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2017 Coleção Eduardo Espínola Rafael Caselli Pereira A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015 Visão teórica, prática e jurisprudencial

A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015 · do direito francês, não tem por finalidade o enriquecimento do credor, ... Ao analisar o instituto da astreinte, sob a perspectiva instrumental

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2017

Coleção Eduardo Espínola

Rafael Caselli Pereira

A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015

Visão teórica, prática e jurisprudencial

CAPÍTULO I

ASTREINTES: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO LEGAL

1.1 CONCEITO DE ASTREINTE

Sobre as obrigações de fazer e não fazer, Humberto Theodoro Júnior ensina que “as obrigações são prestações às quais o devedor se vincula a cumpri-las em favor do credor, sejam positivas (um fazer), caracterizadas por uma ação (construir uma casa ou demolir um prédio, por exemplo), ou negativas, quando cumpridas através de uma abstenção da prática do ato (um non facere), citando como exemplos a não construção de um muro ou a não realização de um espetáculo. São fungíveis, caso possam ser cumpridas indistintamente pelo devedor ou qualquer pessoa; ou infungíveis, se apenas cumpridas pessoalmente pelo devedor (obrigações personalíssimas), como a pintura de um quadro por uma grande artista”. 1

Para Barbosa Moreira, “na execução forçada, busca-se mediante atos executivos, um resultado proporcional ao que, efetivamente, seria alcançado se o devedor cumprisse voluntariamente a obrigação”. 2

Um dos maiores processualistas da escola italiana, Giuseppe Chiovenda, apresenta a distinção entre os meios executivos de coação (aqui incluída, a astreinte) e de sub-rogação, em sua obra “Instituições de Direito Processual Civil”, ao referir que “dizem-se meios de coação os com que os órgãos juris-dicionais tendem a fazer conseguir para o credor o bem a que tem direito com participação do obrigado e, pois, se destinam a influir sobre a vontade do obrigado que se determine a prestar o que deve. Tais são: as multas; o arresto pessoal; os sequestros com função coercitiva”. 3

1. THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de direito processual civil: processo de execução e cumpri-mento de sentença, processo cautelar e tutela de urgência. 43. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19.

2. MOREIRA, Joaquim Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 218.

3. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1998, p. 349-50.

A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015 – Rafael Caselli Pereira32

Já em relação aos meios de sub-rogação, apresenta-os como “aqueles com que os órgãos jurisdicionais objetivam, por sua conta, fazer conseguir para o credor o bem a que tem direito, independentemente de participação e, portanto, da vontade do obrigado. Tais: a apreensão direta das coisas determinadas que o credor tenha direito; a apreensão das coisas móveis ou imóveis do devedor para convertê-las em dinheiro, com o fim de satisfazer os créditos; a realização direta da atividade devida pelo devedor, se fungível; o emprego da força para impedir que o devedor realize uma atividade, em contraste com a obrigação de não fazer” 4.

Não há nas astreintes a presença da sub-rogação estatal, que configura a essência da execução forçada5. Mostra-se complexa a conceituação de um instituto jurídico tão rico em detalhes e controvertido na doutrina.

Sobre o caráter eminentemente intimidatório inicial da multa cominató-ria, Roger Perrot ensina que “o juiz avalia discricionariamente a importância da astreinte, com o único e exclusivo fim de intimidar o devedor. Assim, mesmo a cifra fixada é em função de considerações bastante inusuais, como, por exemplo, a resistência que aparenta querer opor o devedor e, sobretudo, o montante de seus bens. É evidente, por exemplo, que a importância da astreinte será mais elevada se o devedor é um rico industrial do que um modesto operário. E não é o caso de pasmar-se porque, no momento, está-se apenas no estado de ameaça intimidatória, e não naquele de condenação”.6 Em sua clássica obra “Processo de Execução”, de 1956, Enrico Tullio Liebman conceitua astreintes como “a condenação pecuniária proferida em razão de tanto por dia de atraso (ou por qualquer unidade de tempo, conforme as circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento de obrigação de fazer, pela ameaça de uma pena susceptível de aumentar indefinidamente”.7

