e o elemento variável como seu corpo.É por isso que Stmdhal, espírito impertinente, ir-ritante, até mesmo repugnante, mas cujas imper-tinências necessariamente provocam a meditação,se aproximou mais da verdade do que muitos ou-tros ao afirmar que o belo não é senão a promessada felicidade. Sem dúvida, tal definição excede seuobjetivo; ela submete de forma excessiva o belo aoideal indefinidamente variável da felicidade; des-poja com muita desenvoltura o belo de seu cará-ter aristocrático, mas tem o grande mérito deafastar-se decididamente do erro dos académicos.

Já expliquei estas coisas mais de uma vez;estas linhas são suficientes para aqueles que apre-ciam os exercícios do pensamento abstrato; massei que os leitores franceses, em sua maioria, nelespouco se comprazem e eu mesmo tenho pressa deentrar na parte positiva e real de meu tema.

O Croqui de Costumes

Para o croqui de costumes, a representaçãoda vida burguesa e os espetáculos da moda, o meiomais expedito e menos custoso evidentemente é omelhor. Quanto mais beleza o artista lhe confe-rir, mais preciosa será a obra; mas há na vida or-dinária, na metamorfose incessante das coisas ex-teriores, um movimento rápido que exige do ar-tista idêntica velocidade de execução. As gravu-

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rãs de váiiu tonalidades do século XVIII obti-veram novamente o favor da moda, como euaf i rmava há pouco; o pastel, a água-forte, a água-tinta forneceram sucessivamente seus contingen-tes pira o imenso dicionário da vida moderna dis-seminado nas bibliotecas, nas pastas dos amadorese nas vitrines das lojas mais vulgares. A litografia,desde o seu surgimento, imediatamente se mos-trou bastante apta a essa enorme tarefa aparen-temente tão frívola. Possuímos, nesse género, ver-dadeiros monumentos. As obras de Gavarni c deDaurnier foram com justiça denominadas com-plementos da Comedia Humana. O próprio Bal-zac, tenho certeza absoluta, não estaria longe deadotar essa ideia, pela justa razão de que o géniode pintor de costumes é um génio de uma na-tureza mista, isto é, no qual entra uma boa dosede espírito literário. Observador, flâneur, filósofo,chamem-no como quiserem, mas, para caracteri-zar esse artista, certamente seremos levados aagraciá-lo com um epíteto que não poderíamosaplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo me-ncs mais duradouras, coisas heróicas ou religio-sas. Às vezes ele é um poeta; mais frequentemen-te aproxima-se do romancista ou do moralista; éo pintor do circunstancial e de tudo o que estesugere de eterno. Todos os países, para seu pra-zer e glória, possuíram alguns desses homens. Emnossa época atual, a Daumier e a Gavarni, pri-meiros nomes que nos vêm à memória, podem-seacrescentar os de Deveria, Maurin, Numa, histo-riadores das ambíguas belezas da Restauração;Wattier, Tassaert, Eugène Lami — este últimoquase inglês, de tanto amor pelas elegâncias aris-tocráticas — e inclusive Trimolet e Traviès, cro-nistas da pobreza e da banalidade quotidiana.

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mO Artista,

Homem do Mundo,Homem de\ e Criança

Quero falar hoje de um homem singular,originalidade tão poderosa e tão decidida que sebasta a si própria e não busca sequer a aprovaçãode outrem. Nenhum de seus desenhos é assinado,se chamarmos assinatura essas poucas letras, pas-síveis de falsificação, que representam um nome,e que tantos apõem faustosamente embaixo deseus croquis mais insignificantes. Porém, todas assuas obras são assinadas com sua alma resplande-cente, e os amadores que as viram e apreciaramas reconhecerão sem dificuldade na descrição quedelas pretendo fazer. Enamorado pela multidão epelo incógnito, C. G. leva a originalidade às raiasda modéstia. Thackeray, que, como se sabe, in-teressa-se bastante pelas coisas de arte e desenhaele próprio as ilustrações de seus romances, umdia discorreu sobre G. num folhetim de Londres.G. irritou-se com o fato, como se se tratasse deum ultraje a seu pudor. Ainda recentemente,quando soube que eu me propunha fazer umaapreciação de seu espírito e talento, suplicou-me,de uma maneira muito imperiosa, que seu nomefosse suprimido e que só falasse das obras comoobras de um anónimo. Obedecerei humildementea esse estranho desejo. Fingiremos acreditar, o lei-tor e eu, que G. não existe e trataremos de seusdesenhos e aquarelas, pelos quais ele professa umdesdém aristocrático, agindo como esses pesquisa-dores que tivessem de julgar preciosos documen-tos históricos, fornecidos peto acaso, e cujo autordevesse permanecer eternamente desconhecido. In-

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clusiTe, ]>ara apaziguar completamente minhaconsciência, vamos supor que tudo quanto tenhoa dizer sobre sua natureza, tão curiosa e misterio-samente brilhante, é justamente sugerido, mais oumenos, pelas obras em questão; pura hipótesepoética, conjetura, trabalho de imaginação.

G. é velho. Comenta-se que Jean-Jacquescomeçou a escrever aos quarenta e dois anos. Foitalvez por essa idade que G., obcecado por todasas imagens que lhe povoavam o cérebro, teve aaudácia de espargir tintas e cores sobre uma folhabranca. Para dizer a verdade, ele desenhava comoum bárbaro, como uma criança, irritando-se con-tra a imperícia de seus dedos e a desobediência deseu instrumento. Vi muitas dessas garatujas pri-mitivas e confesso que a maioria das pessoas capa-zes de julgar, ou com essa pretensão, teria po-dido, sem desabono, não adivinhar o génio latenteque habitava esses tenebrosos esboços. AtualmenteG., que descobriu sozinho todos os pequenos tru-ques do ofício e, sem receber conselhos, realizousua própria formação, tornou-se um admirávelmestre à sua maneira, conservando da simplicidadeinicial apenas o necessário para acrescentar às suasmais ricas faculdades um toque desconcertante.Quando ele descobre uma dessas tentativas de suajuventude, rasga-a ou queima-a com uma vergo-nha das mais divertidas.

Durante dez anos desejei travar conhecimen-to com G., que é, por temperamento, apaixonadopor viagens e muito cosmopolita. Sabia que du-rante muito tempo ele fora correspondente deum jornal inglês ilustrado e que nele publicaragravuras a. partir de seus croquis de viagem (Es-panha, Turquia, Criméia). Vi, desde essa época,uma quantidade considerável desses desenhos im-provisados rics próprios locais e pude ler assim

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uma crónica minuciosa e diária da campanha daCriméia, melhor do que qualquer outra. O mes-mo jornal publicara também, sempre sem assina-tura, inúmeras composições do mesmo autor, ins-piradas nos bales e óperas recentes. Quando final-mente o conheci, logo vi que não se tratava pre-cisamente de um artista, mas antes de um homemdo mundo. Entenda-se aqui, por favor, a palavraartista num sentido muito restrito, e a expressãohomem do mundo num sentido muito amplo. Ho-mem do mundo, isto é, homem do mundo inteiro,homem que compreende o mundo e as razões mis-teriosas e legítimas de todos os seus costumes; ar-tista, isto é, especialista, homem subordinado à suapalheta como o servo à gleba. G. não gosta de serchamado de artista. Não teria ele alguma razão?Ele se interessa pelo mundo inteiro; quer saber,compreender, apreciar tudo o que acontece na su-perfície de nosso esferóide. O artista vive pou-quíssimo — ou até não vive — no mundo mo-ral e político. O que mora no bairro Bréda igno-ra o que se passa no fauhourg Saint-Germain. Sal-vo duas ou três exceções que não vale a penamencionar, a maioria dos artistas são, deve-se con-vir, uns brutos muito hábeis, simples artesãos, in-teligências provincianas, mentalidades de cidadepequena. Sua conversa, forçosamente limitada aum circulo muito restrito, torna-se rapidamenteinsuportável para o homem do mundo, para o ci-dadão espiritual do universo.

Assim, para entrar na compreensão de G.,anotem imediatamente o seguinte: a curiosidadepede ser considerada como ponto de partida deseu génio.

Lembram-se de um quadro (e um quadro,na verdade!) escrito pelo mais poderoso autordesta época e que se intuía L'Homme dês Foules

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(O Hi*iiti*tfí tias Multidões) ? Atrás das vidraça •*de um caie, um convalescente, contemplando comprazer a iniikidão, mistura-se mentalmente a to-dos os pensamentos que se agitam à sua volta. Res-gatado há puuco das sombras da morte, ele aspiracom deleite todos os indícios e eflúvios da vida;como estava prestes a tudo esquecer, lembra-se equer ardentemente lembrar-se de tudo. Finalmen-te, precipita-se no meio da multidão à procurade um desconhecido cuja fisionomia, apenas vis-lumbrada , fascinou-o num relance. A curiosidadetransformou-se numa paixão fatal, irresistível!

Imagine-se um artista que estivesse sempre,espiritualmente, em estado de convalescença e seterá a chave do caráter de G.

Ora, a convalescença c como uma volta àinfância. O convalescente goza, no mais alto grau,como a criança, da faculdade de se interessar in-tensamente pelas coisas, mesmo por aquelas queaparentemente se mostram as mais triviais. Re-tornemos, se possível, através de um esforço re-trospectivo da imaginação, às mais jovens, às maismatinais de nossas impressões, e constataremos queelas possuem um singular parentesco com as im-pressões tão vivamente coloridas que recebemosulteriormente, depois de uma doença, desde queesta tenha deixado puras e intactas nossas facul-dades espirituais. A criança vê tudo como novi-dade; ela sempre está inebriada. Nada se parecetanto com o que chamamos inspiração quanto aalegria com que a criança absorve a forma e acor. Ousaria ir mais longe: afirmo que a inspira-ção tem alguma relação com a congestão, e quetodo pensamento sublime é acompanhado de umestremecimento nervoso, mais ou menos intenso,que repercute até no cerebelo. O homem de géniotem nervos sólidos; na criança, eles são fracos.

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Naquele, a razão ganhou um lugar considerável;nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser.Mas o génio é somente a infância redescoberta semlimites; a infância a$ora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e <lo espírito analítico que lhepermitem ordenar a soma de materiais involunta-riamente acumulada. É à curiosidade profunda ealegre que se deve atribuir o olhar fixo e animal-mente estático das crianças diante do novo, seja oque for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, te-cidos cintilantes, fascínio da beleza realçada pelotraje. Um de meus amigos dizia-me um dia que,ainda pequeno, via seu pai lavando-se e que entãocontemplava — com uma perplexidade mescladade deleite — os músculos dos braços, as gradaçõesde cores da pele matizada de rosa e amarelo, e arede azulada das veias. O quadro da vida exte-rior já o impregnava de respeito e se apoderavade seu cérebro. A forma já o obcecava e o possuía.A predestinação mostrava precocemente a pontado nariz. A danação estava consumada. É precisodizer que essa criança hoje é um pintor célebre?

Eu exortava meu leitor ainda há pouco a queconsiderasse G. como um eterno convalescente:para completar sua intelecção, considere-o tam-bém como um homem-criança, como um homemdominado a cada minuto pelo génio da infância,ou seja, um génio para o qual nenhum aspectoda vida é indiferente.

