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eja na simulada escuridão de uma sala de exibição ou sob o teto estre- lado de um drive-in, o cinema e a noite sempre se encontraram na arte e na realidade. De um lado, temos a noite atuando em obras cinematográficas não só como elemento cenográfico, mas muitas vezes como agente narrativo de vital importância na história. Do outro, há o cinema que toma a noite através da crescente popularidade das mara- tonas e sessões que atravessam a madrugada. Em ambos os casos, estes elementos se unem em um rit- ual de celebração mútua, em que os grandes bene- ficiados são os espectadores. A noite no cinema Os inúmeros exemplos de filmes que se passam durante a noite, ou mesmo que a trazem orgulhosamente no título, já deixam claro o grau de intimi- dade entre a sétima arte e a fração mais escura do dia. A relação é, de fato, tão íntima que deu vida a um gênero específico – os filmes de terror e todos os seus sub-gêneros – que faz uso quase exclusivo da noite como pano de fundo para contar histórias. Porém, alguns diretores tiraram a noite de sua posição passiva de espectadora e a colocaram como um elemento decisivo para a cons- trução da narrativa, de forma que a mesma história não poderia se passar em nenhum outro período do dia. Nesses filmes, a noite marca um momento de transformação para os personagens, um encontro com o desconhecido. É um ambiente – sim, em alguns casos ela deixa de ser “tempo” e passa a ser também “espaço” – onde as pessoas se comportam de maneiras que parecem estar exclusivamente ligadas ao dilatar das pupilas causado pela escuridão. Uma chance de mudar, até que o sol as traga de volta à segurança da manhã. De olhos bem fechados, últi- mo filme de Stanley Kubrick, fala sobre o estágio do casa- mento em que as pessoas co- meçam a pro- curar desespe- radamente ele- mentos para “apimentar” uma relação desgastada pela rotina. Na maioria das vezes, o casal “mete os pés pelas mãos”, e acaba fazendo coisas das quais se arrependerá depois. Em uma única noite, o casal William Harford (Tom Cruise) e Alice (Nicole Kidman) faz o que parecia ser uma simples “discussão de relação” se tornar uma ver- dadeira desconstrução dos mitos criados pelo casamento, o que serve como pretexto para William dar uma volta pelo wild side em busca de prazeres negados pela vida monótona de médico e pai de família. Em uma orgia mascarada, médicos, padres, advogados e professores encontram no “anonimato” uma porta aberta para desempenharem papéis opostos aos que viviam no dia-a-dia. Julho/Dezembro de 2003 36 CRISTINA REIS, FÁBIO ANDRADE, GABRIELA CAPELLO E ROSELI PEREIRA A noite e o cinema O noturno como elemento de inspiração cinematográfica Diretores tiram a noite de sua posição passiva de espectadora e a colocam como elemento decisivo para a construção da narrativa Nicole Kidman em “De olhos bem fechados” de Stanley Kubrick

A n o i t e e o c i n e m a - Portal PUC-Rio Digitalpuc-riodigital.com.puc-rio.br/media/10 - a noite e o cinema.pdf · na história. Do outro, ... Uma chance de mudar, ... CRISTINAREIS,

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eja na simulada escuridão de umasala de exibição ou sob o teto estre-lado de um drive-in, o cinema e anoite sempre se encontraram naarte e na realidade. De um lado,

temos a noite atuando em obras cinematográficasnão só como elemento cenográfico, mas muitasvezes como agente narrativo de vital importânciana história. Do outro, há o cinema que toma anoite através da crescente popularidade das mara-tonas e sessões que atravessam a madrugada. Emambos os casos, estes elementos se unem em um rit-ual de celebração mútua, em que os grandes bene-ficiados são os espectadores.