Nas palavras do ilustre Marcelo Lima Guerra, “a astreinte é, na verdade, uma condenação acessória porque destinada a assegurar o cumprimento específico de outra condenação, dita principal”.8

Não podemos deixar de referir o debate existente acerca da origem terminológica do instituto, o qual teria sido originado da expressão latina ad-stringere.9 Em linhas gerais, a palavra astreinte significa coação, coerção,

4. Ibid., p. 349-50.

5. REIS, José Alberto dos. Processo de execução. Coimbra: Coimbra, 1943, p. 426.

6. PERROT, Roger. La coercizione per dissuazione nel diritto francese. Rivista di Diritto Processuale, Padova, Cedam, jul./set. 1996, p. 666-667.

7. LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva & Cia Livraria Acadêmica: 1946, p. 337.

8. GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 115.

9. TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer: CPC, art. 461, CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 50.

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compulsão, provindo de estringere10, como refere Edson Prata. Ainda, sobre a palavra que deu origem as astreintes, Marilza Neves Gebrim11, ensina que “astreinte deriva do latim astringere, de ad stringere, que significa apertar, compelir, pressionar: daí o termo francês astreinte e o vernáculo estringente”.

A multa por tempo de atraso, também chamada astreinte, originada do direito francês, não tem por finalidade o enriquecimento do credor, mas agravar a pressão psicológica incidente sobre a vontade do sujeito, mostrando-lhe o dilema entre cumprir voluntariamente o comando con-tido no direito e sofrer os males que ela representa, como destaca o jurista Cândido Rangel Dinamarco.12 Conforme conclusão de José Miguel Garcia Medina, “as astreintes surgidas no direito francês significaram, de certo modo, uma reação à radical regra nemo potest cogiad factum. Embora se trate de medida coercitiva de caráter patrimonial, a sua criação pela ju-risprudência francesa revela a insatisfação oriunda daquele outro sistema, que impede o uso de qualquer medida coercitiva contra o devedor, e que chegava a considerar a obrigação de fazê-la como uma obrigação natural ou facultativa” 13.

Sobre o conceito de astreintes, Carlos Alberto Álvaro de Oliveira ensina que “nada mais são do que técnicas de indução ao cumprimento do decidido, podendo ser fixadas de ofício (artigos 461, § 4.º; 461 - A, § 3.º; 621, parágrafo único, e 645 do CPC)14”, condição esta que restou mantida pelo art. 537, do CPC/2015.

O processualista baiano Fredie Diddier Júnior apresenta alguns exem-plos de situações em que as astreintes seriam aplicáveis pelo juiz, sendo: “Para fins de (i) obste a divulgação de matéria jornalística na imprensa falada ou escrita, nos casos em que a veiculação da matéria configurar ato ilícito ou puder causar dano a alguém; (ii) imponha a veiculação de anúncio em jornal ou outdoor, no sentido de que uma determinada empresa está descumprindo ordem sua; (iii) determine a interdição de estabelecimento comercial, por não atendimento às normas de segurança do trabalho ou por causar danos ao meio ambiente; (iv) determine a retirada das prateleiras de produtos expostos ao consumidor em desconformidade com as regras

10. PRATA, Edson. Direito processual civil. Uberaba: Vitória, 1980, p. 22.

11. GEBRIM, Marilza Neves. Astreintes. Revista da Escola Superior da Magistratura do Distrito Federal, Brasília, dez. 1996, p. 69.

12. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução e processo executivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 110.

13. MEDINA, José Miguel Garcia. Execução civil: teoria geral e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 444-445.

14. OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense: 2008, p. 114-115.

A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015 – Rafael Caselli Pereira34

de informação publicitária ou se segurança e conservação, além de outras medidas possíveis15”.

