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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 ISSN 2236-1855 7210 A MULHER NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DAS CARTAS NOS JORNAIS DE 1850 Renata Cristina da Silva 1 Introdução O presente trabalho se propõe a analisar as representações femininas na instrução pública da Paraíba do Século XIX através das cartas publicadas nos jornais e folhetins da época. Para esse trabalho abordaremos brevemente o suporte “jornal” e sua relação co m as cartas assim como suas características e configurações. Analisaremos três cartas encontradas no jornal "O Governista Paraibano" (1850) assim como o contexto social da época através dos outros escritos do jornal buscando também compreender a mentalidade e as representações acerca do gênero feminino nesse período. Para a análise e representação da presença feminina em tal contexto histórico, o conteúdo das epístolas conforme já relatado, utilizaremos o suporte teórico oferecido por Roger Chartier através da Nova História Cultural, na perspectiva de novos objetos, fontes e abordagens e para quem “o objeto da história cultural é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler”. Por meio das cartas publicadas nos jornais, é possível perceber uma forma de interagir na sociedade imperial, seja reclamando, divulgando ofícios ou dando a conhecer. Pretendemos aqui, por meio da análise destes escritos e estratégias utilizadas para escrever cartas nos jornais, evidenciar as representações e práticas sociais femininas na instrução pública no Império na Paraíba. A escrita epistolar como Fonte Histórica, suas configurações e relações nos jornais da Paraíba no Império Os jornais impressos, assim como as cartas, produzem sentidos que transcendem a sua materialidade, nos permitindo compreender aspectos sociais, econômicos, psicológicos, políticos e culturais de um dado período. Desse modo, se faz importante o reconhecimento dos jornais e das cartas como fonte documental histórica, assim como também a abordagem das formas utilizadas para a análise de tais documentos, as cartas nos jornais, objeto deste 1 Mestranda em Educação pela Universidade Federal da Paraíba UFPB. Desenvolve pesquisas relacionadas à História da Educação, com ênfase a condição feminina na Paraíba do século XIX através das cartas publicadas na imprensa. E-Mail: <[email protected]>.

A MULHER NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO … · A MULHER NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO SÉCULO XIX ... feminina em tal contexto histórico, ... como fonte de estudo

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Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

ISSN 2236-1855 7210

A MULHER NA INSTRUÇÃO PÚBLICA NA PARAÍBA DO SÉCULO XIX ATRAVÉS DAS CARTAS NOS JORNAIS DE 1850

Renata Cristina da Silva1

Introdução

O presente trabalho se propõe a analisar as representações femininas na instrução

pública da Paraíba do Século XIX através das cartas publicadas nos jornais e folhetins da

época. Para esse trabalho abordaremos brevemente o suporte “jornal” e sua relação com as

cartas assim como suas características e configurações. Analisaremos três cartas encontradas

no jornal "O Governista Paraibano" (1850) assim como o contexto social da época através dos

outros escritos do jornal buscando também compreender a mentalidade e as representações

acerca do gênero feminino nesse período. Para a análise e representação da presença

feminina em tal contexto histórico, o conteúdo das epístolas conforme já relatado,

utilizaremos o suporte teórico oferecido por Roger Chartier através da Nova História

Cultural, na perspectiva de novos objetos, fontes e abordagens e para quem “o objeto da

história cultural é identificar o modo como em diferentes tempos e espaços uma determinada

realidade social é construída, pensada e dada a ler”. Por meio das cartas publicadas nos

jornais, é possível perceber uma forma de interagir na sociedade imperial, seja reclamando,

divulgando ofícios ou dando a conhecer. Pretendemos aqui, por meio da análise destes

escritos e estratégias utilizadas para escrever cartas nos jornais, evidenciar as representações

e práticas sociais femininas na instrução pública no Império na Paraíba.

A escrita epistolar como Fonte Histórica, suas configurações e relações nos jornais da Paraíba no Império

Os jornais impressos, assim como as cartas, produzem sentidos que transcendem a sua

materialidade, nos permitindo compreender aspectos sociais, econômicos, psicológicos,

políticos e culturais de um dado período. Desse modo, se faz importante o reconhecimento

dos jornais e das cartas como fonte documental histórica, assim como também a abordagem

das formas utilizadas para a análise de tais documentos, as cartas nos jornais, objeto deste

1 Mestranda em Educação pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Desenvolve pesquisas relacionadas à História da Educação, com ênfase a condição feminina na Paraíba do século XIX através das cartas publicadas na imprensa. E-Mail: <[email protected]>.

