A Mortalidade nos Manicômios da Região de Sorocaba e a Possibilidade da Investigação de Violações de Direitos Humanos no Campo da Saúde Mental por Meio do Acesso aos Bancos

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    AMORTALIDADE NOS MANICMIOS DA REGIO DE SOROCABA E A POSSIBILIDADE DA INVESTIGAO DE VIOLAES DEDIREITOS HUMANOS NO CAMPO DA SADE MENTAL PORMEIO DO ACESSO AOS BANCOS DE DADOS PBLICOS

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 23. PP.105-120. JAN.ABR.2012 105

    A Mortalidade nos Manicmios da Regio de Sorocaba ea Possibilidade da Investigao de Violaes de Direitos

    Humanos no Campo da Sade Mental por Meio do

    Acesso aos Bancos de Dados Pblicos

    Mortality in Mental Hospitals in Sorocaba and the Possibilityof Investigating Human Rights Violations in the Field of Mental

    Health Through Access to Public Databases

    La Mortalidad en los Hospitales Psiquitricos en Sorocabay la Posibilidad de Investigar Violaciones de Derechos Humanosen el Campo de la Salud Mental Mediante el Acceso

    a Bases de Datos Pblicas

    Marcos Roberto Vieira Garcia [email protected]

    Resumo

    A sade pblica, as relaes de poder e as instituies totaisvem sendo alguns dos objetos de anlise privilegiados no campoda Psicologia Poltica brasileira O presente artigo visa apresen-tar os resultados finais de uma pesquisa cujo objetivo foi o deinvestigar a mortalidade nos hospitais psiquitricos da regio deSorocaba no perodo entre 2004 e 2011 e a repercusso gerada

    pela divulgao de resultados parciais desta pesquisa, que mo-bilizou entidades pblicas e da sociedade civil na investigaoda situao dos internos de manicmios da regio, apontandodiversas situaes de violao de seus direitos humanos. A utili-

    zao do DATASUS (banco de dados do Sistema nico de Sa-

    de) revelou-se um importante instrumento de investigao depossveis situaes de violao dos direitos humanos destespacientes, possibilitando a superao das dificuldades de reali-zao de pesquisas in loco em instituies totais, como o casodos manicmios da regio, e ajudando no fortalecimento do

    poder de argumentao dos movimentos sociais que lutam pelareforma psiquitrica.

    Doutor em Psicologia Socialpela Universidade de So Paulo,Brasil, Professor do Departamen-to de Cincias Humanas e Edu-cao e do Programa de Ps-Graduao em Educao daUFSCar Sorocaba, SP, Brasil.

    Garcia, Marcos Roberto

    Vieira. (2011). A Mortalidadenos Manicmios da Regiode Sorocaba e a Possibilidadeda Investigao de Violaesde Direitos Humanos noCampo da Sade Mental porMeio do Acesso aos Bancosde Dados Pblicos. Psicolo-gia Poltica, 11(23), 105-120.

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    MARCOS ROBERTO VIEIRA GARCIA

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    Palavras-chaveMortalidade, Hospitais psiquitricos, Reforma psiquitrica, Sade mental, Sorocaba.

    Abstract

    Public health, power relations and total institutions have been some of the privileged objetcsof analysis in the field or Political Psychology in Brazil. This article presents the final resultsof a study which aimed to investigate mortality in psychiatric hospitals in Sorocaba between2004 and 2011 and the impact generated by the release of partial results of this research,which involved public organizations and civil society in the investigation of the situation ofinmates in mental hospitals in the region, pointing out several instances of violation of theirhuman rights. The use of DATASUS (database of Brazilian Public Health System) has been animportant tool for investigating possible cases of violation of human rights of inpatients inmental hospitals, making it possible to overcome the difficulties of conducting research insiderestricted places, as is the case of asylums in the region, and helped to strengthen thearguments of the social movements that fight for psychiatric reform.

    KeywordsMortality, Psychiatric hospitals, Psychiatric reform, Mental health, Sorocaba.

    ResumenLa salud pblica, las relaciones de poder y las intituiciones totales han sido objetosprivilegiados de anlisis em el campo de la Psicologa Poltica em Brasil. Este artculopresenta los resultados finales de un estudio cuyo objetivo fue investigar la mortalidad en loshospitales psiquitricos en Sorocaba, en el perodo comprendido entre 2004 y 2011, y elimpacto generado por la publicacin de los resultados parciales de esta investigacin, queinvolucr las organizaciones pblicas a pblico y la sociedad civil en la investigacin de la

    situacin de los internos en hospitales psiquitricos de la regin, sealando varios casos deviolacin de los derechos humanos de los internos. El uso de DATASUS (base de datos delSistema de Salud pblico brasileo) ha sido una herramienta importante para investigar

    posibles casos de violacin de los derechos humanos de los pacientes internados enhospitales psiquitricos, por lo que es posible superar las dificultades de llevar a caboinvestigaciones dentro de um espacio confinado, como es el caso de los asilos de la regin yayudar a fortalecer los argumentos de los movimientos sociales que luchan por la reforma

    psiquitrica.

    Palabras clave

    Mortalidad, Hospitales psiquitricos, Reforma psiquitrica, Salud mental, Sorocaba.