Ao analisar o instituto da astreinte, sob a perspectiva instrumental de resultado, Ada Pellegrini Grinover leciona que: “As astreintes ainda guardam o seu caráter instrumental técnico, como uma tutela diferenciada. Esta referida medida aponta-se no ordenamento como uma técnica diferenciada de tutela em obrigações de fazer, não fazer e pagar quantia, um instrumento apto ao deferimento daquele tipo de prestação jurisdicional, que por sua natureza, não guarda força suficiente para o cumprimento voluntário devedor, sem que incida uma medida indireta, de natureza coercitiva, sobre o processo principal16”.

As astreintes não se confundem com a multa do § único do art. 14 do CPC/73. Eis que as primeiras “miram o futuro, querendo promover a efeti-vidade dos direitos, e não o passado, em que alguém haja cometido alguma infração merecedora de repulsa17”. São variados os critérios que as diferen-ciam: quanto à finalidade (punitiva), natureza (administrativa), beneficiário (Estado), forma de fixação (valor fixo, não superior a 20%) e incidência18.

Prestam-se, pois, para induzir ou obrigar alguém a cumprir determi-nada norma ou uma conduta. No dizer de Maria Helena Diniz, “a astreinte é, pois, a multa destinada a forçar o devedor indiretamente a fazer o que não deve, e não a reparar dano decorrente de inadimplemento19”. Promove-se, com ela, um esforço do juízo e da ordem pública, e no respeito pelo próprio Poder Judiciário.

A multa periódica, seja ela imposta na tutela antecipatória ou na sen-tença20, é o resultado da efetividade do processo consistente no encontro do resultado devido ao autor, em consonância com as normas de direito substancial, no mais curto espaço de tempo e com o mínimo de esforço possível21, destaca o sábio professor Luiz Guilherme Marinoni. Para Hum-berto Theodoro Júnior: “A mais enérgica medida para agir sobre o ânimo do

15. DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 434.

16. GRINOVER, Ada Pellegrini. Tutela jurisdicional nas obrigações de fazer e não fazer. Revista de Pro-

cesso, São Paulo, ano 20, n. 79, p. 65-76, jul./set. 1995, p. 68.

17. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: execução forçada. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 471.

18. DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 459.

19. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 301.

20. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica: arts. 461, CPC e 84, CDC. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001a, p. 105-106.

21. Ibid., p. 33.

CAPÍTULO I • ASTREINTES: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO LEGAL 35

devedor é, sem dúvida, a sanção pecuniária, a multa. Esta pode ser cominada, tanto no caso das obrigações infungíveis como das obrigações fungíveis, com uma diferença, porém: a) se tratar de obrigação infungível, não substituirá a prestação devida, porque a astreinte não tem caráter indenizatório. Não cumprida à obrigação personalíssima, mesmo com a imposição de multa diária, o devedor, afinal, ficará sujeito ao pagamento, tanto da multa como das perdas e danos; b) se o caso for de obrigação fungível, a multa conti-nuará mantendo seu caráter de medida coercitiva, isto é, um meio de forçar a realização da prestação pelo próprio devedor, mas não excluirá a aplicação dos atos executivos que, afinal, proporcionarão ao credor a exata prestação a que tem direito, com ou sem a colaboração pessoal do inadimplente”.22

Longe de apontar com exclusividade que as astreintes se configuram como medida coercitiva mais importante no ordenamento jurídico, para efeitos de cumprimento da tutela específica em obrigações de fazer e não fazer, é cediço que é considerada como a medida coercitiva indireta mais utilizada para efeito de cumprimento da obrigação principal específica23, destaca Fredie Didier Júnior.

À multa, nesta função constritiva do psiquismo, dá-se o nome de astreintes24. No escólio de Alexandre Freitas Câmara, “a astreinte pode ser caracterizada como uma multa periódica, imposta pelo juiz em função da demora no cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, com o princi-pal objetivo de pressionar psicologicamente o devedor a cumprir com a sua prestação25”. Numa palavra: o juiz é forçado a multar para conseguir um meio de desempenhar a sua função jurisdicional26, ensina Amílcar de Castro. Na mais importante obra sobre o tema aqui estudado, Guilherme Rizzo Amaral conclui que astreintes “se constitui técnica de tutela coercitiva e acessória, que visa a pressionar o réu, para que este cumpra mandamento judicial, sendo a pressão exercida através de ameaça a seu patrimônio, consubstanciada em multa periódica a incidir em caso de descumprimento27”.

22. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer. Revista de

Processo, São Paulo, ano 27, n. 105, p. 9-33, jan./mar. 2002, p. 24.

23. DIDIER JÚNIOR, Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 456.

24. CASTRO, Amílcar de. Comentários ao código de processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 1977, p. 186.

25. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 256.

26. CASTRO, Amílcar de. Comentários do código de processo civil: arts. 566 a 747. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 250.

27. AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e outras. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 101.

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Após analisar inúmeros conceitos acerca do instituto das astreintes, podemos conceituá-la como sendo a medida coercitiva protagonista do CPC/2015, de caráter acessório e com a finalidade de assegurar a efetivi-dade da tutela específica, na medida em que municia o magistrado28, com um meio executivo idôneo a atuar sobre a vontade psicológica do devedor, em detrimento do direito do credor e da autoridade do próprio Poder Ju-diciário. Sua incidência pode se dar por qualquer medida de tempo (ano, mês, quinzena, semana, dia, hora, minuto, segundo) ou por quantidade de eventos em que a medida restou descumprida, dependendo da finalidade e do objeto a ser tutelado, sendo devida desde o dia em que se configurar o descumprimento e incidirá enquanto a decisão não for cumprida.

No momento de sua fixação, deve-se conceder tempo razoável para o cumprimento (o que deverá ser analisado a partir da complexidade do caso concreto, através das regras de experiência comum), devendo o valor ser suficiente e compatível com a obrigação, levando-se em conta a capacidade financeira do ofensor, bem como a gravidade da consequência, em caso de descumprimento. A multa cominatória é revestida de natureza heterogênea (híbrida), preponderantemente processual, sendo meio coercitivo indireto a garantir o direito das partes de obter, num prazo razoável, a satisfação do direito material, obtido através da solução integral do mérito.

1.2 NATUREZA JURÍDICA

Somente após a compreensão da natureza jurídica das astreintes, é que se poderá alcançar conclusões acerca de seu cabimento, incidência, exigibilidade e eficácia. Conforme ensina Luiz Guilherme Marinoni: “A multa, em sua essência, tem natureza nitidamente coercitiva, porque se constitui em forma de pressão sobre a vontade do demandado, destinada a convencê-lo a adimplir a ordem do juiz. Enquanto instrumento que atua sobre a vontade, é inegável sua natureza coercitiva. Porém, quando não surte os efeitos que dela se esperam, converte-se

28. Apesar do caput do art. 537 afirmar que a multa “poderá” ser aplicada, leia-se “deverá”, uma vez que devemos interpretar o novo código de forma sistêmica. Assim, para garantia da tutela jurisdi-cional tempestiva e efetiva (art. 4.º CPC/2015), deverá o magistrado, desde logo, fixar a multa na fase de conhecimento, na tutela provisória, na sentença, ou ainda, na execução, evitando novas manifestações pelo credor da obrigação, corriqueiramente prejudicado pelo “tempo morto” do processo. Sobre o conceito de tempo morto do processo, Giseli Mascarelli Salgado define como sendo “o tempo em que o processo judiciário está em andamento, sem estar correndo o prazo dos atos processuais. O tempo morto é aquele em que não há efetivamente atos processuais que levem ao fim do processo, garantindo a paz social com a resolução dos conflitos. No período que denominamos tempo morto, o processo judiciário está na mão da burocracia estatal judiciária, para que esse volte novamente a ser movimentado pelas partes ou terceiros”. Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3837/Tempo-morto-no-processo-judicial-brasileiro>. Acesso em: 24 mar. 2016.