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estudo, e as regras sociais difundidas por meio dos manuais de escrever cartas, que

prescreviam um modelo a ser seguido, contribuindo para a manutenção da sociedade, como

parte de uma ação civilizatória. Essas regras uma vez incorporadas pela sociedade foram

também utilizadas para escrever cartas nos jornais imperiais. Concomitantemente, jornais e

cartas desempenharam uma função importante formando a opinião pública do período em

questão. Ainda nessa perspectiva, a escrita de cartas nos jornais representou para a sociedade

da época uma forma de se comunicar e podem também ser consideradas hoje como um lugar

de memória, na perspectiva de Nora (1993), em que:

Lugares de memória são, portanto, locais materiais e imateriais onde se cristalizam a memória de uma sociedade, de uma nação, locais onde grupos ou povos, se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um sentimento de formação da identidade e pertencimento. (NORA, 1993, p.07)

A historiografia nos traz a informação que as cartas antecederam os jornais. Com a

Idade Moderna, ocorrida após reforma humanística ocorreu à necessidade de expansão da

troca informações que na época era realizada por meio da “carta de notícias ou carta

relatório” que tinha como destinatários estabelecimentos comerciais e personagens

relevantes pelos seus agentes e representantes no estrangeiro. Porém, este suporte não tinha

grande alcance de destinatários, era restrito, culminando no desenvolvimento do jornalismo

epistolar ou gazeta manuscrita, como era chamado na época. Ceia (2010) nos traz a

informação de que:

[...] até ao aparecimento da imprensa escrita regular, a carta desempenhou o mesmo papel que hoje tem, por exemplo, um noticiário. Era a carta que informava um destinatário privilegiado sobre os factos que ocorriam no mundo. [...] Até ao aparecimento da imprensa escrita regular, a carta também desempenhou um outro papel social importante: era o meio por excelência de formar a opinião pública. (CEIA, 2010, p. 02, apud ROMÃO, 2015, p. 28)

Na historiografia podemos encontrar os termos cartas, missivas ou epístolas para se

referir as correspondências. Palavras utilizadas para também descrever impresso ou

manuscrito elaborado com o fim de estabelecer comunicação interpessoal escrita entre

ausentes. Sendo sinônimos, temos quê, carta vem do latim charta, “folha para escriba,

tablete”, do grego Khartes “folha de papiro”, enquanto epistola no latim e no grego significa

“carta, mensagem” e missiva, do latim “missius” quer dizer no sentido literal enviar, é a carta

ou o papel que se envia a alguém.

Sabe-se que a prática da correspondência remonta da antiguidade, sendo as cartas

consideradas o meio de comunicação mais antigo que se tem notícia tendo sido a principal

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forma de comunicação à distância desde a invenção da escrita até o final do século XX, com o

surgimento das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) culminando em novos

suportes e novos modos de se comunicar através da escrita. Como objeto portador da

mensagem escrita, acredita-se que das cartas se originaram os gêneros textuais como os

conhecemos hoje. A origem do gênero carta está relacionada à necessidade do homem de se

comunicar e ao longo da história é possível perceber as funções deste dispositivo escrito nas

mais diversas situações como, por exemplo, o caráter disciplinador, doutrinário e religioso

das 21 cartas escritas por Paulo e outros seguidores do Cristo publicadas entre os livros que

formam a Bíblia, direcionadas aos habitantes da cidade de Corinto, na Grécia Antiga e aos

povos Romanos. É possível observar também dentre outras, a função de comunicar fato

ocorrido a outrem, como a famosa Carta a el-rei D. Manuel conhecida popularmente como a

carta de Pero Vaz de Caminha, enviada ao Rei de Portugal no advento da chegada dos

portugueses em solo Brasileiro no ano de 1500. A chegada dos portugueses no Brasil foi

também o marco da prática da correspondência no país que até então era habitado apenas

por nativos desprovidos de cultura escrita.