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    Introduo

    A Psicologia Poltica vem sendo um campo de conhecimento com atuao destacada nodebate sobre as implicaes do processo de isolamento pelo qual passam os internos dos ma-

    nicmios, tanto no que diz respeito a suas implicaes relacionadas ao desrespeito aos direitosfundamentais destes usurios, quanto no processo de anlise dos movimentos que lutam peloque se convencionou chamar de reforma psiquitrica, os movimentos antimanicomiais, quetem entre como principal bandeira a substituio do modelo asilar por um modelo baseado naateno comunitria aos usurios de sade mental.

    A defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana so elementos presentesdesde o incio do movimento antimanicomial no Brasil e no mundo (Bezerra, 2007). As viola-es dos direitos humanos no interior das instituies manicomiais, no entanto, muitas vezesse tornam invisveis, notadamente quando envolvem instituies fechadas, onde os internosficam afastados dos olhares pblicos.

    O presente artigo visa refletir sobre possveis estratgias de fortalecimento da luta antima-

    nicomial em regies brasileiras onde o modelo manicomial ainda predominante, como ocaso da regio de Sorocaba, aqui analisada, por meio da realizao de pesquisas que mostrempossveis violaes de direitos humanos por detrs dos muros destas instituies, de forma apromover o debate na sociedade civil sobre a necessidade de superao do modelo manicomi-al. Para tanto, este artigo visa apresentar uma pesquisa que utilizou os bancos de dados pbli-cos como estratgia de superao da invisibilidade do que ocorre no interior dos manicmiosda regio de Sorocaba. Especificamente, uma pesquisa que analisa os bitos ocorridos nosmanicmios desta regio entre 2004 e 2011, a partir dos dados do Sistema de 1nformaesHospitalares, integrante do DATASUS (banco de dados do Sistema nico de Sade).

    Na sequncia, discute o impacto da divulgao de resultados parciais da referida pesquisa,cotejando alguns resultados da pesquisa com resultados de fiscalizaes feitas em hospitais

    psiquitricos da regio, que evidenciaram situaes de negligncia no cuidado aos internos.Conclui acerca da possibilidade de estudos baseados em bancos de dados pblicos terem um

    papel importante no fortalecimento da luta antimanicomial, contribuindo para a reflexo nosespaos pblicos acerca dos direitos legais dos internos de manicmios e pressionando o

    poder pblico nas vrias esferas na direo da promoo da Reforma psiquitrica antimani-comial, em consonncia com a legislao vigente no Brasil. Como mostra Ferreira Neto(2006), os efeitos desta luta acabam por transcender o mbito do tratamento por si s e por

    promover em mbitos sociais mais amplos novas formas de compreenso da relao com aloucura e o adoecimento psquico.

    Breve histrico da constituio do plo manicomial na regio de Sorocaba

    A regio de Sorocaba foi pioneira no Brasil na implantao das chamadas colnias agr-colas, no final do sculo XIX, no incio da Repblica e j sob a influncia da crena da la-

    borterapia como a melhor estratgia de tratamento dos agora denominados doentes mentais.Em 1895, para dar conta do acmulo de pacientes no Hospcio de Alienados da capital

    paulista e enquanto era aguardada a construo do Juquery, o Governo do Estado comprouuma chcara em Sorocaba, adaptando-a para uma colnia agrcola com capacidade para 80internos, que foi ocupada por pacientes transferidos da capital. Franco da Rocha coordenou

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    pessoalmente a implantao desta colnia e supervisionava mensalmente seu funcionamento,que ficava sob responsabilidade de um administrador e de um mdico local (Moreira, 2011).Seu perodo de funcionamento, porm, foi curto, uma vez que em 1898, com a criao doJuquery, os alienados de Sorocaba foram para l transferidos e a colnia foi fechada (Cu-nha, 1986).

    No sculo XX, a histria da implantao e desenvolvimento dos hospitais psiquitricos daregio marcada pela fundao do Manicmio Dr. Luiz Vergueiro (atual Jardim das Accias),em 1918, gerido por pessoas ligadas a uma loja manica da cidade (Gonalves, 2006). Em-

    bora a histria deste manicmio ainda esteja por ser contada, alguns registros mostram que ascondies de vida dos internos dali eram sofrveis. Relato do Corregedor Geral em visita aSorocaba no ano de 1933 chama a ateno para a falta de recursos e de instalaes necessriasao tratamento adequado, evidenciadas pelo fato de haverem 82 internos para 4 salas de 48 mcada, o que equivale a cerca de 2,3 m em mdia disponveis para cada interno (CorregedoriaGeral da Justia, 1933).

