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1 A MÚSICA E O PROJETO EDUCACIONAL REPUBLICANO PAULISTA - A REFORMA DE 1890 Vera Lúcia Gomes Jardim - PUC-SP [email protected] CNPq O desenvolvimento alcançado por vários países da Europa e Estados Unidos em direção àquilo que se designava como progresso e modernidade provocou, entre a elite intelectual brasileira, nos últimos anos do Império, uma profunda reflexão sobre a realidade nacional e a busca de caminhos que o país deveria seguir para a solução de seus problemas. O diagnóstico do atraso do sistema, da organização e da ineficiência dos métodos de ensino constituíam, de acordo com os intelectuais do período, os principais obstáculos para as transformações sociais. A instrução pública apresentava-se como o meio capaz de promover o progresso almejado e a educação era vista como uma estratégia que habilitava o homem para os desafios de sua época, capacitando-o para o trabalho, ao mesmo tempo que o incluiria na marcha da civilização. Rui Barbosa preconizava mudanças na organização da Instrução Pública e nos Pareceres sobre a Reforma do Ensino Primário, em 1883, anunciava: Reforma dos métodos e reforma do mestre: eis, numa expressão completa, a reforma escolar inteira; eis o progresso todo e, ao mesmo tempo, toda a dificuldade contra a mais endurecida de todas as rotinas, – a rotina pedagógica. Cumpre renovar o método, orgânica, substancial, absolutamente, nas nossas escolas (Barbosa, 1946, p. 33). A renovação do método descrita por Rui Barbosa implicava abandonar a “cultura exclusiva, mas ininteligente, brutal da memória” (p. 36) que era a prática principal dos métodos utilizados na educação brasileira, baseados na repetição, e adotar um caminho oposto: Insinuar pelos métodos objetivos, no espírito da criança as noções rudimentares da ciência da realidade, inocular-lhe na inteligência o hábito de observar e experimentar, é infinitamente menos árduo que martelar-lhe na cabeça, por meio de noções abstratas e verbais, o catecismo, a gramática e a tabuada (p. 59).

A MÚSICA E O PROJETO EDUCACIONAL …§ão a base de todo o método, de todo o ensino, de toda a educação humana (p. 53). Algumas iniciativas, durante o Império, poderiam traduzir

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A MÚSICA E O PROJETO EDUCACIONAL REPUBLICANO

PAULISTA - A REFORMA DE 1890

Vera Lúcia Gomes Jardim - PUC-SP [email protected]

CNPq

O desenvolvimento alcançado por vários países da Europa e Estados Unidos em

direção àquilo que se designava como progresso e modernidade provocou, entre a elite

intelectual brasileira, nos últimos anos do Império, uma profunda reflexão sobre a

realidade nacional e a busca de caminhos que o país deveria seguir para a solução de

seus problemas. O diagnóstico do atraso do sistema, da organização e da ineficiência

dos métodos de ensino constituíam, de acordo com os intelectuais do período, os

principais obstáculos para as transformações sociais. A instrução pública apresentava-se

como o meio capaz de promover o progresso almejado e a educação era vista como uma

estratégia que habilitava o homem para os desafios de sua época, capacitando-o para o

trabalho, ao mesmo tempo que o incluiria na marcha da civilização.

Rui Barbosa preconizava mudanças na organização da Instrução Pública e nos

Pareceres sobre a Reforma do Ensino Primário, em 1883, anunciava:

Reforma dos métodos e reforma do mestre: eis, numa expressão completa, a reforma escolar inteira; eis o progresso todo e, ao mesmo tempo, toda a dificuldade contra a mais endurecida de todas as rotinas, – a rotina pedagógica. Cumpre renovar o método, orgânica, substancial, absolutamente, nas nossas escolas (Barbosa, 1946, p. 33).

A renovação do método descrita por Rui Barbosa implicava abandonar a

“cultura exclusiva, mas ininteligente, brutal da memória” (p. 36) que era a prática

principal dos métodos utilizados na educação brasileira, baseados na repetição, e

adotar um caminho oposto:

Insinuar pelos métodos objetivos, no espírito da criança as noções rudimentares da ciência da realidade, inocular-lhe na inteligência o hábito de observar e experimentar, é infinitamente menos árduo que martelar-lhe na cabeça, por meio de noções abstratas e verbais, o catecismo, a gramática e a tabuada (p. 59).

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Ao propor uma instrução integral, Rui Barbosa (1946) não considerava isto

simplesmente como uma acumulação do conhecimento, mas, fundamentado nos

princípios de Pestalozzi, propunha “desenvolver harmonicamente, pela sua gradação

natural, todas as faculdades e energias humanas” (p.60). Tendo em vista também o

desenvolvimento e as necessidades físicas da criança, indicava a importância da

ginástica e, da música e do canto no programa escolar:

A cultura vocal nas escolas, que interessa relevantemente, a um tempo, a educação física e a educação moral, está por criar entre nós. As tentativas que existem, desconexas, insignificantes, sem permanência, sem método, sem sistema, sem organização, sem base na preparação do mestre, são de uma grosseria rudimentar e de uma inutilidade completa. Entretanto, nos planos de estudos escolares de todos os países civilizados, este capítulo assume uma importância das mais elevadas (p. 99).

