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VANDERNEY LOPES DA GAMA Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira (Programa de Letras Vernáculas) Rio de Janeiro Fevereiro de 2016. A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO INQUIETANTE E MODERNO

A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM … · Um dado bastante discutido com relação às narrativas de Murilo Rubião é o fato de elas não se encaixarem com certa facilidade

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Page 1: A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM … · Um dado bastante discutido com relação às narrativas de Murilo Rubião é o fato de elas não se encaixarem com certa facilidade

VANDERNEY LOPES DA GAMA

Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira

(Programa de Letras Vernáculas)

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016.

A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO

INQUIETANTE E MODERNO

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A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO

INQUIETANTE E MODERNO

VANDERNEY LOPES DA GAMA

Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira

(Programa de Letras Vernáculas)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Doutor Alcmeno Bastos

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016.

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BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________

Professor Doutor Alcmeno Bastos (Orientador)

_____________________________________________________

Professor Doutor Adauri Silva Bastos - UFRJ

_____________________________________________________

Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UFRJ

_____________________________________________________

Professor Doutor Jose Luis Jobim De Salles Fonseca - UERJ

_____________________________________________________

Professor Doutor Jorge Luiz Marques de Moraes

Colégio Militar do Rio de Janeiro e Colégio Pedro II

_____________________________________________________

Professora Doutora Stefania Chiarelli – UFF (Suplente)

_____________________________________________________

Professor Doutor Marcos Pasche (Suplente)

Rio de Janeiro,

Fevereiro de 2016.

A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO

INQUIETANTE E MODERNO

Vanderney Lopes da Gama

Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,

Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura

Brasileira).

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À minha esposa, Nádya, e ao meu filho, Miguel,

que, mesmo não percebendo, contribuíram com a

realização de mais um sonho.

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A G R A D E C I M E N T O S

A Deus, por ter me fortalecido para a batalha que travei tanto na execução

desta tese como na lida diária.

Aos meus queridos e sempre amados pais, que, apesar de não estarem mais

aqui, puderam ver meu êxito, certamente torcendo por mim de onde quer que estejam.

Altamiro e Dona Ideleia vocês foram os melhores pais que um filho poderia ter.

Obrigado.

Ao Professor Alcmeno Bastos, meu orientador, que em meio à correria do dia a

dia demonstrou preocupação e paciência.

Ao amigo Flavio García, com suas pequenas e singelas observações feitas no

exame de qualificação desta tese e nos e-mails trocados. Obrigado pelos textos.

Ao amado e mais novo membro da família, meu filho Miguel. Apesar do

distanciamento, muitas vezes uma simples parada nas leituras era suficiente para

perceber em seu sorriso meigo e tenro a renovação das forças que em alguns momentos

julguei ter perdido.

Aos meus irmãos e alguns amigos que souberam entender a dificuldade de

trilhar esse caminho, gostaria de externar minha eterna gratidão pela compreensão e

pela torcida positiva. Embora me mantivesse distante em muitos momentos, sempre

pude contar com a sinceridade e o apoio de vocês.

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R E S U M O

A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO

INQUIETANTE E MODERNO

Vanderney Lopes da Gama

Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro –

UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Esta tese tem por objetivo a narrativa insólita de Murilo Rubião, estudada sob

óptica existencialista. No entanto, nela, serão discutidas desde as ideias mais

tradicionais da narrativa fantástica, seguindo a linha de pensamento de T. Todorov e de

Filipe Furtado, até as contribuições mais contemporâneas sobre o tema. Contudo, dentro

dessa nova abordagem possível da literatura fantástica moderna, a teoria existencialista

de Jean Paul Sartre será elencada como aquela que melhor se aplica às narrativas do

escritor mineiro, uma vez que, para o filósofo, o único ser realmente fantástico na

atualidade é o homem. Segundo ainda Sartre, o fantástico contemporâneo não necessita

de seres sobrenaturais, mortos-vivos, fantasmas, nem de castelos mal-assombrados ou

cemitérios, porque o elemento fantástico está preso ao cotidiano do homem [e no

homem] que vive tanto nas grandes cidades como nas do interior. Ele é o indivíduo no

qual se manifestam as crises pelas quais a humanidade tem passado, as consequências

diretas do progresso e da vida tal qual é conhecida.

Dos trinta e quatro contos apresentados aqui, apenas trinta e dois foram

publicados quando Murilo Rubião ainda estava vivo. ―A diáspora‖, conto esquecido em

um banco de taxi, só foi publicado depois da morte do autor e depois de uma extenuante

procura. O conto ―As unhas‖ só chegou recentemente ao conhecimento do público

graças à doação da família do escritor ao Centro de Estudos Literários da Faculdade de

Letras da UFMG, sendo selecionado pela Profª. Vera Lúcia Andrade, atual diretora do

CEL, e pela bolsista de Iniciação Científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val.

Palavras-chave: Insólito – Murilo Rubião – Sartre – Fantástico – Existencialismo.

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R E S U M E N

LA NARRATIVA INUSUAL EN MURILO RUBIÃO: UN FANTÁSTICO

INQUIETANTE Y MODERNO

Vanderney Lopes da Gama

Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos

Resumen de la Tesis Doctoral sometida al programa de Posgrado em Letras Vernáculas,

Facultad de Letras, de la Universidad Federal de Rio de Janeiro - UFRJ, como parte de

los requisitos necesarios para optar al título de Doctor en Literatura Brasileña.

Esta tesis tiene como objetivo la narrativa inusual de Murilo Rubião,

estudiados bajo la óptica existencialista. Sin embargo, se discutirán desde las ideas

tradicionales de la narrativa fantástica, siguiendo la línea del pensamiento de T.

Todorov y Filipe Furtado, aportaciones más actuales sobre el tema. Sin embargo, dentro

de este nuevo enfoque de la literatura fantástica moderna, la teoría existencialista de

Jean-Paul Sartre se introduce como el que mejor se aplica a narraciones del escritor

minero, ya que, para el filósofo, el único realmente fantástico en la actualidad es el

hombre. Según Sartre, el fantástico contemporáneo todavía no necesita seres

sobrenaturales, zombies, fantasmas, o castillos embrujados o cementerios, porque el

elemento fantástico se une a la vida cotidiana del hombre [y en el hombre] que vive en

las grandes ciudades y en el interior. Él es el individuo en que se presentan crisis en la

que el hombre ha pasado, las consecuencias directas del progreso y de vida que se

conoce en los principales centros urbanos.

De los 34 relatos presentados aquí, sólo 32 fueron publicados cuando Murilo

Rubião todavía estaba vivo. "A diáspora", cuento olvidado en un taxi, sólo fue

publicada después de la muerte del autor y después de una ardua búsqueda. El cuento

"As unhas" hace poco vinieron a la atención del público gracias a la donación de la

familia del escritor para Centro de Estudios Literarios de la Facultad de Letras/UFMG,

ser seleccionada por la profª. Vera Lúcia Andrade, actual Director del CEL y la beca de

iniciación científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val.

Palabras clave: Inusual – Murilo Rubião – Sartre – Fantástico – Existencialismo.

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SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................... 11

1. A narrativa insólita através dos tempos ................................................................ 14

1.1. O insólito e a Idade Média ............................................................................ 16

1.2. A narrativa insólita no Brasil......................................................................... 19

2. Teorizando sobre o fantástico .............................................................................. 24

2.1. O fantástico como gênero textual .................................................................. 24

2.2. A narrativa fantástica: novas contribuições ................................................... 28

2.3. Sigmund Freud e o Estranho ......................................................................... 37

2.4. O existencialismo de Jean Paul Sartre ........................................................... 41

2.5. O existencialismo e a literatura fantástica ...................................................... 44

3. A narrativa de Murilo Rubião: um fantástico inquietante e moderno .................... 52

4. Narrativas comentadas de Murilo Rubião ............................................................ 66

4.1. A hipérbole ................................................................................................... 66

4.1.1. O Ex-mágico da Taberna Minhota ........................................................... 66

4.1.2. Bárbara.................................................................................................... 69

4.1.3. A cidade .................................................................................................. 71

4.1.4. O homem do boné cinzento ..................................................................... 73

4.1.5. Memórias do contabilista Pedro Inácio .................................................... 76

4.1.6. D. José não era ........................................................................................ 78

4.1.7. A lua ....................................................................................................... 80

4.1.8. Os dragões............................................................................................... 83

4.1.9. A armadilha ............................................................................................. 85

4.1.10. O edifício .............................................................................................. 87

4.1.11. Aglaia.................................................................................................... 90

4.1.12. A fila ..................................................................................................... 93

4.1.13. Botão-de-rosa ........................................................................................ 97

4.1.14. O bloqueio ........................................................................................... 100

4.1.15. A diáspora ........................................................................................... 104

4.1.16. As unhas .............................................................................................. 108

4.2. O incesto (?) ................................................................................................ 112

4.2.1. A casa do girassol vermelho .................................................................. 112

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4.2.2. O lodo ................................................................................................... 115

4.3. A ambiguidade............................................................................................. 119

4.3.1. O pirotécnico Zacarias ........................................................................... 119

4.3.2. Mariazinha ............................................................................................ 121

4.3.3. Elisa ...................................................................................................... 124

4.3.4. Marina, a Intangível .............................................................................. 125

4.3.5. O bom amigo Batista ............................................................................. 128

4.3.6. Epidólia ................................................................................................. 130

4.3.7. O convidado .......................................................................................... 133

4.4. A loucura ..................................................................................................... 137

4.4.1 A noiva da Casa Azul ............................................................................. 137

4.4.2. Os três nomes de Godofredo .................................................................. 139

4.4.3. Ofélia, meu cachimbo e o mar ............................................................... 141

4.4.4. Bruma (A estrela vermelha) ................................................................... 143

4.4.5. A flor de vidro ....................................................................................... 145

4.4.6. Petúnia .................................................................................................. 148

4.5. A metamorfose ............................................................................................ 153

4.5.1. Alfredo .................................................................................................. 153

4.5.2. Teleco, o coelhinho ............................................................................... 155

4.5.3. Os comensais ........................................................................................ 157

5. Considerações finais ......................................................................................... 161

6. Referências Bibliográficas ................................................................................ 165

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Introdução

O foco principal desta tese é a abordagem da narrativa insólita de Murilo

Rubião. Contudo, antes de se empreender tal feito, faz-se necessária a apresentação de

alguns pareceres importantes para o melhor andamento deste trabalho. E, para isso,

acredita-se que o percurso inicial deve partir do próprio termo insólito e a que tipo de

literatura insólita aqui se faz referência.

Segundo Antônio Geraldo da Cunha, no Dicionário etimológico Nova

Fronteira de língua portuguesa, o termo insólito — assim como sólito — tem a sua raiz

no verbo soer, que significa ―ser comum, frequente, vulgar‖. Sendo assim, proveniente

do latim in-solitus, o adjetivo insólito pode ser entendido como ―desusado, inabitual

e/ou incomum‖. De acordo ainda com Lenira Marques Covizzi, no livro O insólito em

Guimarães Rosa e Borges, o termo ―carrega consigo e desperta no leitor o sentimento

do inverossímil, incômodo, infame, incongruente, impossível, infinito, incorrigível,

incrível, inaudito, inusitado, informal...‖ (1996, p. 26). Diante dessas duas

apresentações, acredita-se que o segundo sentido atribuído ao vocábulo é aquele que —

por ser mais completo e por dar conta de uma quantidade maior de situações

relacionadas às narrativas que aqui se estudarão — se pretende ratificar nas páginas a

seguir.

Desta forma, exclui-se a possibilidade de generalizações, pois o fato de toda —

ou quase toda — literatura ser ficção não quer significar a inclusão dos diversos tipos de

texto no rol das narrativas insólitas a que se refere esta tese. Na verdade, será utilizado

esse termo para dar conta das narrativas de Murilo Rubião que trafegam pelo universo

fantástico. Por esse fato, também é importante salientar que o termo insólito poderá ser

empregado como forma sinonímica daquele universo [e vice-versa] e que, por esse

motivo, no capítulo a seguir, se faz necessária a elaboração de um mapeamento da

trajetória que esse tipo de narrativa percorreu até se encontrar com o escritor brasileiro.

Um dado bastante discutido com relação às narrativas de Murilo Rubião é o fato

de elas não se encaixarem com certa facilidade às teorias acerca do fantástico que

circulam pelo ambiente acadêmico. Há uma espécie de resistência entre as narrativas do

escritor mineiro e as teorias mais tradicionais que abordam o fantástico. Elas não

preenchem completamente as lacunas encontradas nos contos de Murilo Rubião — na

verdade, nenhuma teoria tem esse privilégio. Os argumentos estruturalistas ora

adéquam-se àquelas narrativas, ora afastam-se delas. A hesitação, por exemplo, tal qual

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o modelo de Todorov, não aparece claramente tipificada na narrativa do escritor. Na

verdade, os contos de Murilo Rubião possuem uma peculiaridade: eles não apresentam

os elementos indicadores da hesitação a que Todorov faz referência em seus estudos. Ao

procurar cegamente por eles, o crítico corre o risco de anular todo um universo

construído com o intuito de provocar não só o prazer da leitura, mas também a reflexão

crítica.

Como é possível perceber, as questões sobre o insólito muriliano estão longe

de serem esgotadas. No entanto, esse ―não esgotamento‖ não quer dizer que os estudos

já feitos sobre Murilo Rubião foram insuficientes ou inconsistentes. Na verdade, ele

indica a complexidade da obra de um autor que — mesmo utilizando os limites entre o

real e o não real — conseguiu plantar interrogações na mente dos leitores mais atentos

aos seus truques e jogadas enigmáticas.

No conjunto das teorias, apesar de ter recebido várias críticas, a definição que

Todorov deu ao fantástico serviu durante muitos anos como referência relevante aos

estudos literários. Os estudiosos que seguiram as ideias todorovianas receberam a

denominação de estruturalistas, porque entendiam a narrativa como um conjunto de

elementos estrategicamente constituídos para a manutenção do gênero até o final do

conto. No entanto, há outras possibilidades. Atualmente, há estudiosos que consideram

a narrativa fantástica moderna como um modo discursivo. Nesses casos, o fantástico

não é visto como um gênero, como apregoava Todorov, mas sim como uma decorrência

do próprio discurso literário que pode surgir a qualquer momento na narrativa. Autores

como Remo Ceserani, Irène Bessière, Irlermar Chiampi, dentre outros, veem o

fantástico dessa forma. Há outros que, como Ana Gonzalez Salvador, acreditam que a

narrativa fantástica é melhor caracterizada como uma ―categoria estética‖ que segue as

mesmas leis da pintura, da música e de outras formas de arte. Segundo a autora, assim

como um pintor é capaz de produzir outras realidades ―el escritor logra producir una

ilusión referencial‖(1980, p. 32). Existem ainda estudiosos que perceberam o fantástico

ora como um gênero, ora como um modo discursivo. Nesse rol, estão Filipe Furtado –

considerando o livro A construção do fantástico na narrativa e publicações mais

recentes do autor – e David Roas. Por fim, há autores que veem o fantástico com uma

conotação existencialista. Assim, todos os elementos que compõem a narrativa foram

disponibilizados na teia textual com o único objetivo de representar as incertezas e as

angústias do homem no cenário moderno. Em um artigo intitulado ―Aminadab, ou o

fantástico considerado como uma linguagem‖, o filósofo Jean Paul Sartre apresenta essa

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visão da narrativa fantástica contemporânea. Lenira Marques Covizzi, no livro O

insólito em Guimarães Rosa e Borges, também sugere uma abordagem existencialista

quando entende que as crises pelas quais o homem contemporâneo passou estão direta e

indiretamente sinalizadas na narrativa fantástica moderna.

Pelo que se tem dito até agora, nota-se que esta tese tem como objetivo a

realização de leituras crítico-interpretativas das narrativas insólitas de Murilo Rubião,

buscando relacioná-las à definição do fantástico na atualidade. Para isso, como se verá a

seguir, primeiramente, será feito um pequeno panorama da narrativa insólita até seu

encontro com o escritor mineiro. Depois, serão elencadas as ideias de estudiosos mais

tradicionais que contribuíram com a criação de teorias desse tipo de narrativa. Nesse

momento, serão chamados à discussão autores que apresentaram visões divergentes das

que foram postuladas pelos estruturalistas, incluindo-se nesse escaninho os dizeres de

Freud, quando este discorre sobre o estranho. Por último, também será apresentada a

teoria existencialista do filósofo Jean Paul Sartre como fundamentação teórica que,

associada a outras áreas do conhecimento humano, proporciona uma abordagem mais

satisfatória dos contos do escritor mineiro. O filósofo pode ser considerado o precursor

da teoria existencialista acerca do fantástico moderno, pois trata a questão, focalizando

objetivamente a condição humana como o elemento capaz de desencadear o fantástico

na narrativa insólita moderna.

Após a apresentação deste panorama e arcabouço teórico, será feita uma

abordagem mais minuciosa da vida e da obra de Murilo Rubião, dando maior ênfase ao

trabalho de construção literária do escritor, apontando alguns traços relevantes,

marcantes e singulares em suas narrativas. Nessa parte, serão apontadas algumas

características emblemáticas e frequentes na literatura de Murilo que contribuíram para

a construção do escritor que hoje se conhece. Depois, será realizada a leitura crítico-

interpretativa dos contos de Murilo Rubião, observando-se atentamente a convergência

e/ou divergência de suas narrativas com a teoria existencialista.

Por fim, serão apresentadas as considerações finais, enumerando os resultados

encontrados, ratificando algumas ideias referenciadas na parte inicial do trabalho e

retificando outras que possam surgir no percurso da tese. A essa altura, espera-se que os

resultados encontrados sejam suficientemente convincentes para tornar este trabalho

algo representativo e importante para uma abordagem séria e bem embasada da

literatura insólita em Murilo Rubião.

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1. A narrativa insólita através dos tempos

A narrativa insólita provocou certo medo e fascínio no leitor de outrora. Antes

mesmo de se ter noção da escrita, é sabido que os povos antigos tinham, por hábito,

passar suas crenças e costumes contando histórias através da oralidade. O sábio da tribo

era um ancião que buscava reconstruir os caminhos de sua cultura, narrando histórias

nas quais era possível notar a presença de elementos sobrenaturais, terroríficos e

assustadores, enfrentados por um herói que representasse aquele povo ou nação. Logo,

pode-se dizer que esses relatos mitológicos, que se reportavam a todo um passado

histórico e a toda uma forma de cultura, foram, indiretamente, as primeiras

manifestações orais das narrativas insólitas. Segundo Selma Calasans Rodrigues, há

uma diversidade de opiniões sobre o suposto nascimento do fantástico, mas, para a

pesquisadora,

Temos de enfrentar a diversificação de opiniões. Sobre o nascimento e a

natureza do fantástico várias delas se entrechocam. Pode-se, porém,

classificar algumas de acordo com afinidades. A primeira considera o

fantástico de todos os tempos, desde Homero e As mil e uma noites

(RODRIGUES, 1988, p. 16).

A questão é complexa e aparentemente insolúvel. H.P. Lovecraft, no livro O

horror sobrenatural em literatura, no capítulo intitulado ―O inìcio do conto de horror‖,

sugere que o sentimento de medo e terror está enraizado nos elementos que

compuseram o ―folclore‖ dos povos mais primitivos:

O terror cósmico aparece como ingrediente no folclore mais primitivo de

todas as raças, e é cristalizado nas baladas, crônicas e escritos sagrados mais

arcaicos. Ele era, aliás, uma característica saliente no elaborado cerimonial

mágico com seus rituais para a evocação de demônios e espectros que

floresceu desde tempos pré-históricos e atingiu seu apogeu no Egito e nas

nações semitas (LOVECRAFT, 2008, p. 19).

O fato é que histórias insólitas sempre acompanharam o homem pelos diversos

estágios de sua evolução. Pode-se pensar, por exemplo, nas narrativas religiosas que

fazem referência à criação do universo e das espécies como um todo. Em um livro de

contos organizado por ele, o escritor Flávio Moreira da Costa relaciona a narrativa

apocalíptica como uma das primeiras manifestações do fantástico. Ainda segundo o

autor, pode-se inferir a existência do gênero desde os primórdios do século XIV. É

dessa época o conto ―O rato e o eremita‖, datado de 1373 e que fazia parte de um

―manuscrito encontrado do Hitopadoxa — um conjunto de 43 histórias derivadas do

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Panchatantra1‖ (COSTA, 2006, p. 33). Seguindo por demais essa tese, o antologista cita

o conto ―A sentença‖, que pertence ao escritor chinês Wu Cheng‘en que teria vivido na

primeira metade do século XVI (1500-1582) e que também ratifica tal pensamento.

Enfim, as referências poderiam ser inúmeras. Como se vê, nos parcos exemplos

elencados anteriormente, as narrativas de cunho insólito têm a sua gênese em tempos

bastante remotos. Alguns estudiosos já apontaram o século XIX como o apogeu dos

textos fantásticos. Contudo, esse fato não inviabiliza a possibilidade de se ter

esporadicamente representadas, em determinados momentos do crescimento e

autoconhecimento da natureza humana, narrativas que colocassem o homem em contato

com um universo imaginário adormecido, desconhecido, sobrenatural, impossível ou

irreal.

Uma constatação — talvez sólida — dessa hipótese manifesta-se naquilo que

Sigmund Freud chamou de inconsciente. É nele que os homens de todos os tempos

guardam seus medos, seus traumas, suas frustrações e suas neuroses arquivadas pelo

tempo. Basta uma pequena ―chave‖ catalisadora para que qualquer um desses elementos

venha à tona:

Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas

possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente

aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos

de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas

crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem

de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo

que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho... (FREUD, 1976, p. 308).

1Panchatantra é um conjunto de cinco volumes de histórias escritas por um professor para instruir os

príncipes nos vários aspectos da realeza. Os cinco volumes juntos servem como um guia para um rei

previdente, ajudando-o a decidir como governar, como escolher seus amigos, seus ministros, como se

administrar na vida diária, entre outras coisas. A coleção de histórias do Panchatantra é realmente

valorosa para os pais, ajudando-os a guiar — a si e aos filhos — segundo os valores da vida humana.

Toda história do Panchatantra tem uma moral: ―Há muito tempo, no reino de Mahilaropya, viveu um rei

que governava perfeitamente. Ele tinha três filhos, que não eram inteligentes. O rei estava preocupado

com a sucessão do trono, pois sabia que seus filhos eram incapazes de governar. Ele procurava

desesperadamente um bom professor para seus filhos, que lhes ensinasse as escrituras e os tornasse sábios

em pouco tempo. O ministro do rei indicou-lhe, então, uma autoridade qualificada, Vishnu Sharman.

Vishnu Sharman era velho e o rei se preocupava em como o professor realizaria seu trabalho se mesmo um homem inteligente levava mais de doze anos para apreender todos os elementos da escritura. Então

Vishnu Sharman convenceu o rei que ensinaria aos príncipes sobre a conduta real através de uma série de

histórias, que seriam mais efetivas que as escrituras. Assim, Vishnu Sharman compilou a coleção de cinco

volumes intitulada Pancha Tantra, que deveria ser um guia para príncipes sobre o comportamento de um

rei‖. Traduzido e adaptado por Rafael Brito (disponìvel em

http://www.templodoconhecimento.com/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=116), acessado em 15/09/2013, às 14h: 32min.

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Ao postular tal pensamento, Freud oferece uma pequena alternativa para uma

conjectura do porquê de as narrativas insólitas terem tido uma vida tão longa desde os

primórdios da civilização do homem até os dias de hoje. Segundo o psicanalista, pode-

se aventar que a leitura de tais narrativas é uma forma de colocar o indivíduo em contato

com um universo imaginário adormecido, mas ainda presente em sua existência. O

estranhamento dos acontecimentos nesse tipo de narrativa é algo do qual o leitor não

pode fugir e que, por outro lado, já lhe é — de alguma forma — familiar. Essa

familiaridade de certo modo o atrai, pois o faz mergulhar em um universo repleto de

mistérios, de incertezas e de questionamentos que, na verdade, é representativo de sua

própria psique. Com relação a essa afirmação, repare no que Freud comenta quando da

análise do ―Homem da Areia‖, de E. T. A. Hoffmann:

Curiosamente, porém, ainda que a história do Homem da Areia aborde o

despertar de um medo da primitiva infância, a ideia de uma ―boneca viva‖

não provoca absolutamente o medo; as crianças não temem que as suas

bonecas adquiram vida, podem até desejá-lo. A fonte de sentimento de

estranheza não seria, nesse caso, portanto, um medo infantil; mas, antes, seria

um desejo ou até mesmo simplesmente uma crença infantil (ibidem, p. 291 -

292).

Nota-se que, nesse caso, a sensação de estranhamento deve-se à realização

absurda — e insólita — de uma vontade inerente à criança. O medo provocado por um

evento desse tipo tem suas raízes em outro momento. Percebe-se que a realização

sombria de um desejo de criança faz com que o destinatário final do texto busque

inconscientemente em sua mente os mesmos temores que o assolavam na infância,

quando ainda não diferenciava com clareza o mundo real do da fantasia.

1.1. O insólito e a Idade Média

Voltando à questão de uma possível gênese da literatura fantástica, pode-se

dizer que um momento singular das narrativas com temática insólita desenvolveu-se no

período da Idade Média. Esse período da história do homem provocou e provoca

reações diversas — quando analisado mais de perto — devido ao teor contraditório — e

por que não, paradoxal? — que o envolve. Se de um lado, podia-se acreditar em um

paraíso na terra,

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A natureza é extraordinariamente generosa: encontra-se nesse reino todo o

bestiário real e fantástico da Idade Média, inclusive grifos, cinocéfalos, fênix

e ciclopes. Abundância, ar perfumado, flora deliciosa: tudo contribui para

deixar os habitantes felizes (MINOIS, 2011, p. 115);

por outro, sabe-se que esse foi um dos períodos mais violentos e opressores da história

da humanidade. Desde as guerras e disputas territoriais e religiosas até ao tratamento

dado a doenças e ao homem de maneira geral, percebe-se que na Idade Média a criação

de um mundo literariamente imaginário era uma fuga e também uma forma de violação

de preceitos, valores e regras impostos pela nobreza e pelo clero. Por isso, não seria

errado considerar que muitas narrativas insólitas originaram-se no contexto religioso da

era medieval. O acadêmico estruturalista russo Vladimir Propp sugere algo parecido

quando, no artigo “As transformações dos Contos Fantásticos‖, afirma que

O conto (fantástico) vem de antigas religiões, mas a religião contemporânea

não vem dos contos. Ela não os cria mais, mas modifica seus elementos. Há

também alguns raros casos de uma verdadeira dependência inversa, isto é,

casos em que os elementos da religião advêm do conto. A história da

santificação do milagre de São Jorge com o Dragão pela Igreja ocidental

fornece-nos um exemplo bastante interessante (PROPP, 1979, p. 251).

Não é gratuito que na história da literatura ocidental sejam tão comuns

narrativas com personagens ―desajustados socialmente‖, rotulados como leprosos,

mendigos, ladrões ou loucos: ―Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde

todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade‖ (FOUCAULT,

2008, p. 14). Tais personagens são uma maneira de mostrar a natureza humana em

estado bruto e ―não-livre‖. Todo afronte ou qualquer comportamento que não

comungasse com os ditames pré-estabelecidos por tais formas de poder era duramente

castigado e/ou excluído da sociedade. Nesse sentido, pode-se conjecturar que o

indivíduo louco era banido porque trazia consigo uma verdade incômoda àquele modelo

padronizado de pensar e de se comportar:

a loucura tem (...) uma força primitiva de revelação: revelação de que o

onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma

profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo

às voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites; e

revelação inversa, mas igualmente dolorosa, de que toda a realidade do

mundo será reabsorvida um dia na Imagem fantástica, nesse momento

mediano do ser e do nada que é o delírio da destruição pura (ibidem, p. 27).

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É importante destacar o fato de que a Idade Média pode ser dividida em dois

momentos emblemáticos. O primeiro compreende os séculos V e X; e o segundo, os

séculos XI e XIII. No primeiro caso, nota-se um claro combate às crenças populares e

ao paganismo mundano. Há uma aceitação da incorporação do milagre na vida

cotidiana, atribuído à figura dos santos e/ou novos heróis detentores de poderes

divinos2. No segundo momento, segundo Le Goff, ocorre ―um vivo reflorescimento do

maravilhoso3, em razão de certo relaxamento exercido pelo controle da Igreja, que se

consagra essencialmente à luta contra os hereges‖ (2010, p. 107). Nesse sentido, pode-

se dizer que na Idade Média, as narrativas insólitas eram revestidas de um valor

religioso que as situavam no escaninho dos acontecimentos maravilhosos. No entanto,

de acordo ainda com Le Goff, foi somente no final do século XII e início do século XIII

que ocorreu uma preocupação mais acentuada em diferençar o que tinha proveniência

divina do que era ―diabólico‖, ―discernindo entre o miraculoso de origem divina e o

mágico de natureza diabólica‖ (ibidem, p. 107).

As narrativas insólitas que se reportam à Idade Média estão repletas de

histórias em que seres demoníacos e/ou sobrenaturais colocam-se em franco duelo com

―heróis‖ escolhidos, representando o combate maniqueìsta do bem contra o mal que se

repete desde tempos remotos. Por isso, essas histórias eram, de certa forma, narrativas

transgressoras de uma dada ordem, pois admitiam a existência de seres que afrontavam

a estabilidade e a linearidade do pensamento divino-cristão, colocando em xeque a

própria ideia do que era certo ou errado, do que era bom ou ruim, do que era pecado e

do que não era, do que era divino e do que era humano, do que era cristão e do que era

pagão:

2 A arte figural cristã, a oficial dessa época, substitui a verossimilhança pelo alegorismo, teoria que foi

amplamente divulgada graças a Dante, mas que remonta a Santo Agostinho, São Jerônimo, Beda Escoto é

outro e que oferece quatro sentidos para a interpretação das obras: o literal, o alegórico, o moral e o

anagógico (místico). ECO, Humberto. Obra aberta. São Paulo, 1969, p. 42-43. 3 Maravilhoso é o ―extraordinário‖, o ―insólito‖, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano.

Maravilhoso é o que contém a maravilha, ou seja, ―coisas admiráveis‖ (belas ou execráveis, boas ou

horríveis), contrapostas às naturalia (CHIAMPI, 1980, p. 48).

Nesse sentido, é importante salientar a definição orientada por Carpentier sobre o tema: ―lo maravilloso

comienza a ser lo de manera inequívoca cuando surge de una inesperada alteración de la realidad (el

milagro), de una revelación privilegiada de la realidad, de una iluminación inhabitual ó singularmente

favorecedora de las inadivertidas riquezas de la realidad, de una ampliación de las escalas y categorías de

la realidad, percebidas con particular intensidad em virtud de una exaltación del espíritu que lo conduce a

un modo de ―estado limite‖ (CARPENTIER, 1968, p. 78 – 81).

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As regras de leituras são homólogas às de um governo autoritário que guia

seus concidadãos em seus atos. A literatura de caráter popular da Idade

Média, entretanto, não está sujeita a esse tipo de alegorismo e muitas vezes

faz dele a paródia (como Aucassin et Nicolette, por exemplo). Assim a

imaginação corre solta. Basta lembrar a obra de Jeronimus Bosch, pintor que

muito herdou do imaginário popular e que é, para nós, um surrealista avant la

lettre (RODRIGUES, 1988, p. 21 – 22).

Ora, como se vê, para Selma Calasans Rodrigues, a narrativa insólita ofereceu

ao indivíduo daquele período a possibilidade de se manifestar em seu próprio tempo,

tocando em temas que normalmente não entrariam no rol das histórias mais lidas.

Imagine-se, por exemplo, como histórias de fantasmas, sobre o retorno de mortos, sobre

a homossexualidade, a troca de identidade entre um homem e uma mulher ou a

existência de vampiros seriam aceitas por uma sociedade ainda tradicional e em sua

maioria seguidora temerosa dos valores cristãos? Tomemos por exemplo os temas do tu:

o incesto, o homossexualismo, o amor a vários, a necrofilia, uma sensualidade

excessiva... Tem-se a impressão de ler uma lista de temas proibidos, estabelecida por

alguma censura (TODOROV, 2008, p. 167).

Portanto, somente na narrativa de ―caráter popular‖ tais temáticas puderam ser

abordadas sem que seus divulgadores sofressem maiores prejuízos dos censores

medievais. Enfim, a Idade Média foi considerada como um momento em que o

misticismo, o mistério e a magia ou eram elementos cristãos ou eram mundanos. Por

isso, para Le Goff, foi somente na passagem do século XIV para o século XV que

ocorreu uma mudança na compreensão estética dos relatos maravilhosos. É a partir do

final do século XV que tais narrativas puderam ser observadas mais como objeto

literário do que como um relato com fundo religioso propriamente dito.

1.2. A narrativa insólita no Brasil

O pensamento antropocêntrico renascentista elegeu a razão como palavra de

ordem, fato este que não colaborou muito com a propagação de narrativas com

temáticas insólitas em território brasileiro. Nos séculos subsequentes à Idade Média,

embora já se tivesse deixado os rigores de uma cultura teocêntrica para trás, ainda havia

certas reminiscências daquele pensamento religioso. Na verdade, foi somente a partir da

metade do século XVIII e início do século XIX que as histórias fantásticas tiveram seu

apogeu e reconhecimento:

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Trata-se de um fato importante. Uma tradição literária inteira foi redescoberta

e recuperada; foram definidos e estudados os mecanismos de operação de um

modo literário que forneceu ao imaginário do século XIX a possibilidade de

representar de maneira viva e eficaz os seus momentos de inquietação,

alienação e laceração, e de deixar essa tradição como legado para a tradição

moderna — como uma das descobertas expressivas mais vitais e persistentes.

(CESERANI, 2006, pp. 7 – 8).

O (re) surgimento — agora com maior intensidade — de narrativas ―realistas

irrealistas4‖ e de certo sentimento de liberdade que predominou no chamado século das

luzes5 fez com que surgisse mais tarde uma infinidade de teóricos que buscaram defini-

las, esquematizá-las e até rotulá-las, sugerindo um arcabouço teórico que ou não levava

em consideração todas as especificidades do texto literário; ou, simplesmente, não

preenchia os vazios deixados por seus antecessores.

Fora do Brasil, escritores como Mary Wollstonecraft Shelley, E. T. A

Hoffmann, Guy de Maupassant, Théophile Gautier, Edgar Alan Poe, William Wymark

Jacobs, Horace Walpole, Henry James e H. G. Wells, Franz Kafka — dentre outros —

produziram narrativas que ainda hoje são citadas como modelo do que veio a ser

chamado de literatura fantástica por muitos estudiosos. Em terras brasileiras, pode-se

dizer que as manifestações desse tipo de narrativa não foram muito representativas.

Entre o século XVIII e XIX, escritores como Aluisio Azevedo, Machado de Assis,

Gastão Cruls, Coelho Neto e Álvares de Azevedo figuraram entre os poucos

representantes que se aventuraram vez ou outra nessa chamada narrativa insólita.

Embora se tenha conhecimento de que os escritores brasileiros pré-modernos e

modernos sempre tiveram maior inclinação para a narrativa mais documental e

―realista6‖, que sondasse as mazelas e as disparidades sociais que se faziam presentes

4 Essa expressão foi utilizada pelo professor Alcmeno Bastos em um artigo intitulado ―Os realismos

irrealistas na literatura brasileira contemporânea‖. Acredita-se que tal terminologia tenha sido escolhida

para que se evitasse uma rotulação limitadora das narrativas de temáticas insólitas produzidas na

contemporaneidade. O arquivo está disponibilizado em www.alcmeno.com 5 Como se sabe, o século XVIII, também chamado século filosófico e época das Luzes, foi por excelência

o século do racionalismo. Um período de fermentação intelectual em que, aos preceitos irracionais ou

supersticiosos da opinião comum, tanto quanto os dogmas indiscutidos e indiscutíveis da Fé, os filósofos contrapunham o seu direito de livre exame de tudo à luz da Razão soberana. Por isso mesmo, podia a

grande Enciclopédia de Diderot e d‘Alembert proclamar que ―o filósofo não admite nada sem prova, não

concorda nunca com as noções falazes; ele estabelece exatamente os limites do certo, do provável e do

duvidoso‖ (PAES, 1985, p. 189). 6Segundo Antonio Candido, a literatura brasileira esteve, por um bom tempo, dedicada à narrativa

documental e ―isto contribuiu para incutir a acentuar a vocação aplicada dos nossos escritores, por vezes,

verdadeiros delegados da realidade junto à literatura. Se não decorreu daí realismo no alto sentido,

decorreu certo imediatismo, que não raro confunde as letras com o padrão jornalístico; uma bateria de

fogo rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginação. Não espanta que os autores

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em quase todo território nacional, no decorrer do século XX, nota-se um número mais

significativo de autores que produziram narrativas que abrangiam o universo fantástico.

Nomes como Lima Barreto, Carlos Drumonnd de Andrade, Monteiro Lobato, Duílio

Gomes, Amândio Sobral, Berilo Neves, Mário de Andrade, Orígenes Lessa, João

Guimarães Rosa, Rubens Figueiredo, Victor Giudice, José J. Veiga e Murilo Rubião são

representantes nas letras nacionais daquele realismo irrealista citado há algumas linhas.

Eles fazem parte de um rol de escritores que fizeram literatura fantástica em algum

momento de suas trajetórias, contrariando em alguns casos o gosto do público leitor em

determinadas épocas. Entretanto, apesar dos nomes elencados, dos autores brasileiros

relacionados anteriormente, acredita-se que Murilo Rubião e José J. Veiga tenham sido

os únicos a se dedicarem exclusivamente à construção de narrativas insólitas.

O mineiro Murilo Rubião — o objetivo desta tese — escreveu (e reescreveu

incansavelmente) apenas trinta e quatro contos que trafegam pelo universo insólito. Se

se pode dizer que existe um fantástico nacional moderno, o nome de Murilo Rubião

encabeça a lista dos autores brasileiros que o realizaram. Jorge Schwartz, na introdução

do livro Murilo Rubião: A poética do Uroboro, afirma que o escritor ―nas nossas letras

inaugura um gênero narrativo cuja temática encontra filiação em Machado de Assis e

em Franz Kafka‖ (p. 01). Embora o escritor só tenha tido conhecimento do autor de

Metamorfose quando já havia escrito e publicado suas primeiras narrativas, pode-se

observar em Murilo Rubião uma veia fantástica que remete àquela realizada fora das

letras nacionais:

Murilo faz figura de inaugurador, entre nós, de uma nova tendência da

literatura fantástica, que rompe os padrões do realismo tradicional e só

encontra antecedentes ou parentesco fora de nosso âmbito literário, com a

obra de Kafka e dos pós-kafkianos. Uma afinidade logo percebida por Álvaro

Lins, que soube lê-lo compreensivamente no momento de sua estreia, embora

Murilo, àquela altura, desconhecesse Kafka (ARRIGUCCI, 2001, p. 145).

Murilo Rubião inaugura uma nova tendência fantástica na literatura brasileira

porque, como já se mencionou anteriormente, não fazia parte da tradição literária no

Brasil o mundo fantasioso, caótico, absurdo, insólito e surreal das narrativas do escritor

mineiro. É verdade que escritores como Cornélio Penna e Aníbal Machado também

tenham se aventurado por tais caminhos. Contudo, segundo Davi Arrigucci Jr., a arte de

Cornélio Penna

brasileiros tenham pouco da gratuidade que dá asas à obra de arte; e, ao contrário, muito da fidelidade

documentária ou sentimental, que vincula à experiência bruta‖ (CANDIDO, 1981, p. 27).

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tem traços marcantes de um remanescente do Simbolismo, que incorpora a

tradição da literatura gótica e cria obras em que o clima de mistério é mais

importante do que a plausibilidade em função do real. Pelo caráter estático,

revela pendor para a composição pictórica, em detrimento do movimento

narrativo, de modo que a força expressiva recai sobre imagens emblemáticas,

de projeção alegórica (ibidem, p. 143 – 144).

E no caso de Aníbal Machado o insólito

não supõe uma quebra da moldura verossímil do realismo. É claramente um

fator poético, de invenção mitopoética, funcionando como pedra de toque de uma verdade oculta sob a aparência do hábito cotidiano, resguardado pelo

senso comum (ibidem, p. 144).

Como é possível perceber nas duas citações, as narrativas dos respectivos

escritores se diferenciam das de Murilo Rubião porque em Murilo — como, aliás, se

tentará mostrar mais adiante — há uma banalização do elemento insólito de tal forma

que o fantástico e o real tornam-se faces de uma mesma moeda. O sentimento de

estranhamento diante de algumas situações nas quais o leitor é colocado é incorporado

tão logo o mesmo chegue à linha ou ao parágrafo seguinte:

É curioso mesmo como, passado o primeiro momento fatal, em que a gente

verifica que o caso é impossível e às vezes se preocupa dois segundos com

um símbolo, uma alegoria escondida, o que é mais curioso é o forte dom de

impor o caso real, o mesmo dom de um Kafka: a gente não se preocupa mais,

e preso pelo reconto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real

(MORAES, 1995, p. 187).

Parece que o ―mundo muriliano é produto da intenção de um autor que busca a

construção harmoniosa dos elementos insólitos no contexto da realidade habitual,

mediante a paralisação da surpresa‖ (2001, p. 146). Essa busca a que Davi Arrigucci Jr.

se refere pode ser identificada quando o leitor mais habilidoso se vê diante de um

verdadeiro xeque-mate. O ―encurralamento‖ a que leitor, personagem e narrador são

submetidos faz com que a escrita de Murilo torne-se tão enigmática como são suas

epígrafes. Não se pode deixar de mencionar também que a situação final em que o leitor

se encontra na leitura dos contos é fruto de uma busca hiperbolicamente incessante de

elaboração da linguagem. Se de um lado há um escritor que deixou uma obra

numericamente pequena — sem, no entanto, desvincular-lhe a qualidade; por outro

percebe-se um intelectual já preocupado desde o início de sua vida como escritor com a

palavra:

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Infelizmente, escrever é para mim a pior das torturas. Uma simples carta,

como esta, me custa sangue, suor e um sacrifício imenso. Arranco, de dentro

de mim, as palavras a poder de força e alicates. Por outro lado, a minha

imaginação é fácil, estranhamente fácil. Construo meus ―casos‖ em poucos

segundos. E levo meses para transformá-los em obras literárias (ibidem, p.

40).

Nas diversas cartas que troca com Mário de Andrade, nota-se um sentimento

bastante intensificado do desejo de laboração do discurso poético. Não se pode afirmar

que tal sentimento fosse fruto de uma pressão imposta por ele mesmo ao escrever ou se

era oriundo das exigências do amigo Mário, que em algumas dessas cartas, cobra maior

desenvoltura e acabamento ao texto:

No ―Mágico‖ a escolha da profissão de funcionário público me parece muito

fácil, pouco sutil, pouco ―inventada‖ e mesmo banal. É uma alusão muito por

demais conhecida. O sarcasmo, a dor-de-corno da vida enfraquece muito,

sem renovar em nada o caso ―funcionário público‖. É humorismo, é antes

graçola em que qualquer Joel Silveira caia (ibidem, p. 33).

Por fim, é esse Murilo Rubião que se tentará estudar mais adiante. O Murilo

que inaugura nas letras nacionais um fantástico moderno e que — diferentemente do

que postulou Todorov e outros que seguiram a linha estruturalista de pensamento —

usou sua insegurança e suas dificuldades com a palavra como ferramentas para tornar

seu produto final uma verdadeira obra de arte. Uma obra de arte tão complexa e singular

que para melhor analisá-la será acrescida à abordagem literária uma abordagem também

filosófica existencialista, seguindo os padrões do que Jean Paul Sartre denominou como

tal. Isso não quer dizer que tudo o que foi considerado por outros estudiosos do assunto

será deixado de lado. Muito pelo contrário. A seguir, procurar-se-á fazer um

mapeamento de alguns autores que estudaram o fantástico e as suas respectivas

abordagens. Contudo, como já se mencionou anteriormente, o viés, o caminho, o norte

que se desejará seguir nesta tese será o enfoque existencialista que se pode — ou não —

perceber nas narrativas de Murilo Rubião.

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2. Teorizando sobre o fantástico

É reconhecidamente inegável que a teoria de Tzvetan Todorov sobre o

fantástico — como gênero textual — é considerada uma das principais referências

relativas ao tema. Todavia, nota-se mesmo em sua teoria a utilização de algumas ideias

levantadas por alguns de seus antecessores. Segundo Remo Ceserani, Todorov

―lembrava as definições dadas pelo filósofo (...) Vladimir Sergeevic Solov‘ëv, pelos

especialistas franceses Castex, Caillois e Vax‖ (CESERANI, 2006, p. 45). Ora, não se

pretende fazer um levantamento dos conceitos desses e de outros estudiosos anteriores a

Todorov, mas esse dado torna-se importante no contexto da tese para demonstrar que os

estudos literários se completam e, mesmo aqueles que em algum ponto divergem de

uma determinada acepção crítico-literária, servem como referência opositiva à análise,

enriquecendo o trabalho e as discussões. Por esse motivo, acredita-se que ter como

ponto de partida aquilo que Todorov procurou definir como fantástico é satisfatório.

2.1. O fantástico como gênero textual

No livro As estruturas narrativas, Todorov apresenta a arquitetura da narrativa

fantástica como algo pensado e elaborado com um único e preciso propósito: provocar a

hesitação no leitor implícito7; uma hesitação sentida também pelo personagem que

vivencia a experiência insólita. Ele considera que esse sentimento — levado até ao fim

da história — é o elemento fundamental para que o fantástico se instaure:

Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das

personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma

explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos

evocados. Em seguida, essa hesitação deve ser igualmente sentida por uma personagem; desse modo, o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma

personagem e ao mesmo tempo a hesitação se acha representada e se torna

um dos temas da obra... (TODOROV, 1979, p. 151-152)

7 Wolfgang Iser, no livro O Ato de Leitura, considera que o leitor implìcito ―encarna todas as

predisposições necessárias para que a obra literária exerça seu efeito — predisposições fornecidas, não

por uma realidade empírica exterior, mas pelo próprio texto. Consequentemente, as raízes do leitor

implícito como conceito são implantadas firmemente na estrutura do texto; trata-se de uma construção e

não é em absoluto identificável com nenhum leitor real‖ (1976, p. 36).

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É claro que essa definição sofreu — e ainda tem sofrido — alguns ataques,

pois acreditar que um único comportamento tão subjetivo e, portanto, tão abstratamente

emotivo seja o responsável pela concretização de uma estrutura tão complexa quanto à

fantástica, poderia deixar de fora textos que não se adequassem aos modelos

todorovianos. Nesse sentido, Ceserani afirma que a definição de Todorov ―foi acusada

de ser abstrata demais, ou restritiva demais, ou ainda simples demais‖ (op. cit. p. 49).

Além da hesitação, o estruturalista acredita que há outros indícios espalhados

na narrativa que direcionam o discurso para o fantástico. Para ele, um narrador

autodiegético8, um leitor implícito, os modalizadores e o uso reiterado do imperfeito e

de certos sinais de pontuação são elementos que associados à hesitação configuram o

fantástico.

Certamente, essa teoria não seria a mais indicada para promover uma análise

dos contos de Murilo Rubião, da mesma forma como não fora para os de Kafka. Há dois

motivos básicos que o próprio Todorov deixa transparecer nas entrelinhas. O primeiro é

porque de acordo com ele ―o fantástico teve uma vida relativamente breve. Apareceu de

maneira sistemática no fim do século XVIII‖ (1979, p. 164), o que excluiria por

completo as chances de o escritor mineiro poder ser considerado um representante

daquela literatura; e o segundo motivo, relativo à narrativa kafkaniana e por extensão à

de Murilo Rubião, é porque

Se abordarmos esta narrativa com as categorias anteriormente elaboradas,

vemos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais.

(...), o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações

indiretas, como o ponto mais alto de uma gradação: ele está contido em toda

primeira fase. (...) Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil

(TODOROV, 2008, op. cit., p. 179).

À maneira de um Kafka, nas narrativas de Murilo nota-se que os elementos

enumerados por Todorov não se fazem integralmente presentes na teia textual. Nele, os

acontecimentos estranhos não surgem como uma forma de romper a noção de equilíbrio

inicial para em seguida restaurar um equilíbrio outro. Eles surgem e são banalizados na

própria narrativa a tal ponto que o fantástico torna-se algo pertencente àquela realidade;

o real torna-se a exceção, o incomum, o inabitual. Nas palavras de Jean Paul Sartre, ―o

8 ―Nas histórias fantásticas o narrador diz habitualmente ―eu‖: é um fato empìrico que se pode verificar

facilmente‖ (ibidem, p. 90) e ―o narrador representado convém, pois, perfeitamente ao fantástico. Ele é

preferível à simples personagem, que pode facilmente mentir‖ (ibidem, p. 91).

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homem ―normal‖ é precisamente o ser fantástico; o fantástico torna-se a regra, não a

exceção‖ (2005, p. 181).

Outro nome que figura no rol dos estudos fantásticos é o de Filipe Furtado. O

autor português constrói uma base teórica sobre a narrativa fantástica que, em alguns

momentos, corrobora as ideias de Todorov e, em outros, se distancia por demais das

ideias de seu antecessor.

No livro A construção do fantástico na narrativa, no qual o fantástico é

estudado como gênero9, Furtado primeiramente questiona a importância dada aos

chamados ―reflexos emocionais que a obra possa vir provocar no destinatário da

enunciação‖ (FURTADO, 1980, p. 10), colocando em segundo plano o papel do

receptor do enunciado. Embora o autor reconheça a importância dos estudos

todorovianos, já no início do primeiro capítulo observa-se que ele rejeita a ideia de que

o fantástico está diretamente relacionado com o sentimento de hesitação. Para Furtado,

o fantástico é construído a partir do momento em que se instaura a ambiguidade na

narrativa. E esta, por sua vez, surge quando fenômenos metaempíricos abalam a noção

de realidade que se construiu no decorrer dela, introduzindo novas [ou outras]

possibilidades.