A carta no seu variado gênero é considerada como “[...] um produto social e cultural e foi criada com a intenção de resolver uma das necessidades humanas, a comunicação, pois, com arte e sensibilidade a escrita de cartas permitiu durante séculos a comunicação entre os ausentes”. (CONCEIÇÃO, 2011, p.32, apud SENA, 2015, p. 48)

Considerando ainda as várias publicações já existentes de tantos autores que deram sua

contribuição para a construção desse sentido ao trabalharem com esse tema, ao pesquisar

sobre o “estado da arte” ou “estado do conhecimento”, descobrimos que os autores Gondra

(2003), Rizzini (2007) e Sena (2011, 2012, 2013, 2014, 2015), utilizaram as cartas no jornal

como fonte de estudo na História da Educação. Continuando nosso Levantamento, buscamos

pelas dissertações e teses¹ disponibilizadas no site da Biblioteca Digital de Teses e

Dissertações da Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba, com a intenção de

identificar os trabalhos desta instituição nos quais foram utilizadas as cartas particulares e as

cartas publicadas em jornais como objeto e fonte de pesquisa. Foram encontradas cinco

dissertações, de quatro dos Programas de Pós-Graduação existentes na Instituição. Um dos

trabalhos faz parte do Programa de Pós-Graduação em Letras e é intitulado Retórica, rodas

de compadres, solidão e achaques da velhice: o Machado de Assis das cartas, da autoria de

Otoniel Machado da Silva (2009). Foram localizados ainda dois trabalhos do Programa de

Pós-Graduação em Linguística, os quais são: A orientação para o outro: relações dialógicas

na constituição do discurso escrito de cartas de leitor do século XIX, de Thiago Trindade

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Matias (2009), que trata especificamente das cartas publicadas nos jornais como objeto de

estudo; e o trabalho Topicalização: um estudo histórico sobre a ordem dos constituintes em

cartas oficiais da Paraíba dos séculos XVIII e XIX, de Maria Alba Silva Cavalcante (2011).

Encontrou-se também uma pesquisa que utiliza as cartas como objeto e fonte no Programa

de Pós-Graduação em Ciência da Informação, sob o título Informações epistolares:

memórias em envelopes, de Brenda Alves de Andrade (2014). E por fim, no Programa de

Pós-Graduação em Educação encontramos a dissertação de Maria Géssica Romão intitulada

Correspondências de Professores: Representações e Práticas Docentes nos Jornais da

Paraíba Imperial (1864-1889), que trata da análise das cartas como discurso das

representações das práticas docentes no século XIX.

Existiam na época os chamados Manuais Epistolares, com as regras que deveriam ser

comuns a escrita das cartas e é partir desse suporte que as cartas são caracterizadas e

encontradas nos jornais e folhetins conforme trabalho de pesquisa realizado pelas

professoras Dra Fabiana Sena e Dra Socorro Barbosa, que resultou no acervo publicado no

site Jornais e Folhetins Literários da Paraíba no século XIX. A Ars dictaminis como eram

conhecidas essas sugestões, foram largamente difundidas na época e ditavam que tais

suportes deveriam ser compostos de: salutatio (saudação) que seria a parte inicial da carta,

epístola ou missiva, definida como expressão cortês com o objetivo de transmitir entre as

pessoas envolvidas um sentimento amistoso; o exordium (começo), também conhecido como

captatio benevolentiai seria a parte inicial do discurso onde deveria ser demonstrado a

humildade do remetente e a benevolência do destinatário; A narratio (narração) é onde se

encontra o propósito do discurso, a temática e a mensagem. Esta etapa pode variar de um

dispositivo para outro, sendo caracterizada como simples, quando há informação de apenas

um assunto ou complexa, quando trata de vários assuntos diferentes; petitio (solicitação ou

argumentação)é onde se pede algo Tin (2005, p.37). Ainda segundo Segundo Tin (2005, p.

40) há nove modos de se construir esse discurso, podendo ser suplicatória (utilizada

frequentemente por subalternos); didática (o que se deve ou não fazer); iniciativa (busca-se

por encorajamento); admonitória (advertir alguém); de conselho autorizado (aconselhar);

reprovativa (a algo ou alguém); cominativa (composta por ameaças); exortativa (insistência

em tomar conhecimento sobre aqui que se deve ou não fazer) e direta. E por fim a conclutio

(conclusão), que como o próprio nome diz é o fim da narrativa, porém em muitas cartas a

conclusão não finda a narrativa, deixando em aberto o pedido de respostas. Porém a

composição das cartas não precisam ser escritas nesta ordem e com exceção da naratio, que

dá sentido a escrita neste dispositivo, não precisam conter todas as partes.