    Na dcada de 40, relatrios de visitas criticavam o carter de depsito do manicmio

    Luiz Vergueiro, que servia tambm de delegacia e priso, como mostra um trecho da inspeoali realizada em 1942 por um mdico do Servio Nacional de Doenas Mentais: Cumprenotar que o Manicmio uma vlvula de desafogo para a Delegacia Regional de Sorocaba,que atende a uma rede importante de municpios, pois no existe em toda a regio da Soroca-

    bana nenhum estabelecimento para internao de psicopatas. O Manicmio tem servido at depresdio: o pavilho novo foi inaugurado com o recolhimento de um bando de garotos. (Ar-quivos do Servio Nacional de Sade Mental, 1943, p. 705). H referncias em perodo pr-ximo tambm ausncia de pronturios de pacientes e de mdicos psiquitricos na instituioe avaliao de que o manicmio desconhece o tratamento especializado (Boletin de LaOficina Sanitaria Panamericana, 1939) O surgimento da Faculdade de Medicina de Sorocaba,na passagem da dcada de 40 para a de 50, levou necessidade de incorporao da instituio

    pela psiquiatria, o que por sua vez foi um dos determinantes para o estabelecimento de umconvnio com o Governo do Estado de So Paulo para obteno de recursos pblicos para oManicmio, a partir de 1955 (Lei n 4053, 1957).

    As dcadas de 60 e 70 do sculo XX assistiram proliferao dos hospitais psiquitricosno Brasil, com um aumento vertiginoso de leitos privados, a grande maioria deles ocupados

    por pacientes do ento Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS) por meio de conv-nios. Uma parte substancial destes leitos passou a ser ocupada por ex-internos dos grandeshospitais pblicos, como o caso do Juquery, no Estado de So Paulo. Este processo gerou ofortalecimento de um poderoso grupo econmico, formado por donos de hospitais psiquitri-cos, que se tornaram fortes defensores da manuteno dos hospitais psiquitricos nas dcadasseguintes (Yasui, 2008).

    A regio de Sorocaba no passou inclume a este processo. Pelo menos oito novos hospi-tais psiquitricos foram criados neste perodo na regio, que passou a se configurar como umdos maiores plos manicomiais do Brasil j na dcada de 70, sendo dois deles em Sorocaba,dois em Salto de Pirapora, um em Piedade, um em Pilar do Sul, um em So Roque e um emItapetininga, todas cidades prximas a Sorocaba em um raio de 60 km, que, somados aos dois

    j existentes na cidade.de Sorocaba alcanavam a soma de 10 manicmios. A grande maioriadestes hospitais, se no a totalidade deles, foi criada em regime de sociedade entre mdicos,contando tambm com a participao, por vezes, de alguns profissionais de sade de outras

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    especialidades, como psiclogos e enfermeiros. Alguns chegaram a ter participao na propri-edade de vrios manicmios. Formou-se na regio, a partir disso, um grupo de defensores domodelo hospitalocntrico, que conseguiu inclusive apoio na mdia local para defender estaforma de ateno no campo da Sade Mental.

    A resposta da regio ao advento de uma nova proposta de ateno Sade Mental no Bra-sil, a partir de meados da dcada de 80 do sculo XX, que gerou o movimento em busca dadenominada Reforma psiquitrica, foi bastante tmida na regio desde o princpio. Tal propos-ta, que em linhas gerais prope contribuir para a desinstitucionalizao dos usurios dos ser-vios de sade mental, a partir da criao de uma rede substitutiva de apoio ao usurio e suafamlia, sofreu fortes crticas desde seu princpio na mdia de regio, em especial no jornallocal Cruzeiro do Sul, que publicou periodicamente editoriais com crticas s propostas daReforma. Mais recentemente, contudo, a forte presso da esfera federal sobre as polticas

    pblicas municipais levou a uma tentativa de responder legislao que trata da ateno psi-quitrica com a criao de uma rede substitutiva de sade mental. Tal tentativa, porm, temsido criticada por membros do Frum da Luta Antimanicomial de Sorocaba (FLAMAS),

    movimento que congrega professores de diferentes Universidades da regio e profissionais dediversas especialidades que atuam em servios de sade, assistncia social e jurdica do muni-cpio de Sorocaba, pelo fato desta rede ser gerida, em sua maior parte, pelos prprios mani-cmios ou entidades a eles associadas, o que faz com que seu funcionamento no se d dentrodos parmetros definidos pela atual legislao em Sade Mental.

    Caractersticas dos hospitais psiquitricos da regio de Sorocaba

    Segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES, 2011), a re-gio de Sorocaba conta com sete manicmios. Quatro deles se localizam no municpio de

    Sorocaba: Vera Cruz (com 512 leitos SUS), Mental (com 363 leitos SUS), Teixeira Lima(com 254 leitos SUS) e Jardim das Accias (com 240 leitos SUS). Outros dois situam-se naestrada que liga Sorocaba cidade de Salto de Pirapora, distando aproximadamente 15 km deSorocaba: Santa Cruz (com 503 leitos SUS) e Clnica Salto (com 455 leitos SUS). O stimo(Vale das Hortncias) situa-se municpio de Piedade, a cerca de 30 km de Sorocaba e tem 465leitos SUS. Com exceo do Jardim das Accias, que gerido por entidade beneficente semfins lucrativos, os demais so empresas privadas. Com relao esfera de gesto do SUS, osquatro situados na cidade de Sorocaba so de gesto municipal e os demais de gesto estadu-al. O total de leitos SUS em hospitais psiquitricos na regio chega, portanto, a 2792 leitos.