Enfatizando a importância do desenvolvimento das crianças, Rui Barbosa

introduzia a discussão das idéias expressas nas filosofias educacionais em voga, que

valorizavam a infância, com suas características e necessidades específicas. Essa

valorização teve em Rousseau um de seus precursores, e foi reforçada na pedagogia pela

ação de dois educadores: Pestalozzi e Fröebel. Tais concepções enfatizavam os

conhecimentos adquiridos pelos sentidos e pela intuição. “A primeira hora de sua

instrução é a hora de seu nascimento. A natureza o instrui desde o instante em que seus

sentidos chegam a ser sensíveis a suas impressões” (Pestalozzi, 1996, p. 41).

Qunato a Fröebel, alguns pontos de destaque na sua pedagogia, expressos na

obra A educação do Homem, referem-se a sua concepção do ser humano como

um ser dinâmico, ativo e produtivo, e não apenas receptivo, que desenvolve a condição

humana conscientemente em harmonia com a natureza e a sociedade, integrando a

evolução individual à universal. Advém desta concepção o princípio de que o objetivo

do ensino deveria extrair mais do homem e, portanto, para que o desenvolvimento fosse

verdadeiro, deveria basear-se nos interesses de cada fase da criança, nas suas atividades

espontâneas, respeitando a maturidade constante na sua evolução natural.

As teorias de Pestalozzi apontavam, também, para a necessidade da formação

profissional do professor, numa ciência da instrução que poderia ser aprendida e

praticada; e, para a adoção do método intuitivo1 que despontava como uma das práticas

1 O método intuitivo já estava presente no dispositivo legal de 1885, revogado em 1886 e confirmado em 1887 (Cf. Hilsdorf, 1987).

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mais modernas no pensamento educacional, divulgada e difundida, sobretudo, pela

tradução da obra de Norman Allison Calkins por Rui Barbosa, cujo processo

metodológico era adquirir as noções sobre os fenômenos pelos sentidos, constituindo

propriamente a lição das coisas.

As Lições das Coisas representavam um movimento de renovação pedagógica

internacional e foram introduzidas inicialmente nas escolas do Império. Souza (1998)

reitera que

... é preciso ver nas lições das coisas mais que um simples método pedagógico e vê-lo como a condensação de algumas mudanças culturais que se consolidaram no século XIX: uma nova concepção de infância, a generalização da ciência como uma forma de “mentalidade” e o processo de racionalização do ensino (p.162).

Na introdução de sua tradução de Lição das Coisas, em 1886, Rui Barbosa

(1950) assim apresentava as premissas do método intuitivo:

O ensino intuitivo condena as nomenclaturas. Foge de tudo quanto é arbitrariamente convencional e formalestico. Repudia as noções a priori. Não tem por fito sortir a mente da criança de uma provisão, mais ou menos copiosa, de informações a respeito das coisas reais, mas educar-lhe as faculdades no hábito de desentranharem, com segurança, do seio da realidade a expressão de sua natureza e das suas leis. Circunscreve a parte catequética, didática, expositiva da missão do professor. Restitui aos fatos, diretamente consultados pelo aluno, a parte preponderante, que lhes cabe, na educação do homem. Não permite que o professor veja, ouça, compare, classifique, conclua pelo discípulo. Cinge-se, quanto se possa, facilitar ao estudantinho primário as condições da observação e da experiência, solicitando-o constantemente a exercer todas as aptidões, sensitivas e mentais, que põem a inteligência em comunicação viva com o mundo exterior (p. 13).

Esse novo conceito de aquisição do conhecimento estava vinculado à

necessidade da formação de um novo homem, transformado de súdito em cidadão,

preparando-se uma transição política gradual, da monarquia para uma ordem

democrática. Para tanto, era necessário educar o homem possuidor da consciência de

suas potencialidades, autônomo na busca de novos conhecimentos. Dessa forma, esse

homem detentor dos meios da aquisição do saber e do seu próprio progresso atuaria

coletivamente, na conquista do desenvolvimento e da consciência nacional, não mais

como um “povo-criança”, ignorante e conduzido, mas no exercício dos direitos políticos

(Boto, 1999). Convém salientar, contudo, que, de acordo com Boto, essa era uma visão

da elite intelectual:

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o povo, incapaz de decidir sobre suas próprias rotas, deverá, pois, ser esclarecido por uma elite ilustrada disposta a irradiar suas luzes com vistas à prosperidade da nação arquitetada. As reformas sociais representam obra daqueles que falam em nome do povo, nunca porém com o povo. A escola reformada é o antídoto da rebelião porque ela trará não apenas o conhecimento, mas as normas de conduta socialmente aceitas (p.271).