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automaticamente em desvantagem patrimonial que recai sobre o inadimplente. Isto significa que a multa, de ameaça ou coerção, pode transformar-se em mera sanção pecuniária, que deve ser suportada pelo demandado, mas aí sem qualquer caráter de garantia da efetividade da ordem do juiz29”.

Portanto, a natureza jurídica da astreinte consiste em seu caráter coerci-tivo, intimidatório, acessório e patrimonial. Sobre o tema, o professor Cássio Scarpinella Bueno distingue, com clareza, a natureza jurídica, a finalidade e a independência dos institutos das astreintes, e das perdas e danos, ao lecionar que “a multa não tem caráter compensatório, indenizatório ou sancionatório. Muito diferentemente, sua natureza jurídica repousa no caráter intimidatório, para conseguir do próprio réu (executado) o específico comportamento (ou abstenção) pretendido pelo autor (exequente) e determinado pelo magistrado. É, pois, medida coercitiva (cominatória). A multa deve agir no ânimo do obrigado e influenciá-lo a fazer ou a não fazer a obrigação que assumiu”.30

Ao enumerar as diversas características do instituto, Marcelo Lima Guerra salienta que a “aplicação acessória ao processo principal ou com característica reparatória, torna-se ponto incontroverso a ideia de que a multa cominatória é medida coercitiva apta a fazer com que o devedor - em determinado processo principal - cumpra com o seu dever, emanado de decisão judicial competente em obrigação de fazer e não fazer. Não tendo para tanto, cunho reparatório, diante de algum prejuízo resultante do inadimplemento no processo31”.

Conforme leciona Guilherme Rizzo Amaral: “A natureza é jurisdicional e coercitiva, não devendo ser confundida a outras medidas espalhadas pelo código, de ordem administrativa ou de cunho reparatório. As astreintes são uma técnica processual, técnica de tutela, que permite a materialização da tutela jurisdicional pretendida pelo autor32”. Já para José Eduardo Carreira Alvim, a “astreinte possui uma função punitiva ou sancionatória, com efi-cácia moralizadora, servindo de instrumento de proteção da dignidade da justiça. É resultado mais de um atraso no cumprimento de um mandamento judicial do que de um atraso no cumprimento de uma obrigação, operando--se, portanto, como uma punição, um castigo em razão da desobediência33”.

29. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela contra o ilícito: inibitória e de remoção - art. 497, parágrafo único, CPC/2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 239.

30. BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 44.

31. GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 115.

32. AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e outras. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 33.

33. ALVIM, José Eduardo Carreira. Tutela específica das obrigações de fazer e não fazer na reforma

processual. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 114.

A MULTA JUDICIAL (ASTREINTE) E O CPC/2015 – Rafael Caselli Pereira38

O caráter coercitivo da multa pode ser observado em razão de que a mesma se dá independente das perdas e danos, cuja análise será aprofundada no terceiro capítulo. O caráter coercitivo é apontado por Joaquim Felipe Spa-doni, “porque se manifesta como um meio de pressão psicológica incidente sob a vontade da parte, de forma a atemorizar a pessoa para que cumpra com a prestação determinada, nela configurada como obrigação principal, sob pena de incidência da ameaça prescrita pela norma34”.

Nota-se, assim, que a mesma decorre do descumprimento de uma obrigação principal a ser cumprida. Desse modo, não há como negar seu caráter acessório, ainda que possua a finalidade de forçar o cumprimento da obrigação.

Há prévia existência de um vínculo jurídico, que confere ao credor (sujeito ativo), o direito de exigir do devedor (sujeito passivo) o cumpri-mento de determinada prestação, em razão da desobediência ao comando judicial designado. Trata-se de uma nova relação judicial, derivada de uma situação jurídica anterior, de natureza pessoal (no oitavo capítulo, trataremos da controvérsia jurisprudencial, existente na vigência do CPC/73, acerca da possibilidade de intimação pessoal da parte ou de seu procurador e o entendimento advindo com o CPC/2015) e processual, de crédito e débito, que possui caráter transitório (extinguindo-se pelo cumprimento e/ou pa-gamento), cujo objetivo insiste numa prestação economicamente aferível.