Outro aspecto importante para Furtado é o fato de que no fantástico sempre

haverá uma luta entre seres ―naturais bons‖ e ―seres extranaturais‖ maus. Segundo o

autor, ―só o sobrenatural negativo convém à construção do Fantástico, pois só através

dele se realiza inteiramente o mundo alucinante cuja confrontação com um sistema de

natureza de aparência normal a narrativa do gênero tem de encenar‖ (ibidem, p. 22). No

entanto, por outro lado,

o sobrenatural religioso positivo não pode assumir uma posição dominante no

conjunto da temática de qualquer narrativa fantástica, pois a fenomenologia

metaempírica propícia ao gênero deverá ser completamente alheia à

experiência física ou psíquica do destinatário da enunciação... (ibidem, p. 25)

Por isso, o elemento insólito é comum às narrativas fantásticas e o embate entre

os fenômenos empíricos e os metaempíricos ou entre o sobrenatural positivo e o

negativo — protagonizado sempre por forças maléficas — representa, na narrativa, a

9 Embora o autor tenha considerado o fantástico como um gênero inicialmente, já no referido livro deixa

transparecer a ideia de que o fantástico também pode ser visto como um modo discursivo, quando cita no

desenrolar de seu estudo termos como ―discurso do metaempìrico‖, ―processos discursivos‖,

―modalidades organizadas‖, etc. Finalmente, essa outra acepção do autor fica melhor evidenciada no E-

Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, disponibilizado em

http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=listalpha&alpha=f&Itemid=2.

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antinomia temática do discurso fantástico. Resultante dessa tensão entre tal embate

instaura-se a ambiguidade que passa a estar representada na narrativa. Para Filipe

Furtado, ela só existe no fantástico:

É, portanto, a criação e, sobretudo, a permanência da ambiguidade ao longo

da narrativa que principalmente distingue o fantástico dos dois gêneros que

lhe são contíguos, até porque, noutros planos, as divergências entre eles são

quase sempre bem menos profundas (ibidem, p. 40).

Por fim, além desses pontos, Furtado acredita que o narrador homodiegético é

o que melhor se adéqua à narrativa fantástica; e, ao invés de um leitor implícito, há um

narratário10

. Todos esses elementos são emoldurados pela influência que o espaço na

narrativa exerce sobre as personagens. Para ele, o espaço é híbrido. Normalmente, a

narrativa inicia em um ambiente normal e termina em um espaço perturbador ou

alterado ou, ainda, transformado negativamente pelas forças sobrenaturais negativas:

torna-se óbvio que um ambiente demasiado anormal ou delirante, por não

contrastar convenientemente com a manifestação sobrenatural, impede o

desenvolvimento da ambiguidade e tende a anular a verossimilhança da

intriga (ibidem, p. 125).

Essa questão é bastante representativa, pois interfere até mesmo na noção de

equilíbrio representado na narrativa. É através da alteração entre um e outro ambiente

que se amenizam ou se enfatizam as ocorrências insólitas. Se esse hibridismo não

existir, a narrativa estará submersa em um universo normal e linear ou caótico e

alucinado; portanto, estranho. Filipe Furtado afirma que

Esse emprego alternado de cenários permite reequilibrar a construção

fantástica sempre que se torne necessário corrigir o caráter demasiado

insólito ou demasiado quotidiano que acontecimentos ou personagens podem

assumir, conferindo credibilidade à ação e mantendo sempre o grau

conveniente de indecisão nas eventuais leituras a que o texto seja submetido (ibidem, p. 125-126).

É claro que, quando se fala em Murilo Rubião, nota-se que tais ideias ora se

adéquam, ora são impraticáveis. Um dos traços mais comuns às narrativas de Murilo é

justamente o caos controlado, o insólito absurdo. Nesse sentido, o cenário não surge

diante do leitor em pleno equilíbrio e depois sofre abruptamente uma inversão,

10 Termo e conceito correlato do termo e conceito de narrador, o narratário constitui presentemente uma

figura de contornos bem definidos no domínio da narratologia. (...); o narratário é uma entidade fictícia,

um ―ser de papel‖ (REIS, 2002, p. 267).

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instaurando-se um desequilíbrio perturbador. O que incomoda é justamente o fato de o

insólito se manifestar imediatamente ao leitor nas primeiras linhas do conto como se

não o fosse. Ora, no decorrer da leitura o leitor é levado, em pleno voo às cegas, a trazer

consigo a certeza de estar em um ambiente absurdo — muitas vezes habitado por seres

incomuns, mas plausíveis por sua dimensão humanizada. Veja que em Murilo não se

fala em poética da incerteza, em ambiguidade ou em hesitação. O fantástico nele surge

na certeza de se estar a caminhar por um universo insólito, mas ao mesmo tempo

aceitável. Tecendo um comentário sobre a narrativa de Murilo Rubião e de José J.

Veiga, Alfredo Bosi, no livro O conto brasileiro contemporâneo, diz que

O fantástico irrompe, nestes, como o intruso no ritmo cotidiano; e o evento

novo, que poderia soar apenas imprevisto e aleatório, passa a exercer, na

estrutura profunda da trama, a função de revelador de um processo inexorável

na vida de um grupo (―A Usina atrás do morro‖, de Jose J. Veiga) ou na vida

de um homem (―A Flor de Vidro‖, de Murilo Rubião). (2006, p. 14).

2.2. A narrativa fantástica: novas contribuições

As ideias defendidas por Todorov e por Furtado ajudaram a perceber o

fantástico em algumas especificidades. No entanto, alguns autores consideraram o

fantástico sob outro olhar. Nesse rol, estão, por exemplo, Remo Ceserani, Irlemar

Chiampi e Irène Bessière, que acreditam que não se deve falar em gênero fantástico,

mas sim em ―modo fantástico‖ (CESERANI, 2006, p. 67). Dessa forma, eles amenizam

as questões que tanto Todorov quanto Furtado não resolveram inicialmente, apesar de

terem contribuído com os estudos literários.

Contrariamente ao que se tem percebido na terminologia empregada pelos

estudiosos elencados até o presente momento, Remo Ceserani, no livro intitulado “O

fantástico”, utiliza o termo ―modo‖ para referir-se ao fantástico. O autor não considera

esse tipo de narrativa como um gênero, mas sim como um modo literário. Segundo ele,

o fantástico surge de preferência considerado não como gênero, mas como

―modo‖ literário, que teve raìzes históricas precisas e se situou

historicamente em alguns gêneros e subgêneros, mas que pôde ser utilizado (...) em obras pertencentes a gêneros muito diversos (ibidem, p. 12).

O modo a que ele se refere pode ser encontrado com certa facilidade nos

diversos gêneros literários. Para ele, ―em obras de cunho mimético-realista, aventuresco,

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patético-sentimental, fabuloso, cômico-carnavalesco, entre outros (ibidem, p. 12)‖ não é

difícil encontrar alguns elementos que também se fazem presente na narrativa fantástica.

Segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, no livro Teoria da Literatura,

Os modos literários representam, por um lado a nível da forma de expressão,

possibilidades ou virtualidades transtemporais da enunciação e do discurso

(...) e, por outra parte, a nível da forma do conteúdo, representam

configurações semântico-pragmáticas constantes que promanam de atitudes substancialmente invariáveis do homem perante o universo, perante a vida e

perante a si próprio. (...) Os modos literários, na sua invariância, articulam-se

polimorficamente com os textos literários concretos e individualizados pela

mediação dos gêneros literários (1984, p. 389 – 390).

Como é possível perceber na definição acima, nota-se que o texto literário é

capaz de proporcionar a criação de possibilidades inimagináveis, incomuns ou absurdas;

através dele o indivíduo pode ter contato com ―realidades‖ incômodas e, às vezes,

insolitamente estranhas. No âmbito da diegese, o modo fantástico cria novas e

inquietantes realidades nas quais o leitor se vê diante da possibilidade de experimentar

temas e situações que, segundo as convenções do universo empírico, são impossíveis,

irreais ou sobrenaturais. É nesse sentido que se pode deduzir a significação dada à

expressão ―efeito fantástico‖ (p. 65). Ao entrar em contato com esse universo, o leitor

percebe esse efeito no ato da leitura.

Ceserani considera, ainda, que o modo fantástico também elege a primeira

pessoa como um dos ―procedimentos narrativos‖ mais importantes (ibidem, p. 68); e, no

tocante à linguagem, o autor diz que ela não é transitiva nem intransitiva. Para ele, há

um terceiro caminho: ―o das potencialidades criativas da linguagem‖ (ibidem, p. 70).

Portanto, as palavras são capazes de criar uma nova e diversa realidade que não estaria

diretamente subordinada a um referente extratextual, ou seja, o texto configura uma

realidade não mimética e se volta para si mesmo, podendo ou não ter como seu referente

um universo do lado de fora dele.

Embora enumere dez procedimentos narrativos e retóricos e elenque oito

sistemas temáticos recorrentes no modo fantástico, Ceserani chama a atenção para o

fato de não haver procedimentos nem temas isoladamente considerados próprios de uma

ou de outra modalidade literária específica. Dessa forma, ele elimina também as

estratégias de construção do gênero segundo a conceituação todoroviana. Para ele, o que

caracteriza e caracterizou o fantástico ―foi uma particular combinação, e um particular

emprego, de estratégias retóricas e narrativas, artifìcios formais e núcleos temáticos‖

(ibidem, p. 67). Esses elementos — que não são exclusivos do fantástico — surgem em

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um dado momento da narrativa como mecanismo de abertura ou falseamento da própria

noção de realidade, introduzindo-a em um universo em que a racionalidade é ameaçada

pela presença de seres que refletem estrategicamente as transformações por que passa o

homem. Seguindo esse viés, Irène Bessière considera que

El relato fantástico utiliza los marcos sociológicos y las formas del

entendimento que definen los dominios de lo natural e lo sobrenatural, (...)

para organizar la confrontación de los elementos de una civilización relativos

a los fenómenos que escapan a la economia de lo real y de lo surreal, cuya

concepción varía según lás épocas (BESSIÉRE, 2009, p. 85).

Nota-se que o discurso fantástico utiliza-se de elementos que de alguma forma

estão em confrontação com o universo natural. Com ele, o escritor cria uma narrativa

que acena não com novas verdades, mas sim com impossibilidades possíveis, dado o

teor muitas vezes paradoxal dos textos fantásticos. Ratificando os dizeres de Bessière,

Remo Ceserani diz que o modo fantástico ―serviu (...) para alargar as áreas da

―realidade‖ humana interior e exterior que podem ser representadas pela linguagem e

pela literatura e, ainda mais, para colocar em discussão as relações que se constituem,

em cada época histórica‖ (2006, op. cit., p. 68). Ainda de acordo com ela, esse é um

modo discursivo que, pelo fato de lidar com uma temática inquietante e perturbadora —

e por isso mesmo, instigante de investigação — recupera e resgata no leitor — e nesse

caso fala-se no leitor de carne e osso — o gosto por ouvir e contar histórias de aventuras

nas quais o universo sombrio, sobrenatural ou terrorífico deixa de ser algo distante.

O modo fantástico faz-se presente tão logo a ocorrência insólita manifesta-se

na narrativa. Essa manifestação é perceptível através de um trabalho minucioso e

preciso de montagem de um quebra-cabeça — que é próprio do discurso literário —

com a finalidade de construção de um universo particular e absurdo:

El relato fantástico es su propio motor, como todo relato literário; la

descripción semántica no debe asimilarlo ni a testimonios o a meditaciones

sobre los hechos extranaturales, ni al discurso del subconsciente: está

dominado interiormente por una dialéctica de constituición propia del

proyecto creador del autor (op. cit., p. 85).

O elemento insólito torna-se tão ou mais atraente do que essa outra realidade

devido ao modo como o discurso foi estrategicamente montado para provocar tal

comportamento no leitor. Por isso, ainda segundo Bessière, o fantástico recupera a

verdadeira função do imaginário: ―a de difundir a prática e o gosto pela estranheza, de

restabelecer a produção do insólito e de fazê-la passar por uma atividade normal‖ (2009,

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p. 29), sem, no entanto, deixar de enunciar o fato de que se trata de uma história de

ficção e que, por isso mesmo, o leitor encontra-se à mercê da vontade do criador

daquele ―novo‖ mundo.

Irlemar Chiampi, no livro O Realismo Maravilhoso, vai um pouco mais além

nessa questão, pois, para ela, o gosto pelas narrativas insólitas está diretamente

associado ao sentimento de medo provocado no leitor por aquilo que ela denominou de

―inquietação fìsica‖ (1980, p. 53). Segundo a autora,

O ponto chave para a definição do fantástico é dado pelo princípio

psicológico que lhe garante a percepção do estético; a fantasticidade é,

fundamentalmente, um modo de produzir no leitor uma inquietação física

(dúvida). (...) O medo é entendido aqui em acepção intratextual, ou seja, como um efeito discursivo (um modo de...) elaborado pelo narrador, a partir

de um acontecimento de duplo referencial (natural e sobrenatural) (1980, p.

53).

Subentende-se que Irlermar Chiampi, inicialmente, também considerou o

fantástico como a poética da incerteza. No entanto, embora ela mesma tenha postulado

tal possibilidade, a autora entende que ―a simplicidade dessa fórmula não pretende

escamotear as dificuldades de definição de um gênero transcultural e trans-histórico‖ (p.

53) como é o fantástico. Acredita-se que o ponto principal a que a autora se refere é o

fato de ela considerar o medo como um efeito discursivo próprio daquela narrativa. Ele

aparece encenado no próprio texto. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que ele se faz

presente como uma das estratégias que o escritor constrói para alcançar um determinado

fim: o fantástico como modo literário.

Ana Gonzalez Salvador, no livro Continuidad de lo Fantástico: por una teoria

de la literatura insólita, apresenta uma concepção diferenciada. Para ela, o fantástico

não é gênero e, tampouco, um modo literário. A autora entende por fantástico ―una

produción determinada de lo imaginário que, por su relación com las Artes (pintura,

cine, literatura) entra en el campo de categoria estética‖ (1980, p. 27). Para ela, ―como

el pintor que crea la ilusión de un volumen en una superfície plana gracías a la

perspectiva, también el escritor logra producir una ilusión referencial‖ (p. 89). É,

portanto, uma forma de expressão subjetiva do imaginário de uma dada época que pode

ser vista como tentativa não de representar a realidade empírica, mas de criar uma

possibilidade ilusória da realidade, baseando-se no e transformando o familiar em algo

inesperado, insólito ou absurdo. Sendo assim, o efeito estético do texto é sugerido para

provocar prazer no leitor e não o medo. Da mesma forma que um apreciador de

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incríveis pinturas sente-se agraciado diante de uma belíssima tela, o leitor sentir-se-á

depois da leitura de uma boa narrativa fantástica.

Para Ana Gonzales, ―La diferencia introducida por la literatura fantástica reside

en el nível del contenido que, según las características observadas, expressa una relación

no mimética com lo que existe en una lucha entre lo que es y lo que no es o no puede

ser‖ (p. 33). Segundo esse prisma, ―lo fantástico será una creación de la imaginación,

irreal, falsa e irracional‖ (p. 32). O universo representado na narrativa não é uma

representação daquele que o leitor conhece — e nem tem obrigação ou pretensão de sê-

lo —, pois a realidade construída pela leitura pode ser apenas um fragmento de uma

totalidade impossível de abarcar de uma só vez, devido ao próprio processo de leitura.

Nesse sentido, a narrativa insólita tende a expressar uma pseudonecessidade de ―abarcar

la realidad em su totalidad‖ (p. 34). Na impossibilidade de fazê-lo, o discurso fantástico

volta-se para si mesmo, levando o leitor a mergulhar muitas vezes em um texto cujo

referente11

intencionalmente se perdeu ou não se constituiu. Essa característica do conto

fantástico cria no leitor o que Ana Gonzalez denominou de ―vacio lógico‖. Em outras

palavras, a aparente falta de sentido dos acontecimentos elencados na narrativa

fantástica, na verdade, no contexto no qual estão inseridos, é uma forma de

representação de um universo próprio, incomum e absurdo que converge para uma

realidade inesperada, pois ―estos relatos admitem pues una lectura literal y no

referencial y nos recuerdan que la realidad del lector no debe proyectarse em la de la

ficción‖ (p. 63). Como se verá mais adiante, no caso de Murilo Rubião há algumas

situações que não se adéquam às narrativas do escritor mineiro. No entanto, no

momento propício tais situações serão apontadas.

A autora, assim como Todorov, considera que ―el cuento parece ser el modo de

enunciación ideal para lo fantástico‖ (p. 43). Ela acredita que os relatos curtos tendem a

manter a tensão criada pelo discurso literário no tempo necessário para a constituição do

fantástico. No entanto, em alguns momentos, algumas ideias da autora também remetem

ao existencialismo sartreano, pois, segundo ela, assim como as artes representativas, o

discurso fantástico é construído também com o intuito de levar o homem a expressar

sua condição de estar no mundo. Ratificando esse pensamento, Ana Gonzalez considera

que o conto fantástico realiza ―el eterno deseo humano, capital y siempre parcialmente

11 Para Ana Gonzalez, ―se llama referente a lo que el signo linguìstico remite en la realidad extre-

linguistica y no debe ser confundido con un dado inmediato de la realidad. (...) una palabra o un discurso

pueden referirse a una noción, un objeto o una situación inexistentes‖ (p. 64).

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frustrado, de expressar lo que es‖ (p. 29). De certa forma, Sartre sugere com a teoria

existencialista que o único ser realmente fantástico na modernidade é o próprio homem

com suas questões, daí o caráter essencialmente humano dos personagens que compõem

o discurso ficcional fantástico do século XX.

No livro O insólito em Guimarães Rosa e Borges, Lenira Marques Covizzi —

outra estudiosa do tema — salienta a ideia de que a narrativa fantástica moderna encena

um mundo em crise, uma ―crise de valores porque a realidade convencionada, seus

conceitos e representações não são mais aceitos sem dúvida‖ (1978, p. 27). Esse

sentimento é responsável pela instauração da ―exceção no cotidiano‖ (p. 25) e pela

sensação de um alto grau de estranheza na literatura. Embora o século XX tenha sido

marcado pelas grandes ―conquistas‖ tecnológicas, nota-se que o cidadão é bombardeado

por uma gama de situações diárias que o frustram ou o deixam impossibilitado de

solucionar questões que vão além do universo táctil, perceptível e cognoscível. Segundo

a autora, é justamente nesse estado de crise e caos que a literatura lançará mão do

imaginário, do insólito: ―nesse quadro, a presença da palavra crise era inevitável. E um

mundo em crise é um mundo não sólito, tanto no plano sociológico-psicológico, quanto

no da expressão artìstica‖ (p. 26). Ora, considerando essa nova roupagem do momento

social, histórico, cultural e artístico, a literatura insólita surge como uma das formas de

expressar um universo imaginário cultivado e inflado por uma postura do homem frente

às novas percepções que possui de sua existência e à realidade. Nesse sentido, pode-se

aventar que essa forma de perceber a insurgência do insólito na literatura do século XX

alia-se de certa forma à teoria de Sartre, uma vez que, para o filósofo, o fantástico hoje

tende para a sondagem dos aspectos existenciais do homem moderno; e como a própria

autora considera, nessa nova literatura insólita ―nota-se a plataforma do pensamento

existencialista como princìpio narrativo‖ (p. 54).

Lenira considera que a literatura insólita moderna possui uma peculiaridade

que é própria do momento atual: a literatura tem deixado de ser apenas uma forma

documental da realidade. Aliada ao elemento estranho predominante na narrativa

insólita, percebe-se uma linguagem que critica o próprio fazer poético. O discurso

fantástico volta-se para si numa espécie de metalinguagem, construindo, de um modo

singular, uma referencialidade paradoxal, ou seja, uma que não aponta para o lado de

fora do texto, mas para a própria linguagem que o constitui. Isso ocorre porque ele ―não

se volta mais especificamente para o referente, para o desenvolvimento de uma ação ou

problema‖ (p. 29). Nesse sentido, o insólito surge também como um discurso que reflete

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os paradoxos das convenções. Por isso a autora considera que a estranheza própria do

insólito ―existe num novo nível porque desborda aquilo que era considerado seu limite –

a pura ficção – para exercer uma função crìtica‖ (p. 27). É claro que não se deve

entender o termo ―crìtica‖ com uma conotação panfletária, pois para Covizzi

os elementos do mundo em crise são reelaborados ficcionalmente, resultando

em utopias, em estruturações de sociedades com base em mitos seculares, em

grande dose de ironia onde fica implícita a sua crítica à realidade

transfigurada (p. 57).

Nota-se que, segundo a autora, o discurso insólito traz consigo uma realidade

utópica e transformada. E é justamente essa nova realidade que configura a crítica a que

ela se refere. Ora, a reelaboração desse mundo caótico segue os padrões de uma

narrativa absurda e incômoda que, por sua vez, converge para um discurso literário com

elevado grau de estranheza, buscando representar a realidade transfigurada em algo

muitas vezes irreconhecível através de uma linguagem voltada para si mesma enquanto

forma emblemática do fazer poético. É nesse sentido que Lenira Marques Covizzi

reconhece a metalinguagem no relato fantástico. Para ela, a linguagem assume tal

dimensão ao representar um universo caótico, colocado em relação de absurdidade com

a própria noção de realidade do leitor. Sendo assim, o relato literário absurdo é um

espelho do universo que circunda aquela narrativa e, por isso, é uma crítica a si mesmo.

No livro A ameaça do fantástico: aproximações teóricas, há momentos em que

David Roas considera o fantástico como um gênero: ―a literatura fantástica é o único

gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural‖ (2014, p. 31),

―precisamos colocar a história narrada em contato com o âmbito do real extratextual

para determinar se uma narrativa pertence ao gênero‖ (p. 45), ―a primeira manifestação

literária do gênero fantástico foi o romance gótico inglês‖ (p. 48) e ―A literatura

fantástica torna-se, assim, um gênero profundamente subversivo‖ (p. 56); e em outros

momentos, o autor entende que o fantástico pode ser o produto de um trabalho intenso

com a linguagem e que, portanto, deveria ser interpretado como um modo discursivo

que busca construir o efeito de uma realidade possível: ―a condição indispensável para

que se produza o efeito fantástico é a presença de um fenômeno sobrenatural‖ (p. 30),

―poderìamos pensar o fantástico como uma espécie de hiper-realismo‖ (p. 53), ―o

fantástico é um modo narrativo que provém do código realista‖ (p. 54), ―a realidade é

vista como uma composição de construtos tão ficcionais quanto a própria literatura‖ (p.

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87) e ―O discurso fantástico é, como alerta Roberto Reis, um discurso em relação

intertextual constante com esse outro discurso que é a realidade‖ (p. 121).

Embora trabalhe com as possibilidades elencadas no parágrafo anterior, é

visível nos estudos de David Roas uma importante contribuição para o entendimento do

fantástico na atualidade. Trafegando pelos dois caminhos – o do gênero e o do modo ou

discurso literário – ele oferece uma visão que une as contribuições de pesquisadores

mais tradicionais com outros mais contemporâneos.

Segundo o autor, o fantástico necessita do elemento sobrenatural instaurado em

um espaço semelhante àquele em que está o leitor. O surgimento desse elemento

transformará a noção de estabilidade do mundo real em algo incômodo e\ou perturbador

e instaurará o fantástico, provocando questionamentos ou dúvidas relativas àquela

realidade, concebida como uma nova possibilidade no âmbito diegético. É claro que

partindo desse pressuposto três pontos importantes devem ser observados. O primeiro

deles é que o termo sobrenatural não se refere somente a histórias de fantasmas ou a

coisas desse tipo. Na verdade, sobrenatural é tudo aquilo que ―transgride as leis que

organizam o mundo real‖ (ibidem, p. 31). Qualquer acontecimento insólito que surge na

narrativa, perturbando o equilíbrio e a estabilidade do que o leitor considera como real

ou que esteja além de uma ideia de possível convencionado, poderá ser considerado

como tal. O segundo ponto que merece destaque está relacionado ao conceito de

realidade. Para o autor, a realidade do texto literário fantástico é ―uma construção

fictìcia, uma simples invenção‖ (p. 69) que não tem necessariamente a intenção de

representar ou reproduzir o real extraliterário, pois ―no mundo pós-moderno não há

realidade, e sim simulacro‖ (p. 88). É por isso que David Roas considera a

verossimilhança como uma ―necessidade construtiva necessária para o desenvolvimento

satisfatório da narrativa‖ (p. 52). Nesse sentido, o texto dialoga com o leitor, levando-o

a conferir, nesta outra realidade, algo que remeta a dele. A constatação da proximidade

ou do distanciamento gera o sentimento de perturbação diante da narrativa. Dessa

forma, chega-se finalmente ao terceiro ponto. Se se pensar no sobrenatural e numa

simulação de realidade, notar-se-á a não referencialidade da narrativa fantástica.

Considerando que o ―fantástico supõe, portanto, o desajuste entre o referencial literário

e o linguìstico‖ (p. 56), o leitor terá diante de si uma ação ambientada em um espaço

que remete a algo semelhante ou muito próximo ao seu, mas que na verdade é apenas

uma construção imaginária, um simulacro. Acredita-se que o incômodo ou a inquietude

do leitor diante desse tipo de narrativa surja justamente pelo fato de a mesma – embora

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possa ser considerada uma ―realidade virtual‖ –, às vezes, se aproximar do mundo

socialmente convencionado por ele. Por isso, para David Roas,

a narrativa pós-moderna rejeita o contrato mimético (cujo ponto de

referência é a realidade) e se manifesta como uma entidade

autossuficiente que não requer a confirmação de um mundo exterior (―real‖) para existir e funcionar. (...)

A obra literária é contemplada então como um experimento verbal

sem nenhuma relação com a realidade exterior ao universo linguístico (p. 88).

Nota-se nas palavras de Roas um aproveitamento do pensamento de Antonio

Candido quando este discorre sobre o real na literatura. Para ele, ―não há literatura sem

fuga ao real‖ (CANDIDO, 1981, p. 27). Essa fuga faz que o escritor seja levado a

construir algo com aparência de real, mas não necessariamente ele, o real. Por isso,

Antônio Candido considera que a realidade representada no texto literário goza de

autonomia e liberdade: ―uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula

que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos,

acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador‖ (p. 34). E, claro, esse ―ato

criador‖ não está, necessariamente, amalgamado a um contrato mimético cuja cláusula

predominante seja a realidade, mas sim, uma possível, outra ou uma pseudorealidade.

Como se pode notar com certa facilidade, a discussão sobre o tema é

aparentemente infindável. Seja como gênero literário, categoria estética, modo

discursivo ou efeito discursivo, o fantástico ainda tem provocado muitos embates

teóricos. Para os leitores desse tipo de texto — que a cada ano que passa se tornam mais

ávidos por novas narrativas e eventos relacionados ao tema — essa discussão também

tem proporcionado a percepção de uma literatura menos comprometida com o real

empírico e que trafega com naturalidade por caminhos completamente opostos à

literatura documental.

Neste subcapítulo, foram citados alguns nomes de pesquisadores e estudiosos

que contribuíram em algum momento e de alguma forma com os estudos sobre o

fantástico na atualidade. Contudo, por outro lado, é sabido que muitos outros poderiam

figurar ao lado dos nomes aqui elencados. No entanto, se faz necessária uma pausa

nessas questões teóricas para que o trabalho siga seu curso normal. Por isso, no próximo

subcapítulo, será feita uma pequena e singela menção à abordagem que Sigmund Freud

faz sobre o estranho e, em seguida, será apresentada a teoria existencialista de Jean Paul

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Sartre. A primeira poderá ser usada para complementar, em alguns momentos, questões

não resolvidas pela análise filosófica. A segunda servirá de base para a análise das

narrativas de Murilo Rubião, quando assim for possível, pois como já fora sinalizado

nas páginas anteriores, os escritos de Murilo Rubião não se encaixam num modelo

teórico tão perfeitamente delineável.

2.3. Sigmund Freud e o Estranho

Antes de tudo, acredita-se que é importante explicar o motivo da escolha de um

artigo que discorre sobre o Estranho – com uma visão psicanalítica do mesmo – em uma

tese que tem como temática principal as narrativas fantásticas de Murilo Rubião,

focadas sob a óptica sartriana.

Uma possível explicação para tal escolha é o fato de o autor apresentar

algumas situações que, mesmo de forma indireta, deixam transparecer a noção que o

psicanalista tinha do discurso poético. Embora em nenhum momento do artigo ele se

refira ao fantástico como gênero, notam-se alguns aspectos interessantes em sua teoria

justamente pelo fato de Freud apresentar outra [e possível] interpretação para a inserção

do insólito nas narrativas fantásticas do Pós-Romantismo. Outro ponto que merece um

pouco de atenção é que Sartre busca uma abordagem do texto literário que não se esgota

apenas na construção deste. Olhando por esse prisma e aceitando tal possibilidade da

função do texto literário, constata-se que literatura, filosofia e psicologia podem

caminhar juntas para contribuírem entre si e para o enriquecimento dos estudos

literários, uma vez que todas essas áreas possuem um mesmo elemento em comum: o

homem.

Inicialmente, a primeira questão bem aprofundada pelo psicanalista está

relacionada à etimologia do termo. Para ele, o vocábulo ―estranho‖ por si só carrega

uma variada gama de possíveis interpretações. De forma sucinta e resumida, o que

parece comum é o fato de esse tema estar relacionado a tudo que é assustador,

amedrontador, insólito, incomum, etc. Sobre tal aspecto, Freud diz que o estranho

Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca

medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num

sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que

desperta o medo em geral (FREUD, 1976, p. 275-276).

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Como se pode observar, essa definição — um tanto quanto simples para a

questão — seria o que um leitor ou pesquisador mediano poderiam aventar sobre o

tema. No entanto, para o psicanalista, o problema da definição do termo vai além do

senso comum. Na verdade, em seu estudo, ele demonstra que o caráter assustador do

elemento ou fato estranho ocorre não pela estranheza de uma dada ocorrência, mas sim

pela familiaridade desta. Segundo ele, ―o estranho é aquela categoria do assustador que

remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar‖ (FREUD, 1976, p. 277). A

professora Nadiá Paulo Ferreira, em um artigo intitulado ―O insólito é o estranho‖,

ratifica a tese de Freud ao comentar que

Fantástico, realismo mágico e terror são os significantes mais usados pela

teoria da literatura para classificar as obras literárias que elegem o estranho

como tema. Essa classificação não entra em contradição com a abordagem

freudiana desde que façamos a seguinte retificação: o estranho se caracteriza

pela transformação do familiar em assustador (FERREIRA, 2009, p. 109).

É claro que, pensando assim, a delimitação do termo segue os parâmetros da

psicanálise e não os da literatura. No entanto, não seria um trabalho por demais árduo a

aplicação dessa postulação teórica a algumas narrativas murilianas, uma vez que o

escritor mineiro constrói — à primeira vista — um universo absurdo; e esse universo é

visto dessa forma porque o leitor o reconhece, muitas vezes, como algo semelhante ao

seu; daí advém o aspecto de familiaridade.

Essa forma de pensar o estranho choca-se com a noção que o senso comum

tem. Para Freud, o estranho não é o desconhecido, mas sim algo que por ser / fazer parte

de um universo adormecido no homem – portanto, conhecido e familiar – pode vir a se

manifestar em um determinado momento de sua vida. Para tanto, basta que esse homem

entre em contato com algo incomum que desperte nele alguma sensação de medo,

terror, horror ou pavor. Sobre essa questão, Freud comenta que,

Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo

afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie,

transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de

coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que

amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho; e deve ser indiferente a

questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou

se trazia algum outro afeto (FREUD, 1976, p. 300).

De certa forma, pensando por esse prisma, notar-se-á uma aproximação entre o

existencialismo sartreano – que considera o homem como o único ser realmente

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fantástico – e a psicanálise freudiana, pois para os dois autores o homem aparece como

elemento central dos acontecimentos. O primeiro dá relevância aos estados de espírito

que assolam o ser moderno; o segundo demonstra que a sensação de estranheza pode

estar relacionada ou a fatores próprios da infância: a castração, a repressão, os medos

próprios daquele período; ou, então, a questões que estejam ligadas às crenças ou a

situações inconscientemente adormecidas:

Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente

aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos

de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas

crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem

de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo

que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do

estranho... (FREUD, 1976, p. 308).

Como se vê, segundo o autor, o estranho pode estar relacionado a alguma

ocorrência passada que, por uma razão qualquer, retorna modificada, subvertida ou não.

Daí advém o caráter familiar, pois, tendo feito parte da existência desse ser em algum

momento de sua vida (ou de seus antepassados), ela apenas retorna ao seu estado de

origem, não como uma situação nova, mas sim, como um despertar inconsciente. Sendo

assim, o conjunto de categorias de coisas estranhas a que se refere o psicanalista é, em

sua maioria, uma manifestação de temores relacionados aos complexos de castração

referentes ao período da infância. Como exemplo singular para demonstração de tais

complexos, ele cita a narrativa de ―O Homem de Areia‖, de E. T. A. Hoffmann, que faz

alusão direta ao medo que a personagem, enquanto criança sente de perder a visão:

Ademais, eu não recomendaria a qualquer oponente da concepção

psicanalítica que escolhesse particularmente essa história do Homem de

Areia, para apoiar o argumento de que a ansiedade em relação aos olhos nada

tem a ver com o complexo de castração. Por que razão, então, colocou

Hoffmann essa ansiedade em relação tão íntima com a morte do pai? E por

que o Homem de Areia aparece sempre como um perturbador do amor?

(ibidem, p. 289 -290).

Outro ponto importante para o psicanalista é a função que o duplo assume no

indivíduo. Tanto na teoria freudiana como na sartriana pode se encontrar referência ao

duplo. Para o psicanalista, ―quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só

pode advir do fato de o duplo ser uma criação que data de um estádio mental muito

primitivo, há muito superado‖ (ibidem, p. 295). Para Freud,

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Originalmente, o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, uma

enérgica negação do poder da morte, como afirma Rank; e, provavelmente, a

alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Essa invenção do duplicar como

defesa contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que

gosta de representar a castração pela duplicação ou multiplicação de um

símbolo genital. (ibidem, p. 293)

Freud acreditava que a divisão duplicada do ser humano em alma e corpo fazia

parte dos temores que certos povos primitivos desenvolveram em relação à morte,

sempre envolvida em uma atmosfera de mistério e medo. É por esse motivo que,

segundo o psicanalista, muitas religiões criaram a alma como um subterfúgio que daria

ao homem a possibilidade de ser eterno.

Em Sartre, essa referência à ocorrência do duplo no discurso ficcional surge

quando o filósofo afirma que ―o fantástico oferece a imagem invertida da união da alma

e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o da alma‖ (SARTRE, 2005, p.

137). Para ele, o duplo é uma das formas que um escritor tem de manifestar a condição

humana em sua mais profunda caracterização.

Há algumas páginas, foi visto que, segundo Todorov, o gênero fantástico é

instaurado na narrativa pela manutenção da hesitação, que se mantém mesmo quando a

última página do livro é fechada. Para Freud,

É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo

pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria

criação. (...) Não se trata aqui, portanto, de uma questão de incerteza

intelectual: sabemos agora que não devemos estar observando o produto da

imaginação de um louco, por trás da qual nós, com a superioridade das

mentes racionais, estamos aptos a detectar a sensata verdade... A teoria da

incerteza intelectual é, assim, incapaz de explicar aquela impressão (FREUD,

1976, p. 288-289).

Ao que parece, o autor considera o sentimento de incerteza irrelevante para a

manutenção da impressão de estranheza. No entanto, ele deixa claro que o leitor ―deve

se curvar à decisão do escritor e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo em

que este se colocar em suas mãos‖ (FREUD, 1976, p. 288). Não há incerteza, mas, por

outro lado, deve haver uma identificação entre o leitor e o universo insólito que lhe é

apresentado.

Como se vê, o psicanalista direciona sua teoria para a psique humana. O

estranho, em sua concepção, faz parte de um sentimento de perplexidade diante do

elemento assustador e insólito. Se esse sentimento conduz o leitor a um universo normal

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ou anormal, verdadeiro ou não-verdadeiro, natural ou sobrenatural, não é tão relevante,

pois a questão que se coloca nesse caso é que essas possibilidades fazem parte da

condição humana em um dado momento de sua existência. Nesse sentido, o sujeito se

vê diante de um vazio que lhe causa estranhamento ou horror, perspectivando sua

própria natureza; e o que se torna estranho nessa natureza é ―o real que (...) emerge das

entranhas do nada para assombrar o homem‖ (FERREIRA, 2009, p. 121).

2.4. O existencialismo de Jean Paul Sartre

Se há um assunto — dentre tantos outros — que não cessa de provocar

discussões e questionamentos nos estudos sobre a literatura insólita contemporânea e de

tempos atrás acerca dos caminhos trilhados por este tipo de narrativa, esse assunto são

os rumos que as histórias fantásticas têm tomado nos últimos anos. É sabido que os

pressupostos teóricos elencados pelos estruturalistas — mais precisamente por Todorov

— como já foi visto, não refletem mais a diversidade de narrativas que ora oscilam entre

um modelo contemporâneo de fantástico e um modelo mais tradicional do gênero. Para

as narrativas insólitas contemporâneas, há estudiosos que acreditam em que o arcabouço

teórico proposto por Jean Paul Sartre sobre o existencialismo seja também mais

pertinente e satisfaça melhor às necessidades e às características dessa literatura pós-

utópica12

. Antes de tudo, porém, é importante levantar alguns pontos emblemáticos

sobre o existencialismo, partindo, primeiramente, de uma breve tentativa de defini-lo.

Segundo o crítico João da Penha:

Tanto quanto uma doutrina filosófica, o existencialismo passou também a ser

identificado como um estilo de vida, uma forma de comportamento, a

designar toda atitude excêntrica, que os meios de comunicação divulgavam com estardalhaço, criando uma autêntica mitologia em torno do movimento e

de seus adeptos (PENHA, 1998, p. 7).

Por esse prisma, nota-se que o termo passou a designar um comportamento

contemplativo daqueles que se desviavam de um padrão consensual e usual. Talvez esse

12 A designação me parece mais precisa que pós-moderno, por dois motivos. Primeiro, porque evita certas

ambiguidades — por exemplo, supor que se trata de um período cujo objetivo é encerrar definitivamente

a modernidade, o pós sugerindo a ruptura radical e não uma redefinição de caminhos. Depois, porque

aponta para a diferença principal entre o imaginário estampado na produção estética, não só a literária, da

primeira metade do século (e um pouco além) daquele que, a partir pelo menos do final dos anos 60,

temos vivenciado. (CARNEIRO, 2005, p. 13).

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seja um dos motivos por que as ideias de Jean Paul Sartre tenham sido veementemente

combatidas. Os comunistas diziam que as ideias de Sartre incitavam as pessoas a

―permanecerem num quietismo de desespero‖ (SARTRE, 1970, p. 233), adotando uma

postura contemplativa, donde provinha uma filosofia burguesa; o filósofo francês Henri

Léfèbvre chegou ao despropósito de considerar as postulações sartrianas de ―metafìsica

da merda‖ (1998, p. 11); Jacques Maritain classificou-as como ―mìstica do inferno‖

(1998, p. 12); no Brasil, o pensador e crítico Tristão de Athayde afirmava: ―Sartre, sem

dúvida, é detestável‖ (1998, p. 12); o escritor russo llya Ehrenburg tinha desprezo pelas

ideias do filósofo e, por último, até mesmo o papa Pio XII afirmava que o

existencialismo ameaçava ―os fundamentos da fé cristã‖ (1998, p. 12). Com relação a

este último, entende-se a ameaça, pois a ideologia pregada por Sartre era a de um

existencialismo ateu: ―Se o homem primeiramente existe, não sendo nada a princìpio, se

a ideia de Deus é eliminada, se a cada instante o homem tem de escolher aquilo que vai

ser, então só a ele cabe criar os valores sob os quais dirigirá sua vida‖ (1998, p. 46); ou,

ainda: ―O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se

Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência (...) este

ser é o homem‖ (SARTRE, 1987, p. 242).

Se de um lado havia os ateus — Sartre, Heidegger e alguns outros filósofos —,

por outro lado, alguns existencialistas possuíam uma formação cristã: Jaspers, Gabriel

Marcel e Kierkegaard. O filósofo Soren Kierkegaard, por exemplo, via o homem como

único ser singular. Em sua teoria, esse ser apresenta três estágios em sua existência: o

estético, o ético e o religioso. Para ele, o homem que permanecia apenas no estágio

estético condenava-se à total depravação, pois viveria toda sua vida entregando-se a

todos os prazeres e sensações; no ético, o homem é um ser livre, mas ainda cerceado

pelos limites culturais impostos pela sociedade — é o estágio em que o indivíduo tem

consciência de suas falhas. Contudo, somente no estágio religioso o homem conseguiria

uma ―relação com o Absoluto‖ (1998, p. 23). Daí advém o motivo de se considerar que

―a fé tudo pode‖ (p. 24) e que ela está acima dos ―princìpios da razão e da moral‖ (p.

24).

Apesar de toda discordância no que diz respeito às opiniões das diversas

camadas da sociedade daquela época, pode-se aventar que o existencialismo alcançou

grande repercussão no período pós-guerra por uma questão de apego a um novo valor: a

liberdade. Segundo o crítico Jack Reynolds,

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Existem obviamente muitas razões para esse fenômeno fundamentalmente

filosófico capturar a atenção do público do modo que o existencialismo o fez,

notadamente, a Segunda Guerra Mundial e a ocupação alemã da França, que

intensificaram as preocupações existenciais com liberdade, responsabilidade

e morte. As manifestações literárias do existencialismo também permitiram

que uma maior quantidade de pessoas possuísse ao menos uma compreensão

provisória acerca do que ele significava (REYNOLDS, 2014, p. 13).

O mundo pós-guerra sentenciou o homem a viver na incerteza de suas

conquistas até então. Por isso, uma filosofia que pregou a morte de Deus — num

cenário caótico e no qual Ele não esteve presente — ou uma revalorização do ―eu‖, em

que o homem agora é a sua própria razão de ser; ele existe, — pois ―a existência

precede à essência‖ (SARTRE, 1970, p. 67), foi recebida com certa desconfiança e

rejeição iniciais. Nela, o homem tem o controle sobre sua existência. Para Sartre,

―primeiro o homem existe, depois é; primeiro age e depois define-se a partir de tal ação‖

(1987, p. 61). De acordo com o filósofo, ―a existência precede a essência‖. Dentre os

entes que compõem tal dimensão, apenas o homem é.

Como se pode notar, a filosofia existencialista de Sartre difundia a visão de que

o homem é o único ente que tem condição de compor sua essência. O conjunto de

situações e vivências vai aos poucos consolidando e configurando o ser. Por esse

prisma, percebe-se uma anulação da importância da figura de um Deus e uma afirmação

da autossuficiência de o homem ser capaz de tudo, inclusive de construir sua

liberdade13

. Segundo João da Penha, a liberdade para o existencialismo ―é a capacidade

do indivíduo de decidir sobre sua vida escolhendo-a e por ela se responsabilizando‖

(PENHA, 1998, p.47).

Por um lado, a liberdade absoluta do ser perante a vida constitui uma postura,

muitas vezes, contemplativa da mesma. E foi esse comportamento que deu origem à

associação entre o existencialismo e o modo de vida burguês, uma vez que este podia se

dar ao luxo de ter tal postura. No entanto, por mais irônico que possa parecer, é

justamente esse sentimento que provoca a angústia do homem. A consciência de que

não é possível viver em plena liberdade — no sentido sartreano — faz com que o

indivíduo viva com um profundo sentimento de pessimismo enraizado em si. Por isso,

Sartre afirma que ―o homem é ―por natureza‖, consciência infeliz, sem superação

possìvel do estado de infelicidade‖ (1970, p. 130).

13 Para Sartre, liberdade é a ―possibilidade de dizer não‖. (...) a liberdade é o que precisamente me

estrutura como homem, porque é uma designação específica da própria qualidade de ser consciente, de

poder negar, de transcender (SARTRE, 1970, p. 130).

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2.5. O existencialismo e a literatura fantástica

Naquele cenário mundial, a nova realidade que se configurou inserira o

sentimento de incerteza na humanidade. Como forma de delineamento desse novo

homem moderno, as expressões artísticas se voltaram para questões da subjetividade

humana. Na literatura fantástica, por exemplo, é possível perceber o (re) aparecimento

de uma poética que privilegia a linguagem em si, em detrimento do elemento

referencial, numa tentativa de sondagem desse novo ser que se construiu. Sendo assim,

não é incorreto afirmar que a crise por que o mundo passou [e passará nos anos

posteriores a 1945] projeta a possibilidade de a narrativa insólita – muitas vezes

impregnada de uma atmosfera absurda – surgir como mecanismo de ratificação daquela

subjetividade.

No rol dessa literatura voltada para o universo imaginário, na qual a

referencialidade é muitas vezes substituída pelo sentimento de absurdidade, Murilo

Rubião é um nome que se destaca com certa amplitude. Primeiro, porque a narrativa

fantástica de Murilo encena um modelo que dificilmente se dobra às interpretações mais

tradicionais do insólito na literatura brasileira; e, em segundo lugar, porque a

perplexidade do leitor ante um universo imaginário, fantástico e absurdo constrói-se a

partir da constatação de que há algo de reconhecível no relato ficcional que tangencia a

realidade e que, embora apresente tal similitude entre este e aquele universo, cria-se

uma realidade virtual, gerando um sentimento de prazer perturbador, oriundo dessa

percepção.

Na teoria sartriana sobre o existencialismo, não há muitas referências ao

fantástico. Na verdade, ele abordou o tema em um artigo que será apresentado em

algumas linhas. No entanto, antes, é salutar evidenciar que, para Sartre, fazer arte é,

incondicionalmente, passear pela irrealidade. Segundo ele, ―a arte é a irrealidade, gera-

se numa intencionalidade do imaginário, desprende-se, pois, da vida real e imediata‖

(1970, p. 166). Para o filósofo, ―a arte é a expressão de uma sensibilidade, de uma visão

de mundo, e como tal intervém no domìnio das relações imediatas‖ (p. 190). Nesse

sentido, abre-se um leque de possibilidades para as artes de forma geral, pois, sendo elas

uma manifestação liberta do pensamento racional14

do homem, só terá fundamento,

motivação e explicação em si mesma. Somente a arte explica a arte.

14 O a-racionalismo da dimensão existencial é apenas um esforço de restituir a tudo a sua autenticidade

original, de nos recuperarmos no limite do estar sentindo, do estar a ver pela primeira vez (ou do repetir,

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No artigo ―Aminadab, ou o fantástico considerado como uma linguagem‖,

Sartre direciona sua interpretação do fantástico para uma localização espaço-temporal

contemporânea e faz uma abordagem existencialista do mesmo. Pelo que se pode

observar nesse artigo, os aspectos relacionados à construção do discurso literário em si

são deixados de lado. Para ele, o único objeto realmente fantástico é o homem. Não

qualquer espécie de homem, mas aquele que está completamente entregue e integrado

ao mundo que o circunda, um homem que se encontra despojado de quaisquer

sentimentos obscurecedores da sua visão da realidade cotidiana, que, de certa forma,

alcançará reverberações profundas na alma desse ser moderno:

Por uma curiosa contrapartida, o novo humanismo precipita essa evolução:

Blanchot, na esteira de Kafka, não mais se preocupa em contar os feitiços da

matéria; os monstros em carne viva de Dalí certamente lhe parecem um

estereótipo, assim como os castelos assombrados pareciam um estereótipo a

Dalí. Para ele já não há senão um único objeto fantástico: o homem

(SARTRE, 2005, p. 138).

De acordo com Sartre, ―o fantástico oferece a imagem invertida da união da

alma e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o da alma‖ (ibidem, p. 137).

Tendo em vista essa acepção sobre a narrativa insólita, não seria difícil entender o

porquê de o filósofo considerar Kafka — em especial o Kafka de ―Metamorfose‖ — o

verdadeiro precursor da literatura fantástica moderna, uma vez que, na obra acima

citada, a personagem Gregor Samsa é um belo exemplo deste homem ao avesso,

ofuscado e oprimido tanto no seio familiar quanto no social. Ora, de acordo com o

filósofo, o fantástico adequou-se àquele novo mundo do pós-guerra e, como uma forma

de sondagem do homem que ocupa esse universo, esteve obrigado a se adequar a uma

nova subjetividade. Sobre esse aspecto Sartre diz que

Assim não é necessário recorrer às fadas; as fadas tomadas em si mesmas são

apenas mulheres gentis; o que é fantástico é a natureza quando obedece às

fadas, é a natureza fora do homem e no homem, apreendida como um homem ao avesso (ibidem, p. 137).

Considerando a afirmação de Sartre de que o único objeto fantástico

contemporâneo é o homem, pode-se, então, concluir que a temática principal da

narrativa fantástica para o filósofo é justamente o retorno ao humano. Se nos séculos

anteriores as histórias do gênero estavam repletas de monstros, fantasmas, bruxas,

do recuperar o passado, a sua aparição original) aquilo que endureceu e arrefeceu em ideias (1970, p.

106).