“A escola reformada há de ser absolutamente a antítese da escola atual”

(Barbosa, 1946, p. 49). Enfatizando essa nova concepção de educar e preparar um novo

homem, a exemplo das nações civilizadas, Rui Barbosa (1946) demonstra a necessidade

de moldar o novo homem num lugar certo e determinado, e esta função cabe à escola.

Educar a vista, o ouvido, o olfato; habituar os sentidos a se exercerem naturalmente, sem esforço e com eficácia; ensiná-los a apreender os fenômenos que se passam de redor de nós, a fixarem na mente a imagem exata das coisas, a noção precisa dos fatos, eis a primeira missão da escola...(p. 52). [...]

Uma das condições cardeais da reforma escolar, portanto, está em fazer da intuição a base de todo o método, de todo o ensino, de toda a educação humana (p. 53).

Algumas iniciativas, durante o Império, poderiam traduzir tentativas de

sistematizar o aprendizado numa nova configuração de escola, considerando essas

novas idéias e concepções educacionais que surgiam no mundo. Tais experiências

educacionais renovadoras vinham influenciando alguns segmentos das elites intelectuais

brasileiras, portadoras de idéias que provocaram mudanças de mentalidade cultural e

política, que se concretizaram no advento da República, em 1889, no Brasil.

A Primeira República pode ser apontada como o marco inicial do período de

formação e construção da estrutura escolar brasileira, que, sedimentou conceitos,

práticas educacionais, ideologias, simbologias, programas e políticas educacionais.

Segundo Souza (1998) a implantação do projeto pedagógico republicano é uma

das mais importantes inovações para a história da educação: “tratava-se de uma

organização administrativa e pedagógica mais complexa, fundada nos princípios da

racionalidade científica e na divisão do trabalho” (p. 16). Souza afirma que as inovações

encetadas neste período persistem até hoje, quer na padronização e uniformidade do

ensino simultâneo, que exigiram uma classificação dos alunos e conseqüentemente a

ordenação e organização gradual de um plano de estudos; quer no estabelecimento de

um espaço e tempos específicos para o trabalho escolar; além da aplicação de métodos

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compatíveis com as finalidades da educação; ambos, método e finalidades, propostos

pelo Estado – no caso, foram utilizados os métodos e processos pedagógicos mais

modernos conhecidos na época – e na formação de um profissional preparado e

habilitado para tal fim, exercendo funções pedagógicas e administrativas pelas quais se

estabeleceram novas relações de sociabilidade e poder na escola.

A relevância do estudo deste período pode ser justificada por ter sido em meados

do século XIX que correntes de pensamento pedagógico, com vistas à renovação dos

métodos e das finalidades do ensino, começam a “repensar em profundidade a natureza

da formação dada aos alunos” (Chervel, 1990, p.179). De acordo com este autor, na

Europa do final do século XIX este é um momento de redefinições das finalidades e

objetivos do ensino primário e secundário, do surgimento do conceito de disciplina, do

conteúdo do que se pretende ensinar.

Compreender as relações entre as várias concepções educacionais que dão

origem a políticas e programas educacionais e como elas realmente são concretizadas

nas práticas de ensino, tem sido o objeto de estudo de autores como Chervel (1990),

Goodson (1995), Viñao Frago (1996 e 1997), Julia (2001), que ressaltam a importância

do estudo histórico do currículo e das disciplinas escolares como geradores de uma

cultura escolar interna autônoma, e não apenas como reprodutora de condicionantes

externos a quem a escola, como instituição social de transmissão do saber, deve servir.

De acordo com Viñao Frago (1996)

Considerar a escola – entendendo-se este termo em sentido amplo – como aparato de reprodução social, ou como mecanismo ideal e imposto por determinados grupos sociais a outros com fins de dominação ideológica/cultural, oferecia em algumas ocasiões uma imagem do sistema educativo e da organização escolar como um todo uniforme e coerente, sem fissuras nem contradições, e sem capacidade para gerar uma cultura interna específica, relativamente autônoma e explicável a partir dela mesma, que inclusive impuseram ao resto da sociedade comportamentos que só podiam ter origem e explicações a partir do sistema escolar, um mundo com suas próprias exigências (p. 167).

André Chervel (1990) acrescenta que a reconstrução da história das disciplinas

escolares seria determinante tanto para a História da Educação quanto para a História

Cultural, uma vez reconhecido que na própria disciplina escolar, além das práticas

escolares, estariam incorporadas também as grandes finalidades que lhe deram origem

“e o fenômeno de aculturação de massa que ela determina”:

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Se se pode atribuir um papel ‘estruturante’ à função educativa da escola na história do ensino, é devido a uma propriedade das disciplinas escolares. O estudo dessas leva a pôr em evidência o caráter eminentemente criativo do sistema escolar e portanto a classificar no estatuto dos acessórios a imagem de uma escola encerrada na passividade, de uma escola receptáculo dos sub-produtos culturais da sociedade. [...] E porque o sistema escolar é detentor de um poder criativo insuficientemente valorizado até aqui é que ele desempenha na sociedade um papel o qual não se percebeu que era duplo: de fato ele forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da sociedade global (p.184).