Dizia-lhe que me desagradava chamá-lo depuro artista e que ele próprio recusava esse títulocom uma modéstia mesclada de pudor aristocrá-tico. Eu o chamaria de bom grado dândi, e teriaalgumas boas razões para isso; pois a palavra dândiimplica uma quintessêncía de caráter e uma com-preensão sutil de todo mecanismo moral destemundo; mas, por outro lado, o dândi aspira à in-

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sensibilidade, e é por esse ângulo que G., que édominadc por uma paixão insaciável, a de ver ede sentir, se afasta violentamente do dandismo.Amabam amure, dizia Santo Agostinho. "Amoapaixonadamente a paixão", diria G. com natura-lidade. O dândi é entediado, ou finge sê-lo, porpolítica e razão de casta. G. tem horror às pes-soas entediadas. Ele possui a arte extremamentedifícil (os espíritos refinados irão me compreen-der) de ser sincero sem ser ridículo. Poderia con-decorá-lo com o título de filósofo, que ele merecepor várias razões, se seu amor excessivo pelas coi-sas visíveis, tangíveis, condensadas no estado plás-tico não lhe inspírasse uma certa repugnância poraquelas que formam o reino impalpável do me-tafísico. Vamos reduzi-lo, portanto, à condiçãode puro moralista pitoresco, como La Bruyère.

A multidão é seu universo, como o ar é odos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua pai-xão e profissão é desposar a multidão. Para operfeito flâneur, para o observador apaixonado, éum imenso jubilo fixar residência no numeroso,no ondulante, no movimento, no fugidio e no in-finito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se emcasa onde quer que se encontre; ver o mundo,estar no centro do mundo e permanecer ocultoao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres des-ses espíritos independentes, apaixonados, impar-ciais, que a linguagem não pode definir senão tos-camente. O observador é um príncipe que fruipor toda parte do fato de estar incógnito. O ama-dor da vida faz do mundo a sua família, tal comoo amador do belo sexo compõe sua família comtoda as belezas encontradas, encontráveis ouinencontráveis; tal como o amador de quadrosvive numa sociedade encantada de sonhos pinta-dos. Assim o apaixonado pela vida universal entra

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na multidão como se isso lhe aparecesse como umreservatório de eletricidade. Pode-se igualmentecompará-lo a um espelho tão imenso quanto essamultidão; a um caleidoscópio dotado de consci-ência, que, a cada uru de seus movimentos, re-presenta a vida múltipla e o encanto cambiantede todos os elementos da vida. É um eu insaciáveldo não-eUy que a cada instante o revela e o expri-me em imagens mais \ivas do que a própria vida,sempre instável e fugidia. "Todo homem", diziaG. um dia, numa dessas conversas que ele iluminacom um olhar intenso e um gesto evocativo, "todohomem que não é atormentado por uma dessastristezas de natureza demasiado concreta que ab-sorvem todas as faculdades, e que se entedia noseio da multidão, é um imbecil! Um imbecil! edesprezo-o!"

Quando G., ao despertar, abre os olhos e vêo sol flamejante invadindo as vidraças, diz parasi mesmo com remorso, com arrependimento:"Que ordem imperiosa! Que fanfarra de luz! Hámuitas horas já, luz em toda parte! Luz perdidapor causa de meu sono! Quantas coisas ilumina-das poderia ter visto e não vi!" E ele sai! E ob-serva fluir o rio da vitalidade, tão majestoso e bri-lhante. Admira a eterna beleza e a espantosa har-monia da vida \nas capitais, harmonia tão provi-dencialmente mantida no tumulto da liberdadehumana. Contempla as paisagens da cidade gran-de, paisagens de pedra acariciadas pela bruma oufustigadas pelos sopros do sol. Admira as belascarruagens, os garbosos cavalos, a limpeza relu-zente dos lacaios, a destreza dos criados, o andardas mulheres ondulosas, as belas crianças, felizespor viverem e estarem bem vestidas; resumindo, avida universal. Se uma moda, um corte de vestuá-rio foi levemente transformado, se os laços de

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fita e os caclos foram destronados pelas rosetas,se a manti-Uia se ampliou e o coque desceu umpouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e asaia alargada, acreditem que a uma distância enor-me seu olhar de águia já adivinhou. Um regimen-to passa, ele \'ai talvez ao fim do mundo, difun-dindo no ar dos bulevares suas fanfarras seduto-ras e diáfanas como a esperança; e eis que o olharde G. já viu, inspecíonou, analisou as armas, oporte e a fisionomia dessa tropa. Arreios, cintila-ções, música, olhares decididos, bigodes espessos égraves, tudo isso ele absorve simultaneamente; eem alguns minutos o poema que disso resulta es-tará virtualmente composto. E sua alma vive coma alma desse regimento que marcha como se fosseum único animal, altiva imagem da alegria naobediência!

Mas a noite chegou. É a hora estranha e am-bígua em que se fecham as cortinas do céu e seiluminam as cidades. Os revérberos se sobressaemsobre a púrpura do poente. Honestos ou desones-tos, sensatos ou insanos, os homens dizem consi-go: "Enfim, acabou-se o dia!" Os plácidos e os demá índole pensam no prazer e todos acorrem aolugar de sua preferência para beber a taça doesquecimento. G. será o último a partir de qual-quer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoara poesia, fervilhar a vida, vibrar a música; detodo lugar onde uma paixão possa posar diante deseus olhos, de todo lugar onde o homem natural eo homem convencional se mostrem numa belezaestranha, de todo lugar onde o sol ilumina as ale-grias efémeras do animal depravado! "Foi, comcerteza, uma jornada bem empregada", pensarácerto leitor que todos conhecemos. "Todos têmtalento suficiente para preenchê-la da mesma ma-neira." Não! Poucos homens são dotados da fa-

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culdade de ver; há ainda menos homens que pos-suem a capacidade de exprimir. Agora, à hora emque os outros estão dormindo, ele está curvadosobre sua mesa, lançando sobre uma folha de pa-pel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas,lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lan-çando água do copo até o teto, limpando a penana camisa, apressando, violento, ativo, como setemesse que as imagens lhe escapassem, belicoso,mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E ascoisas renascem no papel, naturais e, mais do quenaturais, belas; mais do que belas, singulares e do-tadas de uma vida entusiasta como a alma do au-tor. A fantasmagoria foi extraída da natureza.Todos os materiais atravancados na memóriaclassificam-se, ordenarn-se, harmonizam-se e so-frem essa idealização forçada que é o resultadode uma percepção infantil, isto é, de uma percep-ção aguda, mágica à força de ser ingénua!

IV

A Modernidade

Assim ele vai, corre, procura. O quê? Certa-mente esse homem, tal como o descrevi, esse soli-tário dotado de uma imaginação ativa, sempreviajando através do grande deserto de homens, temum objetivo mais elevado do que a de um sim-ples flâneur, um objetivo mais geral, diverso doprazer efémero da circunstância. Ele busca essealgo, ao qual se permitirá chamar de Modernida-de; pois não me ocorre melhor palavra para ex-primir a ideia em questão. Trata-se, para ele, detirar da moda o que esta pode conter de poético nohistórico, de extrair o eterno do transitório. Se

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fita e os cachos foram destronados pelas rosetas,se a mantilha se ampliou e o coque desceu umpouquinho na nuca, se a cintura foi erguida e asaia alargada, acreditem que a uma distância enor-me seu olhar de águia já adivinhou. Um regimen-to passa, ele vai talvez ao fim do mundo, difun-dindo no ar dos bulevares suas fanfarras seduto-ras e diáfanas como a esperança; e eis que o olharde G. já viu, inspecionou, analisou as armas, oporte e a físianomia dessa tropa. Arreios, cintila-ções, música, olhares decididos, bigodes espessos égraves, tudo isso ele absorve simultaneamente; eem alguns minutos o poema que disso resulta es-tará virtualmente composto. E sua alma vive coma alma desse regimento que marcha como se fosseum único animal, altiva imagem da alegria naobediência!

Mas a noite chegou. É a hora estranha e am-bígua em que se fecham as cortinas do céu e seiluminam as cidades. Os revérberos se sobressaemsobre a púrpura do poente. Honestos ou desones-tos, sensatos ou insanos, os homens dizem consi-go: "Enfim, acabou-se o dia!" Os plácidos e os demá índole pensam no prazer e todos acorrem aolugar de sua preferência para beber a taça doesquecimento. G. será o último a partir de qual-quer lugar onde possa resplandecer a luz, ressoara poesia, fervilhar a vida, vibrar a música; detodo lugar onde uma paixão possa posar diante deseus olhos, de todo lugar onde o homem natural eo homem convencional se mostrem numa belezaestranha, de todo lugar onde o sol ilumina as ale-grias efémeras do animal depravado! "Foi, comcerteza, uma jornada bem empregada", pensarácerto leitor que todos conhecemos. "Todos têmtalento suficiente para preenchê-la da mesma ma-neira." Não! Poucos homens são dotados da fa-

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culdade de ver; há ainda menos homens que pos-suem a capacidade de exprimir. Agora, à hora emque os outros estão dormindo, ele está curvadosobre sua mesa, lançando sobre uma folha de pa-pel o mesmo olhar que há pouco dirigia às coisas,lutando com seu lápis, sua pena, seu pincel, lan-çando água do copo até o teto, limpando a penana camisa, apressando, violento, ativo, como setemesse que as imagens lhe escapassem, belicoso,mas sozinho e debatendo-se consigo mesmo. E ascoisas renascem no papel, naturais e, mais do quenaturais, belas; mais do que belas, singulares e do-tadas de uma vida entusiasta como a alma do au-tor. A fantasmagoria foi extraída da natureza.Todos os materiais atravancados na memóriaclassificam-se, ordenam-se, harmonizam-se e so-frem essa idealização forçada que é o resultadode uma percepção infantil, isto é, de uma percep-ção aguda, mágica à força de ser ingénua!

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A Modernidade

Assim ele vai, corre, procura. O quê? Certa-mente esse homem, tal como o descrevi, esse soli-tário dotado de uma imaginação ativa, sempreviajando através do grande deserto de homens, temum objetivo mais elevado do que a de um sim-ples flâneur, um objetivo mais geral, diverso doprazer efémero da circunstância. Ele busca essealgo, ao qual se permitirá chamar de Modernida-de; pois não me ocorre melhor palavra para ex-primir a ideia em questão. Trata-se, para ele, detirar da moda o que esta pode conter de poético nohistórico, de extrair o eterno do transitório. Se

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lançarmos um olhar a nossas exposições de qua-dros modernos, ficaremos espantados com a ten-dência geral (dos artistas para vestirem todas aspersonagens com indumentária antiga. Quase to-das se servem das modas e dos móveis do Renasci-mento, como David se servia das modas e dos mó-veis romanos. Há, no entanto, uma diferença,pois David, tendo escolhido temas especificamen-te gregos ou romanos, não podia agir de outraforma senão vesti-los à moda antiga, enquanto ospintores atuais, escolhendo temas de uma nature-za geral que podem se aplicar a todas as épocas,obstinam-se em fantasiá-los com trajes da IdadeMédia, do Renascimento ou do Oriente. Eviden-temente, é sinal de uma grande preguiça; pois émuito mais cómodo declarar que tudo é absolu-tamente feio no vestuário de uma época do quese esforçar por extrair dele a beleza misteriosaque possa conter, por mínima ou ténue que seja.A Modernidade é o transitório, o efémero, o con-tingente, é a metade da arte, sendo a outra metadeo eterno e o imutável. Houve uma modernidadepara cada pintor antigo: a maior parte dos belosretratos que nos provêm das épocas passadas es-tá revestida de costumes da própria época. Sãoperfeitamente harmoniosos; assim, a indumentá-ria, o penteado e mesmo o gesto, o olhar e o sorri-so (cada época tem seu porte, seu olhar e seu sor-riso) formam um todo de completa vitalidade.Não temos o direito de desprezar ou de prescindirdesse elemento transitório, fugidio, cujas meta-morfoses são tão frequentes. Suprimindo-os, caí-mos forçosamente no vazio de uma beleza abstra-ta e indefinível, como a da única mulher antes doprimeiro pecado. Se à vestimenta da época, que seimpõe necessariamente, substituirmos uma outra,cometemos um contra-senso só desculpável no

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caso de uma mascarada atada pela moda. Assim,,as deusas, as ninfas e as sultanas do século XVIIIsão retratos moralmente verosímeis.