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duendes ou fadas, na atualidade a encenação é outra. Agora, os elementos que povoam

tais histórias são um reflexo da psique do homem moderno, oprimido por diversos

fatores que o levam a externar sua alma e a refletir sobre sua própria imagem: o corpo

— ―O meu corpo é todo ele, para outro, um centro de significações que me escapam,

porque me não vejo de fora. Eis porque ele é para mim razão de preocupações‖

(SARTRE, 1970, p. 156). Por isso, o filósofo afirma que o fantástico, assim como os

outros discursos literários, passou por um processo de domesticação e renunciou a toda

uma exploração de universos transcendentes para ter como foco primeiro a condição

humana. A esse respeito o autor comenta:

Não é nem necessário nem suficiente retratar o extraordinário para atingir o

fantástico. O acontecimento mais insólito, isolado num mundo governado por

leis, reintegra-se por si mesmo à ordem universal. Se fizerem um cavalo

falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado. Mas se ele persistir em

discursar em meio a árvores imóveis, sobre um solo inerte, eu lhe admitirei o

poder natural de falar. Não verei mais o cavalo, mas o homem disfarçado de

cavalo (SARTRE, 2005, p. 136).

Há, no fragmento acima, dois pontos bastante importantes para a caracterização

desse novo fantástico. O primeiro deles é que, pela situação esboçada, Sartre confirma

sua tese de que ―a essência do fantástico é oferecer a imagem invertida da união da alma

e do corpo‖ (2005, p. 139); imagem esta que assume um caráter mìtico15

. Esta

representa a dimensão de si mesmo para o indivíduo de quem ela é o reflexo e, para o

outro, diagnostica uma perturbadora consciência limitadora da realidade. O segundo

ponto é que o autor exclui, completamente, a figura de um leitor implícito16

. Quando

fala de um eu, percebe-se que ele está se referindo a um leitor real, de carne e osso e,

portanto, deslocado do espaço narrativo e externo ao discurso literário: ―O leitor escapa.

Ele está de fora, de fora com o próprio autor; contempla esses sonhos como

contemplaria uma máquina bem montada, e só perde o pé em raros momentos‖

(SARTRE, 2005, p. 149).

15 O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem

limites formais, mas não substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é

infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de

falar das coisas. Uma árvore é uma árvore. Sim, sem dúvida. Mas uma árvore, dita por Minou Drouet, já

não é exatamente uma árvore, é uma árvore decorada, adaptada a um certo consumo, investida de

complacências literárias, de revoltas, de imagens, em suma, de um uso social que se acrescenta à pura

matéria. (BARTHES, 1989, p. 131 – 132) 16 É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista não este ou aquele leitor em

particular, real, mas uma ―função‖ de leitor, implìcita no texto (do mesmo modo que nele acha-se

implícita a noção do narrador). A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma

precisão com que o estão os movimentos das personagens. (TODOROV, 2008, p. 37)

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Ainda com relação à caracterização de um fantástico moderno, Sartre assinala a

capacidade de renovação que o mesmo adquiriu com o advento da modernidade.

Nenhum elemento na estrutura do texto é tão importante quanto o sujeito que participa

dos acontecimentos narrados na história. Pelo que se tem visto, pode-se afirmar que a

única situação realmente concreta é que a linguagem alegórica torna-se um elemento

comum ao fantástico existencialista sartreano, pois, utilizando-se desse expediente,

constata-se que as construções metafóricas que compõem o universo da narrativa são,

na verdade, a viabilização de um meio para alcançar um determinado fim, que seria a

imersão do ser concreto e secular [o ser em anverso] no seu próprio eu; e a emersão de

um eu abstrato — ou uma imagem virtual — [o ser em reverso]:

Só que para encontrar lugar no humanismo contemporâneo o fantástico vai se

domesticar tal como os outros gêneros, renunciar à exploração das realidades

transcendentes, resignar-se a transcrever a condição humana. (...) Nada de

súcubos, nada de fantasmas, nada de fontes que choram – há apenas homens,

e o criador do fantástico proclama que se identifica com o objeto fantástico.

Para o homem contemporâneo, o fantástico tornou-se apenas uma maneira

entre cem de fazer refletir sua própria imagem (ibidem, p. 138-139).

E ainda:

Vê-se o procedimento: já que a atividade humana, vista de fora, parece

invertida, Kafka e Blanchot, para nos fazer ver de fora nossa condição sem

recorrer aos anjos, retrataram um mundo ao avesso. Mundo contraditório, onde o espírito se torna matéria, já que os valores aparecem como fatos, onde

a matéria é corroída pelo espírito, já que tudo é fim e meio ao mesmo tempo,

onde, sem deixar de estar dentro, vejo-me de fora (ibidem, p. 146).

Segundo essa teoria, o homem-cavalo (ou o cavalo-homem) é o caminho

utilizado pelo escritor para atingir um fim qualquer que ponha em evidência o mundo

em reverso do ser humano. Ao criar o cavalo falante, o escritor estaria olhando o mundo

do homem em anverso por uma perspectiva em reverso, pois, segundo Sartre, essa

proposital desordem na aparência natural das coisas é uma forma de demonstrar a

verdadeira revolta dos meios contra os fins, própria da narrativa fantástica, uma vez que

o universo representado naquela mensagem (meio) é caracterizado por um conteúdo

(fim) absurdo e incomum. Nesse ―outro‖ universo, ―tudo é fim e meio ao mesmo

tempo‖:

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No mundo ―em anverso‖, uma mensagem supõe um remetente, um

mensageiro e um destinatário; ela só tem valor de meio: seu conteúdo é que é

seu fim. No mundo ―em reverso‖ o meio se isola e se põe para si: somos

assediados por mensagens sem conteúdo, sem mensageiro ou sem remetente.

Ou, ainda, o fim existe mas o meio vai corroê-lo pouco a pouco (ibidem, p.

141).

É exatamente nesse aspecto que Sartre diz que a produção literária de Kafka –

e também a de Maurice Blanchot – desponta como representativa do fantástico

contemporâneo, pois, ao dar a vida a Gregor, ele utiliza a ficção [= meio] para falar do

mundo interior de um ser, que é cotidiano e cognoscível [= fim]. No entanto, o que se

produz é uma narrativa absurdamente insólita que choca o leitor, em um primeiro

contato, pela percepção de um processo de desconstrução da cômoda realidade em que

ele está. Isso ocorre também porque o espaço narrativo habitado por Gregor é tão real

quanto o que o leitor pode observar ao seu redor. Talvez, por esse motivo, alguns

estudiosos da obra de Murilo Rubião consideram-na bastante influenciada pela de

Kafka. Nas narrativas de Murilo, é possível perceber esse choque entre o mundo

ficcional e o real. Há uma aproximação perturbadora daquele espaço com a noção de

real que o leitor tem. Dessa aproximação, poder-se-ia aventar a possibilidade de a

narrativa fantástica gerar uma terceira realidade, que seria, segundo David Roas, uma

―realidade virtual‖.

Quando o filósofo cita o exemplo de uma história em que a personagem chega

a um restaurante e pede ao garçom um café com creme e, depois de vários impasses,

recebe em sua mesa um tinteiro, ele deixa claro que o leitor não pode dar nenhuma

explicação racional, pois somente agindo dessa forma o fantástico estaria mantido.

Refletindo sobre essa situação, nota-se que o autor, de certa forma, faz referência ao

fantástico todoroviano, quando admite a ideia de que deve haver uma aceitação do

universo representado na narrativa e nenhuma explicação racional deve ser oferecida

aos fatos elencados, mantendo-se a dúvida até o fim desta. Tanto Sartre quanto Todorov

(e Filipe Furtado) acreditam que deve haver uma identificação do leitor com o material

narrado e, também, com o herói, para que o gênero seja mantido até o termo da

narrativa. No entanto, o que parece estar diferentemente subentendido na teoria

existencialista é que o tipo de leitor para Sartre não é o leitor implícito, mas sim o de

carne e osso, um leitor real:

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Se o leitor puder pensar, ao ler contos desse tipo, que se trata de uma farsa

dos garçons ou de alguma psicose coletiva, teremos perdido a partida. Mas se

soubermos dar-lhe a impressão de que falamos de um mundo onde essas

manifestações insólitas figuram a título de condutas normais, então ele se

achará de golpe mergulhado no seio do fantástico (SARTRE, 2005, p. 140).

Essa questão torna-se importante porque se acredita num trabalho de leitura

que completa o sentido do texto literário; ele [o leitor] é co-participante do processo de

construção do sentido do texto. Segundo Antoine Compagnon, no livro O demônio da

teoria: literatura e senso comum, ―o objeto literário é feito de lacunas, de buracos e de

indeterminações. Em outros termos, o texto instrui e o leitor constrói‖ (2012, p. 147).

As lacunas, os buracos e as indeterminações são preenchidos no ato da leitura, pois

quando o texto é lido cria-se uma expectativa sobre determinada narrativa — ou

acontecimento dela — que é construída pelo repertório que o leitor traz de outras

leituras. Nesse sentido é que Antoine Compagnon sugere que ―o leitor implìcito é uma

construção textual, percebida como uma imposição pelo leitor real; corresponde ao

papel atribuído ao leitor real pelas instruções do texto‖ (2012, p. 148). Sendo assim, é

ele [o implícito] que propõe um modelo de leitura ao leitor real, definindo, muitas

vezes, um ponto de vista que delimitará o(s) sentido(s) do texto.

Nesse ponto, tanto Todorov quanto Sartre percorre caminhos paralelos, uma

vez que ambos reconhecem a importância desse ser (seja implícito ou de carne e osso)

como participante ativo na construção de significações. O filósofo ratifica sua tese

quando diz que ―ninguém pode entrar no mundo fantástico se não se torna fantástico‖

(2005, p. 143). Entendendo-se essa citação como fazendo referência à figura do leitor

que se identifica com o herói da narrativa, ficará fácil perceber que ele estabelece uma

relação entre sua teoria e a de seus antecessores estruturalistas, pois, segundo aqueles,

um dos elementos constitutivos do gênero é justamente essa identificação entre o

destinatário, uma personagem [de preferência o herói] e o universo representado na

história: ―O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das

personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos

acontecimentos narrados‖ (TODOROV, 2008, p. 37). Filipe Furtado completa a questão

dizendo:

uma das formas mais seguras de conduzir o destinatário da enunciação à

incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em suscitar nele a

identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a consequente perplexidade perante a coexistência das

duas fenomenologias contraditórias que aparentemente a confrontam

(FURTADO, 1980, p. 85).

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Como se pode observar, as teorias convergem para uma possibilidade de

aproximação, pois, para Sartre, ao que parece, o leitor é um ser comum, real [pessoa de

carne e osso] enquanto, em contrapartida, para os outros dois autores, esse leitor ou é

implícito (Todorov) ou é o destinatário primeiro da enunciação, o narratário17

(Furtado).

No fragmento a seguir, percebe-se mais uma vez que ele faz referência à figura de um

tipo de leitor, mas, pelo contexto de suas palavras, observa-se a referência ao leitor real:

Se estou no avesso de um mundo pelo avesso, tudo me parece direito.

Portanto, se eu habitasse, eu mesmo fantástico, um mundo fantástico, não

poderia de modo algum considerá-lo fantástico: eis o que vai nos ajudar a

entender o desígnio de nossos autores.

Não posso então julgar este mundo, pois meus juízos fazem parte dele. Se o

concebo como uma obra de arte ou como uma relojoaria complicada, é por

meio de noções humanas; e se o declaro, ao contrário, absurdo, é igualmente

por meio de conceitos humanos (SARTRE, 2005, p. 145).

O leitor participa da história enquanto expectador dos acontecimentos e —

dependendo do seu grau de envolvimento com o texto literário — como um compulsivo

interpretador das pistas deixadas nele. Ele não é um ser fantástico; é um leitor que pode

ou não ―aceitar‖ o universo insólito da narrativa. Assim como em Todorov, a ideia de

Sartre, na verdade, remete a um pacto de leitura. Ora, se o leitor se predispõe a ler

histórias fantásticas, ele, no mínimo, deve aceitá-las como tal e adentrar tal universo

sem questionamentos que contrariem a ―normalidade‖ desse processo. Dessa forma,

leitor, narrador e personagens são alguns dos elementos em que o autor deve pensar

antes de compor sua obra final. Eles são, na verdade, partes integrantes da história, o

que, segundo Antonio Candido18

, remete à famosa tríade que compõe o universo

literário: autor /obra / público.

Enfim, de acordo com o que se pôde observar na teoria oferecida por Sartre,

não há dúvidas de que ele considera o fantástico como um gênero contemporâneo que se

realiza utilizando-se de uma temática que prioriza o homem moderno e todo o universo

que circunda esse ser. Percebe-se, também, que alguns elementos tão badalados pela

17 Termo e conceito correlato do termo e conceito de narrador, o narratário constitui presentemente uma figura de contornos bem definidos no domínio da narratologia. Tal como na díade autor/narrador, também

a definição do narratário exige a distinção inequívoca relativamente ao leitor real da narrativa, e também

quanto ao leitor ideal e ao leitor virtual; o narratário é uma entidade fictícia, um ser de papel com

existência puramente textual, dependendo diretamente de outro ser de papel, o narrador que se lhe dirige

de forma expressa ou tácita. (REIS, 2002, p. 267) 18 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Vol. I. Belo

Horizonte: Itatiaia, 1981, p. 23-33.

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teoria estruturalista, relativas ao gênero, não foram consideradas pelo filósofo. Para ele,

não há hesitação ou ambiguidade. O tipo de leitor ficou claramente definido em sua

teoria: é o real. Até mesmo quando o autor cita o espaço em que a narrativa é encenada,

ele diz que tudo ali ―representa um espaço de matéria subjugada; seu conjunto é

submetido a uma ordem manifesta e a significação dessa ordenação é um fim – um fim

que sou eu mesmo‖ (2005, p. 139); ou seja, esse espaço limitar-se-á a um universo

representativo daquele que o leitor tem diante si. Isso quer dizer que o espaço narrativo

fantástico é visto como um lugar onde só podem habitar seres alegoricamente capazes

de evidenciar a subjetividade desse homem moderno, assolado por questões existenciais

muitas vezes perturbadoras. Esse ambiente é uma projeção de seu próprio mundo

interior; de suas crises.

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3. A narrativa de Murilo Rubião: um fantástico inquietante e moderno

Numa época em que se privilegiava uma literatura crítica, inovadora e

socialmente engajada com as mudanças pelas quais o país passava política e

culturalmente, o escritor Murilo Rubião inicia sua vida literária escrevendo contos que

aparentemente não representavam a realidade daquela sociedade. Em um período em

que os escritores modernistas gozavam as conquistas pelas quais lutaram a turma da

primeira fase e a do romance de 30, Murilo publicava, em 1947, seu primeiro livro de

contos, O Ex-mágico, tangenciando A Metamorfose de Kafka sem que soubesse disso.

Davi Arrigucci Jr., no livro Achados e Perdidos: ensaios de crítica, comenta que

Do ponto de vista da originalidade, o juízo é facilmente verificável. Pensada contra o quadro geral de uma ficção lastreada sobretudo na observação e no

documento, escassa em jogos de imaginação, a narrativa fantástica de Murilo

Rubião surge duplamente insólita (1979, p. 51).

Enfim, em um cenário em que a literatura pendia para a narrativa mais

documental, numa tentativa de representar a realidade e as desigualdades da sociedade

brasileira, Murilo produz uma literatura insólita que poderia ser hoje entendida como

desencadeadora de um fantástico inquietante e moderno que, embora não se destacasse

— como alguns podem supor — pela motivação de ratificar aquela crítica ao sistema, é

possível notar nas entrelinhas um discurso que busca no insólito a explicação para a

absurdidade do cotidiano do homem moderno. Davi Arrigucci Jr. considera que em

Murilo ―o real volta sob nova face, e a ruptura com a aparência realista será ainda um

modo de, como se verá, encontrar-se mais fundo com a realidade‖ (2001, p. 145). É

nesse sentido também que Hermenegildo J. Bastos afirma que a literatura do escritor

mineiro deve ser vista não só ―como ruptura, mas também como continuidade‖ (2001,

p. 50). Para o professor, por mais paradoxal que possa parecer, a ficção de Murilo

contribuiu para a reflexão dos caminhos que o realismo tomaria na literatura brasileira,

pois, segundo ainda Arrigucci, ―o fantástico dá lugar ao afloramento de um real mais

fundo‖ (2001, p. 147).

Ao considerar que ―o leitor entende, por fim, (...) que o problema não é apenas

dos personagens, mas da sociedade a que pertencem‖ (p. 57), Bastos sugere que há um

profundo senso social e crítico inserido na narrativa fantástica do escritor mineiro.

Dessa forma, entende-se o porquê de ele considerar o fantástico em Murilo como uma

atualização da ficção realista que se vinha realizando na literatura nacional. A

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irrealidade e a fantasia seriam uma forma alegórica de tratar temas próprios do universo

real:

A ficção muriliana gira em torno da questão do progresso – ―progresso‖,

antes de mais nada, da forma e procedimentos literários, mas também das

organizações sociais e das relações humanas. A evolução da forma e o

progresso social são duas faces de uma mesma moeda. O narrador e os

demais personagens são prisioneiros do progresso (BASTOS, 2001, p. 63).

No livro Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte, organizado por Flavio

Garcia e por Maria Cristina Batalha, no artigo ―Murilo Rubião e o fantástico brasileiro

moderno‖, Batalha afirma que o fantástico no escritor mineiro traz para a literatura ―a

inquietação do homem moderno, perdido em um mundo que não compreende mais‖ (p.

34). Segundo ela, o insólito em Rubião surge como uma possibilidade criticamente

reflexiva de o homem repensar sua inserção na sociedade que o circunda. Assim, Maria

Cristina Batalha considera que a ficção muriliana ―promove a denúncia da perda dos

valores éticos e humanìsticos‖ (p. 34) e que ―os protagonistas são metonìmias da

humanidade inteira‖ (p. 34). Daí advém o teor crítico do fantástico em Murilo.

Ratificando essa ideia, Antonio Candido diz que

Com segurança meticulosa e absoluta parcialidade pelo gênero (pois nada

escreve fora dele), Murilo Rubião elaborou os seus contos absurdos num

momento de predomínio do realismo social, propondo um caminho que

poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram (CANDIDO, 1987, p.

208).

Murilo Rubião, no sentido mais literal do termo, foi um artista da palavra. É

conhecido de todos que acompanham a trajetória do escritor mineiro o processo de

escritura e reescritura de seus textos. Tendo escrito e publicado apenas trinta e dois

contos19

, suas publicações muitas vezes traziam poucos textos inéditos e apresentavam a

reescritura de outros já conhecidos. O trabalho com a palavra era tão importante quanto

a obra em si. O jornalista e professor Antônio Carlos Hohlfeldt, no livro O conto

brasileiro contemporâneo, diz que ―do contista requer-se, pois, entre outras coisas,

imaginação e observação, experiência e persistência, mas sobretudo o contínuo corte do

texto, a fim de alcançar o efetivo final‖ (1981, p. 19). Ora, relacionando tal pensamento

com as idas e vindas de Murilo ao texto, nota-se que o escritor mineiro cumpriu todos

19 Depois da morte do escritor, o conto ―A diáspora‖ foi publicado e recentemente veio a público o conto

―As unhas‖, também publicado postumamente, totalizando 34 contos no somatório dos que vieram para o

domínio público.

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os pré-requisitos necessários a um contista, pois não há como negar a capacidade

imaginativa e observadora e a persistência com que Murilo realizou sua obra. Tal

persistência pode ser percebida tanto na temática como no processo de reescrituração

dos contos.

Flávio Carneiro, no artigo ―Escrever é escrever de novo: a escrita infinita em

Murilo Rubião20

‖, afirma que na narrativa de Murilo ―a reescritura aparece como mais

uma volta na espiral projetada pelo autor e reflete a capacidade do texto de se superar a

cada linha, buscando o espaço que aparentemente se esconde atrás da parede da

finitude‖ (2013, p. 89). Ciente de que o conto possui peculiaridades próprias e certas

limitações, Murilo trabalhava sua narrativa numa busca incansável pela perfeição da

linguagem num espaço curto que é o conto. Segundo Alfredo Bosi,

Na verdade, se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa

e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo

modo breve de ser compele o escritor a uma luta mais intensa com as técnicas

de intervenção, de sintaxe compositiva, de elocução (2006, p. 7).

Pavla Lidmilová chegou a considerar que Guimarães Rosa, Clarice Lispector e

Murilo Rubião mudaram as feições do conto moderno. No entanto, contrariamente aos

outros dois, segundo ela, ―o estilo de Murilo Rubião é elegantemente clássico, claro e

conciso ao máximo‖ (1984, p. 75). Nota-se que o escritor mineiro tinha consciência do

seu trabalho artesanal. Ele sabia que lidar com a palavra requereria dedicação e esforço.

Esse é o destino fatal de quem escreve e se compromete com o que faz. Maurice

Blanchot, no livro A parte do fogo, no capítulo intitulado ―Kafka e a literatura‖, afirma

que

O escritor não pode lavar as mãos. No momento em que escreve, ele está na

literatura e está nela completamente: é preciso que seja um bom artesão, mas

também esteta, pesquisador de palavras, pesquisador de imagens. Ele está

comprometido. É a sua fatalidade (BLANCHOT, 2011, p. 22).

Por outro lado, o processo de reescrituração em Murilo Rubião é um trabalho

repetitivo que está ligado ao próprio aspecto cíclico de suas narrativas. Davi Arrigucci

Jr. considera esse trabalho de reescritura — metamorfoseando o texto nunca acabado —

como uma obsessão de Murilo. No mesmo sentido em que se percebe o tema da

metamorfose em seus contos, percebe-se esse processo no próprio fazer poético:

20 Publicado no livro Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte, organizado por Flavio Garcia e Maria

Cristina Batalha, pela EdUERJ, 2013.

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O ato de modificar ou transformar os contos se casa, por exemplo, à mudança

contínua de faces e nomes de determinados personagens, como é o caso de

Teleco, Godofredo e suas mulheres, Alfredo, Petúnia e outros mais. Faces e

nomes escorregadios, que se colam ora aqui ora ali, carregados por um

mesmo fluxo. E logo também se casa à transformação propriamente dita dos

seres, que viram e desviram animais e plantas, numa instabilidade do ser, o

que implica a questão mais profunda da identidade não fixada (ARRIGUCCI,

2001, p. 151).

Reescrever, então, era tão importante quanto criar seus personagens. Eles

pareciam tão inacabados como a própria narrativa — talvez por esse motivo eles sofram

tantas e profundas transformações. Davi Arrigucci Jr., ao analisar o conto ―O Edifício‖,

relaciona aquela edificação com a construção do discurso poético em si. Para ele, ―a

construção infindável de um ―absurdo arranha-céu‖, a que sempre é possìvel acrescentar

novos blocos, pode ser entendida também como uma alegoria da própria construção

ficcional que se está lendo‖ (1979, p. 54 - 55). Como se pode notar, as metamorfoses e

os comportamentos exagerados e reiterados de seus personagens podem ser vistos, na

verdade, como uma espécie de metáfora da escrita camaleônica do escritor mineiro.

Jorge Schwartz ratifica essa tese ao dizer que ―esse tenaz retorno ao texto não deixa de

representar uma tarefa análoga ao penoso trajeto de seus personagens, perdidos num

mundo de incessante procura, e sem respostas para as questões fundamentais do

homem‖ (1982, p. 102).

Acredita-se que é nesse sentido que o próprio Murilo considerava fazer

literatura uma maldição:

Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real

satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto

prazer. Depois, é essa tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar

e re-elaborar, ir para a frente, voltar. Rasgar (SCHWARTZ, 1974, p. 5).

O escritor tinha prazer em criar a história. Depois se iniciava uma verdadeira

via crucis literária. O autor possuía uma extrema preocupação com o que escrevia e

como escrevia. Há estudiosos que acreditam que esse trabalho com a linguagem era um

desejo de dar vida e autonomia ao texto que, mudado de acordo com as necessidades de

cada momento e/ou situação, estaria sempre renovado e contemporâneo. Audemaro

Taranto Goulart, por exemplo, considera que no próprio processo de fazer e refazer o

texto já está instaurado o insólito. Para ele,

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O desejo do sentido percorre o texto e, pelo simples fato de ser desejo,

contemporiza sua realização, adiando sua satisfação, num processo de volta

ao sujeito da leitura, para instilar nele uma carga de desconfianças onde se

projetam sensações de frustrações e impotência.

Essa temporização na realização do desejo articula-se não apenas com a

busca do sentido mas ela vai além: representa a busca do sentido mais

preciso. Nessas condições, pode-se perceber uma outra consequência que é a

possibilidade de se evitar o esclerosamento do texto, a sua caducidade. O processo de reescrever o texto revela, pois, esse outro ângulo: a preservação

de sua contemporaneidade semântica (Itinerários: revista de Literatura, 2002,

p. 16 – 17).

Se, por um lado, o trabalho com a linguagem caracteriza um perfeccionismo do

autor; por outro, ele sinaliza certa dificuldade em chegar à obra prima acabada: perfeita.

Isso pode ser notado no fato de o próprio Murilo perceber sua limitação com a língua

portuguesa. Em algumas cartas enviadas a Mário de Andrade, vê-se um escritor que

reconhece suas limitações e demonstra preocupação com esse fato. Ao informar ao

amigo sobre seu primeiro livro, Murilo comenta:

Os meus amigos já tinham feito demasiadas restrições aos contos. Se

recebesse outras, acho que desistiria e ficaria inédito para sempre. Não

pretendo, seu Mário, não pretendo de forma alguma fazer uma pequena obra-

prima. Eu estou aprendendo a escrever e aproveitando essa aprendizagem

para pôr para fora tudo o que me corrói por dentro. Não tenho cultura, não

domino essa paupérrima e desgraçada Língua Portuguesa e ainda, apesar de

todos os meus recalques (tenebrosos recalques!) e sofrimentos, ainda não sofri tudo o que tenho capacidade para sofrer (MORAES, 1995, p. 41).

Como se pode observar nessa e em outras passagens elencadas no livro

organizado por Marcos Antonio de Moraes, o escritor mineiro tinha suas razões para

buscar a expressão exata em seus contos. Ele, o contista, ―sabe que não pode proceder

acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar com

profundidade‖ (CORTÁZAR, 2011, p. 152) para imprimir o máximo de expressividade

em seu texto. Enfim, seja por um motivo ou por outro, o fato é que, mesmo que não o

fizesse intencionalmente, Murilo conseguiu criar um estilo próprio de escrever. Nele, o

fato de o insólito literário estar tão bem amalgamado ao universo cotidiano do leitor

talvez só tenha sido possível, também, porque o escritor buscou a criação de uma

narrativa que desse conta de uma linguagem tão fantástica quanto suas ficções.

Assim como a temática, o próprio fazer poético é insólito. Nesse sentido, nota-

se uma prática hiperbolicamente comum em Murilo. O exagero — comum em algumas

de suas narrativas — transporta-se para o próprio fazer poético, como se o escritor

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percebesse a necessidade de metamorfosear seu discurso repetitivamente no intuito de

perseguir dois objetivos: um pseudoacabamento do texto — o que o levaria a novas

mudanças —; e uma crítica à própria condição humana que se constitui inacabada e

fragmentada na modernidade. Segundo Jorge Schwartz, no prefácio do livro O

convidado, ―a temática narrativa [em Murilo] gira em torno da ausência de sentido das

coisas (...) trazendo como intersecção textual uma literatura que evidencia uma crítica

aguda à sociedade‖ (1974, p. 16).

Por último, com relação ao trabalho de reescritura do texto ficcional, é possível

cogitar a ideia de que reescrever não significava apenas escrever de novo o mesmo

texto. Parece que no caso de Murilo, reescrever fazia parte da construção de sua

identidade como escritor:

Tenho caminhado muito, dado socos, pontapés e trabalhado

desordenadamente. E, quase sempre, depois de árdua luta, fico sem saber se

avancei ao menos uns poucos passos, isto, porque caminho, aos trambolhões,

sem noção do que estou fazendo. Infelizmente, não gosto de fazer outra coisa

senão literatura. E não a faço, exclusivamente, para mim ou porque desejo

fazê-la (MORAES, 1995, p. 49).

Essa construção permitiu que ele criasse uma literatura na qual a realidade e a

fantasia fizessem parte de um mesmo universo. Nela, os acontecimentos são fantásticos

na concepção do leitor, que percebe o elemento estranho e o familiar diante de si,

representados em um ambiente que é e não é o mesmo que o seu. Segundo Davi

Arrigucci Jr, ―o que mais espanta em Murilo é a perfeita naturalidade da convivência

com o espantoso‖ (2001, p. 141). Há uma convivência banalizada entre a fantasia e a

realidade até que em um dado momento da narrativa o leitor já não se indaga mais sobre

a verdade do que lê, porque ele se vê diante de um mundo absurdo, porém familiar.

Como se poderá constatar nos contos que serão analisados mais adiante, a banalidade

com que os acontecimentos insólitos invadem a narrativa muriliana atribui uma

aparência de real a eles. Daì o ―insólito absurdo‖:

Numa tentativa de descrição genético-estrutural do conto de Murilo Rubião,

poderíamos estabelecer um esquema: constada determinada relação absurda

na vida, cria-se uma situação absurda simbólica (a situação ficcional) que

desencadeia uma série de absurdos técnicos (ou de efeito literário) que se desenvolvem até o absurdo final (a solução ficcional) que traz o leitor de

volta para o tema, fechando o ciclo (ZAGURY, 1971, p. 28 – 29).

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Segundo Albert Camus, para quem O Mito de Sísifo representa a natureza

absurda da existência humana, ―o anseio humano por razão em um mundo

desarrazoado‖ (REYNOLDS, 2014, p. 31) é o responsável pelo sentimento de

absurdidade. As narrativas de Murilo sugerem ao leitor um processo de reflexão que

caminha ebriamente por uma existência ao mesmo tempo possível — dado à

familiaridade do mundo ali representado —, mas insólita, devido ao absurdo que se

constrói nos parágrafos subsequentes. Nesse sentido, observa-se uma relação entre a

ficção de Murilo e a de Kafka. Porém, embora alguns estudiosos façam essa

aproximação entre um e outro, o próprio escritor diz em entrevista que a escolha do

fantástico ―foi herança da infância, das intermináveis leituras de contos de fadas, do

Dom Quixote, da História Sagrada e das Mil e Uma Noites (SCHWARTZ, 1982, p. 3) e

não uma influência do escritor tcheco do qual só teve conhecimento anos depois de ter

publicado seu primeiro livro de contos. Como ele mesmo afirma, ―no inìcio dos anos 40

ninguém conhecia Kafka no Brasil, a não ser Mário de Andrade‖ (p. 3).

Como se pode notar, Murilo Rubião foi um escritor singular na literatura

brasileira. Seja pela qualidade de seus contos, seja por toda atmosfera que envolve a

criação deles, o fato é que a narrativa fantástica teve nele seu maior expoente no Brasil.

Conforme atesta Almeida Fischer — e outros críticos literários — pode-se dizer que ―o

escritor foi o primeiro brasileiro a produzir um livro que se enquadra por inteiro na

literatura fantástica modernamente entendida como tal‖ (1977, p. 78). Para o crítico, os

contos murilianos podem ser considerados ―de mestre‖ (p. 79). E com relação à

quantidade de livros escritos, Fischer dispara dizendo que

Entre abarrotar as prateleiras das livrarias de livros medíocres ou razoáveis e

ser autor de pouco mais de uma dezena de contos que se situam entre os

melhores já escritos em língua portuguesa, o ficcionista optou pelo segundo

caminho. No que, sem dúvida, obrou bem (1977, p. 79).

Embora seja relativamente fácil encontrar alguns autores que tenham essa

mesma visão, há outros que não atribuem ao escritor mineiro o rótulo de precursor de

um tipo específico de narrativa na literatura brasileira. O já citado Hermenegildo J.

Bastos, por exemplo, acredita que, mais do que delimitadora de um gênero ou modo

discursivo especìfico, ―a obra muriliana está ligada também às linhas de evolução da

ficção brasileira da segunda metade do século‖ (2001, p. 49). Ele considera a obra de

Murilo como a inauguradora de uma ruptura na noção de realidade. Segundo o

professor, nos contos fantásticos do escritor há um ―realismo de falsidade‖ (p. 51).

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Através desse ―falseamento da realidade‖, a obra de Murilo Rubião seria, segundo

Bastos, capaz de demonstrar duas questões capitais da literatura: ―a questão da

derrocada dos projetos de modernização nacional e a questão do papel da literatura

nesses projetos‖ (p. 52). Por isso, acredita-se que Schwartz, ao afirmar que ―o texto

fantástico de Murilo Rubião mascara a mais realista das literaturas‖ (1974, p. 16), tenha

querido dizer que por trás de uma narrativa aparentemente ingênua encontra-se uma

forma renovada – ou inovadora – de falar de temas até então só explorados pela

narrativa de cunho estritamente realista e documental.

Álvaro Lins, no livro Os mortos de sobrecasaca, tece alguns elogios ao escritor

mineiro. No capítulo ―Sagas de Minas Gerais‖, ele comenta que ―o livro do Sr. Murilo

Rubião, representa, no Brasil pelo menos, uma novidade, com um tratamento da matéria

ficcionista que não me fora dado ainda encontrar em qualquer dos nossos autores‖

(LINS, 1963, p. 266). Ele chega a fazer algumas aproximações entre Murilo e Kafka,

negando, veementemente, que Murilo seja o Kafka brasileiro. No entanto, a impressão

que fica da leitura geral do capìtulo é a insatisfação: ―em O Ex-mágico [...]

permanecemos insatisfeitos quanto aos resultados‖ (p. 267) e ―o Sr. Murilo não

convence quanto ao problema de tornar lógico o absurdo‖ (p. 267). Quando se refere

aos contos ―O Ex-mágico‖, ―O Pirotécnico Zacarias‖ e ―Bárbara‖, Álvaro Lins

considera os dois primeiros ―sem intensidade psicológica‖ e o último como ―apenas

pitoresco; e de um pitoresco de mau gosto‖ (p. 267). Ora, o objetivo desta tese não é

retificar nem confrontar as teorias acerca do insólito em Murilo Rubião. No entanto,

parece que Álvaro Lins desconsiderou o fato de que o escritor está inserido em um

contexto. É possível que o crítico tenha deixado de cogitar a possibilidade de que a não

―intensidade psicológica‖ daqueles dois contos talvez tenha sido uma escolha do autor,

algo proposital; uma escolha pensada e calculada para inserir no próprio ato de leitura o

tédio da vida burocrática, acompanhado, muitas vezes, da exacerbação de desejos

infundáveis e fúteis da vida moderna.

Murilo foi um escritor de um único gênero textual. Sua obra é grandiosa pela

qualidade que se pode verificar em seus textos. Suas narrativas possuem algumas

marcas que se repetem com certa frequência. A primeira delas – e que chama a atenção

do leitor logo no início dos contos – são as epígrafes. Elas são fragmentos retirados de

textos bíblicos – fato este que denota a profunda ligação entre o escritor e o cristianismo

no início de sua carreira. Como ele mesmo afirma em entrevista, ―a base [das epìgrafes]

é a religião católica, uma religião que mais tarde não me convenceu. (...) abandonei a

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religião e sou hoje um agnóstico‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 4). Na verdade, tais epígrafes

simulam uma pré-narrativa da narrativa; ou como supõe Jorge Schwartz, no livro

Murilo Rubião: a poética do Uroboro, ―surpreendentemente, elas constituem um

universo narrativo completo e autônomo, sìntese do pensamento de MR‖ (1981, p. 3).

Para o estudioso, a utilização desse recurso possui uma dupla e nova funcionalidade. Ela

é dupla porque o texto epigrafado possui agora duas funções: ele traz consigo a carga

semântica do texto do qual foi extraído e, consequentemente, cria um novo diálogo

entre ele e o texto no qual está agora inserido. Com relação à nova funcionalidade,

Schwartz diz que ―toda epìgrafe sofre uma perda de funcionalidade ao ser extraìda do

seu texto original, sofrendo uma consequente refuncionalização ao ser interpolada num

novo texto.‖ (1981, p. 4).

Dentro ainda do universo epigráfico, Davi Arrigucci Jr. endossa essa questão

assinalando que ―a Bìblia aparece literalmente como o Livro dos livros, o repertório

ilimitado de todos os temas, uma espécie de fonte perene‖ (2001, p. 151) a que Murilo

muito recorreu. É uma fonte inesgotável de temas na qual Murilo bebia com frequência.

Há um aspecto importante — com relação à utilização dessa fonte — que é

relevante para se entender o motivo de tal recurso:

Voltando continuamente a essa origem remota, a obra sugere a circularidade

do tempo e o eterno retorno dos arquétipos, a ingressão, a uma só vez,

renovadora e apocalíptica do reino do mito, onde rodopiam os começos e os

fins. Mas há ironia (2001, p. 152).

Segundo o crítico e professor Ronaldes de Melo e Souza, ―na obra de arte

regida pelo princípio da ironia, toda e qualquer parte aparentemente não-irônica se torna

radicalmente irônica‖ (2006, p. 36). Tal utilização seria uma maneira de o autor ironizar

– pela ―mera repetição ritualística‖ (p. 153) – o próprio discurso religioso? Nesse

sentido, poder-se-ia considerar que as epìgrafes bìblicas desconstroem ―o valor sagrado

do mito‖ (p. 153) daquilo que elas representam. Enfim, a circularidade do texto de

Murilo – retomada a cada reescrituração – também se manifesta na utilização desbotada

de um discurso que não funciona mais [pelo menos para o escritor]: o religioso. Daí

advém a ironia a que se refere o crítico Arrigucci. Os personagens de Murilo são

infelizes e caminham num ambiente próximo ao do leitor. Nesse ―entre-lugar‖ – nem

real nem irreal – o homem moderno se vê diante de uma nova, perturbadora e irônica

realidade: não há deuses, ou salvação, ou eternidade fora daqui. Só o agora. Ratificando

essa ideia, Schwartz afirma que ―não há lugar para salvação no universo muriliano. A

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solidão toma conta dos personagens, que se caracterizam por uma perpétua procura e

um contìnuo desencontro‖ (1982, p. 102). Acredita-se que, talvez, por isso Murilo tenha

dito em entrevista:

Daí eu ter partido não para a eternidade que me ensinaram, mas para a

eternidade já na própria vida. Desse modo a vida seria apenas uma coisa

circular que não chegaria nunca àquela eternidade, mas também nós nunca

poderíamos nos livrar dela (SCHWARTZ, 1982, p. 4).

Como se pode notar, as epígrafes bíblicas apontam ironicamente para uma

outra questão bastante comum nos contos de Murilo: a dualidade vida x morte. Mesmo

que estejam deslocadas do texto original, elas potencializam essa dualidade, porque é

próprio do discurso religioso dividir a existência humana em pólos opositivos: sagrado e

profano, vida e morte, alma e corpo etc. Dessa forma, as epígrafes apontam para fora e

para dentro do texto. No primeiro caso, elas ainda estão revestidas do teor religioso

presente no texto original; no segundo, elas, de certa forma, se relacionam — em um

tom quase profético — com a narrativa que se descortinará. Por fim, pode-se considerar

também que tal utilização do discurso religioso ratifica o pensamento de Vladmir Propp

ao afirmar que ―o conto (fantástico) vem de antigas religiões21

‖.

Outra marca frequente nas narrativas do autor está relacionada à questão das

dualidades narrativas. Eliane Zagury sugere a visualização temática das ―dicotomias

essenciais‖ que desencadeiam as construções ficcionais em Murilo Rubião em três

subgrupos: a) vida-morte; b) indivíduo-sociedade; c) amor-incomunicabilidade (1971,

p. 29 – 34). Segundo ela, o autor recria em seus contos situações que remetem o leitor

para essas possibilidades dicotômicas de percepção da existência humana, construindo

personagens que representam em si a duplicidade do ser; personagens que vivem a

ilusão de ser o que não são ou [não] desejariam ser, fugindo da realidade que os

circunda. Só para citar duas obras, percebe-se que isso ocorre com muita clareza, por

exemplo, em ―Teleco, o coelhinho‖ e no ―Ex-mágico‖. No primeiro, o personagem

―coelho-menino‖ vive a ilusão de um desejo que só se realiza na morte. Sua existência

limita-se ao desejo do outro, buscando a autoafirmação enquanto ser ou, simplesmente,

sua aceitação perante o outro. No segundo, o personagem vive a ilusão de poder ter/ser

algo melhor, buscando, no tédio em que se transformou sua existência, encontrar uma

21 TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). ―As transformações dos contos fantásticos”. In: Teoria da

literatura: formalistas russos. 2 ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. (p. 271).

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saída para um drama sem solução: a morte em vida. Drama este que acompanha o

homem moderno em sua lida diária com o mundo que o cerca.

Nesse aspecto, a questão da ilusão na narrativa é capital porque ela é a

responsável pelo redirecionamento do desejo do herói reificado, sem identidade e,

paradoxalmente, sem desejo; apenas coisa. Ela reconduz a perspectiva dele para uma

―possibilidade impossìvel‖. Além dos dois contos já citados, tome-se aqui como

exemplo ―O edifício‖, ―Bárbara‖ e “Os comensais‖, dentre outros. No primeiro, há a

realização de uma obra impossível que nunca terá fim — na verdade, de que obra

realmente se trata? O narrador trabalha como um ilusionista. O desejo de João Gaspar

não é o dele, a realização da obra é uma diretriz a ser seguida; no segundo, há uma

mulher que possui desejos indesejosos. O que representariam tais desejos? Seriam eles

uma alegoria da sociedade moderna, consumista e materialista? No terceiro,

personagens que agem e se comportam como autômatos e/ou zumbis. Eles também não

seriam uma alegorização do comportamento comum do homem nas grandes cidades.

São bonecos que perambulam pelas ruas, esbarrando uns nos outros, sem, no entanto,

notarem a presença alheia. É por isso que se pode dizer que os personagens murilianos

são iludidos e iludem o leitor. Segundo Arrigucci, ―a existência dolorosa é o fardo

corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (2001, p. 157). Eles — na ânsia da realização de

um desejo [ou pseudodesejo] que não lhes pertence — afastam-se progressivamente do

universo real e penetram no insólito. O leitor se vê aprisionado em um xeque-mate

quando se depara com uma narrativa em que o absurdo se desenvolve com ares de

normalidade e os personagens sequer percebem a insolitude de suas atitudes. Eles

―vivem sob a pressão do inevitável‖ (2001, p. 158).

No livro O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão, Clément Rosset ratifica

essa tese afirmando que a ilusão é ―a forma mais corrente de afastamento do real‖

(2008, p. 17). É dessa forma que leitor e personagens são conduzidos pelos caminhos

insólitos nas narrativas de Murilo. Em um primeiro momento, está-se diante de uma

situação real, possível; dois ou três parágrafos depois, esse mesmo leitor encontra-se

deslocado de seu universo, mas, ao mesmo tempo, submerso em um outro absurdo,

porém aceitável:

A técnica geral da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas,

exatamente como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de

deslocamento e de duplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com

a coisa, dirige o seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece

(ROSSET, 2008, p. 23).

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Na verdade, todos são levados a crer nisso. Essa é a técnica de Murilo. Parece

que a todo momento ele conta com a ilusão. A criação da duplicidade pela ilusão dos

sentidos é uma forma de disfarçar nas entrelinhas o objetivo primeiro da narrativa:

construir uma reflexão crítica acerca de algo. Por que os personagens dele sempre

aceitam o insólito como algo banal? É a técnica da ilusão. O leitor — juntamente com

eles — desvia o olhar da reflexão crítica e fica — em um primeiro momento [ou em um

primeiro nível de leitura] — preso a um falso jogo entre realidade e imaginação. Como

se pode notar em seus contos, ele cria, conscientemente, uma estratégia de construção

ilusória. O leitor é colocado diante de um mundo que é e não é o seu através dessa

técnica. Ora, em um universo representado por seres fabulosos — animais falantes

―quase‖ humanizados — a suposta ―moral‖ da história está deslocada ilusoriamente

para o lugar da ironia que perpassa toda a narrativa de Murilo Rubião; ou seja, não há

moral nem ensinamentos; só há o homem com suas questões. É aqui que as narrativas

de Murilo tangenciam o existencialismo sartreano. Enfim, em um universo cheio de

situações hiperbólicas e insólitas, o leitor olha para onde o mágico quer que olhe. Sendo

assim, o Murilo-mágico prende a atenção do leitor pelo caminho do lúdico, da

imaginação, da mágica e do inesperado, camuflando um discurso que toca na questão

existencial do homem moderno sob a aparência do fantástico.

Uma terceira marca comum em alguns contos de Murilo são as metamorfoses

pelas quais seus personagens passam. Dentre as outras duas elencadas anteriormente,

acredita-se que essa seja a marca que melhor se alinha ao existencialismo de Sartre se se

considerar que ela esteja relacionada à condição do homem face às crises e

transformações por que esse indivíduo passa na contemporaneidade.

No artigo ―As metamorfoses do corpo e a construção do fantástico nas

narrativas de Murilo Rubião‖, Marisa Martins Gama-Khalil afirma que a literatura

fantástica é capaz de tematizar as ―modificações que permeiam a subjetividade do

sujeito e fazem com que ele, a cada momento, se torne diferente‖ (2013, p. 48). Tendo

como base essa acepção, pode-se aventar que a metamorfose constitui um mecanismo

deflagrador da incompletude do eu que se vê coisificado [e/ou banalizado] e que, por

extensão, representa a coletividade da sociedade em que vive. Jorge Schwartz,

considerando os contos ―Agláia‖ e ―Bárbara‖, toca na questão da coisificação dos

personagens murilianos ao afirmar que ―a descontrolada produção de bebês os reduz à

condição de objetos‖ (1981, p. 35) e ―o herói reificado está representado pela dimensão

colossal dos objetos pedidos pela sua insaciável esposa‖ (p. 35). Tanto em um como

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noutro conto, nota-se a transformação alegórica dos personagens em máquinas a serviço

da produção e do consumo desenfreado, próprios do modelo de vida materialista.

Ao discorrer sobre A metamorfose, de Franz Kafka, Maurice Blanchot sinaliza

com a ideia de que a transformação do personagem em um inseto asqueroso representa

―o estado do ser que não pode deixar a existência, para quem existir é estar condenado a

sempre recair na existência‖ (2011, p. 18). Embora esteja submerso nos porões de sua

subjetividade, é através do mecanismo da metamorfose que o sujeito tenta (ou deseja)

projetar-se para fora dali. Mudar sua forma constitui uma maneira de oferecer ao outro

uma possibilidade diferente e radicalmente significativa de ver o eu. Havendo

repugnância ou não, o fato é que o inseto representa o máximo da significação que o

sujeito deseja para si. Embora de maneira negativa, somente naquela forma ele se fez

notar. Algo parecido ocorre em ―Teleco, o coelhinho‖ em ―O homem do boné

cinzento‖, em ―Alfredo‖ e em ―Bárbara‖. Não há repugnância. No entanto, as diferentes

formas e/ou mutações por que as personagens passam no percurso da narrativa

consolidam um final trágico — no caso dos três primeiros contos — e absurdo, no

último.

Todorov considera que ―as metamorfoses formam então por sua vez uma

transgressão da separação entre matéria e espìrito, tal como geralmente é concebida‖

(2008, p. 122). Dizer que Teleco se comporta como um coelho ou como um leão é algo

que não gera o insólito. No entanto, afirmar que o ser que fala ao personagem é um

coelho instaura o sobrenatural na narrativa. Há uma ruptura na ordem das coisas. Há

uma separação entre matéria e espírito. Não é da ordem das coisas um coelho falar. O

que sugere, então, essa transformação?

A metamorfose de maneira geral abre um leque de possibilidades de

entendimento dessa ruptura entre matéria e espírito. Poder-se-ia aventar algumas delas

aqui, contudo a que mais se adéqua à teoria existencialista de Sartre sugere a ideia de

que a excessiva transformação de um ser em algo que não que lhe cabe ser indicia a

crise existencial em que o homem contemporâneo se encontra. Há uma busca

descontrolada de se atingir a satisfação do eu naquilo que o outro vislumbra. Segundo

Eliane Zagury, em ―Teleco, o coelhinho‖, ―em sua medìocre fragilidade, o homem usa

do recurso da metamorfose para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (p.

1971, p. 32). Se se pensar nas máscaras sociais que o indivíduo coloca todas as vezes

que sai de casa para estudar, trabalhar, namorar, passear etc, notar-se-á que a

metamorfose social é mais comum do que se pode imaginar. Acredita-se que Jorge

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Schwartz tenha querido sinalizar esse comportamento ao afirmar que ―o cotidiano tem

uma força demolidora, reduzindo o homem a máscaras petrificadas‖ (1982, p. 102). O

homem não age exatamente da mesma forma dentro e fora de casa. Há regras. Há

máscaras. Todorov de certa forma ratifica tal pensamento quando afirma que ―a

multiplicação da personalidade, tomada ao pé da letra, é uma consequência imediata da

passagem possível entre matéria e espírito: somos muitas pessoas mentalmente, em que

nos transformamos fisicamente‖ (2008, p. 124). No livro, Murilo Rubião: a poética do

uroboro, Schwartz, sobre o conto ―O convidado‖, diz que ―a máscara é necessária para

enfrentar o jogo social, e a descoberta do seu ―outro‖ não demora em se evidenciar‖ (p.

46). Portanto, é possível afirmar que se transformar em algo diferente para se adequar a

uma determinada situação é uma prática bastante comum nas sociedades modernas.