Sob este prisma, na visão dos reformadores da Primeira República, a escola teria

a missão de transformar e formar o novo homem e assim, transformar a sociedade

brasileira, materializando os valores republicanos e consolidando o novo regime. Na

visão dos gestores republicanos, a educação teria o poder de regenerar a Nação.

A reorganização do ensino normal e, consequentemente do ensino público, meta

maior das reformas, por meio do decreto n.º 27 de 12 de março de 1890, que reformava

a Escola Normal e convertia em escolas modelo2 as escolas anexas3, vem confirmar a

convicção dos republicanos a respeito da importância da educação no trabalho de

condução da sociedade às conquistas da modernidade, já alcançada por outros países.

Elucidando este momento, Souza (1998) afirma que,

no projeto liberal dos republicanos paulistas, a educação tornou-se uma estratégia de luta, um campo de ação política, um instrumento de interpretação da sociedade brasileira e o enunciado de um projeto social. A crença no poder redentor da educação pressupunha a confiança na instrução como elemento (con)formador dos indivíduos. Potência criadora do homem moral, a educação foi atrelada à cidadania e, dessa forma, foi instituída a sua imprescindibilidade para a formação do cidadão. Articulada com a valorização da ciência e com os rudimentos de uma cultura letrada, ela se apresentava como interpretação conciliadora capaz de explicar os motivos do atraso da sociedade brasileira e apontar a solução para o mesmo (pp. 26 e 27).

2 Caetano de Campos (apud Rodrigues, 1930) assim explica e justifica a conversão das escolas anexas em escola modelo: “A chave de toda a evolução do ensino escolar, como o concebe o decreto de 12 de março, repousa sobre a prática que devem ter os alunos mestres na escola-modelo, mais do que sobre a ampliação do curso superior, com a criação de novas cadeiras. Toda a erudição que eles puderem colher no curso superior da Escola, de nada lhes valerá se não forem à escola das crianças aprender como são elas manejadas e instruídas. É aí que se revelará aos olhos dos futuros professores o mundo, novo para ele, de ensino intuitivo” (p. 200) op. cit 3 Rodrigues (1930) assim se refere às escolas anexas: “A 12 de março de 1890 apareceu o decreto reformando a Escola Normal e convertendo em escolas modelos as escolas anexas. Estas últimas desenvolviam o ensino em três graus, cada um com três anos. O curso normal não ia além de três anos, porque os alunos já deviam levar o sólido preparo daqueles graus inferiores” (p.193) op.cit.

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De acordo com Monarcha (1999) o decreto de 1890 “apropria-se das aspirações

cultas da época e as sintetiza, imprimindo a marca estatal e instituindo a reforma da

Escola Normal de São Paulo, como medida prévia à reforma geral da instrução pública”

(p.174). Demonstra uma preocupação, na organização curricular, com a

compartimentalização do ensino, que impedia “a visão de conjunto dos resultados dos

progressos da mente humana em todos os domínios”(p.172), procurando trazer na

legislação, de forma minuciosa, a reunião dos conteúdos, do conjunto de conhecimentos

que se encontravam dispersos na antiga estrutura escolar.

A sistematização das idéias de Pestalozzi e Fröebel, que gestadas no Império,

tomaram forma e implantação na reforma educacional da República, encontraram na

música uma das áreas de conhecimento que sintetizava os princípios necessários para a

aplicação destas novas filosofias. Organizada como disciplina escolar a música trazia os

elementos fundamentais que possibilitavam a criação de uma nova sensibilidade

requerida. A Música é incluída no currículo da Escola Normal para garantir a

integralidade dos estudos, como processo importantíssimo de reprodução do

pensamento e da possibilidade de expressão dos sentidos. No decreto de 1890 ficava

estabelecido que o curso da Escola Normal compreendia a matéria Música, e que, além

do ensino das matérias das respectivas cadeiras, o ensino normal seria completado pelas

seguintes aulas: música, solfejo e canto coral durante o 2º ano.

Cabe ressaltar que a música foi instituída como matéria escolar, e incluída pela

primeira vez no currículo da Escola Normal de São Paulo, pelo Decreto n.º 27 de 12 de

março de 1890, ao contrário do que é amplamente divulgado pela historiografia 4 de que

a organização do ensino da música no Brasil, na educação pública fundamental, deu-se

a partir de 1930, pelas ações do maestro Heitor Villa-Lobos.