    Os resultados divulgados em relatrio com indicadores dos manicmios da regio de So-rocaba, baseado em bancos de dados pblicos (Frum da Luta Antimanicomial de Sorocaba[FLAMAS], 2011), mostram que os 2792 leitos psiquitricos do SUS existentes na regiocorrespondem a um ndice de 2,3 leitos psiquitricos para cada 1000 habitantes, se considera-da a populao total do Aglomerado Populacional de Sorocaba, de 1.214.551 habitantes (IB-GE, 2010). Estes dados mostram que a regio tem mais de cinco vezes mais do que o preconi-zado pela legislao vigente, que determina um nmero mximo de 0,45 leitos psiquitricos

    por 1000 habitantes (Portaria MS n 1101, 2002).A comparao em nmeros absolutos de leitos psiquitricos pelo SUS com os disponveis

    nas demais cidades brasileiras feita no relatrio citado evidencia tambm a altssima concen-

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    trao de leitos psiquitricos na regio. Sorocaba a segunda cidade com maior nmero deleitos psiquitricos SUS no pas (1369), abaixo apenas do Rio de Janeiro, que tem 2406 leitos.Salto de Pirapora, cidade prxima Sorocaba de apenas 40 mil habitantes, a quinta cidadedo pas em nmero de leitos psiquitricos pelo SUS, com 958 leitos, superada tambm porRecife (com 1212 leitos) e So Paulo, (com 1090 leitos), cidades com populao muitssimomaior (FLAMAS, 2011).

    O mesmo relatrio apontou tambm que nenhum dos manicmios da regio de Sorocabatem um quadro de funcionrios compatvel com as exigncias da legislao que regulamente ofuncionamento dos hospitais psiquitricos no Brasil. A soma das horas de assistncia obriga-trias e das disponveis em todos os manicmios da regio, calculada a partir da legislaovigente e dos dados do cadastro dos manicmios no CNES mostra que o quadro de funcion-rios contempla menos da metade do que exigido, o que configura uma situao de flagrantedesrespeito legislao (FLAMAS, 2011).

    As violaes dos direitos humanos e os bitos nos manicmios da regio

    As situaes de violao de direitos ocorridas no interior dos hospitais psiquitricos da re-gio de Sorocaba, apesar de serem de difcil investigao, foram ocasionalmente objeto dedenncias e de divulgao pela mdia nos ltimos anos.

    O caso mais emblemtico se deu na investigao que levou ao fechamento do hospital psi-quitrico de Pilar do Sul, em 1996. Uma vistoria realizada por uma Comisso Parlamentar deInqurito (CPI) da Assemblia Legislativa Estadual, que investigou a situao dos manic-mios no Estado, constatou ali diversas irregularidades. Entre elas, estavam o uso de camisa-de-fora, a existncia de uma estaca onde os pacientes eram espancados, a falta de mdicos,terapeutas ocupacionais e enfermeiros (CPI encontra irregularidades em Hospital Psiquitrico,

    1996) e a presena de pssimas condies de higiene (Medina, Czeresnia & Miguelez, 1996).A divulgao das mortes nos hospitais psiquitricos tambm tem conseguido furar o blo-queio da mdia local ao tema, em especial quando estas envolvem situaes inusitadas ou deflagrante situao de negligncia no cuidado aos pacientes internados. Estes casos incluem ode um paciente cujo corpo foi encontrado em decomposio em uma vala perto do manicmioonde estava internado (Hospital abre sindicncia e apura desaparecimento, 2006), o de um

    paciente que teria morrido engasgado, mas que tinha hematomas na face no exame ps-morte(Paciente de hospital psiquitrico morre engasgado, 2009), o de um paciente que teria morrido

    por afogamento em um lago prximo ao manicmio onde estava internado (Causa da morte dejovem saltense em outra cidade um mistrio, 2010) e a de um interno que foi assassinadopor outro com golpes de uma barra de ferro (Interno mata outro em hospital psiquitrico,

    2010).Pesquisa preliminar apresentada no presente artigo, realizada a partir do banco de dados

    pblico do SIM (Sistema de Informaes sobre Mortalidade), entre 2006 e 2009, (Garcia,2011) mostrou que ocorreram 459 mortes nos hospitais psiquitricos da regio de Sorocaba no

    perodo, o que corresponde a uma morte a cada trs dias. A estimativa baseada no nmero deleitos dos manicmios revelou uma mortalidade cerca de duas vezes maior na regio de Soro-caba na comparao com os demais do Estado. Alm disso, as mortes ocorreram mais preco-cemente nos manicmios da regio de Sorocaba (53 anos) do que no restante dos grandesmanicmios do Estado de So Paulo (62 anos) no perodo considerado. Entre as principais

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    causas de morte, destacou-se a prevalncia significativamente maior de mortes por infarto,pneumonia, tuberculose e doenas do aparelho digestivo nos manicmios da regio de Soro-caba. No houve diferena de mortalidade por sexo.

    Anlise dos bitos nos Manicmios da Regio de Sorocaba (2004-2011)

    Neste item sero apresentados os resultados finais da anlise dos bitos de pacientes doSUS ocorridos nos hospitais psiquitricos da regio de Sorocaba entre 2004 e 2011.

    A contagem dos bitos e do nmero de internaes realizadas no perodo foram feitas pormeio dos microdados do banco de dados do SIH (Sistema de Informaes Hospitalares), per-tencentes ao DATASUS, base que unifica os bancos de dados do Sistema nico de Sade.

