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A morte A morte Ana saiu do hospital faz sete dias. Eu ainda não passo de uma criança assustada sem saber no que acreditar além do sentimento sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Pouco ouço a respeito das razões que a teriam levado àquele ato. Levantei. É quase de manhã mas não há indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e dos indecisos passos no corredor. Terá ela voltado às aulas, imagino. Provavelmente já tenha algum trabalho de tradução. Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão torna-se mais vívida e suportável embora não menos densa, porque é aí que estamos, quando a realidade se destaca do pavor. As flores lentamente tornam-se visíveis, o aroma delas a atmosfera respirada. São as flores que ladeavam o caminho pelo qual passáramos naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu respondo com um sorriso indulgente. Demorei? A mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a não ser pelas veiazinhas azuis.

A morte

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conto do livro Contos do amor e da morte

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Page 1: A morte

A morteA morte

Ana saiu do hospital faz sete dias. Eu ainda não passo de uma criança assustada sem saber no que acreditar além do

sentimento sobrenatural que nutro por ela. Que alívio ter ela sobrevivido. Dizem que foi um milagre. Pouco ouço a respeito das

razões que a teriam levado àquele ato. Levantei. É quase de manhã mas não há indício exceto talvez pelo eco do copo na pia e

dos indecisos passos no corredor. Terá ela voltado às aulas, imagino. Provavelmente já tenha algum trabalho de tradução.

Ouvi o meu nome. Saio e a escuridão torna-se mais vívida e suportável embora não menos densa, porque é aí que estamos,

quando a realidade se destaca do pavor. As flores lentamente tornam-se visíveis, o aroma delas a atmosfera respirada. São as

flores que ladeavam o caminho pelo qual passáramos naquele primeiro dia. Ela pergunta e eu respondo com um sorriso

indulgente. Demorei? A mão toca meu ombro, suave, fria e branca, a não ser pelas veiazinhas azuis.

Page 2: A morte

Imerso no mesmo silêncio com que com ela sonhara, agora porém continua ali, filha de meu sonho e a mais pulsante

parte da vigília. Uma fronteira sem o menor sentido. O saber de Ana era o meu. O que adquirira ao longo da vida, me passava.

A divisão entre nossos apartamentos perdera igualmente a razão de ser quando voltamos da caminhada, quase ao meio-dia.

Um brilho inexorável dos corpos sob as camisas finas.

Sua biografia está em seus lábios, a suscetibilidade na ponta de sua língua e o universo recluso no corpo de

seus dedos, entre palavras cuidadosamente inauditas. Como esperar que a luz seja estável em seu movimento, se você num

momento vai ao encontro dela e noutro retira-se no sentido contrário? E todavia é o mesmo movimento e a mesma luz.

Porque a luz não depende dessa sucção ou desse polimento.

Posso por isso decifrar o mistério desse muro erguido do nada, sei o segredo, está aqui, na magia de

nosso contato, mas justamente por isso estou inquieto com a forma como o contorno de Ana se torna fosco e a aura das flores

imerge num denso nevoeiro. Ela se evade e eu não consigo pensar o que devo nem dizer a palavra. Ana, flor de luz pela qual

reduzi minha vida a uma escravidão, não pode partir assim e me deixar órfão outra vez.

Mas caso o faça, pergunta-me em meio à sua energia que me acelera, ainda assim insistirei nesse pensamento que

foi nosso? Ana, Ana, ouvi minha alma lacerada na despedida. O universo do espaço e tempo deformáveis se expandia em

busca ou talvez em fuga da noite, que se transformaria em realidade no apartamento vizinho.

De joelhos deveria estar eu, Ana, santa, pura, inocente. Esses dedos deveriam ser os meus, a retirar santidade do

ícone. Essa boca deveria ser a minha, a buscar as gotas entre os bancos do templo espargida. E engolir o poder eterno desse

desvio para o azul.

Um olho mágico cruel. Seus pais estão chegando agora. Continuam naturalmente arrasados. Quem dera eu lhe

pudesse dar algum consolo, desse que ela própria me deu. Soube que havia muitos amigos na igreja, mas nunca onde foram

jogadas as cinzas. Também, não faria a menor diferença.