Sem dúvida, é excelente estudar os antigosmestres para aprender a pintar, mas isso pode sertão-somente um exercício supérfluo se o nossoobjetivo é compreender o caráter da beleza atual.Os planejamentos de Kubens ou de Véronèse nãonos ensinarão a fazer chamalote, cetim à rainhaou qualquer outro tecido de nossas fábricas, entu-fado, equilibrado pela crinolina ou pelos saiotesde musselina engomada. O tecido e a textura nãosão os mesmos que os da antiga Veneza ou osusados na corte de Catherine. Acrescentemos tam-bém que o corte da saia e do corpete é absoluta-mente diferente, que as pregas são dispostas deacordo com um novo sistema, que os gestos e oporte da mulher atual dão a seu vestido uma vidae uma fisionomia que não são as da mulher antiga.Em poucas palavras, para que toda Modernidadeseja digna de tornar-se Antiguidade, é necessárioque dela se extraia a beleza misteriosa que a vidahumana involuntariamente lhe confere. É a essatarefa que G. se dedica ern particular.

Anteriormente afirmei que cada época tinhaseu porte, seu olhar e seu gesto. É sobretudo nu-ma vasta galeria de retratos (a de Versalhes, porexemplo) que se torna fácil verificar essa propo-sição. Mas ela pode estender-se mais amplamente.Na unidade que se chama nação, as profissões, ascastas e os séculos introduzem a variedade, nãosomente nos gestos e nas maneiras, mas tambémna forma concreta do rosto. Tal nariz, tal boca,tal fronte correspondem ao intervalo de uma du-ração que não pretendo determinar aqui, mas quecertamente pode ser submetida a um cálculo. Es-sas considerações não são suficientemente familia-

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rés aos retratistas; e o grande defeito de Ingres,em particular, é querer impor a cada tipo queposa diante de seus olhos um aperfeiçoamentomais ou menos compulsório, colhido no reper-tório das ideias clássicas.

Em semelhante matéria, seria fácil e mesmolegítimo raciocinar a priori. A correlação perpé-tua do que chamamos alma com o que chamamoscorpo explica perfeitamente como tudo o que ématerial ou emanação do espiritual representa erepresentará sempre o espiritual de onde provém.Se um pintor paciente e minucioso, mas dotadode uma imaginação medíocre, em vez de pintaruma cortesã do tempo presente, inspira-se (é aexpressão consagrada) em uma cortesã de Ticianoou de Rafael, é muito provável que fará umaobra falsa, ambígua e obscura. O estudo de umaobra-prima daquela época e daquele género nãolhe ensinará nem a atitude, nem o olhar, nem otrejeito, nem o aspecto vital de uma dessas cria-turas que o dicionário da moda sucessivamenteclassificou, com nomes grosseiros ou maliciosos, deimpuras, mulheres sustentadas, toureiras e mun-danas.

A mesma crítica aplica-se rigorosamente noestudo do militar, do dândi ou mesmo dos animais,cão ou cavalo, e de tudo quanto compõe a vidaexterior de um século. Ai daquele que estuda noantigo outra coisa que não a arte pura, a lógica eo método geral. De tanto se enfronhar nele, per-de a memória do presente; abdica do valor dosprivilégios fornecidos pela circunstância, poisquase toda nossa originalidade vem da inscriçãoque o tempo imprime às nossas sensações. O leitorcompreende antecipadamente que eu poderiacomprovar facilmente minhas asserções através denumerosos outros objetos que não a mulher. Que

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diriam, por exemplo, de um pintor de marinhai(levo a hipótese ao extremo) que, tendo de re-produzir a beleza sóbria e elegante do navio m3-derno, atormentasse seus olhos estudando as for-mas sobrecarregadas, retorcidas, a popa monu-mental de um navio antigo e os velames complica-dos dó século XVI? E o que pensariam de um ar-tista a quem tivessem incumbido de fazer o rc-trato de um puro-sangue, célebre nas solenidadesdo turfe, se ele fosse confinar suas contempla-ções nos museus, se se contentasse em observar ocavalo nas galerias do passado, em Van Dyck,Bourguignon ou Van der Meulen?

G., guiado pela natureza, t i ranizado pílacircunstância, enveredou por um caminho com-pletamente diferente. Começou contemplando avida e só muito tarde se esforçou para aprender osmeios para expressá-la. Disso resultou uma origi-nalidade extraordinária, na qual o que pode restarde bárbaro ou de ingénuo aparece como novaprova de obediência à impressão, como lisonja àverdade. Para a maioria dentre nós, sobretudo paraos homens de negócios, aos olhos de quem a natu-reza existe apenas em suas relações de utilidadecem seus negócios, o fantástico real da vida acha-se singularmente embotado. G. absorve-o conti-nuamente e dele tem a memória e os olhos re-pletos.

V

A Arte Mnemónica

A palavra barbárie, que talvez tenha apare-cido com excessiva frequência nos meus escritos,poderia induzir algumas pessoas a acreditarem que

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se trata, neste ciso, de alguns desenhos informes,aos quais tão-sornente a imaginação do especta-dor sabe transformar em coisas perfeitas. Seriame compreender erroneamente. Quero falar deurna barbárie inevitável, sintética, infantil, quemuitas vezes permanece visível numa arte perfei-ta (mexicana, egípcia ou ninivita) e que resultada necessidade de ver as coisas de maneira ampla,e de, principalmente, considerá-las no seu efeitode conjunto. Não é supérfluo observar aqui quemuitas pessoas acusaram de barbárie todos os pin-tores cujo olhar é sintético e abreviador — Corot,por exemplo, que se dedica inicialmente a traçaras linhas principais de uma paisagem, sua ossa-tura e sua fisionomia. Assim, G., traduzindo fiel-mente as próprias impressões, marca com umaenergia instintiva os pontos culminantes ou lu-minosos de um objeto (podem ser culminantes ouluminosos, do ponto de vista dramático), ou suasprincipais características, algumas vezes inclusivecom um exagero útil para a memória humana; ea imaginação do espectador, submetendo-se porsua vez a essa mnemónica tão despótica, vê comnitidez a impressão produzida pelas coisas sobre oespírito de G. O espectador é aqui o tradutor deuma tradução sempre clara e inebriante.

Existe um elemento que acrescenta muito àforça vital dessa tradução lendária da vida exte-rior. Refiro-me ao método de desenhar de G. Eledesenha de memória, e não a partir do modelo,salvo em casos (a guerra da Criméia, por exem-plo) em que há necessidade urgente de tomar no-tas imediatas, rápidas, e de fixar as linhas princi-pais de um tema. Na verdade, todos os bons everdadeiros desenhistas desenham a partir da ima-gem inscrita no próprio cérebro, e não a partir danatureza. Se nos fizerem objeções quanto aos ad-

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miráveis croquis de Rafael, de Watteau e de mui-tos outros, diremos que são notas muito minucio-sas, é verdade, mas sirnples notas. Quando umverdadeiro artista chega i execução definitiva desua obra, o modelo lhe será mais um embaraço doque um auxílio. Há casos até em que homenscomo Daumier e G., acostumados há muito aexercitar sua memória e a povoá-la de ima-gens, têm as faculdades principais perturbadas ecomo que paralisadas diante do modelo e da mul-tiplicidade de detalhes que ele comporta.

Estabelece-se assim um duelo entre a vontadede tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade damemória, que adquiriu o hábito de absorver comvivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco docontorno. Um artista que tem o sentimento per-feito da forma, mas acostumado a exercitar so-bretudo a memória e a imaginação, encontra-seentão como que assaltado por uma turba de deta-lhes, todos reclamando justiça com a mesma fúriade uma multidão ávida por igualdade absoluta.Toda justiça acha-se forçosamente violada, todaharmonia destruída e sacrificada; muitas trivia-lidades assumem importância, muitos detalhes semimportância tornam-se usurpadores. Quanto maiso artista se curva com imparcialidade sobre o de-talhe, mais aumenta a anarquia. Se for míope oupresbita, toda hierarquia e toda subordinação de-saparecem. É um acidente que aparece constante-mente nas obras de um de nossos pintores maisem voga, cujos defeitos, aliás, são tão bem apro-priados aos da multidão que contribuíram sin-gularmente para sua popularidade. Adivinha-sea mesma analogia no exercício da arte do ator,arte tão misteriosa, tão profunda, vítima nos diasde hoje da confusão das decadências. FrédérickLemaitre desempenha urn papel com a amplitude

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e a grandeza do génio. Por mais que sua criaçãoesteja semeada de detalhes luminosos, permanecesintética e escultural. Bouffé compõe os seus pa-péis com uma minúcia de míope e de burocrata.Nele tudo brilha, mas nada transparece, nada querser guardado pela memória.

Assim, na execução de G. evidenciam-se duascoisas: a primeira, um esforço de memória ressur-reicionista, evocadora, uma memória que diz acada coisa: "Lázaro, levanta-te"; a outra, um fo-go, uma embriaguez de lápis, de pincel, que seassemelha quase a um furor. É o medo de nãoagir com suficiente rapidez, de deixar o fantas-ma escapar antes que sua síntese tenha sido ex-traída e captada; é o pavor terrível que se apo-dera de todos os grandes artistas e que os faz de-sejar tão ardentemente apropriarem-se de todosos meios de expressão para que jamais as ordensdo espírito sejam alteradas pelas hesitações damão; para que finalmente a execução, a execuçãoideal se torne tão inconsciente, tão fluente quan-to a digestão para o cérebro do homem sadio queacabou de jantar. G. começa por leves indicaçõesa lápis, que apenas indicam a posição que os ob-jetos devem ocupar no espaço. Os planos prin-cipais são indicados em seguida por tons em agua-da, massas de início coloridas vagamente, leve-mente, porém retomadas mais tarde e carregadassucessivamente com cores mais intensas. No últi-mo momento, o contorno dos objetos é definiti-vamente delineado com tinta. A menos que já ostenhamos visto, não se pode imaginar os efeitossurpreendentes que G. consegue obter com essemétodo tão simples e quase elementar, que tem aincomparável vantagem de, em qualquer etapade sua progressão, cada desenho parecer suficien-temente acabado; alguém dirá que isso é um es-

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boço, se se quiser, mas um esboço perfeito. Todosos valores se encontram em perfeita harmonia, ese G. quiser levá-los adiante, eles se encaminha-rão decididamente para o aperfeiçoamento dese-jado. Ele prepara desse modo vinte desenhos aomesmo tempo com uma petulância e alegria en-cantadoras, divertidas até mesmo para ele; os cro-quis empiíham-se e superpõem-se às dezenas, àscentenas, aos milhares. De vez em quando G. per-corre-os, folheia-os, examina-os, e depois escolhealguns, nos quais aumenta mais ou menos a inten-sidade, carrega as sombras e clareia progressiva-mente as zonas luminosas.