Como se pode notar, a obsessão de Murilo Rubião pela metamorfose tanto no

hábito de modificar constantemente seus escritos como também na criação de

personagens que se metamorfoseiam no percurso da narrativa é algo comum. Muitas

vezes, ―o homem usa tal recurso para se adaptar a cada situação e perde a sua

identidade‖ (ZAGURY, 1971, p. 32). Davi Arrigucci Jr. também considera que tal

artifício traduz uma característica dos heróis murilianos. Segundo o crítico, há uma

―instabilidade do ser‖ (2001, p. 151) que sugere uma desconstrução intencional da

identidade do personagem; é o que ele denomina de ―identidade não fixada‖ (p. 151). O

estudioso afirma que ―a pluralidade de nomes e de seres instáveis carrega consigo, todo

o tempo, a dúvida quanto à identidade do ser‖ (p. 164). É possível notar em suas

narrativas que seus personagens recebem um tratamento dissimulado. Como muitas

vezes eles não possuem uma caracterização definitiva, transformando-se ao sabor do

desejo alheio, fica a impressão de que há ―uma perpétua procura e um contìnuo

desencontro‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 102). O conto ―Godofredo e suas mulheres‖, além

de sugerir a questão da loucura, transita por essa possibilidade de leitura, uma vez que o

próprio personagem não identifica suas mulheres e nem a si mesmo, construindo uma

suposta situação de loucura e/ou esquizofrenia, que funciona como um processo de

desconstrução de sua própria identidade.

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4. Narrativas comentadas de Murilo Rubião

A seguir, serão feitas as análises das narrativas de Murilo Rubião. Como forma

de direcionamento do trabalho, realizado durante a confecção desta tese, foram

escolhidos alguns temas que se fazem presente, com bastante frequência na obra do

autor. No entanto, para não fragmentar por demais os subcapítulos e de certa forma para

facilitar o desenvolvimento das interpretações dos contos, limitou-se as abordagens dos

mesmos em apenas cinco temas: a hipérbole, o incesto, a ambiguidade, a loucura e a

metamorfose. Porém, é importante salientar desde agora que a esquematização

priorizada aqui não tem a pretensão de ser a única capaz de solucionar as questões que

rondam as narrativas murilianas. Ela serviu para nortear a metodologia que seria

utilizada nas análises dos textos, e não como palavra final sobre as obras do escritor

mineiro.

4.1. A hipérbole

Um dos temas mais marcantes na obra de Murilo Rubião é o emprego da

hipérbole como uma estratégia usada para dimensionar a grandiosidade ou a pequenez

de um fato ou de uma situação qualquer. Tal dimensionamento vai do elemento mais

banal — como o crescimento injustificável das unhas de um personagem — até o

acontecimento mais representativo como, por exemplo, a construção de um edifício de

andares infindáveis. No entanto, como se verá a seguir, não importa a proporção desse

exagero na narrativa. O fato é que ele surge como uma forma de denunciar, demonstrar,

apontar, desnudar, criticar e caracterizar o universo no qual o homem contemporâneo

está inserido. Murilo consegue, com esse fantástico artifício, dar uma boa ideia de como

é a luta entre o indivíduo e os tormentos que assolam as pequenas e as grandes questões,

tanto pessoais quanto as coletivas, do sujeito moderno.

4.1.1. O Ex-mágico da Taberna Minhota

Tendo como base o livro Murilo Rubião: contos reunidos, da editora Ática, ―O

ex-mágico da Taberna Minhota‖ é o primeiro conto que possui o exagero como

mecanismo de ratificação do insólito. Nele, o narrador-personagem se apresenta como

alguém que não tivera um ―nascimento e um passado‖ (p. 9), fato este que já instaura o

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elemento sobrenatural na narrativa nas primeiras linhas. Segundo as palavras do próprio

narrador, ele não teve ―pais, infância ou juventude‖ (p. 7) e num dia é surpreendido com

os cabelos grisalhos. Nesse conto, as situações hiperbólicas têm início quando, sem

perceber, o mágico retira o dono do restaurante do bolso. Uma mágica aparentemente

ingênua, mas que traduz a relação direta entre o homem e os números, numa quase

paródia à ―Ode ao burguês‖, na qual Mário de Andrade critica o comportamento

ganancioso do burguês que ―algarisma‖ tudo o que toca22

. A partir daí, os

acontecimentos insólitos tomam uma proporção exagerada e as mágicas vão aos pouco

saindo do controle. Segundo Schwartz,

a hipérbole, como figura de retórica por excelência na poética do Autor,

apóia-se na repetição para sua formalização no discurso. Deste modo, o

número de objetos mágicos criados pelo ex-mágico mostra o aspecto

reiterativo das ações, que se repetem até a saturação (1981, p. 73).

Seus números – que desde o início serviram como uma forma de

entretenimento para todos que presenciavam os truques – na verdade tornaram-se

rapidamente uma maneira de o mágico tentar driblar o tédio de sua existência. Afinal,

ele ―nascera cansado e entediado‖ (p. 7). A ideia de exagero se intensifica com os

truques espontâneos e descontrolados que o personagem realiza, demonstrando que ele

não tem mais domìnio sobre sua arte e sua própria vida: ―urgia encontrar solução para o

meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu

desconsolo‖ (p. 10). Até mesmo a tentativa de suicìdio fracassa. Por fim, tornar-se um

funcionário público foi, ironicamente, a única forma de cessar as mágicas: ―confiara

demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia‖ (p. 13).

Agora, insatisfeito com sua nova função, o ex-mágico vive a nostalgia dos tempos em

que ainda conseguia retirar algo das mangas: ―Não me conforta a ilusão. Serve somente

para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico‖ (p. 13).

Note que a hipérbole nesse conto ocorre pelo acréscimo quantitativo [a auxesis23

] de

objetos e animais que o ex-mágico consegue fazer aparecer espontaneamente.

22 Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!

Fora os que algarismam os amanhãs!

ANDRADE, M. 50 poemas e um Prefácio interessantíssimo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. 23 Segundo Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários, a auxesis é ―uma espécie de ironia que

sobrevaloriza uma coisa que, pela sua natureza, não tem valor reconhecido (...). Neste caso, a auxesis ou

amplificatio só se distingue da hipérbole porque ocorre em contextos em que se combina com a ironia, o

que não é condição necessária à formulação de uma hipérbole‖. (Disponível em

http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&link_id=465:meiosis-ou-meiose&task=viewlink),

acessado em 09 de julho de 2015, às 21h: 41 min.

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De acordo com Pavla Lidmilová24

,

O aspecto fantástico dos contos de Murilo Rubião, das suas visões oníricas e

surrealistas ou das alegorias complicadas é extraído da psique humana. A

confrontação da sensação subjetiva e das relações sociais, do homem e das

suas circunstâncias, desemboca no diálogo com a tradição europeia de pensar

e de sentir, (...) e na crítica social (1991, p. 2).

Observando a citação acima, é possível dizer que, em linhas gerais, o conto

sugere uma interpretação existencialista, pois apresenta o homem como elemento

principal. Toda insatisfação e tentativa de fugir de uma vida sem sentido e cheia de

tédio refletem a crise do homem moderno. A mágica é um mecanismo de ilusão. Com

ela, cria-se uma realidade diferente da que se tem; o que proporciona uma visão onírica,

mas também crítica da existência do herói. Nesse caso, a narrativa insólita pode oferecer

duas críticas fundamentais: uma está diretamente relacionada ao comportamento do

homem diante de suas incertezas. Assim como o personagem, muitas vezes, o indivíduo

busca uma mudança, imaginando alcançar o êxito sem perceber que o que ele tinha

antes era especial. A outra crítica está relacionada à burocracia do serviço público, que é

capaz de aniquilar a criatividade e a liberdade do homem.

Para Sartre, liberdade é a ―possibilidade de dizer não‖. (...) a liberdade é o que

precisamente me estrutura como homem, porque é uma designação específica da própria

qualidade de ser consciente, de poder negar, de transcender (1970, p. 130). Desde o

início do conto, o personagem não goza de liberdade. Ele não está satisfeito com suas

mágicas nem consegue cessá-las. Não consegue sequer dizer não a si mesmo enquanto

mágico, tornando-se refém de sua própria condição. Enfim, o ex-mágico não tem

consciência de sua não-liberdade. Ele só a tem quando perde a capacidade de ilusionista

e cai na máquina burocrática que, por sua vez, o priva definitivamente da liberdade,

pois, agora, não há mais como retornar ao que era antes. Ele está preso em sua nova

realidade: ―Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços

vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite de fogos de artifìcio‖ (p. 13). Ser um

funcionário público equivale à morte em vida. É justamente nesse ponto que reside a

ironia de Rubião. O ex-mágico-funcionário-público é a imagem típica do homem em

busca de si mesmo.

24 LIDMILOVÁ, Pavla. ―O fantástico e os contos de Murilo Rubião‖. Suplemento Literário. Belo

Horizonte, v. 24, n. 1169, p. 2, set. 1991.

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4.1. 2. Bárbara

A começar pelo próprio nome, que denota algo grandioso, agressivo, ―bárbaro‖

e fora do comum, o conto ―Bárbara‖ é outra narrativa que se utiliza da hipérbole como

mecanismo deflagrador do insólito. O conto narra a história de Bárbara — uma mulher

que à medida que pedia algo diferente, engordava — e seu marido — um homem que

existia apenas para ―lhe satisfazer os caprichos‖ (p. 33). O problema era que os pedidos

dela, desde o tempo de infância, eram todos insólitos: ―Pediu o oceano. Não fiz

nenhuma objeção‖ (p.35), ―pediu-me um baobá, plantado no terreno ao lado do nosso.

(...) tive que adquirir toda a propriedade por preço exorbitante‖ (p. 36), ―Seria tão feliz

se possuìsse um navio! (...), escolhi o maior‖ (p. 37) e ―Não pediu a lua, porém uma

minúscula estrela‖ (p. 39). Fora isso, ainda nascera uma criança raquìtica e feia, que

pesava apenas um quilo e ―anos após o seu nascimento continuava do mesmo tamanho,

sem crescer uma polegada‖ (p. 37).

Como se pode constatar pela leitura dos fragmentos, o exagero está presente

nos desejos da mulher, na realização [ou na tentativa de realização] deles e na criança

indesejada. O comportamento de aceitação, submissão e normalidade do marido diante

das situações hiperbólicas intensifica ainda mais o caráter fantástico da narrativa.

Ambos vivem em uma realidade absurda. Por isso ele não estranha os pedidos. Sua

única preocupação reside no fato de que a cada exigência da mulher, ela engordava. Isso

o aterrorizava. Como consequência desse pavor, há a deformação da imagem que o

narrador-personagem tem do outro: ―seria terrìvel viver ao lado de uma mulher

gordìssima e um filho monstruoso‖ (p. 35).

O marido vive exclusivamente para satisfazer os desejos de Bárbara. De acordo

com Eliane Zagury, a mulher ―aniquila a vida de seu marido com seus desejos absurdos,

forjando uma caricatura impressionante da sua capacidade de absorção — engorda

monstruosamente‖ (p. 34). Por outro lado, para Audemaro T. Goulart, o marido ―parece

dominado por incrìvel masoquismo‖ (1995, p. 147). Seu prazer residia na angustiante

tarefa de deixar sua esposa feliz, adquirindo os objetos desejados. No entanto, mesmo

com todo exagero da mulher e toda dedicação dele, é possível observar alguns

elementos importantes referentes à relação desgastada do casal. Como o próprio esposo

sinaliza, não há mais entre eles uma relação amorosa de homem e mulher: ―nos

casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples

companheiros‖ (p. 33). Até mesmo o filho que nascera não foi fruto do afeto e carinho

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entre os dois: ―Bárbara o repeliu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o

ter encomendado‖ e (...) ―ela se negava a entregar-lhe os seios volumosos, e cheios de

leite‖ (p. 35). Essas passagens ratificam a ideia de que os dois viviam uma relação de

aparências e que o filho nascera de um não-desejo. Não havia sentimento, mas sim uma

relação de senhor e vassalo. A mulher estava presa aos seus desejos absurdos e o

marido, por sua vez, era escravo de seus caprichos insólitos. Talvez por isso a

necessidade de ter tantas coisas absurdamente grandiosas. Tê-las era preencher uma

lacuna deixada por alguma ausência.

Segundo Schwartz, ―são raros os momentos na obra do Autor em que o

elemento insólito, ou mesmo o sobrenatural, não se converte em trampolim metafórico

de uma crìtica social‖ (1981, p. 77). Nesse conto, como em tantos outros, pode-se

vislumbrar a construção de uma crítica a comportamentos corriqueiros e cotidianos que

se mostram inofensivos em um primeiro momento, mas que, na realidade, demonstram

uma perda da própria identidade e da condição de ser: as aparências, o consumismo, o

egoísmo e o materialismo da sociedade moderna. No conto, essa deteriorização da

identidade do ser tem sua culminância no desgaste da relação homem/mulher que já não

existe entre o marido e Bárbara. Nesse sentido, a deformação a que o narrador se refere

intensifica o caráter hiperbólico de desconstrução identitária de Bárbara: ―o corpo de

minha mulher que, de tão gordo, vários homens, dando as mãos, uns aos outros, não

conseguiriam abraçá-lo‖ (p. 38).

Por outro lado, é possível perceber que Murilo constrói uma crítica direta ao

comportamento consumista-burguês como sinalizadora do processo de aniquilação da

essência do ser. Primeiramente, o homem deveria ser; depois, ter. Aqui, ocorre o

contrário. Bárbara precisa ter para se realizar como pessoa; e o marido ratifica essa

necessidade quando deseja atender-lhe todos os pedidos sem medir esforços, mesmo

que isso signifique a negação absoluta de uma nova vida, metaforizada no filho que

nascera: ―O dinheiro escasso, desde a compra do navio, logo se esgotou. Veio a fome, o

guri esperneava, rolava na relva, enchia a boca de terra. Já não me tocava tanto o choro

de meu filho‖ (p. 38).

Outro fator que endossa a crítica construída ao longo da narrativa é o fato de

eles serem um ―modelo‖ de famìlia burguesa. Eles tinham dinheiro. Afinal, ele comprou

o terreno ao lado da casa deles por um ―preço exorbitante‖, comprou um navio e, como

o próprio narrador observa, ―já gastara uma fortuna com as suas excentricidades‖ (p.

37). Como é possível notar, eles eram uma família abastada financeiramente. Nesse

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ponto, percebe-se a ironia do autor em relação à futilidade de uma sociedade consumista

e materialista, personificada na figura de Bárbara, que vê na obtenção de bens materiais

a razão de ser. Seus pedidos são tão ou mais fúteis do que a própria vontade do marido

em realizá-los. Acredita-se que a intenção de Murilo tenha sido mesmo a de

ridicularizar esse tipo de comportamento que não mede esforços para possuir tudo o que

o dinheiro pode comprar. Segundo Pavla Lidmilová, ―a introdução do elemento

fantástico representa, para o autor, um modo de denúncia da hipocrisia e dos

preconceitos do ambiente pequeno-burguês‖ (1984, p. 81). Por isso o insólito. Ele

consegue dar a verdadeira dimensão dos valores que a sociedade moderna elegeu como

essenciais. A família, o afeto e o carinho não estão no rol das coisas relevantes, mas sim

a capacidade de ter.

4.1.3. A cidade

No início do conto, Cariba, o personagem principal envolvido nos

acontecimentos, está a caminho de uma cidade, quando o trem para na ―antepenúltima

estação‖ (p. 57), lá permanecendo. Ele é forçado a caminhar até a cidade que desejava.

No caminho, faz algumas perguntas ao funcionário que o acompanha, recebendo dele

apenas resposta frias e secas. Percebe que as ruas estão vazias e as janelas estão

fechadas. Ao chegar à cidade que desejava, nota que os habitantes de lá o observam

com desconfiança. Logo em seguida, ele é preso pelos militares locais sob a alegação de

que o motivo da prisão era porque perguntava demais.

O exagero nessa narrativa está presente na relação entre o indivíduo e o mundo

que o cerca. Nessa relação, ―o modo pelo qual o herói tenta se integrar ao seu meio

delimita o percurso absurdo do indivìduo dentro da sociedade‖ (Schwartz, 1981, p. 39)

e cria um confronto entre a realidade e seus desejos, gerando um processo de

desajustamento entre o indivíduo e o meio em que está. Essa situação pode ser

constatada logo no início do conto, quando Cariba imagina que havia uma ―provável

desconsideração à sua pessoa‖ (p. 57) pelo fato de o trem estar parado por muito tempo.

O interesse dele eram as ―Belas mulheres?‖ do local; no entanto, ao indagar sobre isso

ao policial, recebe como resposta seca: ―Casas vazias‖. Essas passagens denotam esse

desajuste do sujeito com a realidade local. Tal fato fica ainda mais evidente quando o

policial lhe pergunta o que fora fazer ali e ele responde: ―Nada‖ (p. 59), fato este que

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confirma as suspeitas do militar: ―Então é você mesmo. Como é possìvel uma pessoa ir

a uma cidade desconhecida sem nenhum objetivo?‖ (p. 59). Há, nessa relação, um tom

irônico que evolui paulatinamente para o cômico. Nota-se claramente que a comicidade

do acontecimento fica mais evidente quando as testemunhas do suposto crime não são

capazes de incriminar o meliante, mas somente Viegas, a prostituta local, teria

condições de fazê-lo.

Nesse aspecto, percebe-se que o exagero das ações dos militares — somado ao

dos homens usados como ―testemunhas‖— serve para reforçar a idiotização do sistema

que elege culpados sem provas, necessitando absurdamente da palavra final de uma

prostituta. Esse fato ridiculariza a credibilidade da polícia que se vê a mercê da

criatividade [ou não] de Viegas. Não se sabe, ao certo, se Cariba disse a ela que ―É

preciso conspirar‖ (p. 60) ou se ―Não é necessária a polìcia‖ (61). Isso não fica claro

porque na narrativa o personagem não desmente nem confirma o que é dito pela mulher.

Ele apenas a olha sem esboçar reação. Enfim, o fato é que — dando aos militares o que

os mesmos queriam — a prostituta descredencia o trabalho investigativo da polícia,

jogando por terra qualquer seriedade que se possa esperar do ―sistema repressivo de

uma cidade‖ (1981, p. 78). É por isso que Cariba configura-se como uma ―força

transgressora‖. Sendo ele de fora e não se adequando ao padrão local, transgride a

suposta normalidade das coisas; uma normalidade absurda, mas plausível para aqueles

que defendem o sistema.

Depois de ouvir o pequeno relato de Viegas, a única coisa que o narrador diz

sobre o personagem é que ―Cariba sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher.

Que corpo tivera nas mãos!‖ (p. 61). Ou seja, ele estava mais interessado na mulher —

que enfim encontrara — do que na situação toda que se descortinava diante de si, o que

demonstra, também, que esse pseudo-herói foi colocado ali justamente para que a

engrenagem social funcionasse e se mostrasse eficaz; ele era necessário. É nesse sentido

que Schwartz afirma que ―a presença do acusado, mais do que necessária, torna-se

elemento vital justificador do sistema legislativo social‖ (1981, p. 78), mesmo que tal

elemento esteja, numa análise contextual da situação, ridicularizando todo o sistema.

Isso se dá pelo caminho inverso. Cariba representa o indivíduo assolado por um sistema

ineficaz. No entanto, ele passa a aceitar seu martírio passivamente se isso lhe trouxer a

oportunidade de ver a prostituta que, por sua vez, representa a anulação completa de sua

identidade e de sua liberdade enquanto ser pensante. Depois dela, nada mais importava.

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Por último, há dois fatos que ratificam o exagero da burocracia e da inexatidão

das informações prestadas pelas pessoas envolvidas em todo processo acusatório: o

conteúdo do comunicado que chegou à cidade, dizendo que ―O homem chegará dia 15,

isto é hoje, e pode ser reconhecido pela sua exagerada curiosidade‖ (p. 62) e as frases

ambíguas de Viegas. No primeiro caso, é informado o dia, mas não o mês nem o ano em

que ocorrerá tal fato, o que deixa a mensagem muito vaga. Esse fato enfatiza o teor

irônico da narrativa. Como pode a burocracia de uma cidade capturar, prender, julgar e

sentenciar alguém baseado em uma informação tão frágil como a do comunicado que

chegou ao lugar? E mais! Como numa cidade correta e séria, poderia a palavra de uma

prostituta ter tamanho peso? Certamente, essas coisas são uma forma de ridicularizar a

todos os sistemas que agem de forma semelhante, descredenciando o indivíduo e dando

crédito àqueles escolhidos a dedo pelos que estão no poder. No segundo caso, as frases

da mulher são confusas. Quando ela diz ―Não me lembro do seu rosto, mas um e outro

são a mesma pessoa‖ (p. 61), demonstra imprecisão e, logo depois, afirma ―Sim, é ele‖

(p. 61), acusando-o firmemente, há algo que demonstra a montagem de uma cilada para

Cariba. Inicialmente, Viegas, assim como os outros policiais, vê na prisão do

desconhecido uma chance de se encaixar no sistema. Contudo, mesmo diante de tal

possibilidade, ela oscila. No final do conto, quando ela, ao visitá-lo na cadeia, diz ―É

você‖ (p. 63) e o narrador acrescenta a informação de que ―Cariba sente o imenso poder

daquela prisão‖ (p. 63), percebe-se que tanto a frase dela quanto a do narrador torna-se

ambígua dentro do contexto da narrativa, indicando que Viegas tinha um poder sobre

ele parecido ao que ela exercia sobre os militares e os homens daquela cidade. A prisão

a que o narrador se refere demonstra o domínio de Viegas sobre Cariba que, àquela

altura dos acontecimentos, faria qualquer coisa para poder continuar a vê-la, inclusive

aceitar a culpa.

4.1.4. O homem do boné cinzento

O conto narra uma história em que o narrador, Roderico, e o irmão, Artur,

recebem como vizinho um homem que usa um boné cinzento e ―entre os dentes escuros

trazia um cachimbo curvo‖ (p. 72). São dois os fatos insólitos nessa narrativa que

chamam muito a atenção: o velho Anatólio que já chega à vizinhança magricela e vai

aos poucos emagrecendo, tornando-se transparente, até que no final, ele deixa ―escorrer

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uma baba incandescente pelo tórax abaixo‖ (p. 75) e incendeia-se, restando apenas a

cabeça encoberta pelo boné cinzento e o cachimbo que se apaga no chão. O outro fato

insólito ocorre com Artur, o irmão do narrador-personagem que, semelhantemente ao

velho, também vai sumindo aos poucos, encolhendo e, no final da história, transforma-

se em uma bolinha negra.

Contrariamente ao que ocorreu no conto ―Bárbara‖, a hipérbole em ―O homem

do boné cinzento‖ tem um caráter invertido (tapinosis). Ela serve para marcar o

desaparecimento gradativo tanto de Anatólio como o de Artur. É possível perceber que

o autor constrói um jogo antitético, criando uma relação em que a hipérbole enfatiza a

duplicidade dos fatos e/ou dos acontecimentos. Nota-se essa estratégia já no início do

conto, quando um velho solitário chega à vizinhança com uma mobília extravagante

para morar numa casa em ruìnas. Passagens como ―Além de ser demasiado grande para

uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços‖ (p. 71), ―A quantidade de volumes,

empilhados na espaçosa varanda do edifìcio‖ (p. 71) e ―Possivelmente a casa havia sido

alugada para depósito de algum estabelecimento comercial‖ (p. 71) realçam o exagero

da situação, reforçando o jogo entre os opostos: um velho solitário x mobília enorme e

rico celibatário x casa em ruínas.

Do mesmo jogo antitético, fazem parte o narrador e o irmão Artur. Este está

―sempre ao sabor de exagerada sensibilidade‖ (p. 71) e Roderico — de acordo com a

narrativa — se apresenta mais centrado e focado, sem dar asas à curiosidade e ao

exagero que controlava o irmão: ―Eu me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse,

nem se ocupasse tanto com a vida dos outros‖ (p. 73) e ―Impelido pela curiosidade, meu

irmão não me dava folga‖ (p. 73). Como se pode perceber, os dois irmãos também são

colocados nesse jogo de contrastes que percorre a narrativa. No entanto, só começa a

ocorrer uma ruptura desse caráter duplo dos fatos, quando Roderico percebe que o

irmão muda suas feições. Ao dizer ―Não tanto pelo magricela, que pouco que

importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-

lhe os olhos‖ (p. 74), o narrador sinaliza ao leitor que se opera uma mudança

semelhante à do velho em Artur: ele também estava emagrecendo. A culminância desse

processo se dá ao término da narrativa, quando o irmão de Roderico transforma-se em

uma bolinha preta.

Chega um momento em que o homem do boné cinzento, além de magro ao

extremo, também fica transparente. Esse fato surreal chama mais a atenção de Artur e

assusta a Roderico que percebe a possibilidade de ver através do corpo do homem os

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objetos da casa se misturando aos órgãos internos. É como se a casa e Anatólio fossem

uma coisa só. No entanto, indiferente ao que lhe acontecia, Artur não percebe que

quanto mais insólita se tornava a situação de Anatólio, a dele também se agravava. É

nesse sentido que Audemaro T. Goulart diz que ―a tragicidade põe a descoberto a

fragilidade de Artur, realçando-lhe a incapacidade de desligar-se da inusitada figura de

Anatólio‖ (1995, p. 125). Artur se deixa levar pela observação exagerada do outro a tal

ponto que não nota que ele mesmo segue os paços do velho do boné cinzento. Tanto a

morte do homem do boné cinzento como a de Artur são retratadas de forma surrealista.

Assim como em outros contos de Murilo Rubião, essa narrativa apresenta

algumas possibilidades de leitura. Aqui, levar-se-á em conta o homem que se configura

no espaço do texto. Como não é difícil perceber, o velho Anatólio era um homem

solitário. Não se sabe se por escolha ou consequência da vida. É por esse caminho que

se julgou mais propícia a interpretação do presente conto. Acredita-se que um dos temas

que esteja presente nele é justamente a solidão do homem. Um homem que viveu toda

sua vida e ao chegar ao final dela encontra-se só e desamparado. Esse ser concentra em

si a síntese do mal Pós-Moderno. Ele é reconhecido pelo que tem e não pelo que é.

Chegar à velhice com uma mobília grandiosa e morar numa casa grande não são

indicativos de que esse indivíduo esteja rodeado de pessoas reconhecedoras de suas

conquistas.

Nesse aspecto, pode-se aventar que ir gradativamente emagrecendo indica

metaforicamente a situação do homem que num processo de insulamento vai aos poucos

se apagando da memória de todos, até se encontrar com a inevitável morte. Por isso

Murilo utilizou essas duas alegorias: o emagrecimento e a transparência. A primeira

conota a situação do ser em definhamento tanto físico quanto emocional; e a segunda, a

concretização do fim inevitável que o afastamento do convívio social pode trazer ao

homem. Isso também é possìvel perceber no conto ―Alfredo‖, em que o personagem-

peregrino transmuta-se em um dromedário e é visto por todos da cidade como um

animal. É por isso que é correto dizer que o homem é um ser essencialmente social. A

solidão fez com que Anatólio se fundisse aos utensílios de sua casa. Homem e objetos

passam a ser a mesma coisa. É o indivíduo coisificado no seu espaço de vivência. Ver

através dele as ―jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins‖ (p. 74) é dizer

que o velho não era mais. O processo de desconstrução do ser atinge seu ápice nesse

momento da narrativa. E, por último, não é à toa que ―o coração parecia estar

dependurado na maçaneta da porta‖ (p. 75). Metaforicamente, isso remete à ideia de

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abandono. É possível conjecturar que esposa, filho [ou filhos], amigos, parentes e

pessoas que compuseram a vida de Anatólio simplesmente se foram ou o abandonaram,

deixando-o solitário para viver seus últimos dias.

4.1.5. Memórias do contabilista Pedro Inácio

Pedro Inácio, nome herdado do tataravô, narra suas memórias, tentando

justificar sua ―irresistìvel atração pelo amor e pela contabilidade‖ (p. 106). Para isso, ele

enumera dez pessoas que fizeram parte de sua historia. Relembrando as mulheres que

de alguma forma influenciaram em sua vida amorosa e tentando reconstruir sua árvore

genealógica, numa possível busca por repostas ao seu amor pelas mulheres e pelos

números, Pedro Inácio compõe um memorial que passa ao leitor a certeza da incerteza

de tudo o que está rememorado ali.

Não há como iniciar a leitura desse conto sem perceber a influência que

Machado de Assis exerceu sobre Murilo. A primeira parte das memórias remete o leitor

ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que também fica evidenciado em

uma das citações que antecede o conto. Por esse motivo e pelo tom que se instaura na

narrativa, pode-se perceber certo teor de ironia do narrador em relação à sua história e à

de seus supostos parentes. De certa forma, essa ironia ajuda a enfatizar o exagero das

ações dos antepassados do narrador-personagem no contexto, uma vez que ela auxilia

na construção de um relato grandioso e muitas vezes cômico das memórias de Pedro

Inácio. O desejo de conhecer suas raízes era tão intenso que o próprio personagem

reconhece que, depois de Dora —―uma espanholinha cor de lìrio, que gostava de dança

clássica e mascar chicletes‖ (p. 106), ele adquiriu uma verdadeira ―obsessão de

consultar alfarrábios e viver vasculhando árvores genealógicas‖ (p. 106).

O tom exagerado e irônico continua quando o narrador cita José Antônio da

Câmara Bulhões e Couto. Segundo ele, um beberrão que escreveu dez volumes que

discorriam sobre a utilidade das bebidas, e seis que abordavam o caráter não hereditário

do vício no álcool. O exagero está na quantidade de exemplares produzidos em uma

pesquisa que, ironicamente, não fora comprovada e não servia para nada. Seria isso

mais um ―emplasto‖? O lado cômico da situação fica reservado à constatação de que o

tal ancestral morreu de desgosto quando soube da morte de seus bisavós por causa de

cirrose hepática.

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Outros personagens tão representativos e cômicos quanto José Antônio surgem

no decorrer da história: o piedoso e milagroso bispo Basílio da Câmara Bulhões e

Couto, o tataravô Pedro Inácio, o viajante Acácio, Tio Paulo, A Jandira, de inspiração

machadiana, Aspásia e Dora — que surge no início e retorna modificada no final do

conto —. Todos eles apresentam algum elemento que lhes aproxima a descrição na

narrativa do discurso irônico, cômico, materialista e, claro, exagerado: ―Quem chegar a

ler essas páginas poderá pensar que estou exagerando. Todavia, incorrerá em erro‖ (p.

107). A negação do exagero é consciência de que tal leitura é possível.

Como já foi dito anteriormente, as descrições dos personagens são marcadas

por situações inusitadas e grandiosas que denotam características marcantes de cada

uma delas. As mulheres estão diretamente relacionadas com o dinheiro gasto com elas

ou a recompensas. Jandira ―custou sessenta mil-réis de bonde, quarenta de

correspondência, setenta de aspirina‖ (p. 105); Dora custou ―algumas dúzias de

chicletes, cinco bilhetes de festivais (...), uma caixa de orquídea e apenas dois envelopes

de aspirina‖ (p. 106) e Aspásia, a noiva, deu-lhe um grande prejuízo, pois ele afirma:

―Como é dispendioso um noivado! Até hoje não sei em quanto me ficou esse meu

desafortunado romance‖ (p. 106). Nota-se que não se faz referência ao sentimento dele

por elas. Na verdade, todos os relacionamentos de Pedro Inácio estão racionalmente

identificados com um valor, o que sugere não a importância do sentir, mas sim quanto

se gasta para se ter tal luxo. Como é possível perceber, a equivalência entre

relacionamento e dinheiro é completa no texto. Segundo Schwartz, ―cada uma das

tentativas de relacionamento do herói é equacionada em termos econômicos, (...). Deste

modo, a pessoa nunca é identificada por aquilo que ela é, mas pelo que ela custa‖ (p.

35).

Ironicamente, os supostos parentes homens que aparecem no conto estão

vinculados a algum tipo de relacionamento [ou desejo] amoroso fracassado. O único

que foge a essa regra é o José Antônio, que morreu de desgosto. Ele ―não resistiu à

derrocada de suas teorias e criou, assim, uma lamentável exceção entre os da minha

honrada estirpe‖ (p. 107). O bispo Basìlio da Câmara morreu murmurando o nome de

uma chinesinha excepcional que não lhe retribuiu o amor; o tataravô Pedro Inácio,

depois de escalar a parede para chegar ao quarto das mulheres de uma fazenda, foi

encontrado morto ―vitimado por uma fratura na espinha. Morrera gloriosamente,

buscando o amor, entre queijos e cebolas‖ (p. 108); o viajante Acácio morreu

abandonado em Roma. No entanto, ―não se sabe se de fome ou paixão‖ (p. 108) e ―Tio

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Paulo, que sempre limitou suas conquistas ao elemento africano‖ (p. 109), teve lepra e,

depois de alforriar suas escravas, por elas foi tratado até a sua morte. Nesse caso, não

houve ali um relacionamento amoroso entre um homem e uma mulher, mas sim um

reconhecimento por parte das escravas que o acolheram nos seus últimos dias de vida.

De certa forma, essas figuras masculinas estão envoltas em situações grandiosas em

nome de um amor que não se realiza porque, na verdade, não existia. Sendo assim, a

busca pela árvore genealógica torna-se a negação do amor e a ratificação do

materialismo comum àqueles homens que viam as mulheres desejadas como algo a ser

adquirido, como se fossem um bem material ou um bibelô.

Por último, falta dizer que ao buscar as causas de sua atração pelo amor e pela

contabilidade, Pedro Inácio elenca alguns antepassados que dizem a ele mais do que a

própria genética familiar. Embora aqueles homens não fossem realmente seus parentes

— porque fora trocado na maternidade e sua mãe tinha hábitos extravagantes à época —

há certa semelhança entre eles. Não é gratuito que o conto intitula-se ―Memórias do

contabilista Pedro Inácio‖. Em todas as situações nas quais ele está diretamente

envolvido, há uma referência direta ao dinheiro. Quando fala de si mesmo, desde o

primeiro parágrafo do conto até o último, Pedro Inácio dá a entender que para ele o

amor é um bem que o dinheiro pode comprar. Todas as mulheres que lhe passaram pela

vida foram ―pagas‖ de alguma forma. Esse comportamento atinge seu ápice quando, no

final da narrativa, depois de se encontrar com uma Dora mais ―gorda e flácida‖ (p. 110),

saìda de um sanatório, ele não dá importância ao fato e afirma que ―foi uma tarefa dura

a de refrear minha curiosidade em saber quanto lhe custara a estada no sanatório, talvez

bem mais do que meus estudos de genealogia‖ (p. 111). O mais importante era saber os

números, a quantia gasta e não como estava a pessoa. Ou seja, a história de seus

supostos parentes, na verdade, se confunde com a dele, que vê o amor e todas as

mulheres como algo mensurável pelo capital.

4.1.6. D. José não era

O conto inicia com um fato que serve como trampolim para a própria narrativa:

―uma explosão violenta sacudiu a cidade‖ (p. 125). A partir desse fato, surgem

conjecturas a respeito do que teria provocado tal acontecimento. No meio das tentativas

de adivinhação, surge o nome de D. José. Alguns diziam que o estrondo era porque ele

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estava ―matando a esposa a dinamite‖ (p. 125). Por fim, logo alguém percebe que

Danilo José Rodrigues, o D. José, estava apenas ―experimentando fogos de artifìcios‖

(p. 126). No entanto, mesmo sabedores do motivo da explosão, a turba continua a tecer

os mais diversos comentários a respeito de Danilo José Rodrigues, inclusive depois do

suicídio do personagem.

Sem sombra de dúvida essa narrativa poderia figurar no rol das histórias que

apresentam a ambiguidade como um dos temas centrais. A começar pelo próprio título

do conto ―D. José não era‖, nota-se que o leitor é levado, depois da leitura integral do

mesmo, a se questionar: não era o quê? Bom? Ruim? Marido fiel ou infiel? Assassino?

Vítima? São? Louco? Enfim, essas perguntas podem ser levantadas no decorrer da

história e gerar um sentimento de ambiguidade porque nenhuma delas é claramente

respondida nem pelos curiosos de plantão nem pelo texto em si.

No entanto, decidiu-se colocá-lo no sub-capítulo que aborda a hipérbole

porque, embora a ambiguidade esteja presente no conto, é através do exagero que se

constrói a narrativa. Os fatos elencados pelos curiosos são de natureza incerta, sempre

seguidos de uma possibilidade contrária à primeira e realçados por uma ideia exagerada

logo a seguir. Nota-se isso no início do conto, quando as explosões de fogos de

artifícios são duvidosamente relacionadas ao fim do mundo, a bombardeios, a exercícios

de artilharia e a uma invasão misteriosa. Porém, a única ideia com a qual todos

concordaram foi o fato de D. José estar matando a mulher com dinamite, o que, por sua

vez, dá a dimensão do tamanho dos absurdos que se poderia esperar daquelas pessoas.

Houve ainda quem duvidou de que a dinamite tivesse sido insuficiente para matar a

esposa e, por isso, D. José fora forçado a lançar mão do revólver. A partir daí, o insólito

está definitivamente instaurado na história. Somente em uma narrativa fantástica, um

revólver seria capaz de causar um estrago maior do que o de uma dinamite.

Há uma tragédia anunciada. Para Davi Arrigucci Jr., ela é uma espécie de

sacrifìcio, ―imposto como rotina necessária e corrosiva. Um trágico manejado a conta-

gotas, diluído no cotidiano, capaz de consumir os personagens em meticulosa morte

lenta‖ (2001, p. 159). Tivesse ele ódio da mulher ou a amasse; fosse o casamento deles

baseado em sentimento ou em interesse; houvesse meninos chorando de fome ou todos

mortos pela tuberculose; fosse ele um escritor de fábulas ou um louco que via duendes

em sua própria casa, a questão é que todas essas incertezas contribuíram para o fim

trágico de D. José. O suicídio dele era apenas uma questão de tempo. Todavia, até

mesmo o suicìdio não fora levado a serio pelos populares. Segundo Goulart, ―a

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submissão a um destino impiedoso está caracterizada na impossibilidade de ele livrar-se

das injúrias e difamações de que era vìtima‖ (1995, p. 148). Há uma relação de causa e

consequencia. O fim trágico do personagem era inevitável. No entanto, ele não foi

suficiente para resgatar a dignidade do protagonista, pois depois da morte de D. José

alguns ainda difamavam sua memória. Nesse aspecto, percebe-se a ironia muriliana que

vê no dilaceramento social do indivíduo um dos males da sociedade contemporânea.

Esse dilaceramento social do indivíduo fica mais evidente quando um dos populares diz

que o povo ―Observava-o com ferocidade‖ (p. 127). Sendo assim, D. José se transforma

aos poucos em um ―elemento estranho que motiva as pessoas a emitirem juìzos de

valores a seu respeito‖ (SCHWARTZ, 1981, p. 79). A partir desse momento, a morte do

personagem é apenas uma questão de tempo. Caso não se matasse, uma outra morte

seria arranjada para ele.

É possível perceber que a relação que o mundo mantém com o indivíduo que

nele habita é o tema norteador dessa narrativa. O herói dela tem seu destino traçado

pelas consequências das difamações e injúrias construídas a seu respeito ao longo do

conto. O fim inevitável é ratificado através de um discurso em que se mesclam um tom

disfarçadamente sério e a graça mordaz, onde a ironia e a comicidade dos fatos servem

para realçar a crueldade de uma sociedade que proporciona o ―esquartejamento‖ público

do personagem enquanto ela se delicia com isso. É por isso que se pode relacionar este

conto ao existencialismo sartreano. Se de um lado, o homem aparece como elemento

central desse quebra-cabeça social violento, em que a dilapidação identitária faz parte

de um ritual legitimado pela sociedade; por outro, — encarcerado em um universo em

que o trágico e o cômico contribuem para uma desconstrução do indivíduo — esse

homem priva-se da liberdade que poderia dar-lhe a completa sensação de ser. Por isso

há o suicídio no fim do conto. Simplesmente porque D. José não era.

4.1.7. A lua

Neste conto, o narrador tem verdadeira obsessão por um personagem. Todas as

noites, sua única ocupação era ―vigiar os passos de Cris‖ (p. 133). Encostado ao muro

da casa observava sua vítima sem medo de ser descoberto. A rua era escura e deserta.

Cris caminhava pela escuridão percorrendo o mesmo trajeto de todos os dias, parando

em alguns momentos para recolher alguns objetos insignificantes que encontrava pelo

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chão e que seriam posteriormente descartados. Passados alguns meses de perseguição,

numa noite qualquer, o narrador é surpreendido pela mudança no itinerário da vítima.

Depois de parar hesitante em frente a um cinema e de passar ―pela rua do meretrìcio‖

(p. 135), o personagem para diante de uma casa e ali tem um punhal mergulhado em

suas costas. Ele vai ao chão e do ―seu corpo magro saiu a lua‖ (p. 135). Uma prostituta

errante ―agarrou-a nas mãos‖ (p. 135). A mulher chora e deixa a lua escapar por entre os

dedos. O narrador se abaixa para ver o rosto de Cris e percebe que sua vítima possui um

―rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de massa‖ (p. 135).

A narrativa é curta. São apenas duas páginas e meia. No entanto, é, sem sombra

de dúvida, um daqueles contos em que o leitor termina a leitura em um verdadeiro

xeque-mate, imaginando respostas para algumas perguntas. Por que a fixação no

personagem? Quem é esse narrador? Quem é o Cris? Por que ele fazia o mesmo

percurso todas as noites? Por que, no dia do assassinato, ele mudou seu itinerário?

Enfim, há muitas dúvidas que se fazem presente quando da leitura do conto e que, na

verdade, nenhuma delas se esclarece por si só.

Audemaro Taranto acredita que essa narrativa serve como modelo para uma

análise que se desenvolve a partir de uma teoria freudiana. Para ele, ―a fixação do

narrador em Cris e o seu mórbido desejo de matá-lo encontram ressonância na teoria

psicanalìtica do duplo‖ (1995, p. 149). Por essa abordagem, Cris seria o duplo do

narrador-personagem. Há uma identificação entre este e aquele. Por isso o desejo de

conhecê-lo, de seguir seus passos, de saber suas manias e de matá-lo. Tanto um quanto

o outro são pessoas que vivem isolados socialmente. Dessa forma, o narrador começa a

perceber um elo que estabelece uma identidade entre ambos e que, de certa forma, o

torna dependente de Cris. Por isso, o desejo de matá-lo é uma forma de ele ―se libertar

do medo da morte‖ (1995, p. 153); morte esta que é tanto a fìsica quanto a social a que

os dois estão fadados.

Eliane Zagury e José Schwartz consideram o conto um exemplo de narrativa

em que elementos cristãos estão relacionados. Zagury afirma que ―o aspecto religioso

está claro no nome e na caracterização da vìtima‖, (...) assim como na figura da

prostituta que assiste à morte e detém a ascensão da lua (1971, p. 29). Sendo assim, o

assassinato de Cris — uma forma abreviada de Cristo ou de Cristão — era algo

inevitável. Dando maior profundidade a esse pensamento, Schwartz considera que o

conto foi estruturado a partir de estratégias narrativas que se desenvolvem em ―oposição

binária‖ (1981, p. 73): o perseguidor e o perseguido, luz e trevas; vida e morte, Cristo e

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Judas, pecado e redenção. Para ele, Cris opõe-se ao narrador-personagem em alguns

aspectos. Há serenidade em seu comportamento, pois ―ele nunca se inquietava com o

que poderia estar se passando em torno dele‖ (p. 133). Cris possui luz, pois,

metaforicamente pensando, a lua que lhe sai do corpo depois de sua morte aponta para

essa ideia. Ter luz é ter vida. Seus olhos são claros e infantis, demonstrando a pureza do

personagem. Contrária a esses elementos todos é a condição do narrador-personagem.

Não há luz nele: ―Nem luz, nem luar. O céu e as ruas permaneciam escuros‖ (p. 133).

Ora, se luz é vida, a ausência dela é morte. Na narrativa bíblica, o personagem que se

opôs a Cristo foi Judas. Aqui, se se considerar que Cris representa a figura de Cristo,

não é descabido imaginar que o narrador ocupa a posição de Judas; aquele que deu o

―último golpe‖ no messias. Há, inclusive, passagens no texto que possibilitam uma

referência entre o narrador e aquele personagem bìblico [Judas]: ―Sombras maliciosas e

traiçoeiras vinham a meu encontro‖ (p. 133), ―A profunda escuridão que nos cercava‖

(p. 133) e ―já me acostumara ao negro da noite‖ (p. 134). Nelas, notam-se elementos

que conotam a ideia de um ser que vive sob a influência do mal, das trevas e da

escuridão. É importante também ressaltar o fato de o assassinato ter sido cometido

traiçoeiramente pelas costas, semelhante ao da narrativa cristã. Judas trai a confiança de

Cristo, entregando-o aos soldados romanos. No conto de Murilo, a traição é tipificada

no apunhalamento pelas costas, indicando a covardia da ação. Afinal, se o assassino

olhasse para o rosto infantil, os olhos azuis e o sorriso de massa do homem talvez não

tivesse tido coragem de realizar tal ato.

Conhecendo a biografia de Murilo, o ano da primeira publicação do conto

[1953], a ligação que ele mesmo reconhece ter tido com o Cristianismo e considerando

a teoria existencialista, acredita-se que a segunda visão apresentada tenha mais respaldo

no contexto geral da obra do autor. O que não quer dizer que a de Audemaro Taranto

esteja em desacordo, até mesmo porque a narrativa de Murilo vez ou outra passeia pelos

caminhos do duplo a que ele se referiu. No entanto, considerando que o homem aparece

como núcleo da narrativa e o elemento insólito surge a partir dele, é importante salientar

que mais relevante que a duplicidade desenhada na narrativa é a questão desse homem

que se encontra deslocado da sociedade por achar que não pertence a ela. Por isso houve

o ―julgamento‖, a ―condenação‖ e a ―crucificação‖. A morte de Cris simboliza, de

acordo com Schwartz, ―a condenação do homem ―puro‖, que não poderia viver na

sociedade sem ser contaminado por ela‖ (1981, p. 76). Essa suposta pureza também está

representada na lua que sai do corpo do personagem e no sorriso sem malícia estampado

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tanto no rosto da boneca como no dele no final do conto. Nesse sentido, pode-se dizer

que a morte do personagem simboliza a ideia de liberdade; uma liberdade que o homem

não tem em vida. Tanto Cris como o narrador não são sujeitos de suas próprias vidas.

No julgamento do assassino, Cris está preso à rotina de todos os dias. Seu

comportamento é parecido ao de alguém que caminha sem rumo e sem motivo aparente

pelas ruas da cidade, observando um mundo no qual não se encaixa direito. É

justamente nesse ponto que reside a identificação entre um e outro. Segundo o

observado-assassino, matar Cris equivaleria a possibilidade de ser livre para ambos: um

estaria liberto de um mundo para o qual não estava preparado; o outro, de uma vida sem

sentido.

4.1.8. Os dragões

Esse conto relata a chegada de um grupo de dragões a uma cidade. Desde o

primeiro momento em que chegaram, eles ―sofreram com o atraso dos costumes‖ (p.

137) do lugar e com a incompreensão e ignorância do povo. Alguns achavam que eles

pertenciam a uma raça ou país diferentes; o vigário, inicialmente, pensava que os seres

alados eram ―enviados do demônio‖ (p. 137); ―um leitor de jornais, com vagas ideias

científicas (...) falava em monstros antediluvianos‖ (p. 137). Em sua maioria, porém, o

povo acreditava que os dragões eram criaturas abomináveis. Somente as crianças

sabiam que eles eram apenas dragões. Nota-se claramente já no início do conto que

Murilo tece uma ironia crítica na qual ele convida o leitor a refletir sobre o

comportamento próprio do ser selvagem e do civilizado. É possível identificar uma

inversão nos valores e nos papéis dos seres envolvidos nessa crítica: aqueles que

deveriam agir como selvagens [os dragões], são puros enquanto não são corrompidos

pelos homens; já os supostos civilizados agem como se não o fossem.

O elemento fantástico nesse conto surge a partir do momento em que os dragões

aparecem na cidade. Não há nenhum espanto por parte dos habitantes dali. Goulart

considera que

Nessa narrativa, a normalidade caracteriza-se numa espécie de harmonia

entre o natural e o sobrenatural, quando o leitor percebe que nenhum espanto

existe numa convivência absolutamente normal que se estabelece entre

dragões e seres humanos, numa determinada cidade (1995, p. 26).

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Embora eles não vissem com bons olhos a chegada dos animais, nenhum dos

moradores achou estranho o surgimento de tais criaturas. Há uma perfeita harmonia no

que diz respeito à existência delas. No entanto, o insólito ganha uma dimensão maior

quando os dragões começam a ser tratados como pessoas. O padre até pensou em

batismo e alfabetização. Logo, com o convívio com os humanos, o comportamento dos

dragões foi se corrompendo e começaram a agir como seres inconsequentes, dados ao

vício da bebida, a mulheres e à vida boêmia. Aos poucos as criaturas foram

desaparecendo, até que só restou João, que sumira misteriosamente da cidade logo

depois da partida de um circo. Por fim, o conto termina relatando a rejeição que os

dragões criaram em relação ao lugar e às pessoas dali, e ―formando longas filas,

encaminhavam-se para outros lugares‖ (p. 142), fugindo da cidade.

Em ―Os dragões‖, a noção que se deseja passar em relação ao exagero não está

diretamente ligada à grandiosidade, ao aumento, à pequenez ou à diminuição de um

objeto, de um desejo ou de uma habilidade. Neste caso específico, a hipérbole pode ser

observada na relação exageradamente pessimista de como o ser humano é visto pelo

professor-narrador. O caráter e o comportamento humanos aprecem nesse conto como

algo profundamente negativo e aniquilador, de tal forma que fica sugerido no final do

conto um ―exìlio‖ para a raça humana. Ela deve ficar isolada e longe dos dragões, ou de

qualquer ser ―puro‖. Por esse motivo, é possível dizer que ele — o exagero — está

apoiado na capacidade destrutiva que o homem tem de aniquilar tudo o que toca.