O Decreto n.º 27 de 12 de março de 1890, que reformava a Escola Normal de

São Paulo, estabelecia que o ensino da música seria distribuído pelas seguintes aulas:

Música, solfejo e canto coral (Art. 4), como disciplinas acrescidas para o sexo feminino

e masculino no 2º ano (Art.6). Instruía, ainda, sobre a contratação de professores de

4 Existe uma memória relacionada à Educação Musical, difundida pela propaganda do Estado Novo e pelos depoimentos dos contemporâneos de Villa-Lobos, que assenta que a introdução do ensino da Música no âmbito da educação pública era, a partir de 1930, “absolutamente original” e “inteiramente inédita”, “criada, idealizada, implantada e realizada pelo Maestro Heitor Villa-Lobos”. Essa memória é reforçada pelos estudos que privilegiam este período e que se desinteressam pelos momentos históricos que lhe precedem ou seguem. Durante a realização da pesquisa de mestrado “OS SONS DA REPÚBLICA” O ensino da Música nas Escolas Públicas de São Paulo na Primeira República - 1889 -1930 (JARDIM, 2003) não foram encontrados estudos históricos sobre o ensino de música nas escolas públicas de São Paulo.

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música pelo governo, designava verbas e determinava o valor dos vencimentos destes

professores 5. Este decreto tratava, também, da conversão das escolas anexas em

Escolas Modelos e estabelecia o ensino da música para as sessões correspondentes ao 1º

grau - de 7 a 10 anos, prevendo aulas de Canto Coral (Art. 21). Ou seja, a inclusão do

ensino de música estava previsto para as duas pontas do processo: para a formação do

professor normalista e para a iniciação escolar. Tal medida demonstra que as ações

legais estavam em consonância com as finalidades educacionais do projeto republicano.

A música foi acrescida ao currículo como elemento formador da cultura geral, um dos

campos do conhecimento necessários para a constituição global do educando, com o

objetivo de que ele adquirisse, com a educação musical, uma nova linguagem e mais um

meio de expressão do pensamento.

A propagação desse conhecimento, de acordo com a determinação do decreto

acima, caberia ao normalista, que depois de formado, além das disciplinas habituais,

ministraria, também, as aulas de Canto Coral para o 1º grau (7 a 10 anos) das escolas

Modelo.

Portanto, o ensino da música proposto e instituído para a formação dos

professores, que por sua vez difundiriam este conhecimento ensinando a seus alunos,

cuja formação também previa o acesso a este conhecimento, atenderia à formação

integral do educando, e a música empregada da maneira prevista e orientada pelos

reformadores da educação, serviria de veículo para a formação e conformação do

indivíduo aos ideais republicanos, reforçando, incutindo e propagando seus símbolos e

princípios cívicos; constituindo assim, o novo homem que a República precisava e

tencionava criar para restabelecer a sociedade, reorganizar o país e o recolocar no

caminho da modernidade.

A cultura cívica, segundo os intelectuais-gestores da instrução pública nesse

período, deveria fazer parte do estudo da geografia, da história, da língua vernácula, da

ginástica, e da música; sendo esta, um poderoso aliado pela possibilidade de, na sua

prática, dar o caráter solene, sensibilizar os espíritos e ritualizar as práticas cotidianas.

5 A título de ilustração, neste decreto estava estabelecido que entre gratificação e ordenado, o total recebido pelos professores de Música era de 720$000. Comparativamente, o total recebido por um professor de Ginástica estava fixado em 360$000. No Decreto n.º 50 de 28 de abril de 1890, que fixava a despesa e orçava a receita do Estado de São Paulo para o exercício de 1890 a 1891, podemos verificar que no § 14º, sobre o pessoal da Instrução Pública, está citado a despesa com 2 professores de Música, designando como ordenado 960$000, mais gratificação de 480$000. Nos referidos decretos não constam a quantidade de horas/aulas de trabalho de cada professor.

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A ênfase dada à música vinculada ao culto cívico pode ser também comprovada

pelos atos oficiais que instituem, também neste período, os símbolos musicais

nacionais. Data deste momento, pois, a oficialização do Hino Nacional Brasileiro6, pelo

decreto n.º 171, de 20 de janeiro de 1890, com música de Francisco Manuel da Silva e

que receberia a letra de Osório Duque Estrada somente em 1909 (foram oficializados –

letra e música – em 1922). Foi oficializado, também por este decreto, o Hino da

Proclamação da República, de composição de Leopoldo Miguez e letra de Medeiros e

Albuquerque, vencedor de um concurso para a escolha do hino nacional7.

Usada como um instrumento de propagar a cultura cívica, a música para a escola

adquire uma estética própria da marcha, da exaltação, do hino, como os exemplos

encontrados na Revista de Ensino 8: “Marchar, Marchar!”, “Minha Terra !”, “Grande

Pátria”, “Sou brasileiro !”, entre outras. Os compositores, no geral, eram professores de

música das escolas paulistas, relatores dos anuários, inspetores de música do Estado (Cf.

Anuários de Educação). Esse repertório musical se institui como um ritual para o início

dos trabalhos escolares, gerando a necessidade da criação de outros hinos e cânticos.