G. dedica uma imensa importância aos fun-dos, que, vigorosos ou evanescentes, sempre são deuma qualidade e de uma natureza apropriadas àsfiguras. A gama de tons e a harmonia geral sãoestritamente observadas, com um génio que pro-vém mais do instinto do que do estudo. Pois G.possui naturalmente o talento misterioso do colo-rista, verdadeiro dom que o estudo pode desen-volver, mas que é, por si mesmo, creio, incapazde criar. Para resumir em poucas palavras, nossosingular artista exprime ao mesmo tempo o gestoe a atitude solene ou grotesca dos seres e sua ex-plosão luminosa no espaço.

VI

Os Anais da Guerra

A Bulgária, a Turquia, a Criméia e a Espa-nha foram grandes festas para os olhos de G., oumelhor, para os olhos do artista imaginário queconvencionamos chamar de G.; pois lembro-me devez em quando que prometi a mim mesmo, para

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tranquilizar mais sua modéstia, supor que ele nãoexistia. Compulsei os arquivos da guerra do Ori-ente (campos de batalha juncados de restos mor-tais, carroças de materiais, embarques de gado ede cavalos), quadros vivos e surpreendentes, de-calcados na própria vida, elementos de um pito-resco precioso que muitos pintores famosos, colo-cados nas mesmas circunstâncias, teriam negli-genciado imprudentemente; no entanto, destesexcluirei naturalmente Horace Vernet, verdadei-ro jornalista em vez de pintor essencial, comquem G., artista mais delicado, tem afinidades vi-siveis, se quisermos considerá-lo apenas como ar-quivista da vida. Posso afirmar que nenhum diá-rio, nenhum relato escrito, nenhum livro exprimetão bem, em todos os seus detalhes dolorosos eem sua sinistra amplitude, a grande epopeia daguerra da Criméia. O olhar vagueia sucessivamen-te pelas margens do Danúbio, pelas margens doBósforo, pelo cabo Kerson, pela planície de Ba-laklava, pelos campos de Inkermann, pelos acam-pamentos ingleses, franceses, turcos e piemonteses,pelas ruas de Constantinopla, pelos hospitais e portodas as solenidades religiosas e militares.

Uma das composições que mais se gravaramem meu espírito é a Consécration d'un TerrainFúnebre à Scutari par l'Évêque de Gibraltar(Consagração de um Cemitério em Scutari peloBíspO de Gibraltar). O caráter pitoresco da cena,que consiste no contraste da natureza orientalcircundante com as atitudes e os uniformes oci-dentais da assistência, é expresso de uma maneirafascinante, sugestiva e cheia de fantasia. Os sol-dados e os oficiais têm esses ares indeléveis degentlemen, resolutos e discretos, que os distin-guem até o fim do mundo, até nas guarnições da

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colónia do Cabo e nas feitorias da índia: os pasto-res ingleses lembram vagamente meirinhos ouagentes de câmbio que tivessem vestido barrete ecabeção.

Aqui estamos em Schumla, nas propriedadesde Ornar Paxá: hospitalidade turca, cachimbos ecafé; todos os visitantes estão acomodados emdivãs, ajustando em seus lábios cachimbos longoscomo sarabatanas, cujos fornilhos repousam a seuspés. Aqui, os Kurdes à Scutari (Cardos emScutari), tropas estranhas cujo aspecto faz pensarem uma invasão de hordas bárbaras; ali, soldadosturcos, não menos peculiares com seus oficiais eu-ropeus, húngaros ou poloneses, cuja fisionomia dedândis contrasta estranhamente com o caráterbarrocamente oriental de seus soldados.

Vejo um desenho magnífico onde emergeuma única personagem, grande, robusta, com arao mesmo tempo pensativo, despreocupado e au-dacioso; grandes botas lhe chegam acima dos joe-lhos; seu uniforme militar está escondido sob umpesado e largo casaco completamente abotoado;através da fumaça do charuto, ela perscruta ohorizonte sinistro e brumoso; um dos braços feri-do é sustentado por uma gravata servindo de ti-póia. Embaixo, leio estas palavras rabiscadas alápis: Canrobet on the battle field o f Inkermann.Taken on the spot.

Quem é esse cavaleiro, de bigodes brancos,com uma fisionomia tão intensamente desenhada,que, com a cabeça erguida, dá a impressão de sor-ver a terrível poesia de um campo de batalha, en-quanto seu cavalo, farejando a terra, procura umcaminho entre os cadáveres amontoados, pernaspara o ar, faces crispadas, em estranhas atitudes?

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Embaixo do desenho, num canto, pode-se lerestas palavras: My sei f a t Inkermann.

Entrevejo Baraguay-dTIilliers, com o co-mandante-em-chefe do exército otomano passan-do em revista a artilharia em Béchichtash. Rara-mente vi um retrato militar mais verossímil, bu-rilado por mão mais arrojada e inteligente.

Um nome, sinistramente ilustre desde os de-sastres da Síria, aparece à minha vista: Áchmet-Pacha, General e n Chef à Kalafat, Debout Dc-vant sã Hutte, avec son État-major, se Fait Pre-senter Deux Officters Européem (Achmet Paxá,General-de-exército Kalafat, em Pé Diante de suaTenda, com seu Estado-maior, Recebendo a Apre-sentação de Dois Oficiais Europeus]. Apesar dovolume de sua pança turca, Achmet Paxá tem,na atitude e no rosto, o grande ar aristocráticoque geralmente pertence às raças dominadoras.

A batalha de Balaklava aparece várias vezesnessa curiosa coletânea, e em diferentes aspectos.Entre os mais surpreendentes, eis a histórica cargada cavalaria cantada pela trombeta heróica deAlfred Tennyson, poeta da rainha: uma multidãode cavaleiros se precipita numa velocidade prodi-giosa em direção do horizonte, entre as pesadasnuvens da artilharia. Ao fundo, a paisagem é cor-tada por uma linha de colinas verdejantes.

De vez em quando, quadros religiosos repou-sam o olhar entristecido por todo esse caos de pól-vora e essas turbulências mortíferas. No meio dossoldados ingleses de diferentes armas, entre osquais se sobressai o pitoresco uniforme dos esco-ceses de saia, um pastor anglicano lê o ofício dodomingo; três tambores, o primeiro apoiado sobreos outros dois, lhe servem de púlpito.

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Na verdade, é difícil traduzir unicamenteatravés de palavras esse poema composto de milcroquis, tão imenso e complexo, e exprimir a exal-tação que se desprende de todo esse pitoresco coli-gido, frequentemente doloroso, mas jamais lacri-mejante, em algumas centenas de páginas, cujasmáculas e ranhuras testemunham, a seu modo, aperturbação e o tumulto em meio a que o artistaali depositava suas lembranças do dia. À tardinha,o correio levava para Londres as notas e desenhosde G.; e muitas vezes este entregava ao correiomais de dez croquis improvisados em papel pelu-re, aguardados impacientemente pelos gravadorese assinantes do jornal.

Ora são retratados os hospitais ambulantesonde a própria atmosfera parece doente, triste epesada, onde cada leito contém uma dor; ora éo hospital de Pêra, onde vejo, conversando comduas irmãs de caridade, altas, pálidas e rígidascomo figuras de Lesueur, um visitante vestidocom desleixo, designado por esta estranha legen-da: M;)' humble se!f. Agora, em veredas ásperas esinuosas, juncadas de restos de um combate jáantigo, seguem lentamente alguns animais, mulas,asnos ou cavalos, que carregam em seus flancos,em dois grosseiros assentos, feridos lívidos e iner-tes. Na copiosa neve, camelos de peitoril majestoso,cabeça erguida, conduzidos por tártaros, arrastamprovisões ou munições de várias espécies: é todoum universo guerreiro, vivo, atarefado e silencio-so; são acampamentos, bazares, onde se expõemamostras de todas as mercadorias, espécies de ci-dades bárbaras improvisadas para o momento.Através dessas barracas, nesses caminhos pedre-gosos ou nevados, nesses desfiladeiros, circulamuniformes de várias nações, mais ou menos dete-

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riorados pela guerra ou alterados pela adjunçãode volumosas pelicas e de pesados calçados.

É pena que este álbum, espalhado agora emvários lugares e cujas páginas preciosas foram re-tidas pelos gravadores encarregados de traduzi-lasou pelos redatores do lllustrated London News,não tenha caído sob os olhos do imperador. Ima-gino que ele teria examinado com complacênciae não sem certo enternecimento os feitos e osgestos de seus soldados, todos expressos minucio-samente, dia a dia, desde as ações mais extraordi-nárias até as tarefas mais triviais da vida, por essamão de soldado-artista, tão firme e inteligente.

VII

Pompas e Solenidade*

A Turquia forneceu igualmente a nosso caroG. admiráveis motivos de composições: as festasdo Baíram, esplendores profundos e cintilantes,ao fundo das quais aparece, como um sol pálido,o tédio permanente do sultão defunto: alinhadosà esquerda do soberano, todos os oficiais da ordemcivil; à sua direita, todos os da ordem militar, oprimeiro deles Said Paxá, sultão do Egito, entãoem Constantinopla; cortejos e pompas solenes des-filam em direção à pequena mesquita próxima dopalácio, e, no meio dessas massas, funcionários tur-cos, verdadeiras caricaturas de decadência, esma-gando seus magníficos cavalos sob o peso de umaobesidade fantástica; as pesadas viaturas com-pactas, espécies de carruagens à Luís XIV, dou-radas e adornadas pelo capricho oriental, das quaissurgem, às vezes, olhares curiosamente femininos,

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no estrito intervalo tjue as faixas de musselinagrudadas no rosto deixam aos olhos; as dançasfrenéticas dos bailarinos cio terceiro stxo (jamaisa expressão burlesca de Ralzac foi mais aplicáveldo que no caso presente, pois, sob a palpitaçãodaquelas refulgências tremulantes, sob a agitaçãodaquelas amplas roupas, sob aquela ardente ma-quilagem das faces, olhos e sobrancelhas, naquelesgestos histéricos e convulsivos, naquelas longas ca-beleiras esvoaçando sobre os rins, seria difícil, pa-ra não dizer impossível, adivinhar a virilidade);e, finalmente, as mulheres galantes (se contudose pode pronunciar a palavra galanteria a propó-sito do Oriente), geralmente compostas de hún-garas, valáquias, judias, polonesas, gregas e armé-nias, já que, num governo despótico, são as raçasoprimidas, e entre estas sobretudo as fadadas aomaior sofrimento, que fornecem mais contingen-tes à prostituição. Algumas dessas mulheres con-servaram os trajes nacionais, os jalecos de man-gas curtas bordados, as echarpes sinuosas, as cal-ças largas, as babuchas dobradas, as musselinas lis-tradas ou lameladas, e todo o ouripel do país natal;as outras, e são as mais numerosas, adotaram osigno mais peculiar da civilização, que para a mu-lher invariavelmente é a crinolina, conservando,no entanto, numa parte do traje, uma leve recor-dação característica do Oriente, o que faz comque dêem a impressão de parisienses que se tives-sem fantasiado.