A noite no cinemaOs inúmeros exemplos de

filmes que se passam durante anoite, ou mesmo que a trazemo rgulhosamente no título, jádeixam claro o grau de intimi-dade entre a sétima arte e afração mais escura do dia. Arelação é, de fato, tão íntima quedeu vida a um gênero específico –os filmes de terror e todos os seussub-gêneros – que faz uso quaseexclusivo da noite como pano defundo para contar histórias.

Porém, alguns diretores tirarama noite de sua posição passiva de espectadora e acolocaram como um elemento decisivo para a cons-t rução da narrativa, de forma que a mesmahistória não poderia se passar em nenhum outroperíodo do dia. Nesses filmes, a noite marca ummomento de transformação para os personagens,um encontro com o desconhecido. É um ambiente –

sim, em alguns casos ela deixade ser “tempo” e passa a sertambém “espaço” – onde aspessoas se comportam demaneiras que parecem estarexclusivamente ligadas aodilatar das pupilas causadopela escuridão. Uma chance demudar, até que o sol as traga devolta à segurança da manhã.

De olhos bem fechados, últi-mo filme de Stanley Kubrick,fala sobre o estágio do casa-

mento em queas pessoas co-meçam a pro-curar desespe-radamente ele-mentos para “apimentar” umarelação desgastada pela rotina. Namaioria das vezes, o casal “mete ospés pelas mãos”, e acaba fazendocoisas das quais se arre p e n d e r ádepois. Em uma única noite, ocasal William Harford (Tom Cruise)e Alice (Nicole Kidman) faz o queparecia ser uma simples “discussãode relação” se tornar uma ver-dadeira desconstrução dos mitoscriados pelo casamento, o que serve

como pretexto para William dar uma volta pelowild side em busca de prazeres negados pela vidamonótona de médico e pai de família. Em umaorgia mascarada, médicos, padres, advogados eprofessores encontram no “anonimato” uma portaaberta para desempenharem papéis opostos aosque viviam no dia-a-dia.

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CRISTINA REIS, FÁBIO ANDRADE, GABRIELA CAPELLO E ROSELI PEREIRA

A n o i t e e o c i n e m aO noturno como elemento de inspiração cinematográfica

Diretores tiram anoite de sua posição

passiva de espectadora e a colocam como

elemento decisivopara a construção

da narrativa

Nicole Kidman em “De olhos bem fechados”de Stanley Kubrick

O filme derr a d e i ro deKubrick faz claras alusõesà história de A noite, dod i retor italiano Miche-lângelo Antonioni, de1960. Partindo também deum casal – Giovanni eLídia – em busca de novasemoções para quebrar ovazio que os perseguia,também encontra-se, ex-clusivamente, a frustração.Tanto no filme de An-tonioni quanto no deKubrick, as frustradas ex-periências noturnas doscasais fazem com que elesse reaproximem. A noitedo título trouxe uma auto-percepção e lucidezinéditas para o casal. Quando o dia chega, não hámais qualquer tipo de dissimulação, o que fica evi-dente em uma frase dita por um amigo da dupla,internado em estado terminal: “É incrível como seperde a capacidade de fingir”.

Esses são apenas dois exemplos ilustrativos decomo a noite é usada por cineastas como agentetransformador do ser humano, enquanto o dia évisto como uma espécie de porto-seguro. As trans-formações pelas quais os personagens passaramsão frustradas, mas, em momento algum, inúteis. Écomo se a loucura da noite tornasse a monotoniado dia mais palatável.

Essa loucura aparece estampada, em letras gar-rafais, em um dos mais clássicos – e, de cert af o rma, “marginais” – musicais da história do cine-ma. A produção The Rocky Horror Picture Show n ã ofoi um sucesso imediato. O curioso é que, conquis-tando o público pouco a pouco, o filme tem hojeum dos maiores cultos que se tem notícia no meiocinematográfico. O filme ainda passa re g u l a r-mente nos EUA – assim como foi re-exibido na últi-ma mostra de cinema do Rio – e nas sessões, os fãsc o m p a recem fantasiados como os personagens dahistória e interagem o tempo todo com a ação natela. O ponto de partida é o mesmo da maioria dasn a rrativas de terror: um jovem casal apaixonado,Janet Weiss (Susan Sarandon) e Brad Majors (Barry

Bostwick), viaja calmamente pela estrada até queum dos pneus do carro fura. Para piorar a situ-ação, é noite e chove torrencialmente. Os dois,obviamente, deixam o carro e se dirigem ao caste-lo mal assombrado mais próximo, habitado pelocientista louco e transexual Frank’n’Further (Ti mC u rry ) .