Enquanto o processo de conhecimento visa, em substância, à forma-ção, na sentença definitiva da regra jurídica concreta, que deve disciplinar a situação litigiosa, outra é a finalidade do processo de execução, a saber, atuar praticamente naquela norma jurídica concreta35.

Com efeito, diferentemente da busca e apreensão, remoção de coisas, interdição de estabelecimentos, a astreinte não repercute efeitos diretos na vida real, equivalentes ao bem da vida, objeto da obrigação descumprida, nem tampouco proporciona o adimplemento direto da prestação; ela, ao contrário, acha-se inarredavelmente ligada à mora do devedor, visando atuar no sentido psicológico de que o obrigado cumpra espontaneamente o preceito, constituindo medida coercitiva e inibitória.

Guilherme Rizzo Amaral, ao comentar a razão para a autorização da concessão das astreintes de ofício, explica que “além da expressa previsão legal, o fato de a multa, como ademais as medidas coercitivas em geral, fazer parte do poder de imperium do juiz, da força que é inerente à ativi-

34. SPADONI, Joaquim Felipe. A multa na atuação das ordens judiciais. In: SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. (Coord.). Processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 487.

35. MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do proce-dimento. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 185.

CAPÍTULO I • ASTREINTES: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E PREVISÃO LEGAL 39

dade jurisdicional, não podendo ser limitada pelas partes. A tutela deve ser pleiteada pelo autor, mas este não pode interferir na técnica de tutela, que será escolhida pelo órgão jurisdicional36”.

1.3 PREVISÃO LEGAL

Na prática, o CPC/39 previa a ação cominatória, para fins de atendimen-to das obrigações de fazer ou não fazer, ao dispor que, assim como leciona Enrico Tullio Liebman: “A execução terá início pela citação do executado para cumprir a condenação no prazo determinado na sentença ou fixado pelo juiz. Se o executado não cumprir a obrigação, poderá o exequente prosseguir a execução para o pagamento da multa, se convencionada, ou das perdas e danos. Mas o exequente pode também preferir que a obra ou serviço seja feito por terceiro à custa do executado: deverá neste caso requerer que o serviço ou obra seja avaliado e arrematado em hasta pública37”.

Coube ao Código de Processo Civil de 193938, estabelecer procedimento específico para a execução das obrigações de fazer e não fazer. Na hipótese de obrigação fungível, o credor poderia optar pela execução através de ter-ceiro (art. 1.000) ou pela conversão da obrigação em perdas e danos (arts. 999 e 1.004). No caso da obrigação ser infungível, aplicava-se o disposto no art. 1.005: “Se o ato só puder ser executado pelo devedor, o juiz ordenará, a requerimento do exequente, que o devedor o execute, dentro do prazo que o fixar, sob cominação pecuniária, que não exceda o valor da prestação.” A multa cominatória tinha lugar somente nas obrigações infungíveis e resultava do contrato ou de sentença proferida através do procedimento cominatório, previsto nos arts. 302 até 310 de nosso CPC/39, destinados a disciplinar um leque de pretensões, desde a do “fiador, para exigir que o afiançado satisfa-ça a obrigação ou o exonere da fiança” a do “locador, para que o locatário consinta nas reparações urgentes de que necessite o prédio”.

Além da ação cominatória para prestação de fato ou abstenção de ato (art. 302-310), também se conferiu tratamento diferenciado para o interdito proibitório (art. 377-380)39, recorda Eduardo Talamini.

36. AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e outras. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 138.

37. LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução. São Paulo: Saraiva & Cia Livraria Acadêmica: 1946, p. 340.

38. Sobre o esforço histórico do processo no Brasil, abordando desde as ordenações Afonsinas, Manue-linas e Filipinas até o CPC/2015, sugere-se a leitura da obra de: JOBIM, Marco Félix. Teoria, história

e processo: com referências ao CPC/2015. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

39. TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e não fazer: CPC. art. 461, CDC, art. 84. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 112.