G. pinta admiravelmente o fausto das cenasoficiais, das pompas e solenidades nacionais, nãode modo frio e didático, como os pintores quevêem nessas obras apenas fardos lucrativos, mascom todo o ardor de um homem apaixonado peloespaço, pela perspectiva, pela luz que envolve ou

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explode e se fixa em gotas ou em centelhas nasasperezas dos uniformes e dos trajes de corte. LaFête Commémorative de 1'lndcpendance ifairs IaCathédrale jPAtbène* (/4 besta Comemorativa daIndependência na Catedral de Atenas} ofereceum curioso exemplo desse talento. Todas essas pe-quenas personagens, cada qual no seu devido lu-gar, tornam mais profundo o espaço que as con-tém. A catedral é imensa e decorada com tape-çarias solenes. O rei Oto e a rainha, em pé sobreum estrado, vestem o costume tradicional, quetrajam com uma naturalidade maravilhosa, comopara dar testemunho da sinceridade de sua adoçãoe do mais refinado patriotismo helénico. A cin-tura do rei está cingida como a do mais garridocombatente, e sua saia alarga-se com todo o exa-gero do dandismo nacional. Diante deles, caminhao patriarca, um ancião de costas curvadas, grandebarba branca, cujos pequenos olhos são protegi-dos por óculos verdes, que traz em todo o seu seros sinais de uma consumada fleuma oriental. To-das as pesonagens que povoam essa composiçãosão retratos, e um dos mais curiosos, pela estra-nheza de sua fisionomia tão pouco helénica quan-to possível, é o de uma dama alemã, postada aolado da rainha e fazendo parte de seu serviço.

Nas coleções de G. encontra-se frequente-mente o imperador dos franceses, cuja figura elesoube reduzir, sem prejuízo da verossimilhança,a um croqui infalível, executado com a segurançade uma rubrica. Ora o imperador passa tropas emrevista, galopando e acompanhado por oficiaiscujos traços são facilmente reconhecíveis, ou porpríncipes estrangeiros, europeus, asiáticos ou afri-canos, a quem presta, por assim dizer, as honrasde Paris. Outras vezes nós o vemos imóvel, mon-

tado num cavalo cujos pés ião tão firmes quantoos quatro pés de uma mesa, tendo à sua esquerdaa imperatriz em trajes de amazonas e, à sua direita,o pequeno principe imperial, usando um barretede pele e mantendo-se com porte militar sobreum cavalinho eriçado como os póneis que os ar-tistas ingleses costumam colocar em suas paisa-gens; algumas vezes sumindonas alamedas do Boisde Boulogne num turbilhão de luz e de poeira;outras vezes, caminhando lentamente sob as acla-mações do ftltbouTg Saint-Antoine. Uma dessasaquarelas me fascinou particularmente por seucaráter feérico. Na extremidade de um camarotede uma riqueza pesada c principesca, a imperatrizaparece numa atitude tranqiiila e repousada; oimperador curva-se ligeiramente, como que paramelhor apreciar o teatro; embaixo, dois soldadosda guarda imperial, em pé, numa imobilidade mi-litar e quase hierática, recebem sobre os bri lhantesuniformes os reflexos da ribalta. Atrás da faixade luz, na atmosfera ideal do palco, os atores can-tam, declamam, gesticulam harmoniosamente; dooutro lado estende-se um abismo de luz vaga, umespaço circular cheio de figuras humanas em to-dos os andares: é o esplendor e o público.

Os movimentos populares, os clubes e as sole-nidades de 1848 forneceram igualmente a G. umasérie de composições pitorescas, a maior parte de-las gravada pelo llusfrafej Lottdoit News. Háalguns anos, depois de uma estada na Espanha,muito proficua para seu talento, G. compôs tam-bém um álbum do mesmo género, do qual vi ape-nas alguns fragmentos. A displicência com a qualele dá ou empresta seus desenhos muitas vezes oexpõe a perdas irreparáveis.

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VIU

O Militar

Para definir uma vez mais o género de temaspreferido pelo artista, afirmaremos que é a pom-pa da vida, tal come ela se oferece nas capitaisdo mundo civilizado, a pompa da vida militar,da vida elegante, da vida galante. Nosso observa-dor está sempre infalivelmente a postos em todaa parte onde fluem os desejos profundos e impe-tuosos, os Orinocos do coração humano, a guerra,o amor e o jogo; em toda parte onde se agitamas festas e as ficções que representam esses gran-des elementos da felicidade e do infortúnio. Masele mostra uma predileção muito acentuada pelomilitar, pelo soldado, e acredito que essa propen-são se deve não somente às virtudes e qualidadesque passam forçosamente da alma do guerreiropara sua atitude e seu rosto, como também aoparamento vistoso com que sua profissão o reves-te. Paul de Molènes escreveu algumas páginas tãoencantadoras quanto sensatas sobre a coqueteriamilitar e sobre o sentido moral da indumentáriacintilante com que todos os governos se compra-zem em vestir suas tropas. G. assinaria de bomgrado essas linhas.

Já falamos do idiotismo da beleza particularde cada época e observamos que cada século pos-suía, por assim dizer, sua graça particular. Pode-se aplicar a mesma observação às profissões; cadaqual extrai sua beleza exterior das leis morais àsquais é submetida. Em algumas, essa beleza serámarcada pela energia; em outras, trará os sinaisvísiveis do ócio. É como o emblema do caráter, é

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a inscrição da fatalidade. O militar, consideradoem sua generalidade, tem sua beleza, como o dân-di e a mulher galante a têm, de gosto essencial-mente diferente. Alguns acharão natural que eunegligencie as profissões em que um exercício ex-clusivo e violento deforrm os músculos e marcao rosto com um sinal de servidão. Acostumado àssurpresas, o militar raramente se surpreende. En-tão, nesse caso, o sinal particular da beleza seráuma despreocupação marcial, mescla singular deplacidez e de audácia; é urna beleza que decorreda necessidade de estar pronto para morrer a cadaminuto. Mas o semblante do militar ideal deverátrazer a marca de uma grande simplicidade; pois,vivendo em comunidade como os monges e os es-tudantes, habituados a se descarregarem das preo-cupações quotidianas da vida a respeito de umapaternidade abstrata, os soldados são, em muitosaspectos, tão ingénuos como as crianças; e, comoelas, estando o dever cumprido, divertem-se comfacilidade e preferem as diversões violentas. Acre-dito não estar exagerando ao afirmar que todasessas considerações morais brotam naturalmentedos croquis e das aquarelas de G. Deles nenhumtipo militar está ausente e todos foram captadoscom uma espécie de alegria entusiasta: o velhooficial de infantaria, sério e triste, mortificandoo cavalo com sua obesidade; o belo oficial de Es-tado-maior, uniforme cintado, remexendo os om-bros, curvando-se sem timidez sobre a poltronadas senhoras, e que, visto de costas, evoca os inse-tos mais esbeltos e elegantes; o zuavo e o atirador,que manifestam em seu porte um excessivo caráterde audácia e de independência, e como que umsentimento mais vivo de responsabilidade pessoal;a desenvoltura ágil e alegre da cavalaria ligeira;

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a fisionomia vagarnmte professoral e académicados corpos especiais, como a artilharia e a enge-nharia, frequentemente confirmada pelo aparatopcuco guerreiro dos óculos: nenhum desses mo-delos, nenhum desses matizes é negligenciado, etodos são sintetizados, definidos com o mesmoamor e o mesmo espirito.

• Tenho neste momento diante dos olhos umadessas composições de aspecto geral verdadeira-mente heróico, que representa a frente de umacoluna de infantaria; talvez esses homens estejamacabando de voltar da Itália e tenham feito umaparada nos bulevares face ao entusiasmo da mul-tidão; talvez acabem de realizar uma longa mar-cha pelas estradas da Lombardia; não sei. O queé visível, plenamente inteligível, é o caráter firme,audacioso, mesmo em sua tranquilidade, de todosesses rostos crestados pelo sol, pela chuva e pelovento.

Eis a uniformidade de expressão gerada pelaobediência e pelas dores suportadas em comum,o ar resignado da coragem testada pelas longasfadigas. As calças arregaçadas e presas nas polai-nas, os capotes manchados de poeira, vagamentedesbotados, todo o equipamento, enfim, assumiuele próprio a indestrutível fisionomia dos seresque vêm de longe e viveram estranhas aventuras.É possivel dizer que todos esses homens estão maissolidamente apoiados sobre os rins, mais firme-mente instalados sobre os pés, manifestando maisfirmeza do que os outros homens são capazes. SeCharlet — que sempre buscou esse tipo de bele/.ae que tantas vezes o encontrou — tivesse vistoesse desenho, teria ficado singularmente impres-sionado.

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IX

O Dâníi

O homem rico, ocioso c que, mesmo entedia-do de tudo, não tem outra ocupação senão correrao encalço da felicidade; o homem criado no luxoe acostumado a ser obedecido desde a juventude;aquele, enfim, cuja única profissão é a elegânciasempre exibirá, em todos os tempos, uma fisiono-mia, distinta, completamente à parte. O dandis-mo é uma instituição vaga tão estranha quanto opróprio duelo; rnuito antiga, já que César, Cati-lina e Alcebíades nos deram alguns modelos bri-lhantes; generalizada, já que Chateaubriand a en-controu nas florestas e à beira dos lagos do NovoMundo. O dandismo, instituição à margem dasleis, tem leis rigorosas a que são estritamente sub-metidos todos os seus adeptos, quaisquer que fo-rem, aliás, a audácia c a independência de seucaráter.

Os romancistas ingleses, mais do que outros,cultivaram o romance de aigh l/fe, e os franceses,que — como Custine — quiseram escrever espe-cialmente romances de amor, tiveram o cuidado,de início e muito judiciosamente, de dotar suaspersonagens de fortunas bastante consideráveispara pagarem sem hesitação todas as fantasias; em

.seguida, dispersaram-nas de qualquer profissão.Esses seres não têm outra ocupação senão culti-var a ideia do belo em suas próprias pessoas,satisfazer suas paixões, sentir e pensar. Pos-suem, a seu bel-prazer e em larga medida,tempo e dinheiro, sem os quais a fantasia, redu-zida ao estado de devaneio passageiro, dificilmen-

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te pode ser traduzida em ação. Infelizmente ébem verdade que, sem o tempo e o dinheiro, oamor não pode ser mais do que uma orgia de ple-beu ou o cumprimento de um dever conjugal. Emvez da fantasia ardente ou sonhadora, torna-seuma repugnante utilidade.

Se falo de amor a propósito do dandismo, éporque o amor é a ocupação natural dos ociosos.Mas o dândi não visa o amor como um fim emsi. Se me referi ao dinheiro, é porque o dinheiroé indispensável aos que cultuam as próprias pai-xões; mas o dândi não aspira ao dinheiro comoa uma coisa essencial; um crédito ilimitado pode-ria lhe bastar: ele deixa essa grosseira paixão aosvulgares mortais. O dandismo não é sequer, comoparecem acreditar muitas pessoas pouco sensatas,um amor desmesurado pela indumentária e pelaelegância física. Para o perfeito dândi essas coisassão apenas um símbolo da superioridade aristo-crática de seu espírito. Por isso, a seus olhos ávi-dos antes de tudo por distinção, a perfeição daindumentária consiste na simplicidade absoluta, oque é, efetivamente, a melhor maneira de se dis-tinguir. Que é, pois, essa paixão que, transfor-mada em doutrina, conquistou adeptos domina-dores, essa instituição sem leis escritas, que for-mou uma casta tão altiva? É antes de tudo a ne-cessidade ardente de alcançar uma originalidadedentro dos limites exteriores das conveniências. Éuma espécie de culto de si mesmo, que pode so-breviver à busca da felicidade a ser encontrada emoutrem, na mulher, por exemplo, que pode so-breviver, inclusive, a tudo a que chamamos ilu-sões. É o prazer de provocar admiração e a satis-fação orgulhosa de jamais ficar admirado. Umdândi pode ser um homem entediado, pode ser

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um homem que sofre; nus, neste último caso, elesorrirá como o L acedem» nic mordido pela raposa.