    Foram consultados os arquivos reduzidos das Autorizaes de Internao Hospitalares AIHs. Estes dados esto disponveis ms a ms e podem ser consultados na internet (DATA-SUS, 2012).

    A consulta ao banco de dados e sua anlise foram feitas por meio dos softwares de uso li-vre EPI-INFO e TABWIN

    A Tabela 1 mostra o total de bitos de 2004 a 2011 de pacientes do SUS nos manicmiosda regio de Sorocaba:

    Tabela 1 bitos por ano de ocorrncia e por manicmio na regio de Sorocaba

    2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total

    Vera Cruz de Sorocaba 19 16 25 18 39 15 15 20 167

    Clnica Salto de Pirapora 22 17 20 16 14 19 22 16 146

    Vale das Hortncias de Piedade 25 13 17 15 15 21 20 19 145Santa Cruz de Salto de Pirapora 14 23 15 22 12 16 11 15 128

    Teixeira Lima de Sorocaba 15 12 10 16 9 10 16 19 107

    Hospital Mental de Sorocaba 17 14 11 12 11 12 8 8 93

    Jd das Accias de Sorocaba 9 8 14 6 13 8 12 7 77

    TOTAL regio de Sorocaba 121 103 112 105 113 101 104 104 863

    Na ausncia de dados sistemticos sobre a mortalidade de pacientes de hospitais psiqui-

    tricos no Brasil buscou-se uma comparao com os bitos ocorridos nos outros hospitaispsiquitricos do Estado de So Paulo com mais de 200 leitos, situao de todos os manic-mios da regio de Sorocaba. Tomando- se como base a listagem de leitos do Cadastro Nacio-nal de Estabelecimento de Sade (CNES, 2011), h outros 19 manicmios no Estado nestacondio, alm dos 7 da regio de Sorocaba: Clnica Sayo de Araras, Centro de Reabilitaode Casas Branca, Bezerra de Menezes de Esprito Santo do Pinhal, Allan Kardec de Franca,Juquery de Franco da Rocha, Andr Luiz de Gara, Clnica Cristlia de Itapira, Amrico Bair-ral de Itapira, Tereza Perlatti de Ja, Hospital Esprita de Marlia, Bezerra de Menezes dePresidente Prudente, So Joo de Presidente Prudente, Santa Tereza de Ribeiro Preto, Bezer-

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    ra de Menezes de Rio Claro, CAIS de Santa Rita do Passa Quatro, Lacan de So Bernardo doCampo, Bezerra de Menezes de So Jos do Rio Preto, Dom Bosco de Tup e Instituto dePsiquiatria de Tup.

    A Tabela 2 mostra o nmero de bitos de pacientes do SUS ocorridos nestes hospitais psi-quitricos do Estado no perodo entre 2004 e 2011:

    Tabela 2 bitos por ano de ocorrncia por manicmio com 200 leitosou mais pacientes do SUS Estado de So Paulo (exceto regio de Sorocaba)

    2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Total

    Centro de Reabilitao Casa Branca 19 17 17 22 7 16 18 6 122

    Clnica Sayo de Araras 12 11 8 17 9 19 12 10 98

    CAIS Santa Rita do Passa Quatro 6 11 11 17 19 4 7 16 91

    Juquery de Franco da Rocha 16 8 4 5 5 4 6 12 60Bezerra de Menezes EspritoSanto do Pinhal

    6 6 8 8 3 7 8 11 57

    So Joo de Presidente Prudente 11 3 7 6 4 9 2 4 46

    Santa Tereza de Ribeiro Preto 9 3 5 5 4 6 5 7 44

    Instituto de Psiquiatria de Tup 5 2 6 3 1 7 9 8 41

    Instituto Bairral de Itapira 5 2 8 5 7 1 6 6 40

    Hospital Tereza Perlatti de Ja 7 4 5 5 6 5 0 4 36Lacan de So Bernardo do Campo 10 3 6 7 2 1 4 1 34

    Clnica Cristlia de Itapira 9 3 4 6 3 2 4 3 34

    Bezerra de Menezes Pres. Prudente 11 2 4 1 2 3 6 4 33

    Clnica Dom Bosco de Tup 2 11 3 6 3 4 1 3 33

    Allan Kardec de Franca 1 4 3 2 5 2 6 4 27

    Bezerra de Menezes de Rio Claro 1 5 2 9 2 1 3 2 25

    Bezerra de Menezes So Jos doRio Preto

    0 0 0 1 1 6 2 3 13

    Hospital Esprita de Marlia 2 1 1 2 1 0 0 0 7

    Andr Luiz de Gara 0 0 0 0 0 0 0 5 5

    TOTAL restante do Estado de SP 132 96 102 127 84 97 99 109 846

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    A comparao dos resultados expressos nas tabelas 1 e 2 mostra que o total de bitos nossete manicmios da regio de Sorocaba (863) supera o total dos bitos dos outros 19 grandesmanicmios do Estado de So Paulo (846) para o perodo considerado. Na contagem pormanicmios, observa-se que os 4 em que ocorreram mortes pertencem regio de Sorocaba eque todos os 6 manicmios privados desta regio (excetuando-se, portanto, o Jd das Accias,que filantrpico) encontram-se entre os 8 onde mais ocorreram mortes no Estado.