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A imprensa chegou ao Brasil em 1808 com a vinda da família real portuguesa, pois

anterior a esse período o país considerado apenas colônia de Portugal não tinha permissão

para publicação de livros, jornais e revistas ou a instalação de tipografias. Desse modo, o

primeiro jornal Brasileiro foi o Correio Braziliense, impresso em Londres e em 1808.

FIGURA 1 – Carta publicada no primeiro jornal do Brasil, Correio Braziliense ou Armazém Literário Fonte: Correio Braziliense ou Armazém Literário, Londres, nov. 1808. Disponível

em:<http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/>. Apud Romão, 2015, p.31

Já na província da Paraíba, local onde se encontram os documentos os quais se baseiam

este estudo, a primeira publicação a circular foi um periódico intitulado Gazeta do Governo

da Paraíba do Norte, fundado em 16 de fevereiro de 1826 e impresso na Typografia Nacional

da Parahyba, administrada pelo súdito inglês Waller S. Boardman” (ARAÚJO, 1985, p. 31).

Várias tipografias e publicações surgiram na Província da Paraíba após esse período e ao

longo do tempo o suporte jornal sofreu várias alterações. Essas mudanças ocorriam tanto

para atender aos anseios e as demandas da sociedade e de seus leitores, como também a

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modernização dos processos através das novas tecnologias disponíveis. Conforme a sociedade

ia mudando de hábitos e adquirindo novas habilidades, os periódicos também iam

paralelamente sendo alterados. Temos que uma das grandes mudanças observadas neste

suporte foram a sua composição em colunas cuja intenção seria otimizar o espaço.

Todas estas características observadas nos permitem inferir através dos indícios

encontrados, o contexto social, o pensamento ideológico, político e educacional da época,

quando, por exemplo, observamos o espaço destinado a determinados temas e assuntos com

a intenção de dar mais ou menos visibilidade às questões recorrentes na sociedade e

traduzidas nas páginas dos jornais uma vez que o mesmo era o portador da notícia e o

formador da opinião pública.

A partir da ascensão da Nova História Cultural tornaram-se possíveis novas

concepções, novas fontes e novas releituras no campo da pesquisa em História e História da

Educação. Surgiu uma nova perspectiva nesse campo do saber relacionada aos temas,

abordagens, personagens reais e fontes, expandindo consequentemente as produções e

interesse pela área. Com esse advento as cartas emergiram como fonte documental legítima e

fecunda uma vez que,

nos motivos, nas necessidades e nos interesses dos correspondentes, como correspondentes, assim como nos assuntos que trazem, e especialmente nos procedimentos a que recorrem, a escrita vai ocupando seu espaço como prática social que se concretiza no próprio objeto - carta – e que se constrói no jogo das interações sociais (CAMARGO, 2011,p.18).

Como e por quem as mulheres, professoras e alunas, eram apresentadas nas cartas sobre instrução pública nos jornais da Paraíba do Século XIX?

O discurso da imprensa, através das cartas publicadas nos jornais do século XIX, aqui

entendido como espaço sócio histórico e de articulação entre poder e transformações sociais,

elementos estes que compõem a construção da memória social e da identidade cultural, será

analisado no sentido de buscar indícios e marcas da construção da representação da figura

feminina na instrução pública no ano de 1850 na Província da Paraíba, período em que fora

encontrado os três documentos que possibilitarão a reflexão.

Sabemos historicamente que a mulher nem sempre teve espaço e voz nos meios sociais,

sendo “propriedade” dos pais e, por conseguinte dos maridos, sua atuação estava restrita

unicamente aos afazeres domésticos e maternais. Eram educadas para serem boa esposas,

mães e donas de casa, o acesso ao mundo letrado só existia para a elite e era restrito ao

catecismo, as mulheres eram em sua maioria analfabetas e incapazes de prover o próprio

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sustento uma vez que não lhes era permitido fazer parte do mercado de trabalho, eram vistas

como seres inferiores.