Além da necessidade da criação de um repertório que atendesse as exigências do

ensino, a padronização do conteúdo e da forma como tal conteúdo seria ensinado

começam a ganhar relevância. A partir da determinação legal de um programa oficial

para o ensino de música das escolas preliminares, em 1894 9, as orientações, prescrições

e debates sobre como o ensino da música deveria se concretizar, buscando uniformizar

sua prática, começam a figurar nos Relatórios de Ensino 10 (dos inspetores e diretores

6 Para obter maiores informações sobre o histórico do hinos nacionais brasileiros (Cf. Luz.s/d. op.cit). 7 A composição de autoria de Leopoldo Miguez oficializada como Hino da Proclamação da República foi vencedora do concurso para a escolha do Hino Nacional Brasileiro, sendo preterida pelo público que demonstrou preferência pela música de Francisco Manuel da Silva já conhecida, não oficialmente, como hino brasileiro desde 1831, em comemoração a abdicação de D. Pedro I. Desde 1831 esta melodia foi transformada em espécie de hino à rebeldia da pátria contra o Imperador (Cf. Luz s/d. op.cit). 8 Revista de Ensino 1902, ano I n.º 1, 2, 3, 4; 1903, ano II n.º 1, 2, 3, 4, 5; 1904 ano III n.º 1 - CPP- Centro do Professorado Paulista. 9 O programa de música para as escolas preliminares, aprovado no decreto n.º 248 de 26 de julho de 1894 era bastante detalhado na distribuição do conteúdo por séries, relacionados à parte teórica, aos exercícios práticos, orientações sobre o repertório, entre outros. O Decreto n.º 47 de 23 de julho de 1894, mandava por em execução o regimento interno para o curso secundário da Escola Normal da Capital e estabelecia que, além das matérias de ensino do curso secundário, haveria aulas de Música (Art. 3º) na secção masculina e feminina, no 2º ano, num total de 3 aulas por semana. Comparativamente, o total de aulas atribuídas para a disciplina de Português eram em número de cinco, Inglês seis, Geometria, Geografia Geral, Desenho e Música, em número de três. No mesmo decreto, podemos verificar na Tabela de Vencimentos que o Lente Curso Superior/Secundário recebia por salário um total de 6:000$000, o Professor de Musica, 4:800$000, e o Professor Diretor de Escola Modelo, 3:600$000. 10 Relatório da Escola Normal apresentado pelo diretor Gabriel Prestes referente ao ano de 1895, Relatório das escolas-modelo apresentado por Alfredo Pujol em 1896, e Relatório Anual dos Grupos Escolares apresentado pelo inspetor escolar Antonio Alves Pereira em 1906.

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de escolas), integrar os temas de artigos das publicações especializadas, principalmente

a Revista de Ensino, e ainda constar das matérias dos jornais da época. As prescrições

consideravam todos os aspectos que envolviam o ensino musical, relacionados à teoria,

à prática musical, à escrita, ao repertório. Demonstravam, assim, o interesse do poder

público em contornar as dificuldades da implantação desta nova disciplina e mantê-la

em todos os níveis educacionais, considerando que o ensino da música não foi retirado

do currículo, a exemplo de outras disciplinas que sofreram inúmeras modificações,

adaptações e exclusões.

Frente à exigência de um conteúdo determinado, da definição de carga horária e

do tempo de duração das aulas de música para as escolas preliminares, as dificuldades

para a sua efetiva realização começaram a se evidenciar, tendo sido denunciadas por

diretores de algumas escolas, que alegavam não poderem cumprir o programa por falta

de professores de música 11 ou por falta de preparo conveniente dos mesmos 12. Apesar

das dificuldades apontadas nos relatórios apresentados nos Anuários de Ensino do

Estado de São Paulo, e das críticas feitas nos relatórios sobre música, fica evidente que

os reformadores não aventavam a hipótese de sua ausência na formação integral, tanto

do aluno como do professor.

A falta de preparo dos professores para uma nova pedagogia e uma nova didática

não era uma questão específica para o ensino da música, mas uma preocupação geral do

ensino e um dos desafios das reformas empreendidas pelos intelectuais republicanos. A

ênfase dada à formação dos professores e os meios para a difusão dos novos

procedimentos de ensino configuraram materiais diversos para uso dos professores,

disponibilizando práticas metodológicas a serem aprendidas e executadas no cotidiano

escolar. De acordo com Carvalho (2001),

No âmbito dessa pedagogia, ensinar a ensinar é fornecer esses modelos, seja na forma de roteiro de lições, seja na forma de práticas exemplares cuja visibilidade é assegurada por estratégias de formação docente (p.142). [...] Essa pedagogia fundada no princípio de que ensinar a ensinar é fornecer bons moldes e de que aprender a ensinar supõe ter visto fazer conforma o impresso destinado aos professores. (p.143).

A Revista de Ensino, no tocante ao ensino da música, demonstra ter seguido esta

11 Relatório das Escolas Modelo - 1902-1904 - do diretor da Escola Complementar de Itapetininga. 12 Relatório apresentado pelo Inspetor Geral do Ensino Público, Mário Bulcão, em 1899, referente ao ano de 1898.

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lógica e forneceu aos professores elementos para por em prática a disciplina. Assim,

pela análise dos conteúdos especificados pelos programas de ensino juntamente com

essas orientações e prescrições, publicadas nos artigos das revistas, pudemos

caracterizar o funcionamento das aulas de música na escola pública paulista.