Jane e Brad não sabiam que uma única noitepodia trazer tantas mudanças. As experiências sur-realistas, sempre com doses de explícita conotaçãosexual, que viveriam dentro daquele castelo, ost r a n s f o rmariam por completo, abrindo suasmentes e espantando de vez a caretice de suasvidas. De início, o casal ofer-ece resistência, porém, acabacedendo aos poucos, deixan-do-se levar pela maluquicede Frank’n’Furt h e r. Ao ama-n h e c e r, quando o filme ter-mina, a dupla, sob os escom-b ros do castelo que explodiunem parece o mesmo casalde virgens do início dah i s t ó r i a .

Jane e Brad permanecematônitos, como se não acredi-tassem no que haviam visto,ouvido, e feito naquela noite.Os primeiros raios da manhã

Boas Noites 37

trazem de volta o mundo que esqueceram a partirdo momento em que botaram os pés no castelo, ummundo que agora lhes era estranho.

Vários outros filmes tiveram a noite como fatord e t e rminante em sua construção narrativa: os cita-dos foram apenas exemplos de como esse momen-to do dia normalmente afeta o curso da história.Obviamente, os enfoques são os mais variados.Seja na ótica das gangues de rua em Wa rriors – Osselvagens da noite; na poesia felliniana de A docev i d a; na inusitada gincana noturna de Loucuras emplena madru g a d a, nas discussões familiares deAniversário de casamento e Festa de família; ou noclima soturno adicionado a histórias mais som-brias como os recentes Oito mulhere s e A s s a s s i n a t oem Gosford Park. Nestes filmes, a noite semprea p a rece como essa influência subversiva, esse

momento onde a loucura e a inconseqüênciavestem melhor até mesmo os mais corretos pais defamília, os mais burocráticos filhos de classe médiae as mais puras adolescentes. Mas a loucura estánas pessoas. No cinema, a noite é apenas umgrande sinal verd e .

O cinema na noiteO que falar de uma sessão de cinema onde não

existam adolescentes barulhentos, mães que lêemas legendas em voz alta para os filhos, e ondetodos os fre q ü e n t a d o res estão interessados o bas-tante no filme a ponto de perd e rem uma noite desono para ir ao cinema? Acrescente a isso filmesr a ros ou pré-estréias e temos aí a receita por trásdas várias ma-ratonas cine-

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Considerado um dos pais do ci-nema independente nort e - a m e r i-

cano da década de 1990,o texano Richard Link-later é uma verd a d e i r aautoridade quando oassunto é cinema nanoite: de seus novefilmes, sete se passam

de um dia para o outro, e tem nanoite o ápice da transformaçãodos personagens.

A noite é, naverdade, o gran-de elo de ligaçãoe n t re todas aspeças da obra docineasta. A épo-ca, a situação e aa m b i e n t a ç ã omudam, mas, nofundo, Linklaterconta históriassobre pessoas co-muns em diasnormais de suasvidas, acentuan-

do o fato de que são justamentenestas jornadas que as grandesmudanças acontecem.