[...] “historicamente o papel de formação das novas gerações, tanto no interior do espaço doméstico, quanto nos espaços formais de educação, foi sendo naturalizado como atribuição feminina” e, assim, “uma construção social teria sido submetida a uma leitura biologizante” a qual relaciona as mulheres ao exercício de funções no âmbito privado, em decorrência de uma suposta natureza.” (UEKANI, 2010, p.35)

Mas quando e porque isso começou a mudar e a questão que nos inquieta a cada vez

que entramos em contato com tais dados e informações. STAMATTO (2012, p.01) relata um

dado interessante a esse respeito em seu artigo “Um olhar na História: A mulher na escola

(Brasil 1549 – 1910)”, segundo a autora, quando os padres Jesuítas chegaram a terras

brasileiras com a missão de educar a elite branca masculina e catequisar os povos nativos,

estes tinham em suas comunidades atividades divididas e definidas entre os homens e as

mulheres, porém não eram excludentes. As mulheres só era permitido frequentar a catequese

e os índios achando injusta tal exclusão solicitaram aos padres que as moças das aldeias

também pudessem aprender a ler e a escrever, tendo sido negado o pedido pela rainha de

Portugal, Dona Catarina, que alegava não ser necessário alfabetizar nativas de uma colônia de

exploração além de julgar ser perigoso. Para STAMATTO (2012, p.02) talvez tenham sido os

índios os primeiros defensores dos direitos das mulheres em nossas terras. Porém essa

situação só começou a mudar com as reformas pombalinas que possibilitaram a instalação

das escolas régias para as meninas no final do século XVIII. Esse fato configurou uma

situação favorável ao sexo feminino, uma vez que a educação das meninas deveria ocorrer

separada dos meninos e apenas professoras poderiam ensiná-las, abriu se um campo no

mercado de trabalho destinado as mulheres: o Magistério e consequentemente um espaço,

mesmo que pouco expressivo, no meio social. Ao magistério feminino fora atribuído no

inicio, aptidão biológica e natural inerentes apenas ao sexo feminino segundo as construções

sociais acerca da mulher, onde ela, como boa mãe, dotada de atributos emocionais como

afetividade e paciência, era perfeita para a missão de educar as crianças, porém nesse

pensamento, não era capaz de assumir cargos dentro da instrução pública na área da

educação, onde os homens mandavam e comandavam.

No século XIX as grandes transformações ocorridas no mundo, sobretudo na Europa,

decorrentes da Revolução Francesa e a Revolução Industrial, trouxeram novo sentido a

velhas questões e dentre elas a situação feminina. Nesse período começa a se estruturar um

novo tipo de relação de poder entre os sexos devido ao forte movimento a favor da mulher.

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Começa a desvelar certa inclinação para a aceitação de novas ideias que mais tarde

terminariam se configurando na legitimação de novos comportamentos. Como a “natureza

da mulher” torna‐se tema de estudos, o “velho discurso” é retomado no século XIX, agora

com novo vigor, com base nas descobertas científicas na área da biologia e da medicina.

(MONTEIRO e GATI, 2012, p.02)

No Brasil essas mudanças demoraram um pouco mais a se instalar e sua implantação e

consolidação variou conforme a região e as classes sociais. Porém aos poucos as mulheres vão

conquistando espaço social e tem se que a instrução pública e o mundo letrado, foi uma

grande oportunidade nesse sentido, seja através do magistério ou pela oportunidade de ser

alfabetizada.

Na Paraíba, conforme pudemos inferir através dos indícios encontrados na imprensa da

época, em 1850 a instrução pública era uma realidade para as mulheres, tanto no exercício do

Magistério quanto como estudantes. Não queremos dizer com isso que essa seja a data

precisa do acesso das mulheres a instrução pública na Paraíba do Oitocentos, nosso objetivo

aqui é encontrar indícios e representações dessa presença feminina através das cartas

publicadas nos jornais da época, e as que fazem menção a esse fato datam de 1850.