Pode-se entender por aula de Música a parte que se refere ao estudo da sua

escrita e leitura, imprescindíveis, na época, para o acesso ao texto musical, ou seja, a

partitura; e neste caso, teria o cunho de uma aula teórica 13. Já a aula de solfejo, cujo

termo significa uma leitura específica com entoação ou fala ritmada, em que se

pronuncia o nome das notas com seu devido valor e acentuação de acordo com a

indicação do compasso e do ritmo, pode assumir uma característica de aula prática, pois

o solfejo pressupõe uma seqüência de exercícios gradativos, que têm por fim o

treinamento para o domínio da leitura e execução da partitura. E, finalmente, a aula de

Canto Coral, que, provavelmente, seria a concretização das habilidades anteriormente

desenvolvidas (conhecimento teórico aplicado aos treinos progressivos aliados a

habilidade do canto) expressas na execução da obra musical, objeto do ensino.

Portanto, tais prescrições davam um direcionamento para o repertório erudito e

conhecimento formal. Para as práticas de canto prescreviam-se técnicas vocais eruditas.

Para a aquisição deste conteúdo, as prescrições teóricas relacionavam-se ao domínio da

leitura/escrita da notação musical, solfejo, e conseqüente compreensão da partitura.

Fica evidente a intenção de ampliar e disseminar uma experiência relevante para

os legisladores com o estabelecimento da uniformidade dos programas entre as escolas-

modelo, grupos escolares e escolas isoladas com o decreto n.º 1239 de 30 de setembro

de 1904, reiterando que não deveria haver preferência de umas sobre as outras matérias.

Entretanto, a carência de professores, ou a dificuldade do acesso às escolas modelo para

seu aperfeiçoamento, falta de recursos, investimentos, impediam a execução uniforme

do projeto educacional idealizado pelos reformadores. A transformação das escolas

complementares em escolas normais primárias foi uma tentativa de expandir o sistema e

prover o ensino primário de pessoal habilitado; e um novo dispositivo legal (decreto n.º

2025 de 29/03/1911) incluía aulas de música para o ensino complementar, que até o

momento não contava com esta disciplina, para habilitar o futuro professor.

Analisando o desenrolar da legislação pode-se verificar um movimento crescente

que vai se avolumando, ganhando importância. Os atos legais delineiam uma trajetória

13 Teoria Musical - descrição dos elementos da música para a aquisição e compreensão de seu sistema de símbolos e relações.

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que garante à disciplina um estatuto de matéria estratégica e fundamental na formação

do professor, o que pode ser observado pela determinação de uma formação mais

apurada, pela permanência na duração dos cursos, pelo aumento da carga horária, pelo

aprofundamento do programa e pela forma de sua avaliação com a instituição de prova

oral e escrita para os exames de suficiência determinados na lei n.º 1311, de 02 de

janeiro de 1912, que aprovava o regulamento das Escolas Normais Primárias.

Comprova também, tal fato, a inclusão, nos exames de admissão para os cursos

complementares, de questões para a prova de Música, como requisito para o ingresso

nos cursos complementares, na lei n.º 1579, de 19 de dezembro de 1917, deixando

evidente que na expectativa do legislador, todo professor deveria ter uma formação para

ministrar o ensino musical, visto a disciplina estar incluída nos programas de ensino de

todas as escolas: Escolas Rurais, Escolas Distritais, Grupos Escolares, Escolas Modelo,

Curso Complementar, Escolas Normais.

A consolidação do ensino da música nas escolas transparece com a criação do

cargo de Inspetor Especial de Ensino para Música, pelo decreto n.º 3858, de 11 de junho

de 1925, sugerindo a necessidade de acompanhamento e fiscalização, além de abrir

outras oportunidades profissionais, ampliando a carreira.

Não bastava, contudo, conquistar o espaço da música nos dispositivos legais e

nas esferas administrativas, era preciso estar em concordância com os preceitos

escolares, ou seja, encontrar uma forma adequada de ensino compatível com o novo

status que a música assumia como disciplina escolar, em condição de igualdade com as

outras disciplinas escolares.