    Para o clculo do ndice de mortalidade relativa, foi utilizado como critrio comparativo amdia de bitos por ms para cada mil pacientes ms internados nos manicmios paulistasestudados. Este ndice tem sido utilizado na literatura cientfica brasileira, em virtude dosdados de internaes por ms estarem disponveis no banco de dados do Sistema de Informa-es Hospitalares, na forma das denominadas AIHs (Autorizaes de Internao Hospitala-res), que so utilizadas como forma de repasse de verba pblica para os hospitais credencia-dos junto ao SUS. O nmero de AIHs em um determinado ms que consta no banco de dadosdo SIH indica o nmero de pacientes que naquele ms estiveram internados em um dadohospital. Por este motivo, pertinente sua utilizao para fins comparativos, como o das mor-

    tes ocorridas nos manicmios da regio de Sorocaba com os do restante do Estado. Uma daspesquisas na qual esta foi inspirada metodologicamente compara as mortes ocorridas na Clni-ca Santa Genoveva com as ocorridas em outras instituies para idosos cariocas (Guerra,Barreto, Uchoa, Firmo & Costa, 2000).

    A Tabela 3 mostra a mdia de bitos mensais para cada mil pacientes internados nos gran-des hospitais psiquitricos paulistas (mensurada em AIHs):

    Tabela 3 Total de bitos e de AIHs/ms e mdia de bitos por 1000 AIHs/mspara os manicmios paulistas com 200 leitos ou mais (2004 a 2011) pacientes do SUS

    Total debitos

    Total deAIHs/ms

    Mdia de bitospor 1000 AIHs/ms

    Teixeira Lima de Sorocaba 107 28.388 3,77

    Clnica Salto de Pirapora 146 39.157 3,73

    Vale das Hortncias de Piedade 145 44.009 3,29

    Vera Cruz de Sorocaba 167 52.288 3,19

    Hospital Mental de Sorocaba 93 36.216 2,57

    Santa Cruz de Salto de Pirapora 128 51.651 2,48

    Jd das Accias de Sorocaba 77 33.620 2,29

    TOTAL regio de Sorocaba 863 285.329 3,025

    Centro de Reabilitao Casa Branca 122 33.205 3,67

    CAIS Santa Rita do Passa Quatro 91 25.710 3,54

    So Joo de Presidente Prudente 46 19.707 2,33

    Santa Tereza de Ribeiro Preto 44 22.817 1,93

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    MARCOS ROBERTO VIEIRA GARCIA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA POLTICA114

    Total debitos

    Total deAIHs/ms

    Mdia de bitospor 1000 AIHs/ms

    Instituto de Psiquiatria de Tup 41 22.148 1,85

    Clnica Dom Bosco de Tup 33 19.416 1,70

    Bezerra de Menezes EspritoSanto do Pinhal

    57 34.964 1,63

    Clnica Sayo de Araras 98 68.439 1,43

    Clnica Cristlia de Itapira 34 27.534 1,23

    Juquery de Franco da Rocha 60 49.111 1,22

    Hospital Tereza Perlatti de Ja 36 30.016 1,20

    Bezerra de Menezes Pres. Prudente 33 27.490 1,20

    Allan Kardec de Franca 27 27.147 0,99

    Lacan de So Bernardo do Campo 34 37.416 0,91

    Bezerra de Menezes de Rio Claro 25 28.446 0,88

    Instituto Bairral de Itapira 40 57.663 0,69

    Bezerra de Menezes S. J. do Rio Preto 13 26.592 0,49

    Andr Luiz de Gara 5 19.682 0,25

    Hospital Esprita de Marlia 7 32.919 0,21

    TOTAL restante do Estado de SP 846 610.421 1,386

    Os resultados expostos na Tabela 3 mostram que a mortalidade mdia por ms de pacien-tes do SUS nos manicmios da regio de Sorocaba (mensurada por 1000 AIH/ms) de 3,025no perodo entre 2004 e 2011, sendo 118 % maior do que a dos outros 19 grandes manicmiosdo Estado (1,386).

    Os resultados por manicmio tambm apontam que todos os seis manicmios privados daregio esto entre os oito do Estado de So Paulo com maior mdia de bitos por ms paracada mil pacientes internados. importante ressaltar que o Centro de Reabilitao de CasaBranca e o CAIS de Santa Rita do Passa Quatro, que tambm compem este ranking, soinstituies geritricas, o que presumivelmente pode contribuir para o aumento da mortalida-de neles encontrada, fato que no ocorre na regio de Sorocaba. A pesquisa baseada nos dadosdo SIM, resumida anteriormente (Garcia, 2011), mostrou que nestes dois manicmios a idademdia dos pacientes falecidos foi superior a 70 anos para o perodo entre 2006 e 2009, en-quanto na regio de Sorocaba foi em mdia de 53 anos.

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    AMORTALIDADE NOS MANICMIOS DA REGIO DE SOROCABA E A POSSIBILIDADE DA INVESTIGAO DE VIOLAES DEDIREITOS HUMANOS NO CAMPO DA SADE MENTAL PORMEIO DO ACESSO AOS BANCOS DE DADOS PBLICOS

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 23. PP.105-120. JAN.ABR.2012 115

    A distribuio ao longo dos anos da mortalidade mdia por ms nos manicmios, mensu-rada por 1000 pacientes internados (AIH/ms), mostra que a tendncia de maior mortalidadena regio de Sorocaba vem se mantendo constante no perodo analisado (Grfico A).