Inclusive a pureza dos dragões que se encontra identificada no conto pelo fato de

―apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, saberem que

os novos companheiros eram simples dragões‖ (p. 138). Ratificando a ideia de pureza

dos animais, Jorge Schwartz assinala que ―o dragão surge como elemento puro, sem

contexto nem história, e instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade‖

(1981, p. 40). No entanto, essa identidade se esvai à medida que os dragões crescem e

almejam uma vida humana.

Como se vê, não é difícil perceber que Murilo Rubião constrói uma narrativa

metaforicamente insólita para abordar questões que tangenciam elementos que

compõem uma visão crìtica e pessimista da sociedade. Para Schwartz, ―a sociedade

configura-se, assim, como elemento contaminador e propagador do mal‖ (1981, p. 41),

ou seja, fazer parte dela é correr o risco de se deixar contaminar pelo homem e seus

comportamentos desumanos. Segundo Eliane Zagury, nesse conto há uma ―tentativa de

absorção social (a educação dos dragões), mas, desta vez, a perspectiva é da sociedade e

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não do indivìduo‖ (1971, p. 33), como já ocorrera em outros contos do autor. Percebe-se

que a tentativa fracassa quando os dragões passam a ter comportamentos semelhantes

aos dos humanos, o que de certa forma causou-lhes maior rejeição e, consequentemente,

o desaparecimento sintomático das criaturas. Ainda de acordo com Jorge Schwartz ―a

ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que sejam eliminados os

atributos dragonáceos‖ (1981, p. 39). Eles deixam der ser o que são e perdem a pureza

inicial dos primeiros dragões que chegaram à cidade, culminando na perda total da

identidade dos animais.

É possível perceber que a crítica que se encontra nessa narrativa constrói-se

através de um discurso que mescla a ironia e a comicidade dos fatos absurdos ocorridos

na cidade após a chegada dos dragões. Passagens como ―o padre afirmou uma tese: os

dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados‖ (p. 138), ―Como

jamais tivesse ensinado a dragões‖ (p. 139), ―Tudo fiz para destruir a ligação

pecaminosa e não logrei separá-los‖ (p. 140) e ―Mesmo o padre não dispensava o seu

comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade‖ (p. 141) deixam transparecer

que além do tratamento irônico dado à situação, há também um certo tom de exagerado

gracejo que desconstrói a legitimidade ou a seriedade das instituições referenciadas em

tais passagens: na primeira e na última, a credibilidade da igreja é posta em xeque; na

segunda, há um sutil deboche em relação à educação que é a base de qualquer

sociedade; na terceira, o casamento — considerado por muito tempo um dos pilares da

civilização moderna — também é colocado em descrédito, uma vez que a mulher

deixou o marido para viver com um dragão. Como se vê, Murilo consegue através de

uma narrativa simples e aparentemente despretensiosa provocar reflexões que vão além

da questão literária.

4.1.9. A armadilha

A princípio, o referido conto não apresenta nenhum acontecimento que possa

provocar surpresa imediata no leitor. Nele, Alexandre Saldanha Ribeiro chega a um

prédio desabitado de dez andares. Embora estivesse carregando uma volumosa mala,

prefere subir pelas escadas. Já no décimo andar, para em frente ao último escritório e,

depois de tentar abrir a porta pela maçaneta, ele a empurra com os ombros para adentrar

a sala. Lá dentro, há ―um homem de cabelos grisalhos‖ (p. 154) com um revólver

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apontado para Alexandre, dizendo para ele não fugir, pois o esperava há muito tempo.

Alexandre, num primeiro momento, imagina que o senhor era um farsante e acredita

que o velho tivesse adivinhado sobre ele. Mas, o homem afirma: ―— Nada adivinhei.

Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos (...), aguardava-o certo de que você viria‖ (p.

155), demonstrando que nada fora armado ou combinado com alguém. A partir daí, o

leitor é jogado em um beco escuro, pois está diante de uma cena que não se explica por

si só. Por fim, o velho consegue prender Alexandre na sala e lhe diz que não adiantava

gritar, pois ninguém iria ao prédio e os dois ficariam ali por ―um ano, dez, cem ou mil

anos‖ (p. 157).

Como se pode perceber, nessa narrativa o elemento insólito se instaura

paulatinamente e quase no final do conto, com as revelações do estranho homem, ele se

concretiza definitiva e hiperbolicamente. O exagero que se pode notar no texto está na

questão temporal, tanto na nova situação de Alexandre como na do velho. Este o havia

esperado por dois anos em um prédio desabitado com o intuito de castigar sua vítima

―do acaso‖; aquele ficou sentenciado a permanecer naquela sala por um perìodo

indeterminado. De qualquer forma, o insólito começa a tomar corpo quando o leitor

percebe que da mesma forma que o homem esperou por dois anos, ele esperaria tantos

quantos fossem necessários por uma vítima que poderia vir ou não; que poderia ser o

Alexandre, mas também poderia ser qualquer outra pessoa, ou não.

Embora haja um tom de familiaridade entre o senhor e Alexandre, durante a

maior parte da narrativa pouco se sabe sobre os dois. Somente quando o homem

pergunta ―o que aconteceu com Ema‖ (p. 155) é possìvel cogitar a possibilidade de que

eles se conhecem de alguma forma. Contudo esse é um expediente realizado pelo leitor,

pois não há qualquer dúvida ou hesitação representada no âmbito diegético que

justifique tal reflexão por parte dos personagens. E por outro lado, pode-se imaginar que

como os dois ―preparavam-se para golpes mais profundos ou para desvendar o jogo em

que se empenhavam‖ (p. 155), toda aquela encenação poderia fazer parte de uma

representação para ver quem se sairia melhor das situações inusitadas que poderiam

surgir na sala de um prédio abandonado.

Como bem assinala Jorge Schwartz, este conto de Murilo Rubião é um dos

poucos que ―se aproximariam mais de uma narrativa de suspense‖ (1981, p. 66).

Seguindo um modelo semelhante ao do escritor norte-americano Edgar Alan Poe, todos

os elementos foram combinados para criar uma unidade de efeito de tal forma que toda

a narrativa sugira uma tensão própria daquele tipo de história, inclusive no próprio

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título. Segundo Nádia Battella Gotlib, no livro Teoria do conto, essa unidade é

responsável pela maneira como o leitor vai receber a obra, por isso ela ―deve ser forte

— e ter capacidade de marcar o leitor, prendendo-lhe a atenção, não deixando que entre

uma ação e outra se afrouxe este laço de ligação‖ (2006, p. 43). No conto ―A

Armadilha‖, o inìcio da narrativa já no prédio, a caracterização de Alexandre — com

uma mala enorme, subindo dez andares pela escada —, a porta emperrada que precisa

ser arrombada; o homem calmo, sereno e com um sorriso irônico no rosto, todo o

ambiente circundante e os diálogos trocados entre os personagens fazem com que a

narrativa entre num crescente, projetando a expectativa de um desfecho que não

acontece. Nesse ponto, está a diferença entre Murilo e Poe. No escritor mineiro há uma

quebra radical de toda a tensão provocada no decorrer da história. O fim não parece fim.

O leitor fecha o livro e tem diante de si a possibilidade de aceitar uma lógica absurda

que, no caso deste conto, seria um castigo ou uma vingança infinita — e não a morte

pela bala de um revólver, como seria mais comum numa narrativa policial.

4.1.10. O Edifício

Esse conto é um dos mais conhecidos do autor. Nele, o personagem João

Gaspar recebe a incumbência de dar continuidade à construção inacabável de um prédio

em que ―mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifìcio

que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares‖ (p. 159).

Havia também uma lenda que dizia ―que sobreviveria irremovìvel confusão no meio dos

obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifìcio‖ (p. 160). No entanto,

impulsionado pelo seu orgulho de recém-contratado, João Gaspar não deu crédito a tais

questões e tocou a construção. Contratou trabalhadores para que a obra não parasse e

ganhasse velocidade. Tanto é que ―de cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar

oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia‖ (p. 161). Na

madrugada em que chegaram ao 800º andar— como havia sido previsto — houve uma

confusão entre os operários e ―homens e mulheres se atracavam com ferocidade‖ (p.

162). João Gaspar tentou apaziguar os ânimos, mas nada adiantou. Fora atingido na

cabeça por ―um objeto pesado‖ (p. 162) e desmaiou.

Depois do ocorrido, o engenheiro desiste da obra e, só depois de muita

insistência dos auxiliares, retornou à construção. Tudo parecia voltar ao normal. Havia

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um ambiente calmo e todos se empenhavam nas suas tarefas. Contudo, depois da morte

dos últimos conselheiros, João Gaspar desanima e deixa de lado seu entusiasmo pela

obra. Por fim, desejando parar a construção, por achá-la sem sentindo e inexequível, o

engenheiro tenta convencer os operários a pararem o trabalho. Eles ignoram as palavras

de João e continuam a obra, trabalhando durante ―a noite e aos domingos, independente

de qualquer pagamento adicional‖ (p. 166). Vencido pelos operários e pelos voluntários

que se somaram a eles, João Gaspar andava pelo canteiro de obras tentando, em vão,

convencer a todos de que a obra deveria parar. No entanto, ―risonhos, os obreiros

retornavam ao serviço, enquanto o edifìcio continuava a ganhar altura‖ (p. 167).

―O edifìcio‖ é uma narrativa que, de acordo com a teoria de Todorov, apresenta

a maioria dos elementos comuns a histórias do gênero maravilhoso. Desde o início do

conto, a incorporação de uma situação inusitada e incomum ao universo natural é vista

como algo comum e aceitável: a construção de um prédio com andares ilimitados.

Percebe-se o exagero como parte intrínseca ao conto, dando-lhe, ainda segundo

Todorov, a subclassificação de Maravilhoso hiperbólico, pois ―os fenômenos não são

aqui sobrenaturais a não ser por suas dimensões, superiores às que nos são familiares‖

(TODOROV, 2008, p. 60). Um prédio que levou mais de cem anos para construírem

somente as fundações é, sem sombra de dúvida, uma situação exageradamente

inusitada.

Há ainda outros estudos que consideram esse conto uma alegoria do próprio

fazer poético de Murilo. O trabalho com a palavra, o cuidado meticuloso com o

acabamento do texto final e a escritura e reescritura incansáveis dos textos relacionam-

se com o trabalho infinito de João Gaspar na construção do edifício. A construção do

texto está metaforizada no prédio levantado gradativa e incansavelmente. Segundo Davi

Arrigucci Jr. ―O discurso ficcional também se coaduna com o princìpio de construção

do edifício: o conto, onde parece ecoar o mito do aprendiz de feiticeiro, permanece

ironicamente aberto para um contar inacabável: enquanto o edifìcio ganhar altura‖

(1979, p. 55). Audemaro Taranto Goulart acredita que ―a riqueza da obra de Murilo

Rubião é tão grande que nela encontramos, inclusive, um dobrar-se sobre si mesma.

Isso significa a chamada condição metapoética‖ (1995, p. 70). Nesse aspecto, a obra

literária volta-se também para a sua própria construção. Mais adiante em seu estudo

sobre o autor mineiro, Goulart sintetiza sua ideia afirmando que o referido conto é ―uma

outra narrativa metapoética, que pode ser lida como mais uma alegoria que Murilo

Rubião faz do ato de contar‖ (p. 75).

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No entanto, apesar de essas abordagens serem plausíveis dentro do universo

que compõe a poética muriliana, buscou-se aqui aproximar a análise do conto da teoria

sartriana. Sendo assim, nada mais coerente do que relacionar a temática de ―O edifìcio‖

com a situação do sujeito moderno perante o progresso e suas consequências. De acordo

com Audemaro Taranto Goulart, em um artigo intitulado ―O fantástico Murilo Rubião‖,

publicado em Itinerários: Revista de literatura,

O texto de Murilo Rubião, escrito há anos, aponta uma direção contestadora do cinismo esclarecido presente na cultura da modernidade que, a pretexto de

melhorar a vida do homem, robotiza-o impiedosamente, colocando-o a

serviço da técnica, fazendo-o produzir numa automatização que desconhece a

linguagem humana para obedecer à lógica dos sistemas que erigem o capital

como senhor absoluto (1990, p. 22).

Nesse sentido, é correto dizer que João Gaspar sintetiza alegoricamente o

homem diante do crescimento incontrolável do progresso ao qual a sociedade moderna

está exposta. Na passagem ―— Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não

pense em terminá-la‖ (p. 160), nota-se de antemão que o destino da construção já estava

traçado. João Gaspar era apenas mais uma peça do processo; apenas um autômato que

perderia sua individualidade — no sentido literal do termo. Assim como acontecera com

os outros, ocorreria com ele: morreria antes de terminar a obra. Com esse fragmento é

possível perceber a dimensão em que cada elemento é colocado na narrativa: em

primeiro lugar está a obra que metaforiza o progresso em si e, em segundo, está o

homem que toca adiante a construção — ele é apenas uma parte insignificante do todo.

Há uma coisificação desse homem que é reforçada pelo exagero da construção.

Contrariamente ao prédio, a partir de determinado ponto do conto João Gaspar

torna-se um ser em desconstrução. Sua existência entra num processo de gradação

descendente até que sua total nulidade fica representada na narrativa nos discursos que

faz no final do texto. Suas palavras não são mais ouvidas. Ninguém dá importância a

elas. Segundo Sartre, isso representa a ―rebelião dos meios contra os fins‖. A obra se

agiganta, cresce, toma corpo e vida, enquanto o executor torna-se ínfimo diante de tal

grandeza:

O fantástico humano é a revolta dos meios contra os fins, seja que o objeto

considerado se afirme ruidosamente como meio e nos massacre seu fim pela

própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este

a um outro e assim por diante até o infinito, sem que jamais possamos

descobrir o fim supremo (SARTRE, 2005, p. 140).

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Como se pode notar, indiretamente Sartre aponta para a hipérbole no texto de

Murilo. A construção não possui uma finalidade — nem precisa ter uma. Esse infinito

desconhecido que se alterna gradativamente está presente no conto. É ele que ratifica o

absurdo da construção. Ora, se se pensar que ―o absurdo é a total ausência de fim‖

(2005, p. 140) notar-se-á que João Gaspar estava fadado ao fracasso. Seu destino já

estava traçado e a advertência seria confirmada. Ele não terminaria a obra, pois o

elemento crucial do progresso é o objeto, não o sujeito. Como bem assinalou Davi

Arrigucci Jr., os personagens murilianos ―nada podem e vivem a angústia da

irrealização persistente, padecendo como vìtimas impotentes e marginais‖ (2001, p.

157). Segundo ainda Maria Cristina Batalha, nos textos de Murilo há ―a

problematização da crise do sujeito moderno, a consciência da coisificação do homem e

da perda da individualidade‖ (2013, p. 34). É por isso que a pequenez do indivìduo e

sua consequente anulação diante da grandiosidade do progresso e de suas consequências

é a verdadeira crítica à sociedade moderna representada nesse conto.

4.1.11. Aglaia

A história se inicia com o personagem Colebra, esposo de Aglaia, em

peregrinação pelos bares da cidade, acompanhado de uma moça morena. Segundo o

narrador, era hábito dele se embriagar e variar as acompanhantes: ―A mulher também

não era a mesma da véspera, mas já se acostumara a vê-lo mudar constantemente de

companhia‖ (p. 187). Quando Colebra chega ao apartamento e recebe o envelope com a

mesada enviada pela esposa e com as fotos dos filhos ―da última safra‖ a narrativa entra

em um processo autoexplicativo. A acompanhante o abandona depois da terceira dose.

Sozinho e delirante devido à quantidade de bebida ingerida, ele começa a ver os

meninos entrarem pela porta, ocupando o quarto numa enxurrada sem igual. Uns sobem

nos ombros dos outros, até que o lugar fica completamente tomado de crianças que,

amontoando-se sobre ele, o faz imaginar os ossos quebrados e as cartilagens rompidas;

pensando estar sufocado pelas fezes e urina das crianças, ele vomita.

A partir daí, há um encaixe25

explicativo na historia no qual fica sabendo-se

que Colebra casara com Aglaia em regime de separação de bens — imposto pelo pai

25 Segundo Todorov, ―o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda da narrativa. Pois a

narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de uma outra narrativa, a primeira

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dela —, exigindo apenas o compromisso de não ter filhos. Depois do casamento os dois

viveram o extremo que a vida sexual poderia lhes proporcionar, sempre com o

meticuloso cuidado de não engravidar. No entanto, ―De repente, houve uma ruptura

violenta: cessaram as regras de Aglaia‖ (p. 189). O filho era indesejado. A consulta ao

ginecologista trouxe mais incertezas. Esperando o pior ela pensa em abortar.

Contrariados pelo médico, procuraram uma ―pessoa que se encarregaria da tarefa‖ (p.

190). Feito o aborto e vencida pelos ―limites do sofrimento fìsico‖ (p. 191), Aglaia

desmaia. À noite, o marido desperta com o estado de saúde dela agravado e a leva ao

ginecologista, e este lhe diz que teve o útero perfurado, o que impossibilitaria uma nova

gravidez. Desse momento em diante, o insólito se instaura hiperbolicamente na

narrativa. Aglaia, mesmo com o útero prejudicado e usando os métodos contraceptivos

indicados pelo médico, tem uma gravidez atrás da outra, diminuindo, inclusive, o tempo

de gestação: ―Nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias após a fecundação‖ (p.

1493). Reforçando o teor exagerado dos acontecimentos, as crianças ―jamais vinham

sozinhas, mas em ninhadas de quatro e cinco‖ (p. 193). Cansados os dois, Aglaia sugere

a separação do casal. Inicialmente, ele finge não querer, mas depois que ―nasceram as

primeiras filhas de olhos de vidro‖ (p. 194), acabou aceitando a proposta da mulher que

já havia mudado de ideia. No entanto, sem que tivesse nenhum tipo de sentimento por

ela e pelos filhos, ele a abandona e chama a parteira para acudi-la.

Não é difícil perceber que a hipérbole está presente neste conto. No entanto,

antes de abordá-la é importante levantar alguns pontos interessantes sobre o texto que,

de certa forma, contribuem para intensificar a ideia de exagero. O primeiro relaciona-se

ao comportamento materialista e capitalista dos personagens. Tanto o pai de Aglaia

quanto Colebra são indivíduos que priorizam o dinheiro. Quando o rapaz aceita casar

com ela, o pai impõe o regime de separação de bens, pois, segundo ele, estava

preocupado em ―preservar a fortuna da filha, havida com o falecimento de uma tia‖ (p.

188). Por sua vez, Colebra demonstra-se até pior do que o patriarca. Davi Arrigucci Jr.

ratifica essa ideia afirmando que ―Colebra (o marido de nome também grotesco, pela

sugestão animalesca) se casa com Aglaia por interesse (ao que tudo indica, sexual e

financeiro)‖ (2001, p. 160). Nota-se a preocupação dele em não deformar o corpo da

mulher: ―pensou, satisfeito, que nenhum filho nasceria para deformar aquele corpo‖ (p.

atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada

é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes

ìnfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente‖ (TODOROV, 1979, p. 126).

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189). Não há nele o desejo de paternidade e, ao que parece, também não há sentimento

algum por ela, que é, em suas mãos, uma máquina de fazer sexo e, mesmo sem seu

consentimento, de gerar filhos.

No decorrer da narrativa, o personagem demonstra claramente que o casamento

com Aglaia só lhe trazia benefìcios. Em passagens como ―tinham de salvá-la, senão ele

retrocederia na escala social, os amigos desapareceriam à notícia de que voltara a ser

um pobretão‖ (p. 191); ―O dinheiro era sua ideia fixa. Sem diploma, (...) e detestando

trabalhar, temia o possível retorno aos tempos dos pequenos empregos, dos biscates

humilhantes‖ (p. 191); ―pensou ter descoberto uma saìda, a única: pedir à esposa que

fizesse o testamento‖ (p. 191) e ―Na simulação de indiferença pela oferta, esperava

negociar um acordo e obter uma quantia maior que a oferecida‖ (p. 193) é possìvel

perceber que o esposo estava mais interessado na fortuna dela e na posição social que

adquirira depois do casamento do que em um relacionamento pautado num sentimento

nobre. De acordo com Goulart, Colebra é um ―amante da vida fácil e dos prazeres do

corpo‖ (1995, p. 65). Ele é a representação clássica do homem corrompido pelos valores

que o dinheiro pode comprar. Contrariando, por exemplo, o comportamento romântico,

Colebra personifica a ganância.

Esses elementos dão aos personagens uma dimensão coisificada. Eles

caminham pela narrativa, evoluindo — se é que se pode chamar de evolução — para um

estágio não-humano. Nesse aspecto, a hipérbole auxilia na construção dessa ideia, pois

o exagero das ações dos personagens — seja na questão do dinheiro, do sexo ou na

questão da produção desenfreada de filhos — intensifica a desumanização dos mesmos.

É nesse sentido que se pode dizer que Colebra não vê a esposa como a mulher, mãe de

seus filhos. Ele a vê como algo que pode lhe trazer vantagens. Por sua vez, Aglaia

transforma-se paulatinamente numa máquina de parir crianças. A repetição das

gravidezes indesejadas e dos nascimentos anormais de crianças em ninhadas ratifica a

tese de que a mulher é vista como um bem industrial. Arrigucci Jr. comenta que ―os

filhos são produzidos em série, como objetos industriais, por uma mulher reduzida à

máquina parideira‖ (2001, p. 159). Ainda segundo Jorge Schwartz, ―a descontrolada

produção de bebês os reduz à condição de objetos não apenas pela quantidade, mas pela

própria qualidade‖ (1981, p. 35). Isso pode ser verificado no conto, quando o narrador

diz que nasceram as primeiras filhas com olhos de vidro, fazendo referência direta a

bonecos autômatos. Dessa forma, pode-se afirmar que a total reificação dos personagens

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é uma consequência direta do comportamento automatizado que o sujeito sofre na

sociedade capitalista, da qual ele não faz parte significativamente; apenas está nela.

Ora, considerando-se esses elementos, pode-se afirmar com certa precisão que

Murilo desejou chamar o leitor a uma reflexão bastante presente na vida das sociedades

modernas e industrializadas: homens e mulheres são vistos como máquinas que

sustentam o luxo do burguês:

―Mulher proletária — única fabrica

que o operário tem, (fabrica filhos)

tu

na tua superprodução de máquina humana

forneces anjos para o Senhor Jesus,

forneces braços para o senhor burguês‖

(LIMA, 1978, p. 21).

Numa quase referência ao poema ―Mulher proletária26

‖, do poeta modernista

Jorge de Lima, Murilo Rubião constrói sua crítica camuflada em uma narrativa insólita

que, à primeira vista, soa engraçada, mas no aprofundamento da leitura, percebe-se, sim,

um humor negro e, claro, a ironia própria dos contos murilianos, tangenciando as ideias

de Sartre. Se o fantástico para o filósofo se caracteriza pela aceitação de que ―tudo é

desgraça: as coisas sofrem e tendem à inércia sem jamais atingi-la‖ (2005, p. 137),

pode-se dizer que em ―Aglaia‖ os personagens, transformados em coisas pelo

comportamento automatizado que adquiriram no decorrer da narrativa, são seres

insólitos que metonimicamente se referem ao homem moderno e suas questões. Às

vezes, escravo do outro; outras vezes, de si mesmo e de suas vontades e fraquezas. Eles

dão voltas inúteis e não percebem que, embora em movimento, não saem do lugar

porque andam circularmente, percorrendo os caminhos traçados pelo avançar da

modernidade — e todas as suas consequências. Sentimentos e emoções tornam-se

coadjuvantes em um mundo onde agir maquinalmente transformou-se na ordem do dia.

4.1.12. A fila

Pererico, o personagem principal, sai do interior do país com a incumbência de

entregar a um desconhecido gerente de uma fábrica uma mensagem particular,

acreditando se tratar de ―assunto de terceiros e [que devia] guardar sigilo‖ (p. 195).

26 LIMA, Jorge de. Antologia poética. São Paulo: José Olympo, 1978, p. 21.

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Orientado pelo porteiro, o negro Damião, o viajante entra em uma fila imensa na

esperança de ser atendido. Contudo, como sempre pegava uma senha de numeração alta

e a fábrica fechava exatamente às dezoito horas, Pererico não conseguia falar com o

gerente, o que o forçava a ficar na cidade, embora suas economias já estivessem se

esgotando. Passados alguns meses, ele conhece Galimene, uma prostituta que

perambulava pelas redondezas da fábrica em busca de clientes. A mulher, vendo a

insistência de Pererico e o fracasso de sua missão, oferece-lhe abrigo. Inicialmente, ele

rejeitou a proposta, mas, com o passar dos dias e com o dinheiro esgotado, foi obrigado

a aceitar o convite. Um dia, cansado da espera e de tentar entrar na fábrica pelo caminho

tortuoso, ele resolve ser mais cordial com o negro Damião. Lá, o porteiro leva-o para a

parte interior do prédio e o coloca numa outra fila, na qual entra com uma senha ainda

maior do que as anteriores. Exasperado, Pererico sai dali e, encontrando Damião pelo

caminho, acerta-lhe um murro na boca. Passados alguns dias desse último fato, o

protagonista volta à fábrica e percebe que o lugar está vazio, mas não fechado. Havia

empregados dentro. O viajante não perdeu tempo e adentrou o lugar dizendo ao

porteiro: ―— Hoje, miserável, ou falo com o seu chefe ou lhe quebro os dentes e

espatifo os móveis do escritório‖ (p. 208). Nesse momento, fica sabendo que o gerente

faleceu e que no dia anterior ele atendera a todos que ali estiveram. O único que ficou

sem atendimento foi Pererico. Contrariado e revoltado com a cidade, decide retornar

para sua terra e, no dia de sua partida, Galimene, a prostituta-amiga, o encontra na

estação, levando ―camisa, calça, navalha e um frango assado‖ (p. 209) para que ele

voltasse com uma fisionomia melhor. Ali, o rapaz beija a amiga pela primeira vez e lhe

diz que jamais retornaria àquela cidade. Pererico tomou o trem e retornou sem cumprir

o que lhe foi designado.

Nesse conto, utilizou-se a hipérbole com o intuito de dimensionar um sistema

falido que trata as pessoas como qualquer coisa e a burocracia da vida nas grandes

cidades. Note que o protagonista que irá vivenciar esse dimensionamento angustiante

apresenta-se em situação antitética ao fato em si. Ele, um homem ―do interior do paìs‖

(p. 195), acostumado com ―cavalos, vacas, galinhas, cabritos‖ (p. 207) é levado, contra

a sua vontade, a entrar numa fila interminável para cumprir uma missão para a qual não

estava preparado. Ele não conhecia os trâmites da cidade nem como tinha que lidar com

as situações que foram surgindo diante dele. Esse desconhecimento fez que sua tarefa se

tornasse mais difícil e cada vez mais distante de se realizar. Isso é possível perceber nas

idas e vindas do protagonista. Chega um momento na narrativa em que seu objetivo se

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perde e o leitor não quer mais saber sobre a mensagem que ele deveria entregar ao

gerente. Na verdade, a fila torna-se o elemento central da questão. Nisso é possível

perceber o que Sartre diz a respeito do discurso fantástico. Para ele,

O fantástico humano é a revolta dos meios contra os fins, seja que o objeto

considerado se afirme ruidosamente como meio e nos mascare seu fim pela

própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este

a um outro e assim por diante até o infinito, sem que possamos descobrir o

fim supremo (2005, p. 140)

É exatamente isso que se presencia no conto. Todas as vezes que Pererico era

encaminhado para uma nova tentativa, via-se que a finalidade para a qual foi enviado

àquele lugar distanciava-se dele. A fila tornou-se ―o fim supremo‖. Agora, tanto

Pererico como o próprio leitor desejam vencê-la. No entanto, como já foi citado nesta

tese, os personagens murilianos estão sempre fadados ao fracasso ou à solidão; e não

será diferente com este. Com relação a essa predestinação ao fracasso, pode-se dizer que

toda a existência material e ideal do protagonista ―se condiciona, sem remédio, à

imposição burocrática, como se esta fosse uma condenação inevitável‖ (ARRIGUCCI,

2001, p. 161).

Embora Pererico seja um protagonista que destoe dos de outros contos do autor

— ele não aceita o absurdo com facilidade. Pelo contrário, opõe-se radicalmente a ele,

inclusive ameaçando o negro Damião, que ali tipifica a representação do sistema em seu

nível mais covarde — percebe-se que os que estão na mesma situação dele, aceitam

com muita passividade e naturalidade os descasos dessa burocracia. Goulart afirma que

o problema de Pererico deixa de ser uma simples manifestação da burocracia para aparecer como um problema humano muito mais abrangente. Trata-se,

na verdade, de alertar para uma situação de domínio a que os indivíduos estão

submetidos, porque, em geral, foram ―educados‖ para a ela se submeterem

(1995, p. 55).

Nesse aspecto, nota-se o valor social do fantástico a que Jorge Schwartz faz

alusão. Ele afirma que a linguagem simbólica do fantástico em Murilo está a serviço dos

elementos sociais identificáveis no texto. É nesse sentido que o estudioso considera que

―são raros os momentos na obra do Autor em que o elemento insólito, ou mesmo o

sobrenatural, não se converte em trampolim metafórico de uma crìtica social‖ (1981, p.

77). E, no conto ―A fila‖, nota-se essa crítica direta aos elementos que fazem parte do

universo não-ficcional sendo tratada com um efeito fantástico. A situação em si não é

insólita. Os cenários do conto também não: são ruas de uma cidade qualquer onde

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passam pessoas e carros; onde há filas de bancos, de empregos; onde há fábricas,

prostitutas, etc. Em fim, não há nada que não pertença ao universo cognoscível. No

artigo ―O duplo e algumas implicações para o fantástico em Murilo Rubião27

‖, Viviane

de Guanabara Mury observa que

No conto de que tratamos, não há coelhos falantes, mágicas ou

metamorfoses; o personagem transita por ruas, corredores, repartições —

nada mais natural. Todavia, é esse natural que constitui motivo de assombro.

O espanto, contudo, parte apenas do protagonista (2013, p. 121).

Logo, o que torna esse conto fantástico é o caráter hiperbólico que os

acontecimentos tomam na narrativa. Para Schwartz, ―o tema da burocracia se formaliza

no conto ―A fila‖, onde a dimensão hiperbólica que esta adquire no transcurso da

narrativa é mimetizada pelo próprio ato da narração‖ (1981, p. 80). Como se pode notar,

quanto maior é a fila; maior é o texto. Este termina, quando aquela se extingue. Ou seja,

o caráter metapoético do discurso muriliano se relaciona com o tema do conto em si. É a

própria narrativa demonstrando ―ao vivo e em cores‖ a composição do exagero da

peregrinação de Pererico, da fila e do trabalho de escritura. Ainda com respeito a essa

questão, Davi Arrigucci Jr. afirma que, no referido conto, ―o fantástico, com sua

assombrosa multiplicação dos meios, é rigorosamente aqui uma alucinada máquina

burocrática‖ (2001, p. 161).

Por fim, restaram dois personagens: Galimene e o negro Damião. De acordo

com o que se viu até então, pode-se dizer que a figura da prostituta foi colocada ali para

dar a ideia de rebaixamento e da perda de identidade à que Pererico chegou. Orgulhoso,

independente e querendo defender seus direitos, ele é obrigado a viver dos favores e da

ajuda que a mulher lhe dá. Muitas vezes, para dormir ele esperava o último cliente dela

sair. Segundo o próprio narrador, ―habitou-se a esperar pacientemente, porque a demora

representava comida farta no dia seguinte‖ (p. 206). Sendo assim, constata-se que as

consequências a que o indivíduo é levado pelo sistema, muitas vezes o colocam numa

situação de humilhação completa.

Algo parecido ocorre com Damião. Durante a narrativa ele é retratado como

negro, preto e porteiro e, em vários momentos, o narrador faz referência à vestimenta

dele, deixando claro que, para Pererico, as roupas não eram tão boas como pareciam.

Esse negro Damião, ―ordenador da fila inacabável, torna-se, pois, um fator de bloqueio

27 FLÁVIO, García & BATALHA, Maria Cristina (org.). Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte.

Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013.

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intransponìvel‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 162). O porteiro — que em muito lembra o

soldado amarelo que inferniza a vida de Fabiano em Vidas Secas — representa o

indivíduo do sistema que, a qualquer custo, faz cumprirem-se as regras; sejam elas

corretas ou não. Aceitar toda aquela situação e ainda ser manipulado por um negro na

portaria da companhia fez que o personagem chegasse ao patamar mais baixo de sua

humilhação. No entanto, se opor a ele; significa opor-se ao próprio sistema. Esse foi o

erro do protagonista. Por isso, Pererico é advertido por Damião: ―— Você escolheu o

pior caminho‖ (p. 205). Indiretamente, desrespeitá-lo significava desrespeitar a própria

máquina burocrática que aniquila a liberdade e a identidade do indivíduo. Foi

exatamente isso que ocorreu com Pererico. Ele volta para sua terra, vencido não por um

negro, mas sim por uma engrenagem muito bem montada e predisposta a subjugar o

sujeito que não se adéqua a suas engrenagens.

4.1.13. Botão-de-rosa

O conto se inicia com um fato insólito: ―numa segunda-feira de março, as

mulheres da cidade amanheceram grávidas‖ (p. 223). O feito é atribuìdo ao personagem

Botão-de-rosa, um rapaz que, ao que parece, era mulherengo, com longos cabelos,

possuidor de uma banda de guitarras composta por doze músicos; ele lembra, em um

primeiro momento, uma espécie de hippie muito preocupado com a aparência. Enquanto

o povo da cidade encaminha-se para casa dele para promover um linchamento, Botão-

de-rosa está preocupado com as roupas e a sandália que melhor lhe cairão: ―Separou as

meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que combinasse com o

vestuário‖ (p. 223). O antagonismo das cenas relativas ao seu comportamento, em

alguns momentos, projeta na narrativa uma espécie de humor negro, beirando ao

sarcasmo. Esse sentimento é intensificado mais adiante quando surgem na história os

policiais, o juiz e a turba gritando ―Cabeludo! Estuprador! Piolhento!‖ (p. 224). Diante

desse quadro generalizado de insatisfação, é indicado o advogado José Inácio para

defender o réu que, ao chegar à delegacia, fica sabendo do delegado que seria acusado

por estuprar as mulheres. No entanto, por ordem de um juiz que mandava na cidade,

mudou-se a acusação para tráfico de heroína e, posteriormente, de maconha também. Os

supostos estupros foram deixados de lado. A partir daí, José Inácio, o advogado, em vão

tentará livrar o réu das penas cabíveis, segundo as regras do lugar. Por sua vez, Botão-

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de-rosa mantém-se calado e apenas ouve com atenção o que lhe é dito, aceitando

passivamente todas as acusações que lhe são feitas. Toda condução das acusações e dos

acontecimentos culmina na execução do personagem no final do conto.

Não é difícil perceber nessa história uma referência direta à religião. Segundo

Schwartz, o personagem central ―remete à figura de Cristo através de suas ações e dos

seus atributos‖ (1981, p.77). Audemaro Taranto Goulart, além de perceber tal

semelhança tanto no comportamento como no aspecto físico do personagem, aponta

também outros indìcios que sugerem tal comparação. Para ele, ―a presença de doze

figurantes do conjunto de guitarras, remete à imagem dos doze apóstolos que

acompanhavam Cristo‖ (1995, p. 142); há ainda o amigo Judô que o trai ―por algumas

doses de entorpecentes‖ (p. 143), apontando para a figura de Judas ao trair Cristo por

três moedas de ouro. As vestes, a barba, a cabeleira de Botão-de-rosa e a aceitação da

culpa sem nenhum questionamento são elementos que aproximam os dois personagens.

No entanto, embora a comparação seja inevitável, escolheu-se o caminho da

hipérbole para a análise deste conto. A concretização metafórica da figura cristã se

solidifica quase no final do conto. Todavia isso já não ocorre com o exagero. Aliás, toda

a narrativa está pautada nele. Desde a primeira frase do texto, quando o leitor sabe que

todas as mulheres de uma cidade estavam grávidas e, supostamente, de um mesmo

homem. O absurdo começa aí, donde é possível inferir que há algo estranho

acontecendo. O problema é que, da maneira como as coisas se desenvolvem no conto, a

impressão que se cria é a de que talvez não houvesse um culpado e, talvez, nem tantas

gravidezes. Alguém deveria pagar por algo que carecia de invenção; inventou-se a

gravidez, mas, depois, substituíram-na pelo tráfico. Ora, o texto faz referência a

―mulheres com os rostos protegidos por máscaras, que ocultavam as deformações da

gravidez‖ (p. 224). Por essa passagem, percebe-se que a gestação deforma o rosto, mas

o corpo não. Estranho de novo! Não há relatos de mulheres com suas enormes barrigas

deformadas, gemendo de dor, vomitando por causa dos enjoos ou algo parecido. Será

que havia gravidez? Ou em havendo, os homens todos, envergonhados de terem sido

traídos, aceitaram a mudança da acusação para não ficarem mal perante a sociedade?

Conforme fora dito por José Inácio, o advogado de defesa, ―isso não seria conveniente

para a cidade, pois a transformaria num imenso antro de cornos‖ (p. 231).

Esses questionamentos podem ser feitos levando-se em consideração a

condução de todo o processo de acusação até a execução de Botão. Eles ganham maior

proporção ainda quando o delegado recebe o telefonema do juiz que era praticamente o

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dono do lugar. Este manda que se troque a acusação. De estuprador, Botão-de-rosa

passou a traficante de drogas. Sem nenhum motivo real aparente, muda-se uma

acusação por outra, simplesmente porque assim quis ―o proprietário da maior parte da

cidade, inclusive dos prédios públicos, da companhia telefônica, do cinema, das duas

farmácias, de cinco fazendas de gado, do matadouro e da empresa funerária‖ (p. 225-

226). Até nisso, são dadas as dimensões hiperbólicas. Elas dão a ideia exata de até

aonde vão os tentáculos do poder exercido pelo Juiz naquele lugar.

Quando José Inácio surge na história, nota-se uma descentralização no status

das personagens. Se antes de sua chegada, poder-se-ia considerar Botão-de-rosa o

personagem central dos acontecimentos; depois dela, percebe-se que a figura do

advogado toma maior proporção na narrativa. É ele, inclusive, que vai dar movimento à

história. Botão não se manifesta. Fica calado o tempo todo, apenas esperando a sentença

final. Ele representa o tìpico personagem muriliano, pois ―a existência dolorosa é o

fardo corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 157).

O defensor, por sua vez, inconformado com a (in)justiça cometida contra seu

cliente, ficará sabendo que naquela cidade o sistema é outro. Afinal, de acordo com o

delegado, o advogado estava há pouco tempo no lugar e não sabia que ali prevalecia ―a

vontade do Juiz‖ (p. 225). Há passagens, inclusive, que o próprio defensor,

reconhecendo sua incapacidade de impedir a execução de Botão-de-rosa, se sente

ameaçado. Nos fragmentos ―Sua preocupação se transformou em medo ao ver-se

encarado pelos homens que postavam na rua‖ (p. 226), ―um número de indivìduos mal-

encarados aguardava sua saída, para segui-lo impiedosamente pelas ruas da cidade‖ (p.

228), ―José Inácio encolhera-se num canto e (...) obedeceu amedrontado‖ (p. 231) e ―O

duro espancamento de seu constituinte deveria ser tomado como um aviso do que lhe

poderia acontecer‖ (p. 232), é possìvel ter uma ideia de como José Inácio foi, aos

poucos, sendo desencorajado a continuar buscando justiça.

Ora, como se vê, é através de José Inácio que o leitor tem conhecimento das

injustiças cometidas por um sistema encabeçado por quem deveria evitá-las. Como já

foi dito, além de o legislador ser proprietário de grande parte da cidade, seu domínio

ultrapassava os limites da razão. Todos eram submissos à vontade e aos caprichos do

Juiz. Em passagens como ―Ao chegar a vez das testemunhas, estas asseguraram que, no

momento da prisão, o indiciado carregava heroìna consigo‖ (p. 227), ―para o advogado

o inquérito policial transbordava de irregularidades, algumas gritantes‖ (p. 227), ―José

Inácio ficou boquiaberto: Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás!Ou teria

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estudado em outros livros?‖ (p. 228) e ―Se você não recorrer, lhe garantiremos uma

rendosa banca de advocacia. A promessa é do Juiz‖ (p. 232) tanto o leitor quanto o

próprio José Inácio percebem que não há o que fazer para retirar as acusações de Botão

e salvá-lo da execução.

Sendo assim, nesse conto, nota-se uma crítica direta ao sistema corruptível de

uma cidade. Como esse sistema é feito de homens e por homens, estes também são

passivos de corromperem-se. Nos dias atuais, essa narrativa não seria tão insólita,

porque o que está nela é o que se vê, de certa forma, nas entrelinhas dos noticiários em

que se camuflam verdades e nos quais se criam novas mentiras todos os dias da semana.

A não ser pela gravidez de todas as mulheres da cidade — que de acordo com os

acontecimentos narrados também pode ser questionada — o texto aponta uma falha na

relação homem x sistema. A história em si não apresenta um elemento insólito que se

mantenha até o final. Será que houve um engravidamento em massa das mulheres

locais? Até a acusação de estupro foi retirada e substituída pela de tráfico de drogas, o

que não é fantástico. A condução de todo julgamento é que é algo insólito.

O comportamento de Botão-de-rosa na maior parte da narrativa é o que permite

associá-la às ideias de Sartre. Ele, Botão, é a representação metafórica desse homem

moderno que se vê diante de um sistema desigual e contra o qual é impossível lutar.

Embora fosse aparentemente inocente, em nenhum momento o personagem tenta

convencer seus acusadores de sua inocência. Ele apenas observa e espera o que é

inevitável: sua execução. Ora, se ―o fantástico dá lugar ao afloramento de um real mais

fundo‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 147), fica claro que Murilo desejou mostrar esse real a

que se refere o crítico. Nele, está o homem e suas questões; o homem e seu universo.

Botão-de-rosa representa esse homem que observa sem esperanças, pois a sua condição

depende de um sistema composto de homens que se perderam em um mundo onde o

sólito é a exceção e o insólito é a norma, a rotina. Deixou de ser.

4.1.14. O bloqueio

Gérion, o protagonista desta história, deixa sua família e vai morar em um

edifício recém-construído cujos apartamentos estão todos vazios. Ele é o único inquilino

do lugar. ―No terceiro dia em que dormia no apartamento‖ (p. 245), ouve os primeiros

ruídos das máquinas trabalhando. Acreditava que, por se tratar de um prédio novo,

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talvez fosse necessária alguma obra que ficara pendente. Por isso, mesmo o barulho

sendo intenso, inicialmente não se importou. Depois, com a intensificação dos estrondos

das máquinas, Gérion começa a se preocupar e a perder o sono. Ele começava a se ver

num beco sem saídas, pois saíra de casa para buscar na solidão e no silêncio a

tranquilidade que a vida em família não lhe dava e, agora, estava em um lugar

barulhento e agitado. Na verdade, o prédio estava sendo desconstruído. Há momentos

na narrativa que se percebe que a insólita desconstrução operava-se tanto na parte de

cima do edifício:

Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço

para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro

pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente,

limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes (p.

246)

como nos andares de baixo:

Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do sacrifício.

Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no

espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas

tremiam (p. 248-249).

O mais interessante desse processo todo é que as tais máquinas responsáveis

pelos barulhos noturnos nunca eram vistas pelo personagem. Em certas partes da

narrativa, parece haver um esconde-esconde entre elas e o protagonista: ―mas a máquina

persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era

cedo para mostra-se‖ (p. 251). Note que, metagogicamente, aos poucos elas assumem

uma outra conotação no contexto. Agem como se estivessem humanizadas. Por fim,

vencido pelo barulho e pelas máquinas, Gérion tranca a porta de seu apartamento com a

chave, esperando que finalmente a ―destruidora‖ acabasse de vez com seus sofrimentos,

que, nesse caso são dois: o barulho ou a própria vida.

Como se pode perceber pelo breve resumo feito acima, o texto apresenta

elementos que ratificam o exagero como parte intrínseca dele. Contudo, acredita-se que

tal recurso tenha sido utilizado para que, mais uma vez, se mostre o homem moderno e

suas questões, através da literatura fantástica. Todo o cenário remete à modernidade. As

ações tanto das máquinas quanto as de Gérion e as de sua mulher sugerem

comportamentos do indivíduo que habita os grandes centros urbanos. Por isso,

considerar que Murilo procura vasculhar o universo humano pelo viés da narrativa

insólita é uma forma de reconhecer na literatura do escritor mineiro um realismo tão

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fundo que toca surrealisticamente na crise comum ao sujeito contemporâneo.

Ratificando tal pensamento, Cremilda Medina28

afirma que

o surrealismo não tem nada de escapismo, isto porque a crítica social que

faz é mais insidiosa, muito mais implacável. (...) O surreal está na realidade. Às vezes, uma pessoa comum pode não perceber a olho nu, mas

o escritor pega esse lado e quando o revive no texto, descobre toda a

relação, passa esse fantástico como cotidiano, como é a vida deste mundo

louco (1985, p. 8).

Como foi dito inicialmente, Gérion deixa a família e aluga um apartamento. No

decorrer da leitura, fica-se sabendo que essa atitude foi tomada para escapar da mulher

Margarerbe e para repensar sua vida. Por esses e outros motivos que surgem, devido ao

seu ato de reflexão, pode-se dizer que tal narrativa simboliza alegoricamente a vida

infeliz e cheia de transtornos com os quais o personagem não mais conseguia lidar.

Sendo assim, poder-se-ia considerar que o insólito absurdo surge como forma de

dimensionar a grandiosidade dos sentimentos contraditórios que coexistem na

subjetividade do protagonista. Se de um lado havia a repulsa em voltar para casa e

encontrar Margarerbe, ―gorda e porca‖, ―com o corpo dela a ocupar dois terços da cama.

O ronco, os flatos‖ (p. 248), ―a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de

parasita, incapaz‖ (p. 249); por outro lado, estava Seatéia, a filha, para à qual ―não

poderia deixar que fosse transferido o ódio que Margarerbe lhe dedicava‖ (p. 248). Tais

sentimentos contraditórios projetam no protagonista a sensação de que sua atitude foi

em vão, pois ―nauseado, lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo

leito com a esposa, espremido‖ (p. 248) por causa do amor à filha. Essa sensação

ratifica a ideia de incapacidade de lidar com seus problemas familiares e com suas

próprias decisões, o que de certa forma anula a imagem do homem provedor e viril e dá

ênfase a um ser débil e inexpressivo dentro da relação. Na passagem ―— Por que nos

abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe

arranjará emprego?‖ (p. 247), é possìvel construir uma imagem mais clara tanto dele e

da esposa quanto da relação dos dois.

É interessante perceber que, enquanto Gérion está divagando sobre a mulher e

a filha, os barulhos das máquinas passam a um segundo plano, como se, na verdade,

eles não existissem naquele momento. Os estrondos ensurdecedores que antes

28 MEDINA, Cremilda. Murilo Rubião no conto fantástico antes que a lebre se levantasse. Suplemento

Literário. Belo Horizonte v. 20, n. 959, p. 8-9, fev. 1985, Série: Escritor brasileiro hoje, 18.

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chamavam a atenção do personagem agora não passam de ruídos que ―tinham perdido a

força inicial. Diminuìam, cessaram por completo‖ (p. 248). Sendo assim, fazendo uma

analogia entre a situação e o protagonista, pode-se dizer que talvez o prédio estivesse

sim em reforma, como o próprio síndico afirmou. Contudo a dimensão exagerada dos

barulhos e das máquinas pode ser uma interpretação de Gérion, dado a situação na qual

se encontrava. Também é possível conjecturar que talvez estivesse ainda sob o efeito do

sono, pois, como o narrador diz, ele ―levava tempo para se integrar no novo dia,

confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade‖ (p. 245). Conforme atesta

Arrigucci Jr. ―num caso drástico como esse, estamos sob a pressão asfixiante de um

mau sonho‖ (2001, p. 147). Contudo, qualquer que seja a possìvel explicação, o fato é

que ver as máquinas destruindo a construção e empilhando o material desintegrado e em

pó — sem que nada sobrasse dos escombros que lembrasse a edificação — é uma

metáfora existencial de Gérion. Para Schwartz, ―a desmontagem progressiva e

regressiva do prédio converge para o indivíduo num processo redutivo que visa chegar à

sua essência‖ (1981, p. 81). Márcio Serelle endossa essa ideia ao afirmar que ―a

habitação humana se desfamiliariza, usualmente por força da hipérbole‖ (2002, p. 38),

criando, dessa forma, uma espécie de não-lar. Se se partir da premissa de que ―o lar

imita a criação do mundo: ele é um pequeno templo, uma janela aberta para o céu‖

(BRUNN, 1995, 92), será possível entender que o protagonista encontra-se

solitariamente em seu inferno particular.

Ainda segundo Goulart, ―A destruição do prédio insinua-se como a própria

destruição da personagem, enquanto a máquina destruidora e Margarerbe, de quem

Gérion tentava, inutilmente, escapar, são índices de uma mesma realidade angust iante‖

(1995, p. 155). Dessa mesma forma ele se encontrava, em ruínas. Esse é o bloqueio.