Examinar estas marcas implica compreendê-las em sua relação com as formações sociais históricas em que foram produzidas e as redes de sentidos a que se filiam; dito de outra forma implica examinar as posições ocupadas pelos sujeitos e as formações discursivas nas quais os sentidos se originam e com as quais mantêm relações. (FERREIRA, 2010, p07)

As primeiras cartas do jornal oitocentista “O Governista Parahybano”, um dos

primeiros jornais a circular na Paraíba e de cunho governista, traz em três de suas edições,

entre julho e novembro do ano de 1850, na sessão de correspondências, informações

relevantes quanto a presença das mulheres no universo da instrução pública como veremos a

seguir.

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Figura 1: Correspondência encontrada no Jornal “O Governista Parahybano” Fonte: Governista Paraibano. Paraíba. 29 de Junho de 1850. Disponível em:

http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html

Figura 2: Correspondência encontrada no Jornal “O Governista Parahybano”

Fonte: Governista Paraibano. Paraíba. 07 de Setembro de 1850. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html

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Figura 3: Correspondência encontrada no Jornal “O Governista Parahybano”

Fonte: Governista Paraibano. Paraíba. 28 de Dezembro de 1850. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html

Nesse cenário social, da instrução pública da Paraíba do século XIX, no ano de 1850, é

possível perceber a circulação feminina através dos discursos encontrados nas cartas

publicadas no jornal acima. Os fatos ocorridos e relatados nesses recortes não foram

produzidos pelas mulheres, professoras e alunas, mas como de costume naquele período,

pelos homens que dominavam todos os setores da sociedade, porém eles representam a

mulher professora e profissional, como é possível observar na figura 1, inserida no mercado

de trabalho e remunerada, apesar de todas as exigências morais para exercer tal oficio, da

mulher com valor no mercado, que produz fora do contexto doméstico e maternal a que

estava fadada desde os tempos antigos. E na figura três é visível que as meninas

frequentavam as aulas publicas conforme solicitação ao diretor geral que informasse o

número de alunos matriculados de um e do outro sexo evidenciando uma reconfiguração dos

espaços femininos. Como ressalta Pierre Bourdieu, “a representacao que os individuos e os

grupos exibem inevitavelmente por meio de suas praticas e propriedades faz parte integrante

de sua realidade social”(CHARTIER, 2011, p.22).

No segundo recorte, o professor representa uma queixa ao delegado contra uma

senhora, possivelmente mãe de aluno, e seu filho, nomeada por ele de forma pejorativa como

Maria de Tal, que segundo o mesmo perturbava-o com insultos, solicitava a autoridade

providencias. Essa seção dos jornais era comumente utilizada pelos leitores e atores da

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instrução pública como, entre outros, espaço para queixas, representações e justificativas,

porém pesquisando o jornal na integra e as edições posteriores, não encontramos a defesa

nem a justificativa de tal senhora referente ao fato o que era comum quando fatos parecidos

ocorriam com o sexo masculino e devido ao contexto social em que as mulheres estavam

inseridas nesse período, onde quase não havia de oportunidade e espaço de expressão para

esse gênero, acreditamos que a mesma não foi dada essa oportunidade, esse direito de

resposta.

Assim como no resto do mundo, a Paraíba do século XIX era predominantemente

masculina, os jornais de 1850 faziam pouquíssimas menções as senhoras da época e quando

faziam essas não tinham seus nomes divulgados. Porém é possível perceber, mesmo que de

modo sutil, um movimento feminino, indícios de mudanças e conquistas sociais quando as

vemos retratadas mesmo como anônimas, em situações que mencionam as mulheres,

professoras e meninas no contexto da instrução pública da província da Paraíba, como

produtoras e receptoras em um ambiente feito para o masculino, isso nos mostra que estava

se configurando o início de novos cenários, novas mentalidades e novas oportunidades para o

gênero feminino instrução pública tanto na atuação e prática docente como na instrução e

letramento.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Fátima. Paraíba: imprensa e vida, 1985. BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: história da imprensa brasileira, Rio de Janeiro: Mauad X, 2009. BARBOSA, Socorro de Fátima P. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. BARROS, José D'Assunção. O Projeto de Pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro teórico. Petrópolis: Vozes, 2005. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. S.P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2011.. CAMARGO, Maria Rosa R. Cartas e Escrita. Campinas, 2000. Tese (Doutorado) Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br CEIA. Carlos (Coord). E – Dicionário de Termos Literários (EDTL). 2010. Disponível em: <http: // www.edtl.com.pt>.

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