    Grfico A Mdia de bitos por 1000 AIHs/ms para os manicmios da regio de Sorocabae os do restante do Estado de SP com 200 leitos ou mais (2004 a 2011) pacientes do SUS

    Com relao ao ms de ocorrncia dos bitos, os resultados absolutos e a mortalidade rela-

    tiva esto expressos na Tabela 4 e no Grfico B:

    Tabela 4 bitos por ms de ocorrncia e mdia de bitos por 1000 AIHs/mspara os manicmios da regio de Sorocaba e os do restante do Estado de SP

    com 200 leitos ou mais (2004 a 2011) pacientes do SUS

    Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

    Mortes regio de

    Sorocaba57 50 62 65 82 104 111 91 64 70 58 49

    Mortes restante

    do Estado79 62 59 59 95 81 80 84 57 66 58 66

    Mdia por 1000

    AIHs/ms

    Sorocaba e regio2,37 2,08 2,58 2,72 3,47 4,36 4,68 3,84 2,71 2,96 2,46 2,08

    Mdia por 1000

    AIHs/ms restante do Estado

    1,56 1,22 1,14 1,13 1,87 1,59 1,57 1,67 1,13 1,31 1,16 1,31

    3,13

    2,75

    3,05

    2,87

    3,12

    2,92

    3,143,25

    1,49

    1,121,31

    1,69

    1,141,34

    1,411,61

    0

    0,5

    1

    1,5

    2

    2,5

    3

    3,5

    2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

    Regio de

    Sorocaba

    Restante

    do Estado

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    MARCOS ROBERTO VIEIRA GARCIA

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    Grfico B Mdia de bitos por 1000 AIHs/ms para os manicmios da regio de Sorocabae os do restante do Estado de SP com 200 leitos ou mais, conforme ms de ocorrncia

    (2004 a 2011) pacientes do SUS

    Os resultados mostram um forte aumento da mortalidade nos meses mais frios do ano naregio de Sorocaba (entre maio e agosto, com pico nos meses de junho e julho), fato que no

    se verifica nos demais grandes manicmios do Estado de So Paulo. Estes resultados sosugestivos de que pode no haver o cuidado adequado, seja de preveno ou tratamento, emrelao s doenas mais prevalentes nos meses mais frios do ano nos manicmio da regio deSorocaba. A prevalncia significativamente maior de mortes por pneumonia nos manicmiosda regio de Sorocaba, descrita em estudo anterior j citado (Garcia, 2011), contribui paracorroborar esta suspeita.

    Decorrncias da Divulgao dos Dados sobre a Elevada Mortalidade nosManicmios de Sorocaba

    No ano de 2011, a divulgao dos dados mostrando um nmero acentuado de mortes nosmanicmios da regio de Sorocaba, feita a partir do relatrio com indicadores sobre os mes-mos citado anteriormente, que continha os dados de mortalidade obtidos por meio do SIM(Sistema de Informaes sobre Mortalidade), entre os anos de 2006 e 2009 (FLAMAS, 2011)teve ampla repercusso na mdia regional e alcance nacional, o que levou ao surgimento dedenncias por parte de familiares e funcionrios destes manicmios. Estas incluram denn-cias de situaes de negligncia feitas por funcionrios (Ex-funcionrios denunciam condi-es precrias em hospitais psiquitricos, 2011) e por familiares (SP: hospitais psiquitricos

    0

    0,5

    1

    1,5

    2

    2,5

    3

    3,5

    4

    4,5

    5

    Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez

    Regio de

    Sorocaba

    Restante

    do Estado

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    AMORTALIDADE NOS MANICMIOS DA REGIO DE SOROCABA E A POSSIBILIDADE DA INVESTIGAO DE VIOLAES DEDIREITOS HUMANOS NO CAMPO DA SADE MENTAL PORMEIO DO ACESSO AOS BANCOS DE DADOS PBLICOS

    PSICOLOGIA POLTICA. VOL.12. N 23. PP.105-120. JAN.ABR.2012 117

    sero investigados por mortes, 2011), alm de mortes relacionadas ao frio (Frio pode ter cau-sado morte de trs pacientes em hospital de Sorocaba, 2011) em manicmios da regio.

    As fiscalizaes realizadas in loco por diversas entidades tambm revelaram irregularida-des. Um delas, realizada no ms de abril de 2011 no manicmio Mental, de Sorocaba, por

    representantes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica, do ConselhoEstadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE/SP), da Comisso de DireitosHumanos da Subseo de Sorocaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), doNcleoEspecializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pblica do Estado de SoPaulo, do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e do Conselho Regional de Psicologia de 6Regio (CRP-SP) revelou a violao de vrios direitos dos internos: direito identidade e aonome, liberdade, ao lazer, a no ser receber tratamento degradante, a no ser internado eminstituio com caractersticas asilares, ao melhor tratamento do sistema de sade, a ser trata-do em ambiente teraputico pelos meios menos invasivos possveis, assistncia integral emultidisciplinar, a ser tratado preferencialmente em servios comunitrios de sade, inser-o social e comunitria, alta planejada e reabilitao psicossocial assistida. A situao

    degradante encontrada levou os representantes presentes a pedirem o fechamento do manic-mio fiscalizado (Benvindo e cols., 2011).