Dali, Gérion não consegue e não pode fugir. Ele está enclausurado em si mesmo,

lutando contra uma vida que não deseja mais. Por isso, tudo valia à pena. É nesse

sentido que o narrador afirma que o protagonista ―preferiu correr o risco a voltar para

sua casa, que abandonara, às pressas, por motivo de ordem familiar‖ (p. 246). O som

estridente das serras, britadeiras e de um pilão bate-estaca remetem à figura da esposa

gritando-lhe impropérios e humilhando-o diante de todos. Na passagem ―Pegara

novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax‖ (p. 245) há

uma referência direta ao sentimento de incapacidade internalizado por ele de tanto ouvir

a mulher assim o chamar. Por isso as máquinas demolidoras não são vistas pelo

personagem. Elas são fruto de uma mente que confunde a realidade angustiante e

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negativamente exaltada em que se encontra o indivíduo afundado em uma opressão

avassaladora. Os insuportáveis barulhos produzidos por elas assemelham-se aos da

mulher gorda, sentada ―comendo bombons‖ (p. 247), assemelham-se aos gritos dela, à

gordura, às flatulências; enfim, a tudo que possa ter auxiliado na desconstrução da

estabilidade da vida familiar.

4.1.15. A diáspora29

O conto narra a chegada do engenheiro Roque Diadema e de alguns

trabalhadores à pequena e calma Mangora, um lugar simples no qual os moradores

levavam uma vida tranquila e sossegada, sem as agitações e a correria das cidades

grandes. O engenheiro fora enviado ao local para a realização de um projeto: a

construção de uma ponte que uniria as duas margens de um rio. Segundo ele, a obra

estaria edificada num prazo de dois anos, e o tal projeto já estava aprovado por

instâncias superiores. Hebron — o homem que ―sabe das coisas‖ (p. 266) e uma espécie

de líder do lugar — foi chamado para receber o engenheiro e confirmar seus papéis e

palavras. Ele afirma que levaria aos companheiros de Mangora a documentação dos

visitantes e os convida a participar da reunião que decidiria o andamento das coisas. ―E

com direito a voto‖ (p. 266). O projeto foi recusado pela assembleia, obrigando Roque

Diadema a buscar novos meios para avançar com as obras. Hebron e os habitantes

ficaram felizes. No entanto, quando ―extensas caravanas de trabalhadores, trazendo

consigo rolos de grossos fios de arame trançado, sacos de cimento e ferramentas‖ (p.

267) começaram a chegar ao lugarejo, os moradores ficaram mais apreensivos. Nova

reunião é marcada, agora, porém, sendo vedada a participação dos visitantes.

Inconformado, o engenheiro se retira do lugar por um mês e, quando volta, traz consigo

as papeladas que comprovam que comprou ―dois terços de toda área urbana‖ (p. 267). A

partir daí, os homens se instalam e as obras avolumam-se, tornando a cidade um lugar

sujo e repugnante, haja vista como era antes. As edificações espalham-se sem controle.

29 Segundo o dicionário Larousse, o termo designa: 1. Dispersão dos judeus no decorrer dos séculos. 2.

Dispersão de um povo, de uma etnia através do mundo. (2001, p. 311). O conto foi publicado

postumamente. Segundo Vera Lúcia Andrade, certo dia quando Murilo voltava do trabalho, esqueceu

num táxi os originais de ―A diáspora‖. Aflito, ele divulgou amplamente o fato na imprensa local, com o

objetivo de recuperar o valioso manuscrito perdido. (...) Todo o esforço foi em vão, pois Murilo jamais

conseguiu reaver a sua ―Diáspora‖. Inconformado, pôs-se a reescrever o conto, gastando nessa tarefa,

como de costume, vários anos (ANDRADE, 1998, p. 275).

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Alguns se rebelam, mas sem ameaçar o andamento do progresso. Hebron, o velho sábio

de outrora, agora não passa de uma sombra do que fora antes da chegada do engenheiro;

e este, pela primeira vez, delicia-se com ―o gosto da vitória‖ (p. 272).

Como é possível perceber por esse breve resumo, não há, nesse texto,

acontecimentos insólitos que se assemelhem a outros contos do autor. Não existem

mágicos, coelhos falantes, homens que desaparecem e viram uma bola negra, mulheres

gordas e infinitamente parideiras, etc. O fato insólito nesse aqui possui uma dupla

realização. Ele está ligado ao modo como o surgimento dos homens ―do outro lado da

montanha‖ se deu e à rejeição que representa o comportamento do povoado de Mangora

relativamente aos inesperados visitantes. Sendo assim, considerando os elementos que

sugerem a chegada do progresso à pacata cidadela, pode-se dizer que ocorre a hipérbole

indicando um aumento proporcional à diminuição gradual de algo. Nesse caso

específico, o que entra em um processo de desconstrução — analogamente ao de

construção da ponte — é o ritmo de vida do lugar, da liderança de Hebron, da união

entre os moradores, da preocupação com o humano, dentre outros elementos.

A forma como os visitantes chegam ao povoado lembra em muito A hora dos

ruminantes, de José J. Veiga. Essa narrativa conta a história de um lugar pacato

chamado Manarairema que tem a monotonia e a tranquilidade perturbadas quando

homens desconhecidos se instalam pelas redondezas. A partir do momento em que eles

chegam à cidade, toda calmaria se transforma e os habitantes do local, além das dúvidas

relativas ao surgimento deles, passam a ter que conviver com dois acontecimentos

insólitos: uma invasão repentina de cães que ninguém sabe de onde vieram e, da mesma

forma, o aparecimento de uma infinidade de bois que se instauraram pelas ruas, vielas,

morros, becos e caminhos da cidade. Excetuando-se os dois acontecimentos insólitos

citados em Manarairema, a chegada de Roque Diadema e de seus empregados seguem o

mesmo percurso. Eles vêm sem que ninguém saiba de onde, nem a mando de quem e se

instalam, provocando um misto de rejeição e curiosidade. Eles apenas ―desceram

vagarosamente (...) e ao chegarem à planura, no fim da tarde, os viajantes

descarregaram as mulas, aliviando-as dos teodolitos, picaretas, pás, enxada e provisões‖

(p. 265).

Essa maneira sorrateira de se acomodar nas terras sugere a conquista do lugar

paulatinamente. O engenheiro, representando o homem moderno e o progresso,

comporta-se como um indivíduo capaz de tudo para atingir suas metas, mesmo que

nesse tudo esteja incutido a ideia de dominação. Segundo Hermenegildo Bastos, ―a

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história do fantástico está diretamente ligada aos conflitos decorrentes da consolidação

do poder burguês, esmagamento impiedoso da nobreza e do velho campesinato‖ (2001,

p. 71). Roque Diadema representa esse poder burguês. O progresso trazido por ele não é

sinônimo de crescimento, mas sim de deteriorização. Em passagens como ―Além das

moradias, edificadas sem planejamento‖ (p. 269), ―o lugarejo crescia

desordenadamente, as casas brotavam em todos os cantos, grimpando nos morros,

dependurando-se em ladeiras‖ (p. 269-267), ―Os veìculos (...) espalhavam a densa

poeira‖ (p. 267) e ―A premência de se instalar (...) obrigava os recém-chegados a se

despreocuparem do mìnimo de conforto e higiene‖ (p. 267) notam-se claramente as

transformações negativas por que a cidade passou. A Mangora de agora em nada

lembrava o lugar pacato, tranquilo e sossegado de antes. Houve uma transformação

profunda em tudo.

A maior prova dessa transformação profunda que ocorreu na cidade está

presente no comportamento dos habitantes. No início do conto, Hebron afirma ao

engenheiro: ―nada se faz aqui sem a concordância da maioria‖ (p. 266). Havia o respeito

e uma liderança reconhecida. O lugar não tinha um chefe instituído pelo poder nem pelo

dinheiro. Ao receber os visitantes, um morador local afirma: ―em Mangora, não

gostamos de chefes. Em todo o caso, converse com Hebron. Ele é quem sabe das

coisas‖ (p. 265-266). O velho era um líder instituído pelo respeito e pela aceitação de

todos. Suas palavras tinham valor e todos o consideravam um homem sábio. Até esse

momento da narrativa, pode-se dizer que Hebron ainda não havia sido tocado pelas

consequências da chegada da companhia à cidade. Nota-se que ele ainda goza dos

privilégios de sua condição perante o povoado.

Contudo, proporcionalmente inverso a isso está Damião Roque. No momento

em que ele apresenta as escrituras das terras e Hebron confirma a veracidade delas, o

engenheiro entra num processo de crescimento significativo na história, enquanto o

idoso começa sua vertiginosa queda. Enquanto um sobe e desponta para a glória da

vitória, o outro se anula gradativamente:

Olhavam-no com desconfiança e a sua companhia passou a ser evitada por

todos. Nesse meio tempo, perdeu regalias e funções. Até as de encarregado

das compras no outro lado da montanha (...) foram delegadas a meia dúzia de

rapazes inexperientes, escolhidos pela posição radical que mantinham contra

a permanência dos forasteiros em Mangora (p. 271).

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Nesse aspecto, pode-se dizer que tanto Hebron como João Gaspar, do conto ―O

edifìcio‖, são semelhantes. Gaspar passou a ter uma existência vazia quando os

funcionários da obra começaram a ignorá-lo, inclusive zombando dele. Hebron, dadas

as diferenças circunstanciais da narrativa, aproxima-se dele, pois ele percebe que sua

importância para o povoado estava se esvaindo: ―A partir do dia em que confirmara a

legitimidade das escrituras apresentadas por Diadema, percebeu que a sua liderança

sobre os companheiros declinava‖ (p. 271). Na fatídica luta entre o bem e o mal, —

personificados, respectivamente, no homem simples e no progresso — tanto Hebron

quanto João Gaspar são exemplos claros do processo de enfraquecimento da força do

indivíduo perante a devastadora e gigantesca engrenagem da modernização. Não havia

como o velho sábio deter Roque Diadema. Seu conhecimento era rústico. Detê-lo seria

o mesmo que estagnar o avanço inevitável do progresso:

O que parecia real e palpável, o velho mundo das pequenas comunidades,

está em vias de desaparecimento. No seu lugar, a incerteza. Em ―A diáspora‖,

como vimos, confrontam-se duas formas de sociedade — uma, pré-moderna,

ágrafa, coletivista, mágica, que repousa sobre a autoridade dos sábios; a

outra, o grupo social moderno, desenvolvido, possuidor de máquinas e

tecnologias, cuja autoridade baseia-se na lei escrita, no documento

(BASTOS, 2001, p. 62).

Sendo assim, é correto dizer que insólito é o que a sociedade institui como

modelo. A deteriorização de um lugar paradisíaco — perdido no nada e com costumes

que remetem a outros tempos e lugares remotos da vivência humana — é visto como

algo sólito. Como consequência disso, o homem que ali vive entra num processo de

desencontro consigo mesmo, pois ele perde sua identidade para assumir aquela que lhe é

imposta pela força do progresso. Mangora e seus habitantes representam, inicialmente, o

ser em estado bruto, ainda não corrompido. Depois do advento Roque Diadema, os

mangorenses tornam-se aquilo contra o qual seu estilo de vida sempre esteve em

oposição. O crescimento da cidade corrompeu os princípios básicos de convivência

entre o antigo (o idoso Hebron) e novo (os rapazes da cidade). A harmonia é desfeita

pela incorporação de uma nova ameaça: a construção da ponte. Na verdade, essa ponte

metaforiza tudo aquilo que viabilizou a instauração de um processo que destruiu a

cultura dos habitantes de Mangora.

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4.1.16. As unhas30

O referido conto narra um fato insólito que ocorre com o personagem principal

da história, Henrique Canavarro. Ao que parece, ele está em seu quarto se aprontando

para uma festa na qual, segundo ele imagina, seria ―a figura central‖ (p. 4). Percebe-se

que Henrique Canavarro, homem vaidoso, inicialmente aparenta ter um ―fìsico atlético e

o rosto ainda jovem‖ (p. 4). Sua vaidade extrapola os limites do bom senso, levando-o a

um comportamento meio narcisista. Além da preocupação consigo mesmo, as únicas

coisas que lhe importavam eram ―assombrar a viúva Petúnia — sua mais recente

conquista — e amesquinhar os outros homens, que o invejavam e se empenhavam em

diminuir-lhe as qualidades‖ (p. 4). Por isso mesmo, ele decide não mais ir à festa, pois

acredita que sua ausência surtiria um efeito maior do que sua presença. Decidido, depois

de se olhar pela última vez no espelho, retira lentamente a roupa e se deita, imaginando

qual não seria a repercussão de sua falta no dia seguinte ao evento. No entanto, ―quando

puxou as colchas para cobrir-se, sentiu incomodar-lhe as unhas‖ (p. 4). A partir daì, o

insólito se instaura na narrativa e a hipérbole é evocada mais uma vez para dimensionar

as questões que permeiam o universo do homem contemporâneo. As unhas do

personagem crescem além do normal. Embora tivesse ido à manicura, ―as unhas tinham

crescido novamente‖ (p. 4). Não importava quantas vezes ele as cortasse, elas cresciam

muito e em pouco espaço de tempo. Chegavam a cinco centímetros de cumprimento.

Cada vez que ele cortava, mais elas cresciam. Caso Canavarro não acordasse de noite

para cortá-las, ele ―encontrava-as estendidas longe de suas mãos, subindo pelas paredes

como se fossem trepadeiras‖ (p. 4). Por conta disso, o protagonista isolou-se de todos,

pois era incômodo perceber que os outros notavam seu estranho hábito de ficar com as

mãos nos bolsos ou então cortando as unhas sem parar. Depois de procurar por ajuda

em outras cidades, Henrique Canavarro deixa de lado sua excessiva preocupação com

sua aparência e, ao acordar numa manhã qualquer, percebe que suas unhas não o

atrapalharam ao agarrar as velas. Sem que nada fosse feito para que o fato ocorresse, o

protagonista percebe que suas unhas voltaram ao tamanho normal. Logo lhe veio a ideia

30 Este conto inédito de Murilo Rubião encontra-se em seu acervo, doado pela família ao Centro de

Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, tendo sido selecionados dentre vários outros,

também inéditos, pela Profª. Vera Lúcia Andrade, atual diretora do CEL, e pela bolsista de Iniciação

Científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val. O conto, datado de 1950 (no início do texto lê-se 13/07/50

e, no final, 14/07/50), encontra-se datilografado em 6 páginas de 33 cm x 22 cm, contendo muitas

correções a lápis e anotações à margem (...), numa comprovação de que, para Murilo, o texto não estava

pronto. (RUBIÃO, Murilo. ―As unhas‖. Suplemento Literário. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 4-5, nov.

1994.

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de recomeçar a vida. No entanto, quando viu sua fisionomia no espelho do banheiro,

notou que ―era tarde‖ (p. 5). O conto termina com um homem velho, cheio de rugas,

olhando pela janela do quarto para um jardim do qual exalava um cheiro de flor suave

que lhe trazia lembranças da infância.

Um fato que chama a atenção do leitor nesse conto é a relação que o

protagonista estabelece com o espelho no desenrolar da narrativa. Laís Correa de

Araújo31

, no artigo ―Murilo Rubião: o realismo fantástico e as epìgrafes bìblicas‖ —

numa tentativa de conceituação da narrativa fantástica, estabelece uma comparação

entre esta e a definição de espelho:

Sabemos que a formação da imagem no espelho plano se dá pela reflexão da

luz em uma superfície polida. Essa reflexão, que acontece de maneira

ordenada, nos fornece uma imagem virtual, direita, reversa, mas simétrica.

(...) Por outro lado, a imagem será virtual (será vista em um ponto onde

temos a impressão de que os raios luminosos partem, divergentes, atrás do

espelho) e reversa colocada ao lado contrário ao seu natural. Assim, um papel

onde se lê normalmente a palavra ROMA, colocado diante de um espelho

plano, nos fornecerá como leitura a palavra AMOR e nos dará a ilusão de que

está dentro ou depois do espelho (1984, p. 3).

David Roas, no já citado A ameaça do fantástico: aproximações teóricas,

considera que o discurso fantástico é capaz de criar uma terceira realidade que, segundo

a terminologia dele, poderia ser denominada realidade virtual. A ideia do crítico

corrobora a tese de Laís Correa Araújo e, por conseguinte, ambas aplicam-se ao conto

por ora abordado. É através do espelho que se pode afirmar que o personagem enxerga

uma outra realidade que não é a real. Note, por exemplo, que o conto começa com ele

―Diante do espelho, com amoroso cuidado‖ (p. 4) preparando-se para a festa. Há

algumas passagens na narrativa em que o narrador dá indícios da exagerada

preocupação do protagonista com a imagem refletida. O segundo parágrafo inicia

afirmando que Canavarro ―Mirou-se demoradamente, antes de colocar a casaca,

satisfeito com o fìsico atlético e o rosto jovem‖ (p. 4). Pelo desenrolar da leitura, a

incerteza dos fatos instaura-se nesse ato contínuo de admiração egocêntrica, pois o

homem que termina o conto não é o mesmo que o iniciou. No início tem-se um

personagem jovem, com físico atlético, com belos cabelos sempre rigorosamente bem

penteados, e o que fecha a narrativa é uma sombra do que aquele fora um dia.

31 ARAÚJO, Laís Correa. ―Murilo Rubião: o realismo fantástico e as epìgrafes bìblicas‖. Suplemento

Literário. Belo Horizonte, v. 19, n. 926, p. 3, jun. 1984.

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Dando continuidade a essa mania obsessiva, nas passagens ―Ao voltar-se para

o espelho, a fim de colocar a flor na lapela‖ (p. 4) e logo a seguir em ―Contemplou-se

ainda mais uma vez ao espelho, admirando a sua própria elegância‖, nota-se claramente

que o personagem vê algo que lhe agrada. No entanto, não seria incorreto considerar

que o que ele vê, na verdade, é a sua imagem reversa, ―colocada ao lado contrário ao

seu natural‖ (1984, p. 3). Aquilo que o protagonista imagina ver é o que ele desejaria

ser, não a realidade; é o seu contrário. Possivelmente, era uma imagem dos tempos em

que ele se enquadrava dentro daquelas descrições, guardada inconscientemente em sua

memória. É possível considerar essa afirmação depois de se atentar para o fato de as

unhas começarem a crescer justamente quando o personagem deita-se para dormir e se

descola efetivamente de sua outra imagem, a virtual. A partir desse instante, o

protagonista é forçado a deixar de lado a idealização de si mesmo e encontrar-se com

sua realidade táctil. Nesse sentido, o crescimento das unhas indicia a constatação de que

existe algo que, embora seja insignificante e contínuo, perturba sua existência e não

possui uma cura científica. É por isso que, apesar de Canavarro ter procurado a opinião

de outros médicos distantes de sua cidade, nada encontrou. A cura estava em si mesmo.

Ela se deu naturalmente, sem medicações e inesperadamente, diante do objeto que

outrora lhe servira para embarcar numa viagem pelos caminhos da memória, mas que,

agora, serve-lhe como meio de constatação de sua realidade:

Correu ao banheiro para fazer a barba. Tinha que tomar providências

imediatas, chamar o alfaiate, etc. mas, ao dar com a sua fisionomia no

espelho, viu que era tarde. Nele estava refletido um rosto cansado e velho. Rugas e amarguras estavam impressa ali (RUBIÃO, 1994, p. 5).

Para um homem cuja vida ganhava sentido na satisfação pessoal e motivado

apenas por suas conquistas, encontrar-se diante do espelho e perceber que sua imagem

real não reflete mais a que ficou como idealização de um momento ou de uma época,

significa reconhecer a inevitável passagem do tempo. Nesse aspecto, nota-se o elemento

insólito servindo como um elo que estabelece uma relação entre o sujeito real e o

virtual. É por isso que se pode afirmar que o fantástico traz à tona uma realidade mais

profunda do que a usual. O ser, diante do insólito, vê-se oprimido pela constatação da

realidade. Por isso há o fantástico; ele ―dá lugar ao afloramento de um real mais fundo‖

(ARRIGUCCI, 1987, p. 147).

Sendo assim e diante dessas considerações, é possível até o questionamento

dos fatos como um todo. Haveria mesmo uma festa na qual Henrique Canavarro seria ―a

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figura central‖? A suposta viúva Petúnia seria de fato a última conquista do protagonista

ou não passava apenas de mais um dos seus delírios fantásticos? Afinal, ele se achava

bonito, atraente e causador de inveja nos demais homens da cidade; em sua mente,

quantas Petúnias não desejariam tê-lo ao lado. E, por último, não teria sido o

crescimento das unhas algo que só ocorreu no universo dos sonhos? Essas interrogações

ajudam a configurar esse indivíduo incapaz de lidar com sua nova realidade. A

percepção angustiante do passar do tempo diante do espelho no final da narrativa

resgata o personagem do universo fantástico e o projeta numa inevitável realidade

indesejada: a possibilidade da morte.

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4.2. O incesto (?)

Presente desde os antigos clássicos na literatura, o incesto é um tema bastante

delicado e difícil de abordar de forma relevante e significativa, pois, sendo um assunto

que extrapola o teor apenas literário da questão, proporciona discussões acaloradas e,

muitas vezes, visões de mundo estereotipadas de determinadas partes da sociedade. A

famosa tragédia de Sófocles, Édipo Rei, é um conhecido exemplo desse tema na

literatura clássica. Nos romances Os maias, de Eça de Queirós, e Lavoura Arcaica, de

Raduan Nassar, o incesto se faz presente como forma de externar certos conflitos

experimentados pelos personagens em seu convívio familiar. Nessa mesma linha, é

possível perceber o incesto em alguns contos de Murilo Rubião. Nas duas histórias do

autor mineiro elencadas aqui sob essa visão, nota-se que o tema é trazido à discussão

não por uma questão de ideologia perversa [como podem pensar alguns], mas sim como

forma de descortinar uma realidade perturbadora, apontada desde há muito tempo na

literatura, incluindo-se nesse rol, a própria narrativa bíblica.

4.2. 1. A casa do girassol vermelho

O conto ―A casa do girassol vermelho‖ desenvolve-se, em um primeiro

momento, a partir da temática do incesto. Toda a narrativa tem como pano de fundo o

ambiente da ―Casa do girassol vermelho, com os seus imensos jardins‖ (p. 16). Nela, há

seis personagens que são os responsáveis pelos desdobramentos dos acontecimentos.

São seis irmãos – três homens e três mulheres – que vivem um momento de

―entusiasmo contagiante‖ e de alegria ―desbragada‖ (p. 15). São seis jovens adotados

que experimentam uma falsa sensação de liberdade depois da morte do pai adotivo, o

velho Simeão. Segundo Hermenegildo Bastos, no artigo ―Do insólito ao espectral em

―Ofélia, meu cachimbo e o mar‖, ―no insólito não há liberdade: forças inimagináveis,

incontroláveis reduzem os personagens a meros objetos e joguetes32

‖ (p. 99). Eles não

imaginavam que o ―fantasma‖ do velho reprimiria a liberdade deles e os transformariam

32 BASTOS, Hermenegildo. ―Do insólito ao espectral em ―Ofélia, meu cachimbo e o mar‖. In: Murilo

Rubião: 20 anos depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

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em simples peças de um quebra-cabeça em que uma das partes se perdeu: o irmão morto

na represa.

O pai é apresentado desde o primeiro momento com ares de menosprezo e

rejeição absoluta. Frases e expressões como ―velho Simeão, o monstro‖, ―o carrasco, o

odiento está perdido‖ (p. 17), ―maldito satanás‖ (p. 18) e ―aquele porco imundo,

puritano hipócrita‖ (p. 18) dão a dimensão exata da relação conflituosa que havia entre

o patriarca e os filhos. Por outro lado, dona Belisária, a mãe adotiva que não pudera ter

filhos, era o oposto. Nela, os jovens encontravam o carinho e a segurança que faltavam

em Simeão. Depois da morte dela, a vida dos seis irmãos transformara-se em um

inferno devido à perseguição que começaram a sofrer do velho que só os deixou em paz

depois de um ataque cardíaco fulminante.

Depois da morte de Simeão, a Casa do girassol vermelho transformou-se em

uma espécie de paraíso. Há um clima de completa liberdade e de euforia entre os irmãos

que só é abalado com a morte de Xixiu na represa. O conto termina sugerindo que uma

das irmãs, Belinha, começa a dar sinais de uma gravidez: ―Abaixou-os depois para o

ventre, onde começavam a surgir as primeiras pétalas de um minúsculo girassol

vermelho‖ (p. 24).

Como é possível notar, essa narrativa não apresenta um elemento sobrenatural

fantasmagórico que provoca medo, terror ou pavor. O fato insólito baseia-se na relação

incestuosa entre os irmãos e no conflito entre estes e o pai adotivo. Segundo Jorge

Schwartz, uma das peculiaridades das narrativas fantásticas de Murilo é justamente a

capacidade de levar o leitor a um ―universo alicerçado num absurdo verossìmil‖ (1981,

p. 69). A história narrada mexe com o imaginário do leitor sem, no entanto, deixá-lo de

fora do senso de realidade. Afinal, é sabido que relações como as apresentadas no conto

não são uma primazia da ficção. Enfim, o que incomoda é a consciência da absurda

convivência entre a realidade e a ficção nesse e em outros contos do autor. Audemaro T.

Goulart ratifica essa ideia ao afirmar que o conto fantástico de Murilo Rubião ―insiste

em pôr a descoberto o processo de estrangulamento da personalidade dos indivíduos,

(...) abrindo-nos os olhos ao que não vemos à nossa volta‖ (1995, p. 61).

No contexto de sua primeira publicação, em 1947, é possível fazer uma leitura

alegórica do conto. Se se considerar que a narrativa fantástica contemporânea pretende

— como um de seus objetivos finais — levar o homem a refletir sobre o absurdo de sua

existência, notar-se-á que a Casa do girassol vermelho é o lugar da opressão, das não-

realizações. Conforme assinalou Davi Arrigucci Jr., ―os personagens nada podem e

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vivem a angústia da irrealização persistente (...). A existência dolorosa é o fardo

corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (2001, p. 157). Há aí uma referência ao texto

bíblico no tocante a essa ideia de paraíso e de sofrimento. Até mesmo os jardins da casa

remetem a essa interpretação, pois, na verdade, eles são ―uma tentativa de voltar ao

paraíso perdido da infância (BRUNN, 1995, p. 93). A perda ali foi mais profunda, pois

os ―irmãos‖ construìram um mundo no qual podiam tentar possuir a felicidade e, nele,

as relações incestuosas faziam parte de um universo tão normal quanto outro

qualquer, porque, na verdade, no mundo construído por eles, não havia transgressões. A

noção de certo ou errado simplesmente não se aplicava a eles.

Depois da morte do pai adotivo, a casa assume feições de um paraíso na Terra.

Há um sentimento de liberdade absoluta que se manifesta no processo de erotização dos

personagens. No entanto, tal processo retrata não o envolvimento emocional entre os

supostos casais, mas sim ―um caráter substitutivo e reificado‖ (1981, p. 37) dos irmãos.

O comportamento deles ratifica a tese de que eles não passam de componentes de um

universo caótico, do qual são meras peças de um quebra-cabeça inacabado devido à

ausência do irmão morto e da família como célula unificadora.

Todos os seis vivem afastados de tudo e de todos, como se não houvesse nada

mais além deles. Essa ideia só é desfeita com a chegada do trem: ―Além de nós, havia

no mundo mais alguém‖ (p. 23). A consciência de um mundo fora dali surge como algo

ao mesmo tempo benéfico e ameaçador. No primeiro caso, é benéfico porque é a

sinalização de uma continuidade daquela suposta ideia de felicidade que os casais de

namorados experimentaram logo depois da morte do velho; é ameaçador porque com

esse ―novo‖ universo que se descortinará diante deles, surgirá o fantasma do velho

Simeão personificado nas regras que a sociedade impõe. Ora, embora os irmãos

pensassem que seriam felizes após a morte do pai adotivo, não perceberam que jamais

poderiam ter esse sentimento ali. Toda a atmosfera de aparente felicidade é

abruptamente rompida pela rememoração da morte de Xixiu, o mais rebelde de todos.

Na verdade, essa pseudoalegria dá feições ao elemento trágico33

que se instaura

paulatinamente na narrativa:

33 Segundo Wolfgang Kaiser, no livro Análise e interpretação da obra literária, trágica é, em primeiro

lugar, no uso da língua corrente, toda catástrofe que não deveria acontecer e que nos fere ou atinge pela

incompreensão e absurdo de seu desfecho.

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―A morte daquele que se lhes antepunha como um carrasco leva-os ao

desespero e, nessa instância, o trágico se insinua através da revelação de uma

força superior que lhes marca a impotência de conduzirem-se a si mesmos‖

(GOULART, 1995, p. 115).

Nesse sentido, o velho Simeão cumpre o papel do elemento impositor. Era ele

o responsável por manter a ordem e as [absurdas] ―regras‖ sociais de convivência entre

todos na casa. Sendo assim, é correto afirmar que a relação incestuosa entre os ―irmãos‖

é uma forma afrontar a memória e tudo o que o velho representou para aqueles jovens.

4.2.2. O lodo

O conto narra a história de Galateu, um contador da Companhia de Seguros

Gerais que preferia gastar seu dinheiro com mulheres a tratar da própria saúde. Devido a

―uma depressão ocasional‖ (p. 235), fora parar no consultório do doutor Pink, um

analista que ―assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal‖ (p. 235).

Inconformado com o diagnóstico do psicanalista e perseguido pelo doutor que insistia

no tratamento e no pagamento dos honorários, Galateu começa a perceber que o mal

que o assola é algo que vai além de seu entendimento e do momento atual de sua vida.

Segundo sugere a narrativa, a raiz dele estava em feridas abertas que traziam ―uma

recordação desagradável do seu passado‖ (p. 237).

Dentre as narrativas analisadas nesta tese, pode-se afirmar que o conto ―O

lodo‖ é sem dúvida aquele em que o teor psicanalítico e filosófico está mais evidente.

Embora seja possível perceber uma certa ironia de Murilo no tratamento dado à ciência

freudiana, nota-se que a história se desenvolve tangenciando situações que dão primazia

ao estado em que se encontra o homem na atualidade com suas questões pessoais

aparentemente não superadas. É por isso que se desejou abordar essa narrativa,

buscando nela os elementos que ratificam a sugestão do incesto. Ele seria o responsável

pela repulsa tanto da ciência como do médico por parte do personagem central. O

doutor Pink surge-lhe como uma ameaça. Afinal, Galateu tentava ―concentrar-se no

trabalho, mas o pensamento girava entre o episódio sepultado no inconsciente e a

curiosidade malsã do doutor Pink‖ (p. 237). O que ele pensou ser apenas uma depressão

ocasional, na verdade mostra-se como o reaparecimento de sombras de um passado do

qual desejava fugir e que queria esquecer.

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A ironia a que se fez referência acima fica evidenciada na maneira como o

doutor Pink vai se portando no decorrer da história. Primeiramente, ele surge como um

médico interessado na cura do paciente e que cobraria seus honorários como deveria ser.

No entanto, conforme a narrativa evolui observa-se que ao lado da ciência —

representada pelo médico — está a extrema importância dada ao dinheiro. O valor da

consulta — cinco mil cruzeiros — deveria ser pago mensalmente ainda que Galateu não

fosse ao consultório do doutor:

A insistência do Dr. Pink revira a mente de Galateu, numa alusão à ideologia

psicanalítica que, ao invés de resolver problemas do paciente, acaba

agravando-os. A recusa de Galateu, fazendo-se resistente ao tratamento,

revela a má condução do processo que culmina com a morte do indivíduo. Temos, então, o sujeito, consciente de si, instalado numa aparente segurança,

vítima de uma trama criada por uma pseudociência, elitista, reacionária e

presa aos objetivos econômicos (GOULART, 1995, p. 144).

Tão destruidora quanto as feridas abertas em seu corpo era a perseguição do

médico que, em determinados momentos, oscila entre o interesse no paciente e no

pagamento dos honorários. O ápice dessa relação conturbada é marcado quando o

protagonista é intimado a comparecer a uma audiência, sentindo dores insuportáveis,

para tratar de questões relativas aos pagamentos atrasados do médico. A partir daí,

Galateu cria verdadeira ojeriza à ciência e ao médico, relutando, inclusive, em chamá-lo

no momento em que suas chagas tornam-se mais agressivas. O doutor voltará a aparecer

no final do conto, dando um aspecto de quase profecia ao sonho do protagonista,

quando Galateu, moribundo, recebe a visita do analista em sua casa, e este, com um

bisturi, limpa ―as pétalas da ferida‖ (p. 244), enquanto a irmã Epsila, debruçada à cama,

assiste a tudo.

A história começa fazendo referência a uma inesperada visita de Galateu ao

analista. Devido a uma depressão, ele vai parar no divã de um médico e se vê diante de

um doutor, respondendo a ―perguntas imbecis sobre sua adolescência‖ (p. 235). Como

se perceberá no decorrer da narrativa, o comportamento cético do protagonista tem

menos respaldo no desconhecimento, até aquela data, da ―existência de semelhante

especialidade‖ (p. 235) do que no medo de ver um desconhecido vasculhando um

passado supostamente enterrado em sua mente. É nesse momento pretérito que estão as

raízes das chagas que surgirão no personagem. Como uma consequência direta de um

―inconsciente que é lodo puro‖ (p. 237), tais feridas emergem dele e manifestam-se

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fisicamente em forma de ―uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates‖ (p. 238)

no lugar do mamilo esquerdo que havia desaparecido ao acordar pela manhã.

A forma como os acontecimentos vão se desenvolvendo sugere uma relação

incestuosa entre Galateu e a irmã Epsila. Tal sugestão vai ganhando corpo na narrativa

de tal forma que o próprio leitor começa a questionar quais segredos fizeram parte da

adolescência dos dois irmãos, a ponto de fazer com que o protagonista sinta-se invadido

por um doutor que lhe faz perguntas imbecis referentes àquele tempo. Outro fato que

levanta a possibilidade de tal relação está no tratamento que Galateu dá às mulheres.

Para ele, todas, inclusive a irmã e a mulher do patrão, são apenas joguetes em suas

mãos. Elas lhe servem a algum propósito. Nada mais. Talvez, a dificuldade em se

relacionar verdadeiramente com as mulheres encontre respaldo nesse passado

―pecaminoso‖ que mantivera com a irmã. Por fim, a chegada de Epsila com um filho

―retardado mental‖ (p. 241) projeta definitivamente a sugestão do incesto na narrativa.

Fosse ou não Galateu o pai da criança, a verdade é que, biologicamente, poder-se-ia

conjecturar tal fato, uma vez que é sabido que numa relação entre irmãos a porcentagem

de nascimento de um bebê com alguma deficiência é grande. Contudo, no âmbito

diegético, essa possibilidade só se ratifica quando Zeus, a criança, se dirige a Galateu

dizendo ―— Pai, a mãe mandou ela embora‖ (p. 242), referindo-se à empregada. O

protagonista não afirma nem desmente tal hipótese. Ele apenas questiona: ―Quem disse

que sou seu pai?‖ (p. 242) e fica ―meio desconcertado com a revelação‖ (p. 242) da

criança. Essas passagens somadas a outros elementos espalhados pelo texto remetem ao

relacionamento incestuoso dos dois irmãos.

Conduzindo a análise do conto por esse caminho, nota-se que o doutor Pink

figura metaforicamente como um superego de Galateu. O protagonista vai ao

psicanalista queixando-se de uma suposta depressão. No entanto, é a partir desse

encontro que a doença começa a progredir e a se manifestar fisicamente. É justamente a

rememoração de um passado do qual o personagem desejava fugir que traz à superfície

as lembranças desagradáveis da vida familiar. Em outras palavras, o médico é aquele

que vivifica a consciência transgressora de Galateu. Isso é perturbador. Corroborando

essa tese, note que tais recordações começam a incomodar mais intensamente o

protagonista depois da primeira consulta. E, depois do sonho, quando acorda sem o

mamilo esquerdo e com uma ferida aberta no lugar, o personagem vai a um

farmacêutico e se medica com uma pomada. Nesse ínterim, conforme o narrador afirma,

―Dois meses decorridos, a consciência tranquilizada‖ (p. 238), houve uma suposta

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melhora. Esse foi o período que Galateu esteve distante do analista. Bastou-lhe ―ouvir a

voz do médico‖ (p. 239) novamente, para acordar ―de manhã, com uma dor penetrante‖

(p. 239). Contudo, dessa vez, a pomada receitada pelo farmacêutico não adiantou. As

feridas voltaram mais profundas e doloridas. A partir daí, o estado de saúde do

personagem piora gradativamente, o que o levará à morte.

Somada a isso, é a chegada da irmã, acompanhada do filho, que

definitivamente desencadeará uma crise existencial em Galateu. Recebê-los em sua casa

equivale a trazer as recordações do passado para um momento presente. Ver a irmã

completamente diferente do que fora nos tempos de adolescente e ainda carregando uma

criança retardada mental, fez-lhe crescer o sentimento de culpa e de revolta contra ela e

contra si mesmo. Esses sentimentos confusos são percebidos no arrependimento do

protagonista ao abrir a porta: ―Arrependeu-se da imprudência: na soleira da porta

estavam a irmã e um menino com a aparência de retardado mental‖ (p. 241); na

percepção da irmã que ―perdera em doze anos, o viço, a suavidade de traços‖. Ela estava

―muito magra, os olhos sem brilho‖ e faltavam-lhe os ―dentes no maxilar superior‖ (p.

241). Tudo isso o leva a externar sua revolta. Por isso, em certas passagens da narrativa,

ele a chama de ―cadela‖ e de ―bruxa‖.

Perturbado pela presença deles em sua casa, o protagonista vai aos poucos

definhando até a morte. Todavia, a certeza de que a irmã estará presente em seu último

momento faz com que sua dor seja intensificada. Epsila manda embora a empregada,

pois, segundo ela, bastaria ―uma mulher para os serviços caseiros‖ (p. 242). Isso

quereria dizer que Galateu ficaria completamente dependente dela. Eis aí mais uma

ironia. Embora tenha querido fugir de seu passado, ele retorna e acompanhará seu

último suspiro, mesmo contra sua vontade. Enfim, na parte final do conto, o

personagem é encontrado desfalecido no chão da cozinha. Levado para o quarto,

exalando ―um odor fétido da pústula‖ (p. 244), ele aceita que o doutor venha a sua casa.

Na última cena no texto, está o analista limpando ―as pétalas da ferida‖ de um lado, e a

irmã do outro, debruçada ―sobre o corpo moribundo‖. Na verdade, essa passagem é a

concretização do pavor que Galateu possuía; sentimento este que lhe surge pela primeira

vez em forma de sonho. Para ele, mais do que sofrível, tal situação era a pior maneira de

morrer. Por isso, mesmo morrendo e diante da irmã — sua única parenta e testemunha

de seu passado — ele ―esboçava imperceptìvel gesto de asco‖ (p. 244).

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4.3. A ambiguidade

Todorov já apontava para a possibilidade da ocorrência da ambiguidade na

narrativa fantástica, quando afirmava que a hesitação é um dos traços fundamentais do

gênero. Associada a outros elementos distribuìdos pela teia textual, a sua ―poética da

incerteza‖ contemplava uma realidade plural. Na mesma esteira estruturalista, porém

com uma terminologia diferenciada, Filipe Furtado substitui a hesitação pelo termo

ambiguidade. Para ele, esse é o traço fundamental do texto insólito que, relacionado a

outros elementos como o espaço em que a narrativa desenvolve-se, a identificação com

um narratário e a ocorrência de um fenômeno metaempírico que não se explica,

definitivamente configura o fantástico como gênero. Seja por uma visão ou por outra, o

fato é que quando a ambiguidade ocorre nos contos de Murilo, ela proporciona um

verdadeiro xeque-mate no leitor. Este fica indeciso diante dos fatos narrados e

questiona, mesmo depois de terminada a leitura, o porquê dos acontecimentos; ou se

eles realmente são o que aparentam ser.

Um fato que foi possível perceber nos contos analisados e que não é privilégio

só dos textos que compõem o subcapítulo que trata da ambiguidade é a possibilidade de

mais de uma abordagem na interpretação das narrativas de Murilo. Nesta parte

específica da tese, normalmente, a ambiguidade vinha associada à loucura, ou à

hipérbole; ou a hipérbole associava-se à loucura e ao incesto e etc. Isso, de certa forma,

dificultou um pouco a análise, pois, quando se opta por uma abordagem, escolhe-se um

caminho que pode, em alguns casos, excluir outro [ou outros].

4.3. 1. O Pirotécnico Zacarias

Um dos traços presentes no conto ―O Pirotécnico Zacarias‖ é a ambiguidade.

Embora esta surja nas primeiras linhas da narrativa e logo em seguida seja,

paradoxalmente, desfeita pelo narrador, nota-se que é através dela que o insólito vai aos

poucos se instaurando. O problema, agora, passa a ser do leitor que se vê diante de um

fato controverso, pois a leitura integral do conto, não a elimina por completo.

Segundo Jorge Schwartz, a ambiguidade

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surge na medida em que o personagem-narrador descreve as incrédulas

reações daqueles que o circundam (...). Vemos como o próprio narrador

concilia as possíveis oposições (...), fazendo paradoxalmente da ambiguidade

a estabilidade da narrativa (1981, p. 64).

O narrador afirma: ―Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos

que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o

que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente‖ (1998, p. 26). Já

no final do conto, ele afirma que ―nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à

margem da vida, ainda estou vivo‖ (p. 32). Ou seja, o conto termina tão contraditório

quanto começou. Dessa forma, a narrativa abre algumas possibilidades de o leitor

interpretar o fato. Ou ele realmente está morto e, sendo assim, quase que

machadianamente, narra suas aventuras póstumas — o que seria um fato sobrenatural:

―Em O ‗Pirotécnico Zacarias‘, tenta-se burlar a morte com certa dose de humor negro

um pouco semelhante ao das Memórias póstumas de Brás Cubas‖ (ZAGURY, 1971, p.

30); ou então, ele estava metaforicamente morto, mas passou a se considerar vivo

depois de seu atropelamento. Pode-se ainda imaginar que tudo não passou de um

momento de delìrio provocado pelos efeitos da bebida: ―A bebida que antes da minha

morte pouco me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente‖ (p.

31). Note que no conto não fica claro se a bebida foi ingerida antes ou depois do

atropelamento. Esse fato, segundo Todorov, incluiria a história no rol das narrativas

pertencentes ao gênero estranho. Por último, ainda, caberia uma interpretação alegórica

do fato narrado, já que o morto está mais ―vivo‖ do que antes. Morrer para tudo e todos,

nesse caso, seria uma forma de afirmar um novo começo, uma nova postura diante da

vida, já que quando ele pensava estar vivo, na verdade, não estava.

Enfim, essas são apenas possibilidades de leitura. Nenhuma delas é melhor ou

pior que a outra. No entanto, depois do que já foi dito a cerca do fantástico em Murilo e

das ideias de Sartre, fica sempre a questão: nesse conto, há alguma coisa que converge

para tais postulações? Acredita-se que sim. Se se considerar que na narrativa muriliana

―em geral, os lugares onde os acontecimentos ocorrem são os do dia a dia, e (...) os

personagens são metonímias da humanidade inteira34

‖ (BATALHA, 2013, p. 34),

poder-se-á aventar uma crítica implícita no conto em questão.

Na verdade, parece que o fantástico em ―O Pirotécnico Zacarias‖ não está

somente na vida-morte ou na morte-vida do personagem-narrador. Tanto é que o xeque-

34 BATALHA, Maria Cristina. ―Murilo Rubião e o fantástico brasileiro moderno‖. In: Murilo Rubião: 20

anos depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

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mate a que é submetido o leitor não se desfaz. Insólita mesmo é a maneira como o

acontecimento é tratado. Um grupo de moças e rapazes embriagados, dirigindo um

automóvel, atropela um homem e não demonstra pesar pelo fato: ―todos os argumentos

analisados com frieza, prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro‖ (p.

28). Com exceção de ―um dos moços — rapazola forte e imberbe — o único que se

impressionava com o acidente e permanecera calado e aflito‖ (p. 28), o grupo estava

mais preocupado em se livrar do problema. Nota-se na discussão entre os jovens uma

postura egoìsta e desumana. Enquanto ―o chão manchado de sangue‖ (p. 29) se

contamina da insignificância que emana do corpo e do fato ocorrido, é possível perceber

quais valores aquela juventude egoísta e mais preocupada com a diversão privilegia. Se

tais personagens são uma metonímia do homem moderno, não seria descabido dizer que

Murilo talvez tenha desejado chamar a atenção do leitor para o tipo de cidadão que a

sociedade moderna criou. Nesse sentido, o humor negro a que se refere Eliane Zagury

há alguns parágrafos acima aponta cética e ironicamente para uma deteriorização dos

valores e comportamentos humanos.

4.3.2. Mariazinha

Antes de qualquer coisa, é importante salientar que o referido conto poderia ter

sido analisado seguindo algumas abordagens de outros estudiosos. É o caso, por

exemplo, do ilustre professor e orientador desta tese, Alcmeno Bastos, e do professor

Audemaro Taranto Goulart. O primeiro realiza uma análise da narrativa, pautado na

questão da causalidade — visão esta também apresentada por Jorge Schwartz, na

poética do uroboro. Segundo Bastos, no artigo intitulado ―Murilo Rubião e a questão da

causalidade35

‖, ―o insólito muriliano deriva da peculiar maneira como a temporalidade é

subvertida, minando a confortadora certeza de que nada pode acontecer fora da ordem

natural que determina lugares fixos para o passado, o presente e o futuro‖ (p. 71).

Segundo ele, Murilo constrói contos que burlam a obrigatoriedade de as narrativas

seguirem o padrão tradicional de relatar os fatos. Muitas vezes, os textos são

intercalados por blocos que servem para situar o leitor no espaço e no tempo das ações

35 BASTOS, Alcmeno. ―Murilo Rubião e a questão da causalidade‖. In: Murilo Rubião: 20 anos depois

de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

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narradas, sem, no entanto, seguirem uma ordem lógica de início, meio e fim. Por outro

lado, Audemaro vê nesse conto ―um exemplo perfeito da peripécia‖ (1995, p. 128) que,

de acordo com Aristóteles, ―consiste na súbita mutação dos sucessos, no contrário‖ (p.

127). Segundo Goulart, o fato de ―o morto falar de sua morte, voltar a ser vivo, narrar a

sua história e, novamente, ser morto, quer dizer, o presente se torna passado e se faz

novamente presente‖ (p. 129) é o que permite reconhecer a peripécia no conto.

Embora as duas abordagens sejam interessantes, buscou-se um caminho

diferente e que se aproximasse mais das considerações feitas acerca das teorias

sartrianas. Por esse motivo, o conto foi incluído na parte que aborda a ambiguidade. É

por esse viés que se deseja considerar a relação entre o homem e o universo que o

circunda.

Segundo Filipe Furtado, ―só o fantástico confere sempre uma extrema

duplicidade à ocorrência metaempìrica‖ (1980, p. 35). Essa duplicidade gera a

ambiguidade na narrativa, o que, muitas vezes, coloca o leitor diante de uma incerteza.

Por exemplo, o insólito no conto ―Mariazinha‖ se descortina aos poucos. Na primeira

parte [1943], há uma cena que só se torna plena para o leitor, quando este tem acesso às

duas outras partes. Nela, o narrador-personagem está relatando seu velório momentos

depois de ter se suicidado. Na segunda parte, que ocorre vinte anos antes, o narrador

detalha os acontecimentos que o levaram a tal fato. Nela, há alguns elementos insólitos

como filhos ―recolhidos aos ventres maternos‖ (p. 42), homens que ―voltaram a ser

solteiros‖ (p. 42), ruas que ―ficaram sem calçamento‖ (p. 42) e um padre que ―foi

nomeado bispo‖ (p. 42) que, no contexto da narrativa, tornam-se fantásticos porque

sugerem uma ruptura na normalidade dos acontecimentos. Por fim, na terceira parte,

[1943, novamente], se não fosse o fato insólito de o personagem Zaragota ser enforcado

de novo, as coisas retomariam sua suposta normalidade, inclusive com o bispo voltando

a ser padre, os filhos saindo dos ventres maternos, os homens se casando e o calçamento

voltado às ruas.

O leitor tem diante de si duas realidades. Uma que ocorreu no passado e outra

no presente. No entanto, nenhuma das duas pertence ao seu universo cronológico.

Portanto, as duas são pretéritas. O impasse ressurge quando, no decorrer da narrativa,

fica-se sabendo que quem narra é um narrador-personagem-defunto. Diante de um

personagem tão escorregadio quanto um Brás Cubas, paira a dúvida em creditar

confiança no seu relato, ou, simplesmente, rejeitá-lo por se tratar de alguém que percebe

a vida [ou a morte] por outro prisma. Eis a primeira armadilha de Murilo Rubião ―de

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Assis‖. Afinal, a um morto, tudo lhe é concebido, inclusive o delírio que justifique o fim

trágico que teve a sua existência. Sendo assim, excluí-se a possibilidade do flashback,

pois, nesse quase-delírio, todos percebem e aceitam os acontecimentos narrados e quem

os narra é um morto. Não há uma ação psicológica que só ocorre na mente do narrador.

Sem sombra de dúvidas, o narrador-personagem é insólito, Mariazinha é

insólita e Zaragota, também. No entanto, o personagem que mais concentra em si teor

de insolitude é o Padre-Bispo-Padre Delfim. Ele é a personificação da ambiguidade. O

clérigo reúne em si a santidade do cargo que ocupa, mas também a ambição do ser

humano. Ele decide o que pode e o que não pode: ―proibiu a melancolia, as queixas

contra as ruas empoeiradas‖ (p. 43); ele decide quem vive e quem morre: — Josefino

Maria Albuquerque Pereira da Silva, enforque o homem!‖ (p. 43) e decide quem casa:

―toque os sinos e case com Mariazinha‖ (p. 43). Observa-se que o religioso possui mais

do que a fé ao seu lado. Havia nele uma espécie de liderança indiscutível. A vontade

dele era a de Deus: ―Ordenou que se expulsassem as lâminas de aço, os instrumentos de

metal‖ (p. 43); ―Como não houvesse quem discordasse, enforcou-se o canalha do

Zaragota‖ (p. 44) e ―dom Delfim jamais ameaçava duas vezes‖ (p. 44).