Vê-se que, sob certos aspectos, o dandismoassemelha-se ao espiritualismo e ao estoicismo.Mas um dândi nunca pode ser um homem vul-gar. Se cometesse urn crime, talvez não se degra-dasse; mas, se esse crime tivesse uma causa trivial,a desonra seria irreparável. Que o leitor não seescandalize com essa gravidade no frívolo, que selembre que há uma grandeza em todas as lou-curas, uma força em todos os excessos. Estranhoespiritualismo! Para os que são ao mesmo temposeus sacerdotes e suas vítimas, todas as condiçõesmateriais complexas a que se submetem, desde otraje impecável a qualquer hora do dia e da noiteaté as proezas mais perigosas do esporte, não pas-sam de uma ginástica apta a fortificar a vontadee a disciplinar a alma. Na verdade, eu não estavatotalmente errado ao considerar o dandismo comouma espécie de religião. A regra monástica maisrigorosa, a ordem irresistível do Velho da Mon-tanha, que recomendava o suicídio a seus discí-pulos inebriados, não eram mais despóticas nemmais obedecidas do que essa doutrina da elegân-cia e da originalidade, que impõe igualmente aseus ambiciosos e humildes seguidores — homensmuitas vezes cheios de ardor, de paixão, de cora-gem e de energia contida — a fórmula terrível:Perinde ao cadáver!*

Mesmo que esses homens sejam chamados in-diferentemente de refinados, incríveis, belos, leõesou dândís, todos procedem de uma mesma origem;

* Como um cadáver! Expressão usada por Inácio de Loiolanas Constituições e com a qual prescreve, aos jesuítas, adisciplina e obediência aos superiores, excetuando-se as obje-ções de consciência. (N. do T.)

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todos participam do mesmo caráter de oposiçãoe de revolta; todos são representantes do que háde melhor no orgulho humano, dessa necessidade,muito rara nos homens de nosso tempo, de com-bater e destruir a trivialidade. Disso resulta, nosdândis, a atitude altiva de casta, provocante in-clusive em sua frieza. O dandismo aparece so-bretudo nas épocas de transição em que a demo-cracia não se tornou ainda todo-poderosa, em quea aristocracia está apenas parcialmente claudican-te e vilipendiada. Na confusão dessas épocas, al-guns homens sem vínculos de classe, desiludidos,desocupados, mas todos ricos em força interior,podem conceber o projeto de fundar uma novaespécie de aristocracia, tanto mais difícil de des-truir pois que baseada nas faculdades mais pre-ciosas, mais indestrutíveis, e nos dons celestes quenem o trabalho nem o dinheiro podem conferir.O dandismo é o último rasgo de heroísmo nas de-cadências; e o tipo de dândi encontrado pelo via-jante na América do Norte não invalida de formaalguma esta ideia: pois nada impede de se suporque as tribos a que chamamos de selvagens sejamos resquícios de grandes civilizações desaparecidas.O dandismo é um sol poente; como o astro quedeclina, é magnífico, sem calor e cheio de melan-colia. Mas infelizmente a maré montante da de-mocracia, que invade tudo e que tudo nivela, afo-ga dia a dia esses últimos representantes do or-gulho humano e despeja vagas de esquecimentosobre os vestígios desses prodigiosos mirmidões.Na França, os dândis tornam-se cada vez maisraros, enquanto entre nossos vizinhos, na In-glaterra, o estado social e a constituição (a ver-dadeira constituição, a que se exprime pelos cos-tumes) deixarão por muito tempo ainda um lu-gar aos herdeiros de Sheridan, de Brummel e de

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Byron, se por acaso surgirem alguns t\s deles.

O que pôde parecer ao leitor unia ,na verdade não chega a sé-lo. As conje os devaneios morais que sugerem os <k',;um artista são, em muitos casos, a msllucão que o crítico possa fazer deles; asfazern parte de uma idéia-niãe, e, mosA

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todos participam do mesmo caráter de oposiçãoe de revolta; todos são representantes do que Jiâde melhor no orgulho humano, dessa necessidade,muito rara nos homens de nosso tempo, de com-bater e destruir a trivialidade. Disso resulta, nosdândis, a atitude altiva de casta, provocante in-clusive cm sua frieza. O dandismo aparece so-bretudo nas épocas de transição em que a demo-cracia não se tornou ainda todo-poderosa, em quea aristocracia está apenas parcialmente claudican-te e vilipendiada. Na confusão dessas épocas, al-guns homens sem vínculos de classe, desiludidos,desocupados, mas todos ricos em força interior,podem conceber o projeto de fundar uma novaespécie de aristocracia, tanto mais difícil de des-truir pois que baseada nas faculdades mais pre-ciosas, mais indestrutíveis, e nos dons celestes quenem o trabalho nem o dinheiro podem conferir.O dandismo é o último rasgo de heroísmo nas de-cadências; e o tipo de dândi encontrado pelo via-jante na América do Norte não invalida de formaalguma esta ideia: pois nada impede de se suporque as tribos a que chamamos de selvagens sejamos resquícios de grandes civilizações desaparecidas.O dandismo é um sol poente; como o astro quedeclina, é magnífico, sem calor e cheio de melan-colia. Mas infelizmente a maré montante da de-mocracia, que invade tudo e que tudo nivela, afo-ga dia a dia esses últimos representantes do or-gulho humano e despeja vagas de esquecimentosobre os vestígios desses prodigiosos mirmidões.Na França, os dândis tornam-se cada vez maisraros, enquanto entre nossos vizinhos, na In-glaterra, o estado social e a constituição (a ver-dadeira constituição, a que se exprime pelos cos-tumes) deixarão por muito tempo ainda um lu-gar aos herdeiros de Sheridan, de Brummel e de

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Byron, se por acaso surgirein alguns que sejamdignos deles.

O que pôde parecer ao leitor uma digressão,na verdade não chega a sê-Io. As consideraçõese os devaneios morais que sugerem os desenhos deum artista são, em muitos casos, a melhor tradu-ção que o crítico possa fazer deles; as sugestõesfazem parte de uma idéia-mãe, e, mostrando-assucessivamente, pode-se levá-la a emergir. Serápreciso dizer que G., quando desenha um de seusdândis, dá-lhe sempre seu caráter histórico, atémesmo lendário, ousaria dizer, se não se tratasseda época presente e de coisas consideradas geral-mente como levianas? É justamente essa leveza deatitudes, essa segurança nas maneiras, essa simpli-cidade no ar de dominação, esse modo de vestiruma casaca e de conduzir um cavalo, essas atitu-des sempre calmas, mas revelando força, que nosfazem pensar, quando nosso olhar descobre umdesses seres privilegiados em quem o belo e o te-mível se confundem tão misteriosamente: "Aquitalvez esteja um homem rico, mas, com maiorprobabilidade, um Hércules sem emprego".

O tipo da beleza do dândi consiste sobretudono ar frio que vem da inabalável resolução de nãose emocionar; é como um fogo latente que sedeixa adivinhar, que poderia — mas não quer —se propagar. É o que essas imagens expressam comperfeição.

XA M Me r

O ser que é, para a maioria dos homens, afonte das mais vivas e mesmo — admitamo-lo

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para a vergonha das volúpias filosóficas — dosmais duradouros prazeres; o ser para o qual, ouem benefício do qual, tendem todos os seus esfor-ços; esse ser terrível e incomunicável como Deus(com a diferença que o infinito não se comunicaporque cegaria ou esmagaria o finito, enquantoo ser de que falamos só é incompreensível pornada ter a comunicar, talvez) ; esse ser em quernJoseph de Maistre via um belo animal cujos en-cantos alegravam e tornavam mais fácil o jogosério da política, para quem e por meio de quemse fazem e se desfazem as fortunas, para quem,mas sobretudo devido a quem os artistas e os poe-tas compõem suas jóias mais delicadas; de quemderivam os prazeres mais excitantes e as doresmais fecundantes; a mulher, numa palavra, não ésomente para o artista em geral, e para G. emparticular, a fêmea do homem. É antes uma di-vindade, um astro que preside todas as concep-ções do cérebro masculino, é uma reverberaçãode todos os encantos da natureza condensadosnum único ser; é o objeto da admiração e dacuriosidade mais viva que o quadro da vida possaoferecer ao contemplador. É uma espécie de ídolo,estúpido talvez, mas deslumbrante, enfeitiçador,que mantém os destinos e as vontades suspensas aseus olhares. Não é, digo eu, uni animal cujosmembros, corretamente reunidos, fornecem umperfeito exemplo de harmonia; não é sequer otipo de beleza pura, tal como pode sonhá-lo o es-cultor nas suas mais severas meditações; não, issonão seria ainda suficiente para explicar seu mis-terioso e complexo fascínio. Winckelmann e Ra-fael não nos são de nenhuma utilidade aqui; e

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estou persuadido que G., apesir de toda a exten-são de sua inteligência (que se diga isto sem ofen-dê-lo) , desprezaria uma obra da estatuária antigase tivesse que perder por isso a ocasião de sabo-rear um retrato de Reynolds ou de Lawrence.Tudo que adorna a mulher, tudo que serve pararealçar sua beleza, faz parte dela própria; e osartistas que se dedicaram particularmente ao es-tudo desse ser enigmático adonm finalmente todoo mundm muliebris quanto a própria mulher. Amulher é, sem dúvida, urna luz, um olhar, umconvite à felicidade, às vezes uma palavra; mas elaé sobretudo uma harmonia geral, não somente noseu porte e no movimento de seus membros, mastambém nas musselinas, nas gares, nas amplas e re-verberantes nuvens de tecidos com que se envolve,que são como que os atributos e o pedestal de suadivindade; no metal e no mineral que lhe serpen-teiam os braços e o pescoço, que acrescentam suascentelhas ao fogo de seus olhares ou tilintam deli-cadamente em suas orelhas. Que poeta ousaria, napintura do prazer causado pela aparição de umabeldade, separar a mulher de sua indumentária?Que homem, na rua, no teatro, no bosque, nãofruiu, da maneira mais desinteressada possível, deum vestuário inteligentemente composto e nãoconservou dele uma imagem inseparável da belezadaquela a quem pertencia, fazendo assim de am-bos, da mulher e do traje, um todo indivisível?Parece-me que esta é a ocasião de retomar certasquestões relativas à moda e aos adereços, que ape-nas indiquei no começo deste estudo, e de vingara arte do vestir das calúnias ineptas com que aatormentam certos amantes muito equívocos danatureza.

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XI

Elogio da Maquilagem

Há uma canção, tão trivial c inepta que nãose deveria citá-la num trabalho com algumas pre-tensões dç seriedade, mas que traduz muito bem,em estilo de opereta, a estética das pessoas quenão pen^m. A natureza embeleza a beleza! Épresumível que se o põe ia pudesse falar em fran-cês, teria dito: A simplicidade embeleza a belezct!,o que equivale a esta verdade, de um género com-pletamente inesperado: O nada embeleza aquiloque é.