    Outra fiscalizao, realizada no manicmio Vera Cruz pelo Grupo Multidisciplinar de Pe-ritos Independentes para a Preveno da Tortura e Violncia Institucional da Secretaria deDireitos Humanos da Presidncia da Repblica (Grupo Multidisciplinar de Peritos Indepen-dentes para a Preveno da Tortura e Violncia Institucional, 2011) observou, entre outroselementos:

    a falta de investigao adequada dos bitos: A causa mortis, na verdade, foi indeter-minada em quase metade dos casos. Dentre os casos de bito no esclarecido, 23,52%das mortes ocorreram em pacientes jovens, com idade inferior a 40 anos (p. 5);

    uma quantidade elevada de mortes atribudas a infarto do miocrdio, especialmente en-tre jovens: Existe tambm uma quantidade relativamente elevada de bitos por infar-to do miocrdio (18,33 % dos bitos), sendo que entre os mortos por esta causa 36,33% correspondem a pacientes jovens, com idade inferior a 40 anos, uma taxa que con-siderada elevada para pacientes nesta faixa-etria. (p. 5);

    a suspeita de que o forte aumento ali encontrado de mortes por pneumonia nos mesesmais frios possa ter relao com o cuidado indequado, indicativo de situao de negli-gncia: Entre as mortes por doenas infecciosas respiratrias, 16 (80% dos casos)ocorreram entre os meses de maio a agosto, os mais frios do ano. A incidncia relati-vamente elevada de bitos por complicaes respiratrias nessa poca pode guardar re-lao com o precrio isolamento contra frio, vento e umidade proporcionado pelas ja-

    nelas quebradas (p. 5).

    Auditoria realizada pelo Departamento Nacional de Auditoria do SUS no manicmio VeraCruz, em abril de 2011 observou ali uma srie de irregularidades, dentre elas, que os registrosanotados no pronturio no permitiam, na maioria das vezes, concluir pela causa declarada demorte que constava na declarao de bito e que havia ali pouca variao nas causas de bitonas declaraes de bito feitas, o que sugere falta de investigao adequada dos motivos dosbitos. Observou-se tambm um nmero significativo de pacientes sem histria clnica pre-gressa de cardiopatia e/ou hipertenso arterial referidos como tendo Infarto Agudo do Mio-

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    crdio como causa bsica de morte. Finalmente, foi observada alta concentrao de bitos porinfeco pulmonar em julho de 2008, quando faleceram 10 pacientes com pneumonia (47,6%)do total de 21 casos identificados entre os anos de 2006 a 2010. (Departamento Nacional deAuditoria do SUS, 2011).

    Concluso

    Os resultados da pesquisa descrita no presente artigo, que evidenciou um nmero excessi-vo de bitos nos manicmios da regio de Sorocaba, que tem mortalidade 118 % maior do quea dos outros grandes manicmios do Estado de So Paulo para o perodo entre 2004 e 2011, eo forte aumento das mortes nos meses mais frios do ano, sugestivo de negligncia em relaoaos cuidados adequados em relao ao frio, evidenciam que a utilizao dos bancos de dados

    pblicos do DATASUS pode ser um importante instrumento para apontar possveis situaesde violao dos direitos humanos no interior dos manicmios.

    Em que pese o fato da legislao vigente no Brasil garantir que os pacientes devam ser tra-tados preferencialmente em servios comunitrios de sade mental, conforme determina a Lei10216, alguma regies brasileiras, como o caso da regio de Sorocaba, se mantm ainda emdescompasso com os princpios da reforma psiquitrica, por motivos polticos, financeirose/ou ideolgicos. A anlise da situao vivida pelos internos destes manicmios fundamen-tal para possibilitar a visualizao das conseqncias de um modelo de ateno sade men-tal ultrapassado. Neste sentido, pesquisas que foquem as condies de vida destes internos sonecessrias para se evidenciar a inadequao do modelo hospitalocntrico em sade mental e,na ausncia de condies objetivas para se realizar tais pesquisas livremente, como o casodos manicmios privados que se mantm fechados aos olhares do mundo exterior a eles, autilizao dos bancos de dados pblicos pode ser uma estratgia promissora para a realizao

    de pesquisas que apontem esta inadequao, fortalecendo os argumentos dos movimentossociais que lutam pela reforma psiquitrica, como pode ser observado pelo ocorrido na regiode Sorocaba, a partir do processo desencadeado pela pesquisa voltada investigao dosbitos ocorridos nos manicmios descrita no presente artigo.

    Como mostram Brito e Almeida (2012) em sua reflexo sobre a loucura e a psicologia po-ltica, o modelo segregacionista est intimamente associado ao imaginrio da periculosidadedo louco tornado o outro que nos ameaa e que por isso deve ser excludo do convvio dosdemais. O reconhecimento dos direitos humanos dos considerados loucos implica, antes demais nada, em reconhec-los como humanos, por meio da interrupo deste processo dedesumanizao, e o combate segregao um elemento indispensvel deste processo.

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