A elaboração dos métodos para o ensino musical nas escolas públicas de São

Paulo demonstra a necessidade sentida, por parte de seus autores14, de buscar

14 São nomes que estão ligados ao ensino, a instrução, a inspeção, a composição de músicas para o ensino nas escolas. Entre eles podemos citar Fabiano Lozano, João Batista Julião, Honorato Faustino, Antonio Carlos, José Carlos Dias, José Ivo, entre os mais recorrentes, destacando o maestro João Gomes Jr. A importância de João Gomes Jr. como intelectual da música é revelada pela sua atuação e presença nas discussões a respeito do ensino da música durante cerca de trinta anos. A elaboração do método denominado Curso Theorico e Prático de Música Elementar (1903) de sua autoria e Miguel Carneiro Jr. já esboçava as tentativas de aplicar a filosofia educacional republicana para o ensino da música. A re-elaboração destas idéias aparecem no método O ensino da música pelo Methodo Analytico, uma publicação da Escola Normal de São Paulo, em 1912, de autoria de João Gomes Jr., em co-autoria com Gomes Cardim, aplicando à música os princípios do método intuitivo proposto como unidade para as práticas escolares. Entre compêndios de músicas, artigos, composições, ressaltamos, pela sua importância, algumas de suas obras, visto já estarem ali demarcados, a técnica da manossolfa, os conteúdos musicais de carater cívico-nacionalistas na estrutura do canto orfeônico, elementos que se atribuem, indevidamente como inéditos, ao projeto de educação musical de Heitor Villa-Lobos. São elas: Aulas de Música (1921, Casa Wagner,), Orpheon Escolar – Coros. Série Primeira e Série Terceira (1922, Ed. Cia Melhoramentos de São Paulo), Cantigas da minha Terra. (1924, Monteiro Lobato & Co. Editores), Canções brasileiras -

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conformidade com a filosofia educacional implantada pelos reformadores da Primeira

República e o esforço para a aplicação dos princípios de Pestalozzi nos métodos de

ensino para a música pode ser verificada em diversos artigos publicados na Revista de

Ensino, desde o primeiro número do periódico em 1902 e durante todo o período.

A busca pela absoluta eficiência dos métodos, como também a legitimação dos

processos pedagógicos pelos fundamentos científicos é uma tendência do período e

submeteu a Pedagogia aos preceitos de outras ciências como a Psicologia, a Biologia, a

Sociologia.

Com a adoção do método intuitivo, o Estado de São Paulo estabeleceu uma

proposta de padronização do ensino, na qual todas as áreas de conhecimento estariam

vinculadas. Pela lei n.º 1341, de 16 de dezembro de 1912 foi adotado nas escolas

normais secundárias, normais primárias e modelo, para o ensino de música e canto, o

método analítico-simbólico, que deveria estender-se paulatinamente aos demais cursos

do Estado. Possivelmente a legislação estava referindo-se ao método “O ensino da

música pelo Methodo Analytico”, publicado em 1912, de autoria do maestro Carlos A.

Gomes Cardim e do maestro João Gomes Jr., cuja proposta metodológica harmonizava-

se com os princípios do método de alfabetização difundido pelas escolas normais e

modelo. E uma vez, encontradas as analogias entre as disciplinas, o caráter científico

dado aos processos de aquisição e compreensão da leitura e escrita foram transplantados

para a música, visto ela também expressar-se por meio de uma “linguagem falada” (os

sons) e uma “linguagem escrita” (a notação musical).

O estabelecimento das bases dos programas de ensino, de maneira a sistematizá-

los e unificá-los com princípios iguais para todas as matérias constantes do currículo,

propunha um questionamento sobre os critérios de escolha dos elementos que iriam

educar e instruir.

A seleção dos elementos musicais disponíveis que serviam aos objetivos

educacionais era determinada pelos intelectuais republicanos, que, obviamente, faziam

impor seus gostos e preconceitos. As prescrições musicais dos gestores da instrução

pública deram à música escolar feições próprias, e, mesmo que a escola tenha

incorporado, paulatinamente, motivos característicos de estéticas musicais

diferenciadas, ela manteve o caráter e o sentido de música educacional, didática,

pedagógica: a música da escola.

Primeira série (1926, Typ. Siqueira) Solfejo Escolar (1928, Casa Wagner), Aulas de Mano-solfa (1929, Casa Wagner).

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É também pela arte que se observam conflitos, resistências, preconceitos. Pelo

prisma da música esses conflitos representam o embate entre estéticas musicais

diferentes, próprias de cada segmento, que disputam a escuta do público, cultivando

valores próprios e resistindo a outros; como em São Paulo, no início do século XX, em

que diversos estilos musicais difundiam-se pelas ruas: bandas militares adaptando

músicas eruditas; bandas italianas; circos ambulantes (cateretês, emboladas); músicas

dos negros; espetáculos de variedades, revistas e operetas. Entre tantas opções musicais

disponíveis, pode-se supor que no ambiente escolar algumas formas foram aceitas e

outras, prontamente rejeitadas.

Gomes Cardim (1912) critica o gosto e a ignorância estética da população, que a

escola deveria repudiar. As prescrições de estilo para a educação do ouvido e a

definição do que se considerava boas músicas e boas vozes são de estética notadamente

européia e da música culta; Cardim referia-se, inclusive, aos problemas físicos advindos

da forma “errada” de cantar. Os Relatórios dos Inspetores de Música também realçavam

o fato de que, “na maioria dos estabelecimentos de ensino, infelizmente não se canta,

grita-se”.

Gritar poderia significar não cantar com a impostação vocal prescrita pelos

intelectuais. Ou ainda, cantar ao modo das músicas populares, dos sambas que ecoavam

forte nas ruas, das canções dos imigrantes, das músicas que proliferavam nas cidades.

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