A maior parte dos erros relativos ao belo nas-ce da falsa concepção do século XVIII relativaà moral. Naquele tempo a natureza foi tomadacomo base, fonte e modelo de todo o bem e detodo o belo possíveis. A negação do pecado ori-ginal contribuiu em boa parte para a cegueirageral daquela época. Se todavia consentirmos emfazer referência simplesmente ao fato visível, àexperiência de todas as épocas e à Gazette dês Tri-bunanx, veremos que a natureza não ensina nada,ou quase nada, que ela obriga o homem a dormir,a beber, a comer e a defender-se, bem ou mal,contra as hostilidades da atmosfera. É ela igual-mente que leva o homem a matar seu semelhante,a devorá-lo, a sequestrá-lo e a torturá-lo; poismal saímos da ordem das necessidades e das obri-gações para entrarmos na do luxo e dos prazeres,vemos que a natureza só pode incentivar apenaso crime. É a infalível natureza que criou o parri-cídio e a antropofagia, e mil outras abominaçõesque o pudor e a delicadeza nos impedem de no-

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mear. É a filosofia (refiro- mi à boa), é a religiãoque nos ordena alimentar nossos pais pobres e en-fermos. A natureza (que é apenas a voz de nossointeresse) manda abatê-los. lassemos cm revista,analisemos tudo o que é natural, todas as açõese d^ejos do puro homem n a t u r a l , nada encontra-remos senão horror. Tudo quanto é bL'!o e nobreé o resultado da razão e do cálculo. O crime,cujo gosto o animal humano haur iu no ventre namãe, é originalmente natural, A virtude, ao con-trário, é itrftf/c/nl, sobrenatunl, já que foram ne-

-. um todas as épocas e em todas as nações,c profetas para ensiná-la à humanidade

animalizada, c que o homem, por si só, teria sidoincapaz de descobri-la. O mal é praticado semesforço, naturalmente, por fatalidade; o bem ésempre o produto de uma arte. Tudo quanto digoda natureza como má conselheira em matéria demoral, e da razão como verdadeira redentora ereformadora, se pode transpor para a ordem dobelo. Assim, sou levado a considerar os adereçoscomo um dos sinais da nobreza pr imi t iva da almahumana. As raças que nossa civilização, confusae pervertida, trata com natura l idade de selvagens,com um crgulho e uma enfatuação absolutamen-te risíveis, compreendem, tanto quanto a criança,a alta espiritualidade da indumentária. O selva-gem e o bab\m — por sua aspiração ingé-nua em relação a tudo o que é brilhante, às plu-magens multicores, aos tecidos cintilantes, à ma-jestade super la t iva das formas ar t i f ic ia is — suaaversão pelo real, e testemunham, dessa forma,à sua revelia, a imaterialidade de sua alma. Aidaquele que, como Luis XV (que foi não o pro-duto de uma verdadeira civilização, mas de uma

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recorrência de barbárie), leva a depravação aoponto de apreciar apenas a simples watwrezal*

A moda deve ser considerada, pois, como umsintoma do gosto pelo ideal que flutua no cérebrohumano acima de tudo o que a vida natural neleacumula de grosseiro, terrestre e imundo, comouma deformação sublime da natureza, ou me-lhor, como uma tentativa permanente e sucessivade correção da natureza. Assim, observou-se ju-diciosamente (sem se descobrir a razão) que to-das as modas são encantadoras, ou seja, relativa-mente encantadoras, cada uma sendo um esforçonovo, mais ou menos bem-sucedido, em direçãoao belo, uma aproximação qualquer a um idealcujo desejo lisonjeia incessantemente o espírito hu-mano insatisfeito. Mas, para serem verdadeira-mente apreciadas, as modas não devem ser consi-deradas como coisas mortas; seria o mesmo queadmirar os trapos pendurados, frouxos e inertescomo a pele de São Bartolomeu, no armário deum vendedor de roupas usadas. É preciso imagi-ná-los vitalizados, vivificados pelas belas mulhe-res que os vestiram. Somente assim compreende-remos seu sentido e espírito. Se, por conseguinte,o aforismo Todas as modas são encantadoras oescandaliza como excessivamente absoluto, diga eestará certo de não se enganar: todas foram le-gitimamente encantadoras.

A mulher está perfeitamente nos seus direi-tos e cumpre até uma espécie de dever esforçando-se em parecer mágica e sobrenatural; é precisoque desperte admiração e que fascine; ídolo, deve

* Sabe-se que a sra. Dubarry, quando queria evitar recebero rei, tinha o cuidado de passar ruge. Era um sinal sufi-ciente. Ela fechava assim a sua porta: era embelezando-ssque evitava o real discípulo da natureza.

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dourar-se para ser adorada. Dere, pois, colher emtodas as artes os meios para. elevar-se acima da na-tureza para melhor subjugar os corações e sur-preender os espíritos. Pouco importa que a astú-cia e o artifício sejam conhecidos de todos, se osucesso está assegurado e o efeito é sempre irre-sistível. O artista-filósofo encontrará facilmentenessas considerações a legitíinaçío de todas as prá-ticas empregadas em todos os tempos pelas mu-lheres para consolidarem e divinizarem, por as-sim dizer, sua frágil beleza. O catálogo dessas prá-ticas seria inumerável; mas, para nos limitarmosàquilo que nossa época chama vulgarmente demaquilagem, quem não vê que o uso do pó-de-arroz, tão tolamente anatematizado pelos filóso-fos cândidos, tem por objetivo e por resultadofazer desaparecer da tez todas as manchas que anatureza nela injuriosamente semeou e criar umaunidade abstrata na textura e na cor da pele, uni-dade que, como a produzida pela malha, aproximaimediatamente o ser humano da estátua, isto é,de um ser divino e superior? Quanto ao preto ar-tificial que circunda o olho e ao vermelho quemarca a parte superior da face, embora o usoprovenha do mesmo princípio, da necessidade desuplantar a natureza, o resultado deve satisfazera uma necessidade completamente oposta. O ver-melho e o preto representam a vida, uma vidasobrenatural e excessiva; essa moldura negra tornao olhar mais profundo e singular, dá aos olhosuma aparência mais decidida de janela aberta parao infinito; o vermelho, que inflama as maçãs dorosto, aumenta ainda a claridade da pupila eacrescenta a um belo rosto feminino a p . i i \ . i < >misteriosa da sacerdotisa.

Assim, se sou bem compreendido, .1do rosto não deve ser usadn com .» i i i i n i t , . ! . . v n l

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gar, inconfessável, de imitar a bela natureza c derivalizar com a juventude. Aíiis, obscrvou-se queo ar t i f íc io não embelezava a feiura c só podiaservir a beleza. Quem se atreveria, i atribuir àarte a função estéril de imitar a. natureza? A ma-quilagem não tem por que se dissimular nem perque evitar se entrever; pode, ao contrário, exi-bir-se, se não com aíctação, ao menos com umaespécie de candura.

Aqueles a quem uma pesada gravidade im-pede buscar o belo mesmo em suas mais minucio-sas manifestações, autorizo de boa vontade a ri-rem de minhas reflexões e a assinalarem nelas apueril solenidade; nada em seus julgamentos aus-teros me afeta; contento-me em me remeter aosverdadeiros artistas, assim como às mulheres quereceberam ao nascer uma centelha desse jogo sa-grado com que gostariam de iluminar-se por in-teiro.

XII

As Mulheres e as Cortesãs

Assim G., tendo-se imposto a tarefa de bus-car e explicar a beleza na Modernidade, apraz-scem representar as mulheres muito enfeitadas eembelezadas por todas as pompas artificiais, sejaqual for o meio a que pertençam. Aliás, na cole-ção de suas obras, como no fervilhamento da vidahumana, as diferenças de casta e de raça, sobqualquer aparato de luxo corn que as pessoas seapresentem, saltam imediatamente aos olhos doespectador.

Ora aparecem jovens da mais seleta socieda-de, iluminadas pela claridade difusa de uma sala

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de espetáculo, recebendo e rtfletindo a luz comseus olhos, jóias, espáduas, resplandecentes comoretratos no camarote que lhes serve de moldura.Umas, graves e sérias; outras , louras e vaporosas.Umas exibem com uma aristocrática displicênciaum colo precoce; outras exibem com canduraum busto de rapaz. Mordiscam o leque, o olharvago ou fixo, são teatrais c solenes como o dramaou a ópera que fingem escatar.

Ora vemos elegantes famílias passeando in-dolentemente nas alamedas dos jardins públicos, asmulheres, com um ar tranquilo, caminhando len-tamente, braços dados com os maridos, cujo as-pecto sólido e satisfeito revela uma fortuna rea-lizada e o contentamento de si. Aqui a aparênciaopulenta substitui a distinção sublime. Meninasmagrelas, com saias rodadas, parecendo mulherzi-nhas graças aos gestos e atitudes, pulam corda,brincam com arcos ou visitam-se ao ar livre, re-petindo assim a comédia dada em casa pelos pais.

Emergindo de um mundo inferior, orgulhosasde aparecerem enfim sob as luzes da ribalta, asjovens dos pequenos teatros, delgadas, frágeis, ain-da adolescentes, agitam suas formas virginais edoentias fantasias absurdas, que não são de épocaalguma e que as enchem de contentamento.

À porta de um café, apoiando-se nos vidrosiluminados por todos os lados, exibe-se um dessesimbecis, cuja elegância é feita pelo alfaiate e acabeça, pelo barbeiro. A seu lado, com os pésapoiados sobre o indispensável tamborete, está sen-tada sua amante, mulher bastante leviana, a quemnão falta quase nada (esse quase nada é quasetudo, é a distinção) para parecer uma grandedama. Como seu belo companheiro, ela tem todoo orifício da pequena boca ocupado por um cha-

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ruto desproporcional. Esses dois stresnío pensam.Será que eles até mesmo olham? A menos que,Narcisos da imbecilidade, contemplem a multi-dão como um rio que lhes devolve a Imagem. Naverdade, existem bem mais para o prazer do ob-servador do que para o próprio prazer,

Eis, agora, abrindo suas galerias plenas de luze de movimento, esses Valentinos, Cassinos, Pra-dos (outrora Tívolis, Idálias, Folias, Pafos), essescafarnauns onde a exuberância da juventude ocio-sa se manifesta livremente. Mulheres que exage-raram a moda, a ponto de Ilie alterar a graça elhe destruir a intenção, varrem faustuosamenteos soalhos com a cauda de seus vestidos e a pontade seus xales; vão e vêm, passam e repassam,abrindo os olhos espantados corno os dois ani-mais, dando a impressão de nada verem, mas exa-minando tudo.

Sobre um fundo de luz infernal ou de auro-ra boreal, vermelho, alaranjado, sulfuroso, rosa (orosa revela uma ideia de êxtase na frivolidade),algumas vezes violeta (cor preferida das abades-sas, brasa que se apaga por trás de uma cortinade azul), sobre esses fundos mágicos, imitandodiversamente os fogos de Bengala, eleva-se a ima-gem variada da beleza equívoca. Aqui majestosa,lá delicada; ora esbelta, franzina até, ora cicló-pica; ora pequena e vivaz, ora pesada e monu-mental. Ela inventou uma elegância provocante ebárbara, ou então aspira, com maior ou menorfelicidade, a simplicidade de praxe na melhor so-ciedade. Caminha, desliza, dança e rodopia comseu peso as crinolinas bordadas que lhe servem aomesmo tempo de pedestal e de contrapeso. Lançac olhar por debaixo do chapéu, como um retratoem sua moldura. Representa perfeitamente a sel-

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vageria na civilização. Ela tem sua beleza que lhevem do mal, sempre desprovida de espiritualidade,mas por vezes matizada de uni; fadiga que simulaa melancolia. Ela dirige o olhar ao horizonte,como animais caçando; mesma exaltação, mesmadistração indolente e também, às vezes, mesmafixidez de atenção. Espécie ie boémia errante nosconfins de uma sociedade regular, a trivialidadede sua vida, que é uma vida de astúcia e de com-bate, vem à luz fatalmente xtrivés de seu invólu-cro majestoso. Aplicam-se a ela justamente estaspalavras do mestre inimitável, La Bruyère: "Háem algumas mulheres uma grandeza artificial li-gada ao movimento dos olhos, a um menear decabeça, à maneira de andar, que não vai muitolonge".