Nesse cenário montado por um morto-vivo-morto, os elementos insólitos

surgem como forma de criticar uma dada realidade. Ao que parece, o lugarejo ficava em

uma cidade pequena, talvez do interior. Num lugar como esse, a figura de um padre tem

grande respeito. Isso fica claro na maneira como o narrador o coloca na cena. No

entanto, o que chama a atenção é o fato de o ―homem de Deus‖ ser tão inescrupuloso

quanto o canalha que ―abusou‖ de Mariazinha. Em meio ao burburinho que cercava a

cidade por conta do que acontecera, Dom Delfim estava mais preocupado ―com o

adjetivo e com o perfume que vinha do lencinho branco de rendas‖ (p. 43). Nas

passagens ―Somente se preocupava com a festa comemorativa da sua elevação a bispo,

temendo que algum acontecimento imprevisível roubasse a pompa das homenagens que

deveria receber‖ (p. 43) e ―Levantou a cabeça, altivo, enérgico, e ordenou‖ (p. 43)

percebe-se a que tipo de homem religioso o narrador se refere. O religioso sem

religiosidade. Ele é apenas o título que carrega, e está mais preocupado com a pompa e

com os poderes que o cargo lhe dá do que em realizá-lo como deveria.

Como se pode notar, Murilo se utilizou de uma narrativa simples para

demonstrar alguns elementos que fazem parte da construção da personalidade desse ser

moderno: o homem. Acredita-se que a ambiguidade — marcada concretamente na

narrativa pela disposição temporal presente x passado —, de certa forma, faz parte da

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natureza humana. No conto, Josefino Maria Albuquerque Pereira da Silva, o narrador,

reúne em si tal possibilidade porque, na situação de narrador-defunto, encontra-se

privilegiado pela re-memorização póstuma dos fatos ocorridos; Mariazinha apresenta-se

ambígua conforme a narrativa se desdobra. É uma mulher que aparenta ser uma coisa,

mas, na verdade, é outra. Isso fica insinuado no conto. Ela é a responsável pelo suicídio

de Josefino e, por fim, o padre. Personagem mais emblemático desse caráter ambíguo

que compõe o homem de todos os tempos: ambicioso, mas ostentador de aparências.

4.3.3. Elisa

O conto narra o momento em que uma mulher desconhecida chega pela

primeira vez à casa do narrador e, sem que ele esperasse, ela desaparece. Um ano

depois, ela volta e diz se chamar Elisa. A história termina com uma nova partida e com

a sugestão de que haverá um novo retorno da enigmática mulher.

A história em si é uma narrativa simples. Na verdade, a ambiguidade dela recai

na figura feminina que surge. Assim como Mariazinha do conto anterior, ela é

apresentada de forma misteriosa, enigmática e ambígua. É misteriosa porque, nas duas

vezes em que aparece, surge do nada, trazendo consigo os mistérios de sua vida:

―Raramente saia e nunca aparecia à janela‖ (p. 47), ―Não nos disse o nome, de onde

viera e que acontecimentos lhe abalaram a vida‖ (p. 48) e ―Andei por aì e nada fiz.

Talvez amasse um pouco‖ (p. 49). Elisa é enigmática porque deixa transparecer mais do

que está dito na narrativa. Em passagens como ―como se obedecesse a hábito antigo‖ (p.

47), ―Aceitei os seus longos silêncios, as suas repentinas perguntas‖ (p. 48) e ―Mas

depois, Elisa (...) partiu de novo‖ (p. 49) nota-se uma personagem envolvida numa

espécie de segredo que deve [ou precisa] ser decifrado. A maneira como surge, o

comportamento que tem mesmo depois de algum tempo de convívio com as pessoas da

casa e seus olhos castanhos, que de certa forma remetem ao olhar de Capitu, em Dom

Casmurro, constroem uma atmosfera enigmática em torno de Elisa.

Nesse sentido é que se pode falar em ambiguidade no referido conto. Segundo

Goulart, Elisa representa ―a descoberta paulatina de situações desconhecidas‖ (1995, p.

137). Ela pode ser vista como a manifestação do desejo do narrador-personagem e a

simultânea interdição desse sentimento, que se dá a cada nova partida ou nova chagada.

Essa duplicidade de possibilidade percorre o conto. Desde o primeiro momento, quando

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o rapaz a vê, até a conversa que ele tem com a irmã no fim do conto, demonstrando uma

preocupação em poder ser achado por Elisa caso volte novamente, remetem a essa

predisposição para a realização do desejo. Por isso, pode-se dizer que a relação que se

constrói entre a mulher e o narrador-personagem é de ambiguidade, pois ela não se

concretiza plena e satisfatoriamente, deixando tanto o leitor quanto o personagem na

dúvida dos sentimentos e das intenções de Elisa. Por fim, em uma última análise, poder-

se-ia ainda aventar que Elisa é a personificação do amor. Uma personificação que traz

em si os bônus e os ônus desse sentimento e, consequentemente, da perda dele.

4.3.4. Marina, a Intangível

Nesse conto, o personagem José Ambrósio, um jornalista desacreditado, se

desespera ao perceber que não consegue escrever o artigo para publicação. Mesmo

sabendo que ―o redator-chefe nunca aproveitava, na edição do dia, os seus artigos e

crônicas, nem deixava determinadas tarefas que deveria cumprir‖ (p. 78), ele procura

escrever algo que valha o seu trabalho noturno. Para isso, em forma de prece, recorre à

Marina, a Intangível que, segundo ele, também é conhecida como Maria da Conceição,

uma mulher que fugiu com o namorado e que só trouxe infortúnios para o rapaz. No

entanto, o fato mais surpreendente ocorre quando um baixinho narigudo surge diante do

jornalista dizendo ter recebido o recado dele e que estava ali para ajudá-lo a escrever um

poema para a tal Marina, a Intangível. A partir daí, o ―poema que se constrói a si

mesmo‖ (1995, p. 130) ficará metaforicamente sugerido no cortejo em que Marina

surgirá diante de José Ambrósio.

Não seria difícil perceber nesse conto a dificuldade de criação do artigo

vivenciada pelo personagem-narrador, o que de certa forma, poderia encaminhar a

análise da narrativa para uma analogia entre este e a trajetória do próprio Murilo,

configurando-se, assim, ―um elevado teor metalinguìstico‖ (1981, p. 84). No entanto,

como tem sido feito nas outras interpretações, buscar-se-á seguir um caminho que fuja

um pouco de outras análises. Por esse motivo, esta abordagem considerará a

ambiguidade como fator relevante no referido conto.

Inicialmente, pode-se dizer que todo o cenário está configurado para a inserção

do elemento insólito. Em passagens como ―Agoniado pela ausência de ruìdos na sala‖

(p. 77), ―eu jamais conseguiria romper o vazio que se estendera sobre a madrugada‖ (p.

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77) e ―Afinal, duas pancadas longas e pesadas, que a imobilidade do ar fez ganhar em

volume e nitidez, ressoaram, aumentando os meus sombrios pressentimentos‖ (p. 77)

nota-se toda uma atmosfera de penumbra, expectativa e mistério. Há algo para

acontecer. Essa ideia é realçada pelos sentimentos confusos e desesperados de um

homem solitário na madrugada que recorre à crença [ou à superstição] para construir

algo real: o artigo. José Ambrósio recorre, em forma de prece, à Marina, a Intangível e à

Bíblia. A narrativa vai sendo conduzida de forma tal que o leitor aos poucos é envolvido

por esses elementos que compõem tanto aquele universo como também o personagem.

A partir de determinado momento da história, a questão que se pode colocar é:

até que ponto a palavra do narrador é confiável? A resposta para tal pergunta torna-se

ambígua, quando é possível perceber que aparecem no texto alguns dados que levam a

uma dupla interpretação dos fatos ali encenados. O primeiro deles, como já foi dito, é

todo o cenário montado no início do conto. O segundo é a inutilidade do artigo. Como

alguém anseia tanto escrever algo, sabendo que será descartado pelo chefe? Por que o

martírio na criação de algo que não serve para nada? Essas e outras perguntas vão

tomando corpo à medida que a história se descortina e o leitor começa a perceber que há

algo estranho na relação de José Ambrósio com a realidade que o cerca: ―A qualquer

momento poderia ser arrastado da cadeira e airado ao ar. A ação da gravidade estava

prestes a ser rompida‖ (p. 79). O terceiro e mais insólito dos fatos é o surgimento do

misterioso homem que diz trazer os versos para Marina, a Intangível. Nenhum outro

personagem confirma a existência dele. Só José Ambrósio o vê. O homem, apesar de

desconhecido, sabe muito sobre o jornalista, inclusive de uma doença que o próprio

narrador rejeita:

— Encomendou sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é

anterior à sua doença.

Descontrolei-me, ouvindo tão cretina afirmação. Eu, doente?! O melhor seria encerrar o assunto e cortar de vez o nosso diálogo (p. 81)

De que doença se trata? Será que esse homem realmente apareceu diante dele

ou tudo não passou de uma alucinação? No texto, isso não fica claro. Há apenas indícios

que possibilitam esse questionamento por parte do leitor. A ambiguidade reside no

caráter duvidoso desse personagem que se mostra aos poucos. Outro dado que ratifica

esse sentimento é o fato de o homem sugerir a publicação de uma poesia: ―— Toda e

qualquer modalidade poética foge à linha do jornal. Se nem os meus artigos, que são

mais importantes, ele publica‖. (...) ―— São versos para Marina, a Intangìvel‖ (p. 81).

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Nessas passagens, observa-se uma contradição do jornalista. Anteriormente, ele tinha

consciência de que seus textos não eram aproveitados pelo redator-chefe, mas, agora,

ele diz que seus textos são mais importantes. Importantes para quem, para ele? No

entanto, depois de saber que os versos eram para Marina, meio contrariado, ele aceita a

publicação e a sugestão de fazerem uma edição extraordinária toda dedicada a ela.

Enfim, como um suposto jornalista desacreditado seria capaz de criar uma edição

apenas para publicar algo de seu interesse, mesmo que o texto fugisse ao padrão do

jornal? Esses elementos desconstroem a credibilidade do personagem e, em alguns

momentos, chegam a permitir a dúvida de que se trata mesmo de um jornalista.

A maneira como o poema é ―escrito‖ também é insólita: ―— Vá me olhando e

escrevendo (...). E começou a fazer gestos com as mãos. Gestos vagarosos que,

ritmadamente, lhe cobriam e descobriam a face plácida, imóvel‖ (p. 82). José Ambrósio

não consegue decifrar o que os movimentos queriam dizer, mas afirma que ―sentia que

o poema de Marina poderia estar nascendo. Lindos e invisìveis versos‖ (p. 82). Na

verdade, parece que o suposto jornalista está tendo um devaneio, uma alucinação. Os

versos de Marina não precisam nem de folhas nem de máquinas para ser escritos. Eles

―são feitos de rosas despetaladas‖ (p. 83) e de girassóis. Como é possível perceber, há,

nessas passagens referenciadas, toda uma conotação surrealista do processo de criação

da poesia.

Por fim, o desfile de seres estranhos que antecedem à vinda de Marina reforça

a ideia de que é possìvel que o personagem esteja tendo um delìrio. Os ―padres

capuchinhos‖, a ―Filarmônica Flor-de-lis‖, e ―o coral de homens de cara murchas‖

formam o cortejo que precede Marina, a Intangível. Logo em seguida, ele a vê,

escoltada por ―padres sardentos‖ e ―mulheres grávidas‖, vestida com um ―vestido de

cetim com as barras sujas‖ (p. 84). Trazia um chapéu enfeitado com pena de galinha à

cabeça, os lábios muito pintados e ―olheiras artificiais muito negras, feitas a carvão‖. A

visão que José Ambrósio tem, mistura elementos religiosos e profanos. A Marina que se

lhe apresenta representa essa ambiguidade. Embora ela estivesse envolta e uma espécie

de auréola sublime, há uma quebra dessa visão quando o narrador relata as pessoas que

compõem o cortejo e dá ênfase à erotização de Marina. Essa mulher, meio santa meio

profana, com lábios ―excessivamente pintados‖ desperta o desejo do jornalista. Ao

perceber o rasgado do vestido, não sabe se olha para os olhos ou para as pernas dela. Há

um conflito explicável pelo estado de delírio do personagem. Delírio este que entra num

processo de declìnio no final do conto. Em passagens como ―os impressores,

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caminhando com auxílio de cumpridas pernas de pau, encheram de papel o quintal‖ (p.

85), ―os muros, que antes via na minha frente, transformaram-se num só‖ (p. 85) e ―o

poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas

rasgadas e de sons estúpidos‖ (p. 85) nota-se que a agonia de José Ambrósio chegava ao

fim. Afinal, ele acredita que de alguma forma a experiência que teve foi suficiente para

ter projetado nele o poema que desejava escrever para Marina, a intangível.

4.3.5. O bom amigo Batista

O conto narra uma estranha relação de amizade entre José e o amigo João

Batista. Os dois se conhecem desde a infância, período em que José já era advertido

sobre a exploração do amigo. Segundo diziam, Batista comia-lhe a merenda, copiava as

atividades de João e bancava o valente com os outros meninos, deixando José sozinho

na hora da briga. No entanto, o amigo sempre dava uma explicação absurda que era

aceita por José. Todos da família tentavam mostrar ao rapaz quem era realmente o

amigo. Nada adiantava. Depois de crescidos, coisas parecidas continuaram a acontecer:

uma namorada roubada, o primeiro lugar no concurso do Ministério da Fazenda, a

ascensão de Batista dentro do órgão, dentre outros fatos. Por fim, cansado de ouvir de

todos e, agora, de Branca, sua esposa, que Batista não prestava, José decidiu fingir-se de

doido. A mulher não ligou, mas o amigo resolveu interná-lo num hospício. Lá, fica

sabendo pelo irmão e pelo delegado João Francisco, que Batista está vivendo com

Branca, sua mulher. Adivinhando uma suposta boa intenção do amigo, José diz:

―Naturalmente Batista descobriu que minha mulher planejava retirar-me daqui e, para

evitar que tal acontecesse, foi ao extremo da renúncia, atraindo-a para si. Pobre amigo‖

(p. 104).

Como é possível perceber, a estranha relação de amizade entre José e João

Batista extrapola as barreiras da sanidade. Embora durante todo o percurso do texto não

seja apresentado um fato que definitivamente estabeleça a insanidade do personagem

pode-se dizer que vez ou outra surjam indícios que levam o leitor a cogitar tal

possibilidade. Em passagens como ―Sentia-me deslocado em casa, uma necessidade de

andar pela noite adentro, sem parar, cansando-me, evitando os pensamentos‖ (p. 101),

―Deixava-me ficar pelos bancos das praças, invejando a insensibilidade das nuvens‖ (p.

102), ―Não é que esse cretino está maluco mesmo‖ (p. 102) e ―É uma calúnia! Estou

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louco! Doido varrido!‖ (p. 103) nota-se que José de alguma forma tem um

comportamento que sugere um processo gradativo de desligamento de algo, que pode

ser da realidade. E é justamente nesse ponto que a ambiguidade se instaura. Diante do

cenário que é apresentado ao leitor, ele oscila entre uma e outra possibilidade: seria José

louco ou as pessoas exageravam no que falavam sobre o amigo Batista? Ou então: José

realmente enlouqueceu ou simplesmente estava se fingindo? Na verdade, essas questões

não são claramente respondidas no texto. A maneira como a narrativa é conduzida até

seu fechamento faz que o leitor saia dela sem ter certeza da situação de José.

Os limites entre a loucura e a não-loucura estão problematizados no conto. Fica

evidente que o amigo Batista é uma espécie de mediador entre esses dois pólos. É ele

que se interpõe entre José e a família, entre José e os amigos de trabalho e, por fim,

entre ele e a esposa ao enviá-lo para o hospício. No entanto, é José que assume tal papel

quando se diz louco para fugir da esposa e quando, no hospício, assume sua insanidade

na figura de Alvarenga Peixoto e, depois, ao conversar com Napoleão. Segundo Goulart

―José participa das duas realidades: a da sanidade e a da loucura, mostrando como

nenhuma delas tem predominância no contexto‖ (p. 51). Por isso pode-se falar em

ambiguidade nessa narrativa. Ao término do conto, o leitor ainda não consegue definir

qual era a verdade sobre o personagem. Para Goulart, diante das situações elencadas no

texto, o leitor é levado a assumir uma nova verdade: ―a de que os limites da

racionalidade, que foi problematizada pelo insólito, são limites do próprio homem‖ (p.

51).

É nesse aspecto que a narrativa tangencia o existencialismo sartreano, uma vez

que o que está sendo apresentado ao leitor é uma visão desse indivíduo moderno,

modificado pelas contingências de sua existência. Sendo assim, para o protagonista é

mais cômodo ver a sua realidade e acreditar nela como se fosse a única, e não a que

todos queriam que ele visse. Acreditar que o amigo Batista não se encaixava em tudo

que lhe falavam dele é uma maneira de o personagem manter-se alheio a questões que

ele não pode e não tem como controlar: que é o universo do outro. Esse José consegue

ser mais ingênuo do que o de Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, o de

Drummond conota uma figura resistente à realidade; já o de Murilo esconde-se dela,

desde os tempos de menino, para não sofrer ao percebê-la diferente daquilo que ele

imagina. Daí advém a aceitação do amigo Batista tal qual ele se lhe apresenta.

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4.3.6. Epidólia

Nesse conto, Manfredo — o personagem principal — procura a namorada

Epidólia, que sumiu sem que ele percebesse. Durante toda a narrativa a procura pela

enigmática figura feminina — que em alguns aspectos lembram Elisa — norteia os

acontecimentos estranhos que se seguem. Manfredo não a encontra e, embora em alguns

momentos tenha-se a impressão de que a peregrinação chegará ao fim, uma nova busca

se inicia, trazendo consigo as dúvidas e as novas Epidólias que se constroem

diferentemente no decorrer da narrativa.

É possível perceber que uma das temáticas abordadas neste conto é a

ambiguidade sugerida pelos tênues limites entre real e irreal, entre o sonho e a realidade,

entre a loucura e a razão. Já no início da narrativa o leitor se depara com um

personagem que oscila entre um comportamento apenas emotivo e um comportamento

esquizofrênico. É através dele que se tem a sensação de que os acontecimentos

enumerados no texto podem ter ocorrido ou não, fato este que dá ênfase ao caráter

ambìguo da narrativa. Na sugestiva passagem ―Manfredo se distraìra por alguns

segundos, (...) quando percebeu que o braço, (...) perdera o contato com o corpo de

Epidólia‖ (p. 169), o personagem não dá credibilidade necessária ao leitor sobre seu

relato. Essa sensação é intensificada quando Arquimedes — ―o velho guarda que o

acompanhara do grupo escolar à universidade‖ (p. 169) e ainda o trata como o menino

Manfredinho — dá uma resposta que não comprova nem desmente a presença de

Epidólia ali.

Além do fato de o próprio Murilo afirmar em entrevista que ―Epidólia nasceu

de um sonho‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 04), há elementos no texto que remetem a essa

leitura, o que remete também à incerteza dos acontecimentos. Inicialmente, pode-se

constatar que Manfredo estava de pijama no parque com a namorada. Mais adiante, o

personagem diz que ―Sentia-se sem condições de raciocinar objetivamente‖ (p. 170) e,

nesse mesmo momento, ele acredita que Epidólia disse-lhe que estava hospedada em

um hotel da cidade vizinha. A possibilidade do sonho ressurge quando o próprio

Manfredo se dá conta de que estava de pijama no meio da rua e não sabia se o trocava

por um terno que depois se sabe que ele não possuía. Outro aspecto que endossa a

possibilidade dele estar sonhando é o fato de o táxi que pegara para levá-lo à cidade ser

mais veloz e diferente do que os outros que ele via costumeiramente. Tudo ocorre em

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um universo em que as coisas se realizam a mercê de suas vontades, convergindo para o

propósito do personagem: encontrar Epidólia.

Ao chegar ao hotel, diante do gerente ―só articulou com clareza o nome da

pessoa procurada‖ (p. 171) e, depois de algumas ponderações, conseguiu conversar com

o homem que o ajudou a entrar em um quarto que poderia ser de Epidólia. No entanto,

nada fica comprovado, uma vez que o local estava vazio, tudo arrumado — como se

ninguém houvesse dormido ali — e as roupas não estavam no armário. O único vestígio

encontrado foi uma calcinha manchada de vermelho, que segundo Manfredo ―era

sangue ainda úmido‖ (p. 172). Mas o sangue e a calcinha poderiam ser de qualquer

mulher. Não se pode nem afirmar com absoluta certeza que esse hoteleiro realmente

existiu. Como se nota, a narrativa entra em um processo de afirmação e negação. A cada

informação colhida no percurso da busca do protagonista surge outra que lhe anula a

validade. É nesse sentido que Goulart afirma que ―o acontecimento contrário ao

anunciado caracteriza-se, então claramente‖ (1995, p. 136) no conto, fazendo com que a

narrativa reforce por si só o caráter ambíguo dos acontecimentos ali encenados.

Na continuidade da história, outro elemento que ratifica essa encenação é o

personagem Pavão, um velho marinheiro inicialmente considerado ―amante dela‖ (p.

172) pelo hoteleiro. No entanto, esse marinheiro vive em uma cidade que não tinha mar.

O próprio protagonista questiona a existência de uma orla marítima. Mas como no

universo onírico tudo é possível, depois da junção das três localidades [Natércia,

Pirópolis e a Capital], ―com Pirópolis veio o mar‖ (p. 173). Outro fato insólito.

Na esteira dos acontecimentos estranhos, Manfredo retorna a casa para trocar

de roupas e lá se depara com um ambiente que ratifica a atmosfera insólita: ―A velha tia

passeava com a cara enrugada, o vestido sujo, amarfanhado. (...) Com agulha e linha

invisìveis, tenta pregar no pijama dele um botão solidamente preso‖ (p. 173). É possìvel

perceber que o surgimento da tia na narrativa planta um novo questionamento: seria ela

louca ou, no sonho, Manfredo a descreve assim? Essa dúvida se sustenta no

comportamento da velha, segurando uma agulha e uma linha que não existem e na

recomendação do pai dele, dizendo que ―não desse muita atenção às bobagens da sua

cunhada‖ (p. 174). Esses elementos levam a uma interpretação ambìgua dos fatos.

Depois de vestir um terno de um dos roceiros, Manfredo se encontra com o

personagem Pavão. O suposto amante — tomado de grande rancor — diz que Epidólia é

uma ―vaca ninfomanìaca‖ (p. 175) e, depois de dizer que ―não devia ajudar cornos e

imbecis‖ (p. 175), aconselha-o a procurar, na casa da frente, o pintor: ―o último amante

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dela‖ (p. 175). Nesse momento, surgem novas informações que ratificam o ir e vir da

narrativa, intensificando a ambiguidade no texto. É esse pintor que ―padecia de uma

caxumba, entranhada no corpo todo‖ que provocará novamente a sensação de

proximidade e de afastamento do objetivo de Manfredo: encontrar Epidólia — que a

essa altura da história, tornou-se o do leitor também. A sensação de proximidade se dá

por dois motivos: pela descoberta de que Pavão era, na verdade, o pai que abandonara

Epidólia e porque o personagem acredita que sua busca está terminando e a imagem da

namorada permanece intacta, já que o marinheiro não fora amante dela. No entanto, um

novo afastamento surge quando Manfredo percebe que o pintor não era amante dela, e,

segundo ele, só a usava como modelo. Pintava retratos de mulheres nuas e ela posava

sem nada cobrar. Convencido da sinceridade do homem, Manfredo encontra-se com um

tio farmacêutico de Epidólia que o informa de que a sobrinha estivera ali ―há poucos

dias‖ (176) e que o pai dela — o suposto marinheiro amante — era um ―tipo ordinário,

depravado‖ (p. 177). Nota-se que do mesmo modo que a narrativa apresenta um fato

atenuador da angústia do protagonista, ela insere uma nova informação que mergulha o

texto na indefinição novamente. É nesse sentido que Jorge Schwartz afirma que o

referido conto ―condensa a temática do desencontro‖ (1981, p. 31). Tanto Manfredo

quanto o leitor são guiados por caminhos que só intensificam o sentimento de angústia

criado pela ânsia do encontro que nunca acontece. As duplas possibilidades que se

constroem ao longo do texto dão a ideia de que o encontro é tão incerto quanto à própria

existência de Epidólia. Afinal, no mundo dos sonhos, criam-se realidades irreais.

Na parte final, é possível observar que o desespero do personagem avoluma-se.

Acreditando encontrar a amada nas docas, conforme o tio da moça lhe falara, o rapaz

segue desesperado pelo caminho que o levaria ao encontro dela. Nesse percurso, o leitor

começa a perceber que a presença da namorada naquele lugar é tão incerta quanto

qualquer outro dado elencado na narrativa. Em passagens como ―Perto e longe, a amada

se perdia por detrás do casario‖ (p. 177), ―Chegara à exaustão e o nome da amada (...)

levava-o ao limite extremo da angústia‖ (p. 178) e ―Apertou o ouvido com as mãos,

enquanto o coro se distanciava, até desaparecer‖ (p. 178), nota-se que o conto entra num

processo decrescente. Aos poucos, a tensão da busca se esvai e com ela se vão todas as

certezas. O retorno à realidade traz a consciência de que Pirópolis não tem mar e o

parque e a cidade não são os mesmos que ele idealizara para sua amada. A partir daí,

rememorando o texto como um todo, observa-se que a ambiguidade sugerida nos limites

entre o real e o irreal e entre a sanidade e a loucura serviu também para construir a

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imagem da figura feminina entranhada inconscientemente em Manfredo. Epidólia fora

(?) namorada/amante, filha/depravada, virgem/prostituta. Cabe ao leitor escolher com

qual ficará; ou não.

4.3.7. O convidado

Nesse conto, o personagem principal é convidado para uma festa. O convite, as

roupas, a situação e as pessoas são elementos estranhos que compõem essa narrativa

fantástica de Murilo Rubião. Nela, ―o autor subverte a realidade a partir de uma situação

banal e a transforma em um acontecimento insólito‖ (BATALHA, 2013, p. 44),

construindo uma narrativa em que a ambiguidade configura-se paulatinamente no texto.

José Alferes, o personagem principal dessa história, é um homem recluso e

solitário: ―A ideia era evidentemente absurda, tendo-se em conta que o seu círculo de

relações não excedia o corpo de funcionários do hotel‖ (p. 211). Ele recebe um convite

estranho, pois ―além de não mencionar a data e o local da festa, omitia o nome das

pessoas que o promoviam‖ (p. 211). A única exigência feita era a maneira como ele

deveria ir vestido a essa cerimônia. Para as mulheres não havia exigências, mas para ―os

cavalheiros fardão e bicorne ou casaca irlandesa sem condecorações‖ (p. 211). Ou seja,

há uma situação banal — que é o convite — pouco a pouco transformada em algo

insólito devido aos elementos que surgem na história. A roupa e a omissão de dados que

identificam o remetente, o local e a data, tudo isso direciona o conto para uma

interpretação ambígua dos fatos. Além disso, há ainda algumas construções na narrativa

que remetem à incerteza: ―julgou tratar-se de alguma festividade religiosa (...)

preocupado com a possibilidade de um equívoco‖ (p. 211); ―procurando localizar algo

perdido na memória‖ (p. 213); ―— Calculo que o nosso destino é o bairro de Stericon‖

(p. 215); ―— Não estou certo‖ (p. 215) ―Tem certeza que é neste lugar, Faetonte‖? (p.

215).

Acreditando se tratar de uma brincadeira de mau gosto, Alferes pensou em se

livrar do convite. No entanto, ―ao lembrar-se de Débora, a estenógrafa, pensionista de

um dos apartamentos no mesmo andar do seu‖ (p. 211), mudou de ideia. Desejando ter

um encontro com ela, nutriu a esperança de que o convite pudesse ter partido dela. No

entanto, não há indícios sólidos no texto que justifiquem tal pensamento. Esse

comportamento do personagem tende a ratificar o sentimento de dúvida que começa a

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surgir com relação aos fatos narrados. Havendo o convite, José Alferes fora realmente

convidado? Há duas passagens no conto que sugerem esse questionamento. A primeira

ocorre quando, imaginando dançar com Débora, o narrador afirma que o personagem já

estava convencido: ―a festa estava bem próxima‖ (p. 212); a outra, quando o porteiro da

casa diz que os convites dos outros foram feitos por telefone e que o do protagonista

―foi o único expedido através dos correios‖ (p. 216). Ora, havia tanta vontade de

participar da festa que, mesmo com um convite que talvez nem fosse seu, ele ficou

entusiasmado com a situação. Poderia ainda ter havido algum erro na hora do envio do

mesmo pelo correio. Enfim, alegre pela possibilidade de ter um encontro com a vizinha,

o protagonista foi a uma loja alugar o traje necessário. Lá, perguntou ―ao velho se tinha

notìcia de recepção ou algo parecido para aquela noite‖ (p. 212). Todavia, ele lhe diz

que nada sabe e que Faetonte, um taxista estranho e misterioso, poderia lhe dar

melhores informações. Quando volta para o hotel, fica sabendo que Débora havia

viajado em férias e, como já havia gastado muito dinheiro com a roupa e ficaria

dispendioso conseguir outra ocupação para a noite, resolveu ir à recepção mesmo assim.

O taxista, depois de rodar por meia hora, passando ―por residências ricas, de

arquitetura requintada ou de mau gosto‖ (p. 215), leva-o a uma casa aparentemente

vazia. Aproximando-se dela, um porteiro recebe José Alferes e o introduz na casa. No

local, os membros da Comissão avaliam o protagonista, olhando-o de cima a baixo e o

aceitam. Do outro lado, nos fundos de um corredor, havia outros convidados

confabulando amigavelmente. José Alferes se sentiu deslocado, pois não tinha amizade

àquelas pessoas e em alguns momentos fora, inicialmente, confundido com o convidado

que estava sendo esperado por todos na recepção. Fato este que o obrigava a

cumprimentar as pessoas ou responder a perguntas sem sentido para ele. É possível

notar, mais uma vez, uma técnica comum nas narrativas de Murilo. Seus contos

apresentam-se num processo de idas e vindas. Segundo Davi Arrigucci Jr., ―o método

de composição de Murilo parece envolver um paradoxo: estende o texto para restringi-

lo; amplia-o para concentrá-lo. Assim seu discurso narrativo muda de forma

tenazmente‖ (1979, p. 54). Sendo assim, a cada nova situação, tem-se a ambiguidade

construída e, posteriormente, desfeita ou amenizada pelo personagem (ou narrador). Os

convidados acreditam ser ele a pessoa esperada. Conversam, sorriem, dirigem-lhe a

palavra, mas, logo em seguida, depois do conhecimento do falso convidado, ignoram-

lhe a presença na festa. A incerteza está inserida no contexto.

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Depois de desfeito o engano, pois ―a notìcia da presença de um falso convidado

na festa circulara rápido‖ (p. 217), ele pode enfim circular sem ser incomodado. A essa

altura, José Alferes, cansado dos temas das conversas dos convidados — potrancas,

baias, selins, charretes e puros-sangues — conhece Astérope, ―uma bela mulher. Alta,

vestida de veludo escuro, o rosto muito claro, o cabelo entre negro e castanho‖ (p. 218).

A presença dela na narrativa contribui com a construção do sentimento de dúvida que

surge vez ou outra no conto. Misteriosa e enigmática, ela se apresenta ao protagonista

dizendo ―— O seu nome todos sabem, o meu é Astérope‖ (p. 218). Todos sabem o

nome dele ou ela está enganada pensando que ele é a pessoa esperada? Ou sua fala faz

parte da composição daquela personagem enquanto mulher escolhida para dar prazer ao

convidado? Na continuidade, ela diz a Alferes que não conhece o convidado, mas

afirma: ―Vou conhecê-lo melhor hoje, na cama, pois dormiremos juntos‖ (p. 219). Ela

teria sido ―escolhida pela Comissão‖ (p. 219) para esse papel: ―— Vale a pena correr o

risco‖ (p. 219). Como se pode notar, a presença dela tornará viva a dúvida até o final do

conto, conforme se mostrará mais adiante.

Confuso e ―metido em dúvidas, Alferes ouvia desatento a companheira‖ (p.

219), pensando e refletindo em tudo que acontecia ao seu redor. Não chegava à

conclusão alguma. Desesperado ele deixa a casa, se sentindo aliviado e desejoso de

chegar logo ao seu apartamento. Ao entrar no táxi que o levara à festa, Faetonte diz que

deve ficar ali para levar os membros da Comissão e que, portanto, ele deveria ir de outra

forma para casa. Tudo indica que há um complô contra o protagonista [ou então ele

deve permanecer ali por algum motivo]; nem o taxista o quer levar dali. Faetonte

assegura-lhe que o pediram para aguardar o convidado. Nesse sentido a dúvida,

novamente, se instaura e se ameniza em dois momentos. Alferes afirma que ―o

convidado não virá nunca‖ (p. 220), ao passo que o taxista rebate afirmando: ―— Tenha

paciência, estamos próximos ao acontecimento‖ (p. 221).

Calculando a distância, o falso convidado tenta voltar para casa entrando em

caminhos desconhecidos e em ruas que não levam a lugar algum: ―Mal andara cem

metros, as dificuldades começaram a surgir‖ (p. 221). Caminhando ebriamente, como se

fugisse de algo terrìvel, numa fuga tresloucada (ou alucinada), José Alferes ―teve a

impressão de que se embrenhara num matagal. Daí por diante, perdeu-se. Ia da direita

para a esquerda, avançava, retrocedia, arranhando-se nos arbustos‖ (p. 221). Por fim,

sem o chapéu — pois o perdera nas tentativas de ir embora —, com a roupa rasgada em

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vários lugares, com a sapatilha rompida e os pés sangrando, ele retorna a casa e é

recebido pelo porteiro novamente.

Como um último recurso, o protagonista tenta convencer o taxista a deixá-lo

num ponto de ônibus para que pudesse voltar para o apartamento, o que lhe foi negado.

Pensou até em subornar o taxista, mas nada adiantou. Completamente desconsolado por

tudo e quase aceitando ―a ideia de retornar ao parque‖ (p. 222), Alferes é surpreendido

por Astérope que surge, dizendo-lhe conhecer o caminho. Ela o pega pelas mãos e o

leva dali. O conto termina com a interrogação: Saberia? — Dos olhos de Alferes

emergiu avassaladora dúvida. Mas deixou-se levar‖ (p. 222). Dessa forma, a mesma

dúvida [e outras mais] experimentada pelo protagonista, instaura-se definitivamente no

leitor. Saberia ela o caminho? José Alferes é ou não é o misterioso convidado? A fala

quase profética de Astérope, dizendo que conheceria melhor o convidado naquela noite

na cama, seria verdadeira ou apenas uma conversa à-toa que os dois tiveram? Se ela

estava fadada a dormir com o convidado, porque sai do local com alguém que

supostamente não era essa pessoa? Haveria realmente um convidado especial? Enfim,

há muitos questionamentos que se podem levantar. A verdade é que tanto o protagonista

como o leitor permanecem com todas as interrogações que se construíram desde o início

até o fim da história, o que ratifica o pensamento de Nelly Novaes Coelho, ao afirmar

que ―um dos elementos mais aflitivos [na obra muriliana] é a evidência da continuidade

do fenômeno em pauta. O conto acaba, mas persiste em nós a certeza de que aquele

absurdo vai continuar‖ (1966, p. 527-528).

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4.4. A loucura

Assim como os outros temas elencados nesta tese, a loucura sempre exerceu

certo fascínio nos escritores brasileiros. Contudo, a maneira como ela foi vista e

abordada no decorrer dos séculos é que mudou. Para os poetas românticos, a loucura

funcionava como mais uma forma de escapismo. Através dela, o eu refugiava-se em um

mundo no qual podia ser feliz. No conto-novela ―O Alienista‖, de Machado de Assis —

escritor vinculado ao Realismo e ao Naturalismo nos livros escolares —, ela surge como

uma forma irônica de ridicularizar a sociedade e a nova ciência da época. Nos poetas

simbolistas, a loucura sugere o afloramento de um inconsciente adormecido e

inquietante. Para os modernos, ela possui variada significação. Às vezes, utilizada para

dar voz a questões particulares, como em de Lima Barreto; outras, denunciadora de uma

realidade incômoda, como em ―Sorôco, sua mãe, sua filha‖, de Guimarães Rosa, etc.

Como se pode perceber, o gosto pelo tema está presente na literatura desde

tempos remotos. No caso de Murilo Rubião não poderia ser diferente. Leitor voraz das

narrativas quixotescas e machadianas, o escritor mineiro utilizou-se da loucura para

sondar o universo do homem moderno assolado por questões diversas. Alguns de seus

personagens refugiam-se em um universo em que a loucura é interpretada como o lugar

dos lugares; um pseudoparaíso na terra. Lá, eles são visitados por imagens e situações

que compuseram [ou não] toda uma existência repleta de interrogações. Novamente,

nesse sentido, o existencialismo de Sartre sugere uma boa chave de leitura de tais

contos, pois os protagonistas murilianos estiveram, estão e estarão presos a um mundo

que só existe em suas mentes. Eles não são livres e, muito menos, felizes.

4.4.1. A noiva da Casa Azul

O referido conto narra a história de um rapaz que segue para sua cidade natal,

Juparassu, para se encontrar com a namorada Dalila. Em uma carta enviada um dia

antes, ela diz ter dançado com um ex-noivo na véspera de sua partida para o Rio de

Janeiro. Enraivecido com a situação, o narrador-personagem pega o trem e se dirige à

cidade. Lá chegando, fica sabendo que o lugar está abandonado devido a uma epidemia

de febre amarela, o que o levou ao esvaziamento e à deteriorização. Por fim, descobre

que Dalila está morta e, posteriormente, o narrador se desespera.

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O insólito neste conto está marcado pelas vias da loucura. O primeiro fato a ser

considerado é que o leitor tem diante de si um relato que, ao mesmo tempo em que se

descortina, descredencia a veracidade dos acontecimentos relatados. Em nenhum

momento, o narrador reconhece sua loucura, mas vez ou outra surgem indícios na

narrativa que podem remeter a ela. Passagens como ―sem saber se estavam diante de um

neurastênico ou débil mental‖ (p. 51), ―arrancou-me bruscamente do meu devaneio‖ (p.

52), ―pressentia estar sob suspeita de loucura‖ (p. 54) e ―Fiquei siderado ao ver ruir a

tênue esperança‖ (p. 55) ratificam a ideia de que, aos poucos, o leitor vai construindo a

imagem desse personagem, e tal construção faz com que o relato do narrador se torne

duvidoso. Consolidando essa ideia, Goulart afirma que ―a atmosfera onìrica, reinante no

conto, mistura fatos e situações do passado na alucinada cabeça da personagem‖ (1995,

p.139).

Apesar de todos advertirem o rapaz sobre a inutilidade de ir à cidade — pois já

sabiam do estado em que ela se encontrava —, ele insistia em regressar. Na verdade,

esse regresso marca um reencontro com ele mesmo e com um passado idealizado dos

tempos de criança e de juventude. Um passado que surge como um devaneio, no qual o

personagem recria, à primeira visão da natureza que circunda o lugarejo, uma atmosfera

de lirismo. A partir daí, o sentimento de descontrole é intensificado com a frustração

gerada com a percepção da realidade na qual a cidade se encontra. De acordo com

Goulart, ―a busca do passado, numa idealização exagerada, desencadeia um processo de

frustrações que leva o narrador a descobertas angustiantes‖ (1995, p. 139). Vê, em

ruínas, a casa em que morou, as ruas desertas e a casa de Dalila em escombros faz com

ele perca de vez a razão e misture, nos dois últimos parágrafos do texto, o real com o

irreal. A partir daí, dois tempos são simultaneamente incorporados: o presente e o

passado. O primeiro intensifica a frustração e o segundo o distancia da realidade trágica

que é a morte de Dalila e a de suas raízes.

Ao fundar a psicanálise, Sigmund Freud entendeu que a loucura faz parte de

cada um e está, de certa forma, no inconsciente do indivíduo, adormecida e esperando

um momento ou situação que a desencadeie e que, portanto, os loucos são aqueles que

não resistiram à luta entre a realidade e a irrealidade; entre o mundo normal e o

anormal; entre a razão e desrazão. Pensando por esse prisma, pode-se dizer que o que

desencadeou a perda da razão no personagem foi a constatação do que todos lhe diziam

e da morte da namorada. Segundo Foucault, ―a loucura e todos seus poderes que as

idades multiplicam não residem no homem em si mesmo, mas em seu meio‖ (2008, p.

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373). Ora, o contato com todo aquele cenário desencadeia um processo de alucinação no

qual o personagem mistura o presente [e o passado na parte final do conto]. A perda da

razão se torna algo definitivo quando, nas duas últimas orações, o narrador diz em tom

de desespero: ―Corta-me a agonia. Corro desvairado‖ (p. 56).

Acredita-se que esse narrador, primeiramente enlouquecido por causa de uma

carta, chega ao ápice no seu estágio de loucura quando percebe que sua fuga foi em vão

e que não há mais nada em Juparassu. Sendo assim e comparativamente, pode-se dizer

que daí surge a angústia do homem moderno. A constatação de que a idealização de

uma situação ou de um lugar prazeroso e harmonioso — que muitas vezes não pode ser

capaz de desligá-lo da realidade circundante — é capaz de levá-lo a mergulhar num

processo de frustração. É nesse sentido que Foucault afirma que ―é na exterioridade e na

pesada memória das coisas que o homem acaba por perder sua verdade‖ (2008, p. 373).

Fica claro, então, que as frustrações do sujeito contemporâneo estão no rol das situações

que modificam a essência do ser e não o deixam perceber que tudo, na verdade, faz

parte de um processo crítico que se vive na modernidade.

4.4.2. Os três nomes de Godofredo

Nesse conto, um homem está num restaurante, quando uma mulher que ele

julga ser desconhecida se senta a sua frente. Depois de alguns questionamentos, ele

pergunta se a convidou a dividir a mesma mesa. Para surpresa dele e do leitor, a mulher

responde que não é necessário que um homem convide a própria esposa para as

refeições. Ela se intitula a segunda esposa, pois, como a mesma o lembrou, a primeira

foi assassinada por ciúmes. João de Deus e Geralda passam a conviver e (re)viver um

lindo e idílico amor. Até que um dia, cansado de sua nova vida e da mulher, João a

enforca. Depois disso, vai ao restaurante e lá uma nova mulher se apresenta a ele

dizendo ser sua primeira esposa. Era Joana. Ela o chama de Robério, porém João de

Deus se autodenomina Godofredo. Desesperado com toda essa situação,

Robério/Godofredo sai correndo do restaurante e retorna para casa, onde, na entrada,

havia outra mulher ―bastante parecida com as outras minhas esposas‖ (p. 94). Aflito, ele

toma o pescoço dela entre as mãos e a mata, deixando seu corpo caído no tapete. Ao

adentrar sua casa, depara-se com uma quarta mulher que se chamava Isabel que diz ser

sua noiva. No último parágrafo do conto, nenhum desses fatos tem relevância para o

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narrador. Na verdade, ele estava ―preocupado em redescobrir uma cidade que se perdera

na sua memória‖ (p. 95).

Como se pode perceber, essa é uma narrativa em que o elemento insólito

surpreende o leitor pela ilogicidade cronológica dos fatos. Em outras palavras, segundo

Alcmeno Bastos, no artigo ―Murilo Rubião e a questão da causalidade36

‖, nas narrativas

de Murilo ―o tempo parece não ter linearidade‖ (2013, p. 75). No caso da análise em

questão, essa não linearidade é o elemento que ratifica a sugestão de enlouquecimento

do personagem no texto. Como explicar, à luz de uma suposta ―razão‖, frases como: ―—

Sim, a segunda. E preciso lhe dizer que a primeira era loura e que você a matou num

acesso de ciúmes‖ (p. 89) e ―— Não. Sou a sua primeira esposa, a segunda você acaba

de matar‖ (p. 93). Há uma dúvida provocada por essas duas passagens: ou o

personagem está louco ou a segunda frase se antepõe à primeira em ocorrência, mas

encontra-se, na memória dele, posposta a ela. Essa dupla interpretação leva a leitura do

conto para um xeque-mate. A dúvida não se dissolve. E tanto a loucura quanto a

ambiguidade estão presentes nessa narrativa. Nela, o leitor se depara com questões que

não se dissolvem no decorrer do conto. Ao contrário. Elas se adensam e se aprofundam

mais a cada surgimento de uma nova mulher.

Não há indícios no âmbito diegético de que a ambiguidade possa ser desfeita.

Muito pelo contrário, ela se desenvolve na medida em que a narrativa se desenrola. O

surgimento da terceira mulher — possivelmente outra amante — e da noiva Isabel

provavelmente manterá esse quadro ambíguo, pois, ao deixar a terceira morta e entrar

em casa, Isabel já o esperava. Inclusive, há uma certa semelhança entre esse assassinato

e o da segunda esposa. O que sugere uma ação cíclica do sentimento de culpa do

personagem. É nesse sentido que se pode dizer que há um jogo de espelhos que refletem

imagens que se assemelham, mas também que não se diluem na mente do protagonista.

Basta ver as mulheres. Todas tinham algo que remetia à anterior: ―A semelhança entre

elas me assombrava‖ (p. 93); ―diante de mim, parada no vestìbulo, encontrava-se uma

mulher bastante parecida com as outras minhas esposas‖ (p. 94) e ―uma jovem de rara

semelhança com Joana e Geralda sorria‖ (p. 94). Com exceção da segunda, as outras ou

foram mortas por enforcamento ou essa possibilidade ficou de alguma forma

subentendida na narrativa.

36 BASTOS, Alcmeno. ―Murilo Rubião e a questão da causalidade‖. In: Murilo Rubião: 20 anos

depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

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Segundo José Schwartz, nesse conto ―há um jogo de espelhos que não

aumentam, não diminuem nem deformam. Refletem apenas‖ (1981, p. 33). Eles

refletem um passado — personificado na figura das esposas — indesejado. O

assassinato das mulheres remete a um comportamento repetitivo de Godofredo. Até

mesmo a noiva, Isabel, correu risco de morte: ―A fita de veludo, que prendia um

medalhão antigo ao pescoço de Isabel, me fascinou por alguns segundos. Desviei os

olhos para o prato‖ (p. 95). A referência à fita e ao pescoço remete o leitor para o

enforcamento da segunda e da terceira mulheres; ou seja, ele não consegue se livrar

desse passado que o persegue. Se o conto continuasse, provavelmente Isabel poderia

estar morta depois de alguns parágrafos. Na verdade, as mulheres surgem-lhe como uma

vivificação do passado no presente. A cada novo relacionamento vinha à superfície da

memória o assassinato cometido anteriormente, projetando o protagonista numa espécie

de consciência assustadora. Essas mulheres configuram-se como partes da identidade de

Godofredo, uma identidade não fixada e perdida no tempo e na memória. Os elementos

que mais ratificam essa tese são justamente os diversos nomes do personagem e o

último período do texto quando o narrador-personagem, alheio a tudo que lhe ocorreu

até então, afirma: ―Desisti, preocupado em redescobrir uma cidade que se perdera na

minha memória‖ (p. 95). Essa passagem enfatiza tanto a ambiguidade como a loucura.

Esses dois elementos percorrem toda a narrativa e, no final dela, o leitor depara-se com

um protagonista que acredita estar num processo de autodescoberta. Contudo, o que

nem o personagem nem o leitor sabem é que quanto mais ele buscar em sua memória,

outras situações poderão dar vida àquela consciência assustadora de seu passado. Nesse

aspecto, é possível sugerir a loucura como elemento principal do conto, pois através

dela é que se pode dizer que houve um sepultamento das memórias do personagem. Tal

consciência surge vez ou outra em forma de recordações que são desencadeadas pelas

belas mulheres com as quais o protagonista se envolveu.

4.4. 3. Ofélia, meu cachimbo e o mar

Neste conto, o narrador afirma gostar de ―conversar com Ofélia durante o

jantar‖ (p. 113), acompanhado de seu cachimbo, tendo diante de si ―o oceano

enegrecido pela noite‖ (p. 113). Nessas conversas, ele conta suas aventuras marìtimas e

as de seus antepassados. No entanto, o insólito se dá pelo fato de Ofélia ser uma cadela.

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Essa informação só é disponibilizada quase no final da narrativa quando o narrador diz

que ―Ofélia, que abomina meu silêncio, interrompeu agora os meus pensamentos com

um ladrido forte‖ (p. 117). Dessa forma, o leitor passa a perceber — ratificado por

outros indícios que aprecem na história — que, na verdade, as aventuras do simpático

senhor fazem parte de um universo criado em sua mente tão alucinada quanto a de seus

supostos antepassados.

Mais uma vez a condição do homem aparece como o elemento principal no

conto muriliano. O acontecimento insólito é incorporado à narrativa com o intuito de

proporcionar uma desestabilização da noção de real que o leitor possui ao adentrá-la.

Diante de tal constatação, resta-lhe a percepção de que o pensamento do narrador é tão

inverossìmil quanto é o de um louco. Segundo Davi Arrigucci Jr., ―o conto todo é,

assim, o resultado de um longo devaneio, cujos elementos romanescos — as

imaginárias façanhas marítimas — voltam à terra, com o latido forte do animal‖ (2001

p. 148).