Seja acompanhando adoles-centes em uma noite perdidanos anos 1970 como no clássicoJovens, loucos e re b e l d e s; part i-cipando de uma conversa entreamigos que todo dia se encon-tram ao lado do mesmo posto degasolina de uma cidade doTexas em subUrbia (sic); cele-brando um romance de umanoite em Viena entre um jovemamericano e uma garota france-

sa em Antes doamanhecer; tratan-do dos mistériosdo sonho emWaking Life o uatingindo o ex-tremo da simpli-cidade com Tape –filme com somen-te três persona-gens, passado to-do dentro de umquarto – Linklatermostra que, nan o rmalidade de

uma noite qualquer, algo estás e m p re mudando dentro daspessoas.

Em entrevista ao s i t e I n d i e-Network.com, o diretor usouuma citação de John Lennonpara resumir o espírito de seusfilmes: “A vida é o que acontecequando você está fazendo outrosplanos”. Porque, seja em Viena,Austin ou até mesmo nos so-nhos, a cada noite o mundo estámudando, radicalmente, paraalguém.

Richard LinklaterO cineasta da n o i t e

matográficas que animam as madrugadas doRio de Janeiro .

A mais famosa delas, organizada pelo Gru p oEstação, acontece toda primeira sexta-feira do mêsno cine Odeon BR, na Cinelândia, e tem origemdas menos previsíveis. Durante a última Copa doMundo, os organizadores decidiram transmitir osjogos do Brasil de madrugada nessa mesma salade cinema. A idéia deu tão certo que surgiu o pro-jeto das maratonas de filmes durante toda umamadrugada. Segundo a assessora de imprensa doGrupo Estação, Liliam Hargreaves, essa é umaversão atualizada das famosas maratonas de1986/87, realizadas no Estação Botafogo, quandoo espaço era apenas um cinema no fundo de umagaleria.

A programação da Maratona oferece sempretrês filmes em uma só noite: uma pré-estréia, umfilme surpresa escolhido pela platéia entre algu-mas opções fornecidas pela organização, e umfilme t r a s h, produções cujas principais quali-dades não são os cenários e muito menos seuacabamento. O primeiro filme está pro g r a m a d opara começar às 23h30 e o último termina aoa l v o re c e r, com uma mesa de café da manhã,com bolo e chocolate quente para o público.

Além de filmes, o DJ oficial Jorge Luiz anima opúblico tocando ritmos comolounge music e d ru m ̀ n ̀ b a s s, pormeia hora, entre as sessões. Opúblico é variado e cativo, sendo,em sua maioria, estudantes decinema ou comunicação, alémdos veteranos que fre q ü e n t a v a mas antigas maratonas do Estação.O estudante de Comunicação So-cial da PUC-Rio Marcelo Caldas,f reqüentador assíduo do Odeon,diz que o público é o mesmo dasboates Casa da Matriz e Bunker.Ele acha que o evento poderiao c o rrer mais vezes. “Se tivessetoda semana, iria sempre”, afir-m a.

A média de público da maratona é de 300 pes-soas, e a casa cheia já é fenômeno comum para oso rg a n i z a d o res. Uma das sessões mais concorr i d a s

foi a exibição do filme A u s t i nPowers 3 – O homem do membrode ouro, do diretor Jay Roach.Para garantir a casa cheia, oso rg a n i z a d o res se empenham pa-ra não só oferecer bons filmes,mas também, um preço acessívele um esquema confiável de segu-rança aos cinéfilos da madru g a-da. O preço do ingresso varia deR$ 12,00 – até a meia-noite – eR$ 15,00 depois deste horário,sendo que os estudantes têm dire-to a pagar meia entrada. E quemquiser ir de carro não precisa ficarp reocupado: há um estaciona-

mento ao lado do cinema, que cobra o preço fixode R$ 4,00 no período de 22h às 6h30. O CineOdeon BR fica na praça Floriano, número 7, naCinelândia, no Rio de Janeiro.

Com três filmes poredição, a Maratonado Grupo Estaçãocomeça às 23h30 e

termina ao alvorecer,com direito a café da

manhã com bolo echocolate quente

Austin Powers foi sucesso na Maratona do Grupo Estação

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