As observações relativas à cortesã podem, atécerto ponto, aplicar-se à atriz, pois ela tambémé uma criatura de aparato, um objeto de prazerpúblico. Mas aqui a conquista, a presa, é de na-tureza mais nobre e mais espiritual. Trata-se deobter a consideração geral, mediante não só apura beleza física, mas também através de talen-tos de uma ordem mais rara. Se de um lado a atrizse aproxima da cortesã, por outro assemelha-se aopoeta. Não nos esqueçamos de que, além da belezanatural, e mesmo da artificial, há em todos osseres um idiotismo de profissão, uma caracterís-tica que se pode traduzir fisicamente em feiúra,mas também numa espécie de beleza profissional.

Na galeria imensa da vida londrina e parisi-ense, encontramos os diversos tipos da mulhererrante, da mulher revoltada em todos os níveis:inicialmente a mulher galante, na flor da idade,arrogando-se ares aristocráticos, orgulhosos aomesmo tempo de sua juventude e de seu luxo, no

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qual ela põe todo o seu engenha e tod; a sua alma,levantando delicadamente com dois dedos umaampla faixa de cetim, de seda ou de veludo queesvoaça à sua volta, e avançando o pé pontiagudo,cujo calçado excessivamente ornado basearia paradenunciá-la, na falta da ênfase um pouco vivade toda a sua indumentária; seguindo a escala,descemos até as escravas, que são confinadas empocilgas frequentemente decoradas como bares;desditadas, mantidas sob a mais severa tutela, eque não possuem nada de seu, nem mesmo o ex-cêntrico adorno que lhes serve de condimento àbeleza.

Entre estas, algumas — exemplos de umaenfatuação inocente e monstruosa — exibem naatitude e nos olhos audaciosamente erguidos a fe-licidade evidente de existirem (na verdade, porquê?) . Às vezes assumem sem querer poses deuma audácia e nobreza que fascinariam o estatu-ário mais delicado, se este tivesse a coragem e oespírito de colher a nobreza em toda a parte, mes-mo na lama; outras vezes exibem-se prostradasem atitudes desesperadas de tédio, em indolênciasde botequim, com um cinismo masculino, fuman-do cigarros para matar o tempo, com a resignaçãodo fatalismo oriental; espalhadas, espojadas sobreos canapés, e saia arredondada atrás e na frentenum duplo leque, ou penduradas em equilíbriosobre os banquinhos e cadeiras; pesadas, tacitur-nas, estúpidas, extravagantes, com os olhos vítreosdevido à aguardente e com as frontes arqueadaspela obstinação. Descemos até o último degrau daespiral, até o foemina simplex do satírico latino.Ora vemos se destacar, sobre o fundo de uma at-mosfera onde o álcool e o tabaco misturaram seusvapores, a magreza inflamada da tísica ou as cur-

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vás da adiposidade, essa hedionda saúde de ócio.Num caos brumoso e dourado, insuspeitado pelascastidades indigentes, agitam-se e convulsionam-se ninfas macabras e bonecas \ivis cujo olhar in-fantil deixa escapar uma claridade sinistra, en-quanto atrás de um balcão repleto de garrafas delicores se emproa uma gorda megera, cuja cabeça,amarrada num lenço sujo que projeta na parede asombra de suas pontas satânicas, faz pensar quetudo o que é consagrado ao mal está fadado a terchifres.

Na verdade, não foi para deleitar meu leitornem para escandalizá-lo que coloquei diante deseus olhos semelhantes imagens; num ou noutrocaso, teria sido faltar-lhe com o respeito. O queas torna preciosas e as consagra são os inumerá-veis pensamentos que despertam, geralmente se-veros e sombrios. Mas, se, por acaso, algum im-pudente procurasse nessas composições de G., es-palhadas em quase toda parte, a ocasião de satis-fazer uma curiosidade malsa, previno-o caridosa-mente que nada encontrará que possa excitar umaimaginação doente. Encontrará apenas o vícioinevitável, isto é, o olhar do demónio emboscadonas trevas, ou a espádua de Messalina resplande-cendo sob a luz; nada, a não ser arte pura, isto é,a beleza particular do mal, o belo no horrível. Eaté, para reafirmá-lo de passagem, a sensação ge-ral que emana de todo esse cafarnaum contémmais tristeza do que graça. O que confere belezaparticular a essas imagens é sua fecundidade mo-ral. São ricas em sugestões, mas em sugestõescruéis, ásperas, que minha pena, embora acostu-mada a lutar com as representações plásticas, tal-vez só insuficientemente tenha traduzido.

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xmOs Veículos

Assim prosseguem, cortadas por inumeráveisramificações, essas longas galerias do high life edo lowe life. Emigremos por alguns insttntes paraum mundo, se não puro, pelo menos mais refina-do; respiremos perfumes, não mais salutares, tal-vez porém mais delicados. Já disse que o pincelde G., como o de Eugène Lami, era maravilhosa-mente capaz de representar as pompas do dan-dismo e a elegância da perfidez. As atitudes dorico lhe são familiares; ele sabe, com um levetraço de pena, com uma segurança infalível, re-presentar a segurança do olhar, do gesto e da poseque, nos seres privilegiados, resulta da monotoniana felicidade. Nessa série particular de desenhosreproduzem-se, sob inúmeros aspectos, os inciden-tes do esporte, as corridas, as cenas de caça, ospasseios nos bosques, as ladies orgulhosas, as frá-geis misses, conduzindo com uma mão segura oscorcéis de uma pureza admirável de garbo, co-quetes, brilhantes, eles próprios caprichosos comomulheres. Pois G. conhece não somente o cavaloem geral, mas dedica-se também com êxito a ex-primir a beleza particular dos cavalos. Ora sãoas paradas e, por assim dizer, os acampamentos denumerosas carruagens em que alçados sobre as al-mofadas, sobre os bancos e sobre os tetos, jovensesbeltos e mulheres com roupas excêntricas, per-mitidas pela estação, assistem a qualquer soleni-dade do turfe que se desenrola ao longe; ora umcavaleiro galopa graciosamente ao lado de umacaleche descoberta, e seu cavalo parece, por seusmovimentos, saudar à sua maneira. O veículo levaa galope, numa alameda zebrada de sombra e luz,

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as beldades reclinadas como num barca, indo-lentes, escutando vagamente os galanteios que lhechegam aos ouvidos e abandonando-se preguiço-samente à brisa do passeio.

O casaco de pele ou a musselina lhes chegaao queixo e transborda como uma onda por cimada portinhola. Os criados estão rígidos e perpen-diculares, inertes, uns parecidos com os outros: ésempre a efígie monótona e sem relevo do servi-lismo, pontual e disciplinada; sua característicaé a de não terem nenhuma. Ao fundo, o bosqueverdeja ou se inflama, cobre-se de eflorescênciasluminosas ou escurece conforme a hora e a estação.Seus recantos enchem-se de brumas outonais, desombras azuis, de raios amarelos, de cintilaçõesróseas ou de estreitos fachos de luz que cortama obscuridade como golpes de sabre.

Se as inumeráveis aquarelas relativas à guerrada Criméia não nos tivessem mostrado a capa-cidade de G. como paisagista, estas com certezaseriam suficientes. Mas aqui já não se trata doscampos dilacerados da Criméia, nem das margensteatrais do Bósforo; encontramos as paisagens fa-miliares e íntimas que formam o adorno circularde uma grande cidade, em que a luz cria efeitosque um artista verdadeiramente românt.co nãopode desdenhar.

Um outro mérito que não é inútil observaraqui é o conhecimento notável dos arreios e dacarroçaria. G. desenha e pinta uma viatura, e to-das as espécies de viaturas, com o mesmo cuidadoe a mesma facilidade que um consumado pintorde marinhas pinta todas as espécies de navios.Toda a sua carroçaria é perfeitamente ortodoxa;cada parte está no seu devido lugar <e não há nadaa corrigir. Seja qual for a posição ou a velocidade

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em que ela for lançada, uma viatura, como umnavio, recebe do movimento uma griça misterio-sa e complexa, dificílima de regismr. O prazerque o olhar do artista dela recebe decorre, ao queparece, da série de figuras geométricas que essecbjeto, já tão complicado — navio ou carruagem—, engendra de forma rápida e sucessiva no es-paço.

Podemos apostar com toda certeza que, den-tro de alguns anos, os desenhos de G. se cornarãoarquivos preciosos da vida civilizada. Suas obrasserão procuradas pelos curiosos tanto quanto asdos Debucourt, dos Moreau, dos Saint-Aubin, dosCarie Vernet, dos Lami, dos Deveria, dos Gavar-ni, e de todos esses artistas excelentes que, porterem pintado somente o familiar e o belo, nãodeixam de ser, a seu modo, sérios historiadores.Vários deles fizeram inclusive muitas concessõesao belo e introduziram algumas vezes em suascomposições um estilo clássico alheio ao tema; vá-rios arredondaram voluntariamente os ângulos,aplainaram as asperezas da vida, amorteceram-lheas fulgurantes explosões. Menos hábil do que es-tes, G. tem um mérito profundo que lhe é pe-culiar; desempenhou voluntariamente uma fun-ção que outros artistas desdenharam e que cabiasobretudo a um homem do mundo preencher. Elebuscou por toda a parte a beleza passageira efugaz da vida presente, o caráter daquilo queo leitor nos permitiu chamar de Modernidade.Frequentemente estranho, violento e excessivo,mas sempre poético, ele soube concentrar em seusdesenhos o sabor amargo ou capitoso do vinhoda vida.

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É um prazer ler os comentário! btnvhu-morados, as observações sutls • pertinen-tes de A Modernidade de Baudelairo, on-de se encontram os textos mais significa-tivos de Curiosidades Estéticas e A ArtoRomântica, ambas coletâneas póstumas.As páginas deste livro foram escritas hápelo menos 120 anos.Guardam, no entanto, uma Instlganteatualidade, e poderiam ter sido elabora-das por nossos críticos contemporâneosque circulam em galerias de arte, salões ebienais.O que mais atual do que a eterna batalhaentre críticos e artistas acusando-se mu-tuamente de incompreensão? ou o discur-so sobre pintores de pouco talento que,da noite para o dia, transformam-se nosenfants gâtés da imprensa? ou ainda Ofenómeno da moda enquanto resposta aoeterno apetite humano pelo belo? Em to-das essas ocasiões, e também quandofala sobre a voga da fotografia, Baudelaireé impecavelmente contemporâneo. Nôopor acaso. Convém não esquecer que opoeta de As flores do mal foi o primeiro adefinir o conceito de modernidade, comose poderá ler nas páginas que dedica aodesenhista Constantin Guys. Dono de ex-trema sensibilidade, Baudelaire intuiu deimediato artistas que no futuro gozariamde merecida glória.Mesmo no turbilhão dos salões, onde múl-tiplas tendências entrecruzam-se, seu jul-gamento não falhava. Saudou enfatica-mente Delacroix numa época em quepoucos arriscavam-se a fazé-lo. AmouGoya, previu a fama de Daumier, Manet eCorot. Não é a toa que suas reflexões es-téticas, reconhecidas bem depois de suamorte, apontaram o caminho percursor pa-ra a arte moderna.