Ora, se segundo Foucault, ―o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua

verdade‖ (FOUCAULT, 2008, p. 14), não seria descabido considerar que aquele homem

solitário, sentado na varanda de sua casa em um escondido vilarejo de Minas, é uma

representação típica do indivíduo que, ao chegar numa determinada fase de sua vida, é

levado a criar mundos fantásticos e, às vezes, surreais, para fugir da realidade que se

instaura arduamente ao seu redor: a finitude das coisas. Considerando a loucura, Goulart

ainda assinala a existência de dois mundos que podem ser relativizados nesse conto:

―um imaginário, construìdo pelo delìrio, e outro real, com toda a sua carga de

frustrações e decepções‖ (1995, p. 49). Para ele, a interpenetração do mundo natural

com o insólito proporciona também uma oscilação entre as noções de equilíbrio e

desequilíbrio, entre razão e desrazão. Nesse sentido, pode-se dizer que a loucura não se

instaura definitivamente, mas há sim num processo de ida e vinda que configura a

oscilação entre aquelas duas noções.

Algumas passagens do texto vão deixando indícios da loucura dos personagens

espalhados na narrativa: ―calo-me por instantes e me ponho a ouvir vozes soturnas‖ (p.

113), ―pegava uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular ordens

de comando‖ (p. 116), ―apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em punho,

comandava subordinados imaginários‖ (p. 116), ―Sei que ela espera por uma das minhas

habituais fantasias‖ (p. 118), ―Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos

devaneios‖ (p. 118) e ―gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido!‖

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(p. 118). Contudo, somente quando o leitor fica sabendo que Ofélia, na verdade, é uma

cadela é que se tem tal certeza. A loucura é o que permite ao narrador um passeio pela

fantasia. Ela lhe possibilita evadir-se da realidade numa tentativa de quebra da

monotonia que se instaurou em sua vida. Afinal, como o próprio narrador sinaliza,

―neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem divertimentos, detestando caçadas e

tendo herdado a vocação do meu bisavô marinheiro...‖ (p. 118), o que mais poderia lhe

restar a não ser inventar histórias que o tirassem daquela realidade.

4.4.4. Bruma (A estrela vermelha)

O conto narra a história de Godofredo, seu irmão Og e sua irmã adotiva Bruma.

A história é narrada por Godofredo, que se sente enciumado pelo relacionamento que o

irmão tem com a irmã. É Godofredo que, depois de perceber as esquisitices de Og,

resolve levá-lo a um consultório psiquiátrico para tratar-lhe a anormalidade. No entanto,

ao chegarem ao local, ocorre uma mudança na expectativa tanto de Godofredo quanto

na do próprio leitor. O doutor Sacavém, após ouvir com atenção o que Og tinha a dizer,

chega à conclusão de que quem realmente precisava de tratamento era Godofredo.

Contrariado e desesperado ele sai correndo do consultório e volta para casa. Depois de

acalmar-se, resolve voltar ao médico e descobre que o prédio não existia — no lugar

havia apenas um terreno vago — e que ninguém conhecia o tal médico Sacavém.

Confuso, Godofredo senta-se na grama e, em desespero por saber ―que jamais

reencontraria Bruma‖ (p. 124), começa a ter as visões de que o irmão lhe falava.

De certa forma, a leitura dessa história lembra o conto ―Sorôco, sua mãe, sua

filha‖, de Guimarães Rosa. A quebra da barreira entre sanidade e loucura é realizada

quando os personagens envolvidos diretamente na situação percebem que, por mais

paradoxal que pareça, a loucura do outro, na verdade, é a dele próprio, o que ratifica o

caráter muitas vezes coletivo do comportamento desequilibrado. Em Rosa, a loucura é

tratada como um elemento que irmana toda uma cidade. Ali, depois da partida das duas

loucas [a mãe e a filha de Sorôco] todos entoam a mesma canção cantarolada por elas.

Aqui, ela aproxima os dois irmãos, pois depois que Godofredo é diagnosticado, passa a

ver a estrela vermelha e as cores que Og via. Paradoxalmente, havia semelhanças nas

diferenças entre os irmãos. Roland Barthes, no livro Mitologias, comenta que

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o homem nasce, trabalha, ri e morre por toda a parte da mesma maneira; e, se

nos seus atos subsiste ainda alguma particularidade étnica, deixa‐se entender

pelo menos que existe, no fundo de cada um deles, uma natureza idêntica,

que a sua diversidade é apenas formal e não desmente a existência de uma

matriz comum (BARTHES, 1989, p. 114).

Embora os dois irmãos possuíssem características e comportamentos

diferentes, a matriz era comum. Nesse sentido, pode-se dizer que o desejo de afastar o

irmão de si e de Bruma é uma inconsciente percepção de que a loucura de Og e o seu

ódio — ao ver a irmã e o irmão felizes — potencializam a certeza do reconhecimento do

comportamento insano do outro, nele mesmo. Michel Foucault diz que ―neste

continente natural que é o mundo, a vizinhança não é uma relação exterior entre as

coisas, mas o sinal de um parentesco, ainda que obscuro. E depois, desse contacto

nasce, por permuta, novas semelhanças‖ (1966, p. 35). Acredita-se que essa ideia

encontra-se endossada no final do conto quando Godofredo passa a perceber que há

semelhanças entre ele e o irmão; um está no outro, inclusive no próprio plano da escrita.

A constatação da semelhança entre Godofredo e o irmão, no fechamento do conto,

promove uma ruptura nos limites entre a sanidade e a loucura. O choque provocado pelo

diagnóstico de loucura, quando Godofredo leva o irmão ao consultório do médico, é

desfeito e substituído pelo sentimento de cumplicidade. Ele agora percebe o que o irmão

queria lhe mostrar. Jorge Schwartz considera que ―o final da narrativa reforça a

possibilidade permutativa das ações dos heróis. Godô passa a vivenciar as experiências

de Og que desencadearam inicialmente a intriga do conto‖ (1981, p. 26).

Um dado importante que deve ser apontado é o fato de os acontecimentos

apresentados no conto não estarem marcados por uma temporalidade linear. Ao que

parece, a loucura de Godofredo constrói-se a partir das lembranças que tem de Og e de

Bruma. O retorno ao passado intensifica o sentimento tanto de perda [de Bruma] como

de arrependimento [por não acreditar no irmão], e isso desencadeia o processo de

enlouquecimento em Godofredo. Passagens como ―Abrigando somente duas pessoas, a

nossa casa parecia ter ficado maior‖ (p. 123), ―A lembrança de Bruma feria-me‖ (p.

124), ―A resolução veio lenta, conformada em saudade e remorso‖ (p. 124) e ―Sentei-

me na grama e me abandonei ao desespero, sabendo que jamais reencontraria Bruma‖

(p. 124) endossam a ideia de que o conto, na verdade, é um resgate de fatos e situações

vividos antes da partida de Og e Bruma. E, por último, outro elemento que ratifica essa

ideia, é o fato de não haver menção da presença do irmão e da irmã retornando para

casa; muito pelo contrário, quando Godofredo retorna e vê a mãe no ―alpendre da

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fazenda‖ (p. 123), diz ―— Ficaram lá e não quero vê-los mais — gritei, subindo as

escadas‖ (p. 123). Ficaram lá, onde? No consultório, ou esse ―lá‖ vem revestido de um

valor temporal também? Não poderia estar ele se referindo ao passado? Nesse aspecto,

pode-se dizer que a loucura em Godofredo manifesta-se em um processo de

arrependimento, intensificado pelo remorso das ações e dos comportamentos que tivera

no passado em relação ao irmão e à irmã.

4.4.5. A flor de vidro

Em ―A flor de vidro‖, um narrador heterodiegético relata os delìrios de

Eronides, provocados pela perda angustiante da namorada Marialice. Tais delírios são

uma forma de reconstrução de um passado idílico em que o personagem supracitado

vivera belos, felizes, mas também trágicos dias de férias. Para poder reviver seus

últimos momentos com Marialice, a narrativa entra em um processo de flashback que

presentifica as ações vividas naqueles dias. O final do conto marca o término daquele

instante de delírio, trazendo o personagem para a dura e palpável realidade que,

inclusive, é marcada pela consciência da perda de uma das vistas.

O conto se inicia fazendo referência à flor de vidro. Segundo o narrador, dela

―restava somente uma reminiscência amarga‖ (p. 129). Nota-se também que a

presença/ausência de Marialice está diretamente associada a essa flor que,

simbolicamente, pode remeter o leitor a uma ideia de algo carregado de teor

sentimental, mas ao mesmo tempo frágil e quebradiço. Segundo Eziel Belaparte

Percino, no livro Murilo Rubião: senso e não-senso, ―paira a imagem posta desde o

título: flor vulnerável, fácil de esvair, frágil — o cair das pétalas, o estilhaçar do vidro.

A imagem contém tensões em miniaturas dentro de si mesma‖ (2014, p. 77). Enfim, a

flor de vidro possui uma dupla funcionalidade na narrativa. Ela constrói a noção de

efemeridade e de fugacidade dos belos dias ao lado de Marialice, mas também funciona

como algo prenunciador do retorno à realidade angustiante.

Já no primeiro parágrafo, percebe-se que a ausência/presença da figura

feminina se faz notar na mobília e na própria casa. Sentado ali, naquele ambiente em

que tudo e todos lhe lembravam a namorada, Eronides acompanhava o trem de ferro e

imaginava ouvir no apito da máquina o nome de Marialice. A partir daí, os fatos que se

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sucedem ratificam a tese de que o personagem entra em uma espécie de devaneio no

qual a presença da mulher é marcada pelos momentos de alegria e de tragicidade.

Na continuidade da narrativa, Eronides não sabe se o nome de sua amada fora

gritado pelo apito da máquina, pela velha empregada Rosária ou se brotara do seu

pensamento. O fato é que se pode notar que há uma pequena perturbação na certeza dos

acontecimentos. Nesse momento de incertezas, ele opta por escolher aquilo que lhe é

mais prazeroso. Por isso, repete como se quisesse convencer a si mesmo: ―— Sim, ela

vai chegar. Ela vai chegar! (p. 129). Ele não só se convence como também acredita

piamente que o trem trouxera sua namorada novamente. Mas, na verdade, o trem traz

mais do que isso. Ele ilusoriamente traz consigo a possibilidade de o rapaz vivenciar a

―chegada‖ de Marialice. Nesse aspecto, nota-se que o trem é um elemento simbólico na

narrativa. Semelhantemente à narrativa de Guimarães Rosa referenciada no subcapítulo

anterior, pode-se dizer que pelo trem chegam e partem as particularidades do homem

[em Rubião] ou de um vilarejo inteiro [em Guimarães] e, por isso, a chegada e a partida

dele está diretamente relacionada com todo o processo alucinatório da personagem.

O trem trouxe consigo uma ―inesperada realidade‖ (p. 129). Mergulhado nessa

outra realidade — que, na verdade, já faz parte de um universo fora da realidade real —,

Eronides se prepara para ir à estação na ânsia de receber sua amada. Ainda há nele a

consciência do olho vazado [―colocou uma venda negra na vista inutilizada‖ (p. 129)] e

da passagem do tempo [―passou a navalha no resto do cabelo‖ (p. 129)]. Com uma

―alegria desvairada‖ (p. 130), ele ultrapassa todos os obstáculos e alcança a estação.

Quando lá chega e imagina ver Marialice descendo do trem rapidamente, os dois se

abraçam demoradamente. No conjunto da cena, pode-se dizer que esses fatos são

montados somente na mente de Eronides. O leitor é direcionado para uma espécie de

atmosfera fechada, onde só existem os dois amantes. Mas Marialice não retornou

realmente. Há um tipo de escapismo. O personagem acredita que sua amada agora viera

―para sempre‖ (p. 130), mas esse ―sempre‖ só durará o tempo de seu devaneio.

Como num sonho, as lembranças devem ser boas e devem se afastar da última

imagem real. Por isso, a namorada está mais jovem: ―Não envelhecera tanto como ele.

Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois‖ (p. 130); e por

isso também desiste facilmente da ideia de querer saber de um certo Dagô: ―se

convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois‖ (p. 130). Tudo

deve estar perfeito. Essa ideia ganha força posteriormente, quando, ao acordar, Eronides

percebe na imagem do espelho que seus cabelos voltaram e que ―a venda negra [dos

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olhos] desaparecera‖ (p. 131), e para completar o cenário, Marialice estava mais ―jovem

e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto‖ (p. 131). Note que o personagem

reconstrói um momento emblemático de sua vida. Os dois ainda são jovens. A corrida

pela mata, o xingamento e a injúria de Marialice fazem parte daquele universo feliz,

mas ao mesmo tempo trágico.

Na penúltima parte do conto, o elemento prenunciador, referenciado na parte

introdutória desta análise, se instaura na narrativa quando Eronides diz ―ter divisado a

flor de vidro no alto de uma árvore‖ (p. 132). O simples surgimento desse elemento é o

bastante para recriar a ideia de perda. Por isso ele ―comprimia Marialice nos braços‖ e

―guardava para si as razões do seu terror‖ (p. 132). Avistar [ou pensar ter avistado] a

flor de vidro instaura a possibilidade do final trágico, e esse final coincide com o

término das férias e, consequentemente, do seu devaneio.

O cenário não poderia ser outro. Na última parte do conto, ―debaixo de um

tremendo aguaceiro‖ (p. 132), Eronides leva a namorada à estação e, depois que o trem

começa a se movimentar, ―a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente‖ (p.

132). Nesse instante, a visão do personagem é turvada provavelmente pelas lágrimas, e

um murmúrio débil é o que sai de sua boca. Como se pode notar, os acontecimentos da

narrativa entram em um processo decrescente, de descontinuidade. É como se o

personagem pressentisse que seu devaneio quase perfeito estivesse chegando ao fim. A

imagem do lenço branco, do trem e dos trilhos paralelos, que nunca se tocam, endossa a

tese de que a partida [para sempre] de Marialice e a solidão de Eronides são tão reais

quanto a dura lembrança dos dias que não voltam mais.

Por fim, a última frase do conto carrega consigo uma significação que pode

dizer mais do que está dito. Com a frase ―Na volta, um galho cegou-lhe a vista‖ (p. 132)

o narrador fecha a história. No entanto, a expressão ―na volta‖ sugere algumas

conjecturas. Volta de onde? Esse ―onde‖ é um lugar concreto ou uma abstração? De

acordo com a análise desenvolvida aqui, acredita-se que o lugar a que a expressão se

refere é uma abstração criada por uma mente perturbada pela perda da namorada e pela

vida solitária. Não se sabe ao certo para quem ou para o que ele a perdeu. Contudo, fica

sugerido que, da mesma forma como ele teve uma ida para o mundo dos sonhos,

recuperando a vista e os cabelos e sua amada tornando-se mais jovem, deve haver

também um retorno à realidade. Por isso, essa expressão ―na volta‖ não se referir ao

retorno para casa, mas sim à volta para a realidade. Com esse retorno, ressurge a

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consciência de que ele perdera uma das vistas em um daqueles passeios pelos bosques

com Marialice.

4.4.6. Petúnia

O conto se inicia de forma imprecisa, fazendo uma verdadeira confusão com

os nomes da mãe, da esposa e das filhas de Éolo. Ao que parece, esse procedimento

concede à narrativa um aspecto de devaneio experimentado pelo personagem principal,

pois percebe-se que tal mecanismo é uma forma de reiteração do comportamento que se

verificará mais adiante na história. Na segunda parte do texto — retornando o conto

antes do casamento — o narrador apresenta ao leitor a mãe de Éolo, dona Mineides,

uma mulher rica e preocupada com a fortuna da família. Por isso, ela desejava conseguir

uma esposa para o filho. Jamais permitiria que sua fortuna fosse ―para as mãos do

Estado‖ (p. 180). Realizando algumas festas, ela enchia a casa de moças desejando que

o filho se interessasse por alguma. No entanto, Éolo não dava importância e ―se irritava

ouvindo os gritinhos histéricos, as perguntas idiotas‖ (p. 181) das convidadas. Esse

quadro só mudaria a partir do momento em que ele visse Cacilda, uma mulher diferente

das demais, contudo muito parecida com ele. Tempos depois dona Mineides morre, os

dois se casaram e realizaram o desejo da mãe de colocar o retrato dela no quarto do

casal. Com o passar do tempo, eles tiveram três filhas: Petúnia Maria, Petúnia Jandira e

Petúnia Angélica. O relacionamento dos dois começa a se deteriorar e o retrato da mãe a

incomodar. Vez ou outra ele precisava ser retocado, pois ―a maquilagem da mãe se

desfazia no quadro, escorrendo tela abaixo‖ (p. 182). Num dia, voltando da cidade, Éolo

entra em casa e encontra as três filhas mortas no sofá. Desnorteado, procura pela esposa

e esta lhe diz que era a mãe a culpada pela morte das crianças. A partir daí Cacilda

começa a ter um comportamento estranho, saindo de casa e voltando quando bem

quisesse e sem dar satisfações ao marido. É nesse mesmo período que começaram a

nascer flores negras no ventre da mulher. Cheio de tudo e ―na impossibilidade de livrar-

se daquela presença obcecante‖ (p. 185), Éolo pega a mesma faca que usava para cortar

as flores que nasciam no ventre da mulher e a enterra no busto dela. Depois disso, ele

cava uma cova e joga o corpo lá dentro. O conto termina com a menção ao fato de que

Éolo lembrou-se de desenterrar as filhas para brincar [coisa que ele fazia todas as

noites] e às flores negras que agora se espalhavam pela casa e que poderiam denunciá-lo

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à polícia. Por isso ele não dorme e vive em constante vigília, oprimido pelas obrigações

que lhe foram impostas.

A leitura integral do conto evidencia alguns fatos insólitos que, no conjunto da

obra, sugerem o comportamento anormal tanto do personagem principal como de sua

esposa. A impressão que se tem é que num movimento de ir e vir, e através da

rememoração em forma de devaneio nostálgico-masoquista, o personagem revisita

momentos de sua vida que inevitavelmente estão vivos em sua mente. Já na abertura do

conto, no segundo parágrafo, Éolo relembra as filhas e a presença da mulher que a essa

altura já fora assassinada. Na verdade, o início do conto dá algumas informações ao

leitor que servem para mergulhá-lo em um universo de interrogações. No entanto,

considerando apenas uma possibilidade de leitura, imagina-se que Cacilda tenha sido

assassinada por um marido que enlouquecera depois da morte das filhas. O que não fica

devidamente comprovado no conto é a autoria do assassinato das meninas.

Primeiramente, a mãe. Dona Mineides era uma mulher rica. Embora não fosse

do agrado de Éolo, ela desejava casá-lo para que toda sua fortuna ficasse com seus netos

depois de sua morte. O problema é que para isso a matriarca expunha o filho a mulheres

que não lhe despertavam o menor interesse. Mas isso pouco importava. Importava o que

ela queria e desejava. Como se pode notar, Éolo tinha uma mãe que exagerava nos

cuidados com o filho e não media esforços para ver suas próprias vontades realizadas.

Isso se comprova quando o rapaz conhece Cacilda, a mulher por quem ele se apaixona.

Como vontade a se realizar depois de sua morte, dona Mineides exigiu que fosse

colocado um retrato seu no quarto do casal. O pedido em si não é tão estranho, porém o

fato de o retrato ―ganhar vida‖ exigindo que o filho-marido vez ou outra retocasse a

maquiagem é, sem sombra de dúvidas, insólito. Definitivamente, aquele retrato era mais

do que uma lembrança. Ele representava o poder e a influência que a mãe tinha sobre o

filho mesmo depois de casado e de ela estar morta. A presença da imagem no quarto

representa a não-liberdade e a opressão controladora da mãe, que se intensifica no

decorrer da narrativa. Segundo Goulart,

A opressão, no conto, está representada por uma figuração metafórica,

centrada no código vegetal. (...) Assim, Cacilda, a esposa, passa a ser,

simplesmente Petúnia. (...) Assim, o percurso da metamorfose — D.

Mineides — Cacilda — Petúnia — fecha um ciclo que encontra, na metáfora

da flor, a cristalização do domínio (1995, p. 157).

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Nesse aspecto, o comportamento de Éolo remete à fala de Sartre quando este

afirma que ―o espìrito humilhado, em escravidão, se esforça para obter a consciência e a

liberdade sem alcançá-las‖ (2005, p. 137). Mesmo casado e a mãe estando morta, o

personagem encontra-se preso e obrigado a perpetuar as vontades da matriarca, que se

coloca como mau agouro caso ele não as realize.

O devaneio. Como se pode perceber na parte introdutória do conto, há uma

variação dos nomes das mulheres seguidos de outros nomes de flores que,

metaforicamente, aludem à morte das meninas. As flores, com sua delicadeza e beleza,

sugerem a pureza das crianças. Por isso, imaginá-las assim ajudava o personagem a

manter as filhas sempre delicadas e puras em sua memória. Nota-se que Éolo se

encontra fora da realidade quando, se referindo às filhas, indaga: ―Por que Petúnia-mãe

as julgava mortas, se nada apodrecera?‖ (p. 179). Nessa passagem, ele está preso no

quarto e impedido de sair e de olhar pela janela, pois a mulher mandou trancar com

pregos todo o lugar. Já em seu devaneio, ele não reconhece a morte das filhas; percebe-

se que não tem conhecimento do que acontecera, ou então se refugiou na irrealidade

para escapar ao trágico fim que sua família teve. No entanto, só é possível chegar a essa

constatação quando se ligam as duas pontas da narrativa: o início e o final. Desse jeito,

entende-se por que a esposa insiste em dizer ao marido: ―— Chamo-me Cacilda.

Nenhuma delas se chama Petúnia — gritava a mulher‖ (p. 180). Com essa fala, ela

deseja exasperadamente demonstrar a delirante insistência do marido em nomear todas

como Petúnias, o que de certa forma, no contexto, evidencia o afastamento da realidade

do marido, afligido pela violência da cena: ―as três Petúnias jaziam inertes,

estranguladas. (...) Quis reanimá-las, endireitar-lhes os pescocinhos, firmar as

cabecinhas pendidas para o lado‖ (p. 183).

Há outros indícios na narrativa que sugerem um comportamento estranho de

Éolo e da esposa. É nesse sentido que se pode dizer que eles eram diferentes dos outros,

mas iguais entre si. Por exemplo, nas festas realizadas pela mãe, depois que todos se

retiravam, ele via pássaros invadirem a sala, voando em torno dos lustres. E, segundo o

narrador, tais pássaros ―jamais permitiam que outras pessoas, além dele, os vissem em

seus voos noturnos‖ (p. 181). Outro momento ocorre quando dona Mineides apresenta

Cacilda ao filho. A futura esposa diz ―— Lindos pássaros‖ (p. 182) e a mãe, sem saber

do que se trata e por não ver pássaro algum pergunta ―— Que pássaros?‖ (p. 182).

Como se pode notar, somente os dois viam tais coisas [ou pensavam que viam]. Da

mesma maneira ocorreu com os cavalos-marinhos que a mulher via. Na história,

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ninguém mais confirma a existência desses seres. Até mesmo o que acontecia com o

retrato de dona Mineides provoca dúvida. Só havia os dois na casa. Não há como ter

certeza de que o retrato realmente se desfazia sujando a parede e o assoalho. Esses fatos

sugerem que tanto um como o outro apresentavam um comportamento estranho; algo

beirando à loucura.

Ainda tangenciando o devaneio de Éolo, pode-se dizer que outros

acontecimentos na narrativa levam a crer que o personagem, completamente tomado

pela loucura, agiu impulsionado pelas ideias criadas em sua mente. Por exemplo, no

início do conto, o narrador diz que o marido estava trancado no quarto úmido, não

podendo olhar pelas janelas porque foram trancadas com pregos. No entanto, no final da

história, o narrador afirma que Éolo não consegue sair de casa por causa dos cavalos-

marinhos que impediam a passagem dele. Por que cavalos-marinhos? Não seriam eles

uma referência insólita à vontade da mulher de mantê-lo preso? Afinal, tanto os animais

quanto Cacilda tinham o sono profundo. Eles só passaram a existir para Éolo quando

Cacilda surge em sua vida. Antes ele só via pássaros.

Em outro momento da história, o narrador faz referência às flores negras que

nasciam no ventre da esposa. Essas flores surgem depois que Cacilda começa a ter um

comportamento estranho. Ela saia e não dava satisfações ao marido e voltava tarde,

aparentando ―tranquilidade e espelhava, às vezes, certa euforia. Também costumava

assobiar‖ (p. 184). Para o marido, enlouquecido pelos trágicos acontecimentos, ela

poderia estar traindo-lhe a confiança. As flores negras são uma metáfora do pecado [ou

delito] cometido pela esposa em suas idas e vindas. Elas são um elemento premonitório.

O narrador não diz, mas fica sugerido que algo germinava ou na mulher ou na cabeça de

Éolo. Sendo assim, a morte era inevitável, pois o marido, além de perder as três filhas

para uma mulher que culpava a sogra pelo assassinato, ainda seria obrigado a viver com

a lembrança que aquele casamento lhe trazia; afinal ―Éolo não tinha planos para

casamentos, porém sua mãe pensava de outro modo‖ (p. 180). Por isso, matar a mulher

era, na verdade, uma forma de matar o desejo da mãe, a traição da esposa e libertar-se.

No entanto, liberdade é um estado de que os personagens murilianos não

gozam. Portanto, Éolo jamais será livre. Agora ele tem a preocupação de manter a casa

limpa das flores negras do delito que cometeu, pois como ele mesmo afirma ―os

vizinhos não deixariam de denunciá-lo à polìcia‖ (p. 186) caso todos as vissem. Há

ainda o ritual de desenterrar as meninas Petúnias para brincar com elas e depois enterrá-

las novamente todos os dias e o retoque do retrato da mãe, que lhe ficou

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obrigatoriamente incumbido. Como se vê, Éolo, menino mimado pela mãe e que vivia à

sombra dela, tronou-se um homem assombrado por fantasmas de pessoas que fizeram

parte de sua vida. Claro está que as flores negras são uma construção da mente dele.

Elas não existem. Essa foi uma forma alegórica de o narrador se referir ao lado escuro e

sombrio da existência humana. Percebe-se que o personagem — perturbado com os

acontecimentos de sua vida — encontra nesses elementos uma forma de escapismo;

uma maneira de desligar-se da realidade amarga e dura da perda das filhas e do convívio

com a mulher. Por fim, ele não está livre nem da mãe, nem da mulher, nem das filhas e

nem de si mesmo. Na verdade, nunca esteve.

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4.5. A metamorfose

Esse é um dos temas que não poderiam deixar de ser elencados na obra de

Murilo Rubião. Presente na literatura fantástica de há muito tempo e nos grandes

escritores do gênero como Guy de Maupassant, Teófilo Gautier, Franz Kafka, dentre

outros, a metamorfose sempre provocou fascínio tanto no público como nos escritores

de todos os tempos. Como já foi dito aqui, ela sugere a ideia de que a excessiva

transformação de um ser em algo que não que lhe cabe ser indicia a crise existencial em

que o homem contemporâneo se encontra. Há uma busca descontrolada de se atingir a

satisfação do eu naquilo que o outro vislumbra. Segundo Eliane Zagury, em ―Teleco, o

coelhinho‖, ―em sua medìocre fragilidade, o homem usa do recurso da metamorfose

para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (p. 1971, p. 32). E é

justamente dessa forma que se percebe tal recurso nas narrativas de Murilo Rubião a

seguir.

4.5.1. Alfredo

Resumidamente, o conto narra a história de dois irmãos, Joaquim e Alfredo. O

primeiro é casado com Joaquina, e o segundo, transformado em dromedário, surge nas

redondezas do vilarejo em que o irmão mora. Sem estranhar, Joaquim leva o irmão para

sua casa e tenta fazê-lo retornar ao convívio social sem, no entanto, ter êxito. Como

consequência disso, os dois seguem pela estrada e retomam a peregrinação em busca de

respostas e da felicidade não encontrada.

Antes de relacionar o conto com a teoria sartriana, cabe ressaltar um ponto

importante desta narrativa. O personagem Joaquim é exemplo de um narrador que

apresenta algumas contradições que servem, no contexto da história, para realçar os

acontecimentos insólitos. Inicialmente, ele ridiculariza a superstição da mulher quando

esta diz que o estranho gemido que ouviram poderia ser de um lobisomem: ―Ri-me da

sua crendice (...). Era só o que faltava!‖ (p. 65). Algumas linhas depois, ele diz querer

explicar para a mulher ―que o sobrenatural não existia‖ (p. 65). Até aì, a estrutura criada

para a construção do fantástico está montada: um personagem crédulo e outro

aparentemente incrédulo no elemento sobrenatural. No entanto, há uma surpresa no

processo de leitura quando, mais adiante na narrativa, ele sai para encontrar o animal

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que incomodava o povoado em que morava e diante dele afirma: ―Na minha frente

estava o meu irmão Alfredo‖ (p. 67). Alfredo era o animal e isso é aceito com toda a

naturalidade. Mais ainda, ele não esboça nenhum estranhamento em o irmão ser capaz

de se transmutar em porco, em nuvem, no verbo resolver e, por fim, em dromedário.

Esse comportamento, além de ratificar que o fato narrado realmente é insólito,

também instaura a dúvida no leitor, que, diante de tal constatação, é obrigado a perceber

que esse narrador é tão insólito quanto o próprio irmão. Quando leva Alfredo para casa,

Joaquim não permite que a esposa o chame de animal. A identificação entre os irmãos é

mútua. Tal identificação demonstra uma dupla impossibilidade: ―a de convivência com

a sociedade, ou a de sobrevivência do homem na solidão‖ (1981, p. 45). Eis a grande

questão. Joaquim, também andarilho, procurou ―em outros lugares a tranquilidade que a

planìcie não‖ (p. 67) lhe dera, enquanto Alfredo afastou-se da sociedade em busca da

felicidade. Talvez esse seja o motivo por que este é capaz de transformar-se em outros

seres e aquele não. Acredita-se que, neste caso, a metamorfose indica o processo de

insulamento do personagem. Eliane Zagury afirmara isso quando disse que ―em

―Alfredo‖, Murilo Rubião já utilizara a metamorfose em animal motivada pelo

afastamento do convìvio com o homem‖ (1971, p. 32).

É possível realizar uma leitura alegórica do referido conto. Joaquim e Alfredo

são a figura do homem em busca de respostas e da felicidade. O primeiro ―pensando

encontrar a felicidade do outro lado das montanhas‖ (p. 68) refugia-se num povoado

imaginando ter conseguido encontrá-la. Afinal, tinha esposa, uma casa e uma vida

comum. Entretanto, nada disso foi suficiente para preencher seus vazios. O segundo,

por sua vez, peregrinou por caminhos diferentes, metamorfoseando-se de acordo com

sua necessidade ou situação com o intuito de apaziguar os seus sofrimentos e os dos

outros. Contudo, foi tudo em vão, pois ambos buscavam ―uma serenidade impossìvel de

ser encontrada‖ (p. 68). É nesse aspecto que se pode dizer que os dois personagens são

um modelo desse ser em crise que vive a modernidade em busca de respostas e de si

mesmo. A busca é constante e, muitas vezes, sem respostas. No conto, o aspecto

continuativo e, por que não cìclico, dessa busca está bem marcado nas frases ―Cansado

eu vim, cansado eu volto‖ que abrem e fecham a narrativa.

Essa busca também evidencia uma característica fundamental dos personagens

murilianos: todos são infelizes. Embora com muita passividade busquem sair desse

lugar comum, eles não têm forças para sobrepujar a opressão do universo que o

circunda. Nesse sentido, dá para se ter uma pequena ideia do porquê de eles aceitarem o

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insólito com plena naturalidade. A não aceitação torná-los-ia ainda mais oprimidos do

que já são, pois a consciência angustiante da incompletude de sua existência anularia o

efeito fantástico dos desejos insólitos. Por isso na poética de Murilo existem os

exageros, as ações enlouquecidas, as metamorfoses, a ambiguidade, a incerteza, as

viagens insólitas pelos caminhos da mente, etc. Esses elementos facilmente detectados

na obra do autor são um indício de que seus personagens não são apenas fantoches de

um universo literário, manipulados pelas mãos hábeis de seu criador e enclausurados

numa narrativa ingênua e despretensiosa. Muito ao contrário, eles apontam

metonimicamente para o indivíduo que — dentro do possível e numa situação

semelhante — se identifica com o contexto circundante e com a história narrada.

4.5.2. Teleco, o coelhinho

O conto, narrado em primeira pessoa, inicia com o elemento insólito

instaurando-se logo nas primeiras linhas. Uma voz sussurrada pede um cigarro e,

quando o personagem se vira, dá de cara com um coelhinho (Teleco) atrás de si.

Espantado, mas ao mesmo tempo comovido pela condição daquele ser, convida-o para

morar com ele e, a partir daí, novos e estranhos acontecimentos vão aos poucos

surgindo e mergulhando o texto em um universo fantástico.

Na sequência da leitura, percebe-se que Teleco é um coelho incomum, pois

possui a habilidade de se transformar no que quisesse: transmutara-se em girafa, cavalo,

leão, tigre, porco-do-mato, canguru, pavão, cachorro etc. Os dois [narrador

autodiegético e o coelho] parecem viver tranquilamente até o surgimento de Tereza.

Para agradá-la, Teleco deseja transformar-se em homem [Antônio Barbosa] e surgem,

então, as intrigas que provocarão a separação dos dois amigos. Em um impulso de raiva

e ciúmes, o narrador expulsa o canguru Barbosa e Tereza de casa e, depois de algum

tempo, ele retorna, transformado em cachorro e sozinho. Por fim, Teleco não controlava

mais a habilidade de se metamorfosear e, ininterruptamente, transmutava-se em diversos

seres, mesmo que não quisesse. Enfraquecido pelas sucessivas transformações, o

personagem metamorfoseia-se em uma criança encardida e sem dentes e, no colo do

amigo, morre.

Analisando a narrativa pelo prisma existencialista, pode-se vislumbrar a

ocorrência da teoria do filósofo Jean Paul Sartre, quando este aborda o fantástico.

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Considerando que a narrativa fantástica para ele é um dos meios que um determinado

autor possui de demonstrar o mundo em reverso do homem moderno, abordando

questões que se diluem no comportamento deste diante da sociedade em que vive numa

constante e conflituosa convivência entre o indivíduo e os outros, é possível direcionar a

análise deste conto para aquilo que Sartre denominou fantástico:

Se fizerem um cavalo falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado.

Mas se ele persistir em discursar em meio a árvores imóveis, sobre um solo

inerte, eu lhe admitirei o poder natural de falar. Não verei mais o cavalo, mas

o homem disfarçado de cavalo (SARTRE, 2005, p. 136).

Vendo a narrativa por esse viés, pode-se considerar que o fato de um coelho

falante se transformar em vários seres alude, direta ou indiretamente, à própria situação

do homem diante da sociedade que o circunda. Segundo Marisa Martins Gama-Khalil,

―tais metamorfoses, assim, metaforizam a condição do sujeito contemporâneo, condição

fluida‖ (2013, p. 56). Ora, ser visto sempre como o outro gostaria é, na verdade, uma

maneira de demonstrar que o que o eu deseja é exatamente o que o outro quer, porque

de certa forma o eu está no outro. No texto, essa ideia fica evidente quando o narrador

afirma que ―depois de uma convivência maior, descobriu que a mania de

metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo‖ (p.

144). Corroborando ainda com essa questão, em um artigo intitulado ―O insólito é o

estranho‖, a professora Nadiá Paulo Ferreira afirma que ―a imagem do outro passa a ser

reconhecida pelo eu como sendo sua própria imagem‖ (2009, p. 116). Sendo assim, ao

―ser gentil com crianças e velhos‖ (p. 144) através de suas transformações, Teleco está

diante de um espelho no qual é possível se ver. A realização do outro é a sua.

Outro ponto que reforçaria esse pensamento é o fato de as transformações

seguirem uma motivação apoiada numa relação de troca: melhor do que se virar e

encontrar um menino pedindo-lhe esmolas foi ter visto um adorável coelhinho; o leão e

o tigre surgem para assustar os vizinhos; o porco-do-mato aparece diante do delegado,

confundindo-o; transformado no canguru Barbosa rouba-lhe os utensílios humanos para

agradar Tereza; o cachorro que retorna arrependido e solitário, mesmo depois da

ingratidão cometida; a aparição do belo e colorido pavão, quando é perguntado sobre

Tereza e, por último, a derradeira transformação em ―uma criança encardida, sem

dentes. Morta‖ (p. 152).

É, portanto, possível relacionar a habilidade do coelho à crise de identidade por

que passa o homem contemporâneo que, no desejo de agradar o outro enquanto

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extensão de seu próprio eu, acaba por perder sua verdadeira identidade. No conto, essa

perda está precisamente indicada no final da narrativa, quando Teleco não consegue

dominar mais sua habilidade de transformação e se metamorfoseia descontroladamente

―em animais os mais variados‖ (p. 151). A pesquisadora Jane Tutikian, no livro,

“Velhas identidades novas: O pós-colonialismo e a emergência das nações de língua

portuguesa”, considera que nos tempos atuais há uma perda da noção ―de fixidez, de

essencialidade ou de permanência‖ (2006, p. 12) da identidade do sujeito pós-moderno.

Segundo a autora vive-se hoje um momento de mobilidade identitária experimentada

pelo homem, que está associado às contingências tanto sociais quanto históricas e

culturais. Para ela, há ―uma espécie de celebração contìnua em relação às formas de

representação ou interpelação desses mesmos sujeitos‖ (p. 12). Nesse sentido, pode-se

afirmar que essa ―mobilidade identitária‖ tem como consequencia a perda definitiva da

mesma. Paradoxalmente, o homem multiplicado, na verdade, torna-se um; apenas

indivíduo, apenas uma sombra irreconhecível do que fora.

Parece que Murilo Rubião desejou chamar a atenção para essa questão,

utilizando-se de uma narrativa em que o elemento insólito transita pelos caminhos da

fantasia, da ironia, da tragédia e do lirismo, através de um personagem incomum, mas

sugestivo — algo que remete à mágica do coelho que sai da cartola. Nota-se que esse

ser infeliz, na ânsia de alcançar o inalcançável, sentencia-se à desconstrução do seu

próprio eu. Conforme assinalou Eliane Zagury, ―o homem usa o recurso da

metamorfose para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (1971, p. 32).

No texto, esse fato está presente no total descontrole das transformações, o que leva o

coelho à exaustão e à morte. Nesse caso, tanto as transformações como a morte devem

ser vistas metaforicamente como algo que leva à perda da integridade do indivíduo

contemporâneo.

4.5.3. Os comensais37

O conto narra a história de um rapaz que todos os dias encontrava os mesmos

companheiros — os comensais — em um refeitório. O intrigante, tanto para Jadon

37 De acordo com Antônio Houaiss, comensal é ―pessoa que come à mesa juntamente com outrem;

conviva; indivíduo que come habitualmente em casa alheia; parasito; (biol.) organismo que vive dentro de

outro, sem que lhe seja útil ou prejudicial‖ (2001, p. 214).

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como para o leitor, era o comportamento deles: não falavam, não comiam, olhavam para

o nada e tinham um aspecto de autômatos. Eles nunca chegavam. Pareciam estar sempre

ali. Depois de tentar por várias vezes desmascarar o segredo de seus insólitos

companheiros, — chegando cedo e saindo tarde do local para ver se eles chegariam ou

se levantariam antes dele das mesas — Jadon reencontra Hebe, um antigo amor de sua

vida. Embora tentasse trazê-la à realidade, assim como todos, Hebe não expressava

nenhum sinal de vida e, depois de puxá-la pelos braços e de perceber assustado que ela

se comportara como uma boneca desengonçada, o protagonista a deixa onde está e sai

desesperado para fugir dali, esquecendo-se de pagar a conta — coisa que ele sempre

fizera. Porém, desesperado por não encontrar a saída depois de tentar achar o gerente do

local para acertar as despesas, desmaia e, ao acordar, tenta lembrar-se de algo, mas é em

vão; olha-se no espelho, senta-se à mesa e, dessa vez, sozinho, comporta-se como um

daqueles homens que mais pareciam bonecos: ―Os braços descaìram e os olhos,

embaçados, perderam-se no vazio. Estava só na sala‖ (p. 263).

Esse conto é, sem dúvida, mais uma singularidade da complexidade que se

encontra na obra de Murilo Rubião. Nele, alguns elementos que conduzem o discurso

ficcional para o fantástico segundo Todorov aparecem vez ou outra. Se de um lado, há o

tempo imperfeito (espreitava-os, evitavam, aguardavam, estendessem, danassem,

tomavam, estavam etc) e raras expressões modalizadoras (talvez se sentassem, talvez

faltasse o sorriso, julgando que possivelmente se desorientara e tinha a impressão de

que não saíra do lugar), levando o leitor a questionar os acontecimentos; por outro,

existe um personagem que se coloca na história como se aquele lugar fosse real e, até

num certo ponto, tenta aceitá-lo com naturalidade. A hesitação não está encenada na

própria história, o que impossibilitaria, de acordo com a terminologia todoroviana, a

classificação do conto como um modelo de história fantástica.

Contudo, a narrativa apresenta elementos que possibilitam direcioná-la para a

teoria existencialista de Sartre. Ao comentar o texto existencial em Murilo Rubião,

Jorge Schwartz considera que o conto ―Os comensais‖ desenvolve-se em um ―contexto

plasmado pela exacerbação da individualidade, no sentido da desarticulação que o

homem sente em relação ao seu mundo circundante‖ (1981, p. 81). Nesse sentido,

observa-se que o texto murialino traz à tona uma questão peculiar à vida nos grandes

centros urbanos: a solidão em meio à multidão. Audemaro Taranto Goulart ratifica esse

pensamento quando assinala que, no referido conto, ―tematiza-se a solidão, só que esta

não acontece no isolamento absoluto, mas no meio de uma multidão de frequentadores

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de um refeitório‖ (1995, p. 35). Cada companheiro de Jadon — se é que se pode chamá-

los dessa forma — representa aquela individualidade a que Schwartz faz referência. Há,

aí, uma alegoria bastante singular, na qual se observa uma crítica implícita ao

comportamento individualista do sujeito contemporâneo. Jadon se vê num lugar que

fazia parte de seu cotidiano, com pessoas que estavam sempre ali, tendo sempre o

mesmo comportamento. No entanto, todos estão voltados para si e ignoram a presença

do personagem. Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, Eliane Zagury afirma que

―os comensais (...) são cadáveres sociais, meras presenças esvaziadas de qualquer

movimento38

‖.

Nem mesmo a rememoração de um momento lúdico, prazeroso e romântico foi

o suficiente para quebrar a realidade petrificada do lugar. Embora, no instante em que

começa a relembrar seu relacionamento com Hebe, o protagonista entre num processo

de reconstrução emotiva de seu passado ao lado da namorada, o comportamento dela o

traz de volta daquele universo nostálgico e irreal, dando-lhe a certeza da solidão em que

se encontrava. Na passagem,

Quando notou que as flores jaziam intocadas sobre a toalha, perturbou-se e o

desapontamento espalhou-se pela sua face. A custo prendeu um soluço,

prenúncio de um desespero prestes a desencadear-se. Com apaixonada

violência tentou ainda subtrair Hebe à sua dolorosa clausura, mas aos poucos

a sua voz perdia a segurança, o calor. Levou a mão à boca, sem conseguir

evitar o pranto, um pranto manso (p. 260).

Observa-se nesse fragmento que Jadon percebe desesperado que aquela que lhe

poderia dar ainda algum resquício de esperança de se manter humano não está mais ali.

O que ele vê diante de si é apenas uma sombra do que ela fora, afinal Hebe conservava

―a mesma beleza acanhada de moça do interior, o mesmo vestido de bolinhas azuis‖ (p.

259). A volta à adolescência constitui-se numa forma de escapismo, no qual o

personagem procura manter viva, mais nele do que na namorada, a certeza de que o

sentir é o que o diferencia dos demais que ali estão. Seu desespero inicia-se a partir do

momento em que ele percebe que sua luta foi em vão.

Ora, pelo que se tem dito até aqui, pode-se afirmar que a indiferença de todos

desconstrói a humanidade das relações entre os homens. Sendo assim, como partes de

um mesmo sistema, há a necessidade da metamorfose. Para fazer parte desse universo,

sem que tal comportamento lhe afete — não haverá mais o sentir humano —, o

38 Zagury, Eliane. ―Murilo Rubião, o absurdo convidado ao fantástico‖. Suplemento do Jornal do Brasil.

Rio de Janeiro, 22 mar. 1975, p. 35.

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indivíduo se vê obrigado a agir como seus convivas; ele precisa se encaixar no modelo

pré-estabelecido, mesmo que isso implique na perda de sua identidade e o projete em

um mundo em que ele próprio passe a ser mais um autômato, desligado de tudo e de

todos. Para Maria Cristina Batalha, o protagonista, ―preso, como os outros personagens,

em sua própria solidão e isolamento‖ (2013, p. 41), percebe que a transformação

naquilo que ele rejeitara inicialmente é algo inevitável. Está completo o processo de

reificação de mais um personagem muriliano.

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5. Considerações finais

Tentar estabelecer uma data ou época específica para o surgimento do

fantástico seria quase o mesmo que desejar apontar objetivamente quando o homem

adquiriu a capacidade de se expressar através da escrita, pois como foi apontado na

parte inicial desta tese, o gosto pela narrativa insólita vem de longas datas, remontando

a um período anterior ao da escrita. Mesmo quando o homem não dominava tal técnica,

ele possuía a arte da palavra oral, e muitas histórias foram criadas, inventadas,

imaginadas e repassadas de geração em geração oralmente. Há toda uma névoa de

mistério que envolve o surgimento não só do fantástico, mas da literatura como forma

de manifestação artística. No caso da narrativa insólita, o clima de mistério, o

misticismo, as religiões, as criaturas mitológicas, os estados de espírito do homem, as

novas descobertas científicas de todos os tempos, tudo isso contribuiu para o

enriquecimento e o aprimoramento desse tipo de narrativa. Na verdade, ela sempre

esteve relacionada a elementos que se referiam simbolicamente ao homem e ao espaço

no qual ele estava inserido. Foi assim nas civilizações ágrafas, na Idade Média, nos

séculos passados e está sendo assim no atual.

Embora, no Brasil, a literatura fantástica só tenha alçado voos maiores nas

últimas décadas, pode-se dizer que a fortuna crítica sobre o tema é vasta e bastante

heterogênea. Se, de um lado, há estudiosos que vislumbraram o fantástico como um

gênero, por outro [ou outros lados], há aqueles que veem possibilidades de leituras que

se adéquam ao fazer literário em sua totalidade. Os estruturalistas imaginaram fórmulas

que pudessem dar conta da complexidade dos textos insólitos, enquanto as correntes

mais contemporâneas vislumbraram um repertório teórico que preenchesse os espaços

vazios deixados por seus antecessores. A verdade é que — visto como gênero, como

modo literário, como categoria estética ou através da teoria existencialista sartriana — o

fantástico foi aos poucos se adaptando a cada momento histórico do homem. Acredita-

se que essa adaptação ocorreu quando o discurso realista tornou-se demasiadamente

saturado e já não tão expressivo. Nesse momento, o insólito surge como uma forma

diferente e a mais de atingir um mesmo alvo: a reflexão crítica do leitor pelo caminho

inverso.

Uma boa referência do que foi dito acima é o nome de Murilo Rubião, que se

destaca dentre aqueles que fizeram literatura fantástica em terras brasileiras. Ele foi um

escritor que utilizou a narrativa insólita para, através da ironia e crítica veladas, dar voz

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ao universo insólito que também é o do homem contemporâneo. Seus contos dão conta

da tragédia humana, esmiuçada pelo viés do cômico, do humor, do sonho, do lírico, da

loucura e etc. Acredita-se que esta tese tenha demonstrado que, por trás de um discurso

aparentemente despretensioso, os contos do autor mineiro estão tão ligados à realidade

quanto aquela literatura documental que tanto agradou aos críticos brasileiros de

outrora. Contudo, a crise evidenciada nas histórias fantásticas de Murilo tem como

elemento principal a ser trabalhado o homem que sofre as consequências diretas ou

indiretas de um processo de perda de sua identidade e de sua essência. Isso se dá de

maneira insólita.

Como foi possível perceber pelas análises dos textos, os contos murilianos

trazem à superfície questões que fazem parte de um contexto no qual o sujeito

contemporâneo está inserido. Ora pelo dimensionamento hiperbólico, ora pela utilização

da ambiguidade; ora pela sugestão da loucura ou do incesto; ora pelas metamorfoses, o

fato é que os personagens de Murilo transcendem as barreiras da linha na folha de papel,

desaguando na incômoda posição de denunciador de um mundo semelhante àquele que

o leitor tem diante de si. Seus protagonistas vivem a triste sina de estarem presos a uma

irrealidade real [ou a uma realidade irreal], com acontecimentos insólitos que só passam

a ser assim concebidos pelo efeito de surpresa que o leitor manifesta. Tal manifestação é

provocada pela consciência de que o destinatário final do texto tem diante de si um

mundo estranho, mas, ao mesmo tempo, possível e — depois de uma boa olhada —

nem tão estranho assim. Essa é a surpresa maior.

Ora, o ex-mágico não incomoda pelas mágicas descontroladas ou pelo fato de

ele ter se tornado um burocrático do serviço público. O que mais incomoda nele é a

constatação de que esse ser não é tão de papel assim. Excetuando-se as questões

literárias, é possível perceber nele a mesmice e o tédio da vida do indivíduo que não se

encontra [em todos os sentidos] e que se sentencia à morte em vida. Da mesma forma, o

sentimento de perplexidade do leitor não ocorre porque quem fala é um coelhinho, no

conto ―Teleco, o coelhinho‖. Na verdade, o que o provoca é a percepção de que o

universo que circunda o homem é tão absurdo que somente através do insólito esse

absurdo pôde ser escamoteado na figura dócil e gentil de um simpático coelho. Fosse o

coelhinho um menino sujo e desdentado desde o início do conto talvez a história não

acontecesse. Em ―Os comensais‖ a inquietação do leitor com Jadon se dá não pela

aceitação da incorporação do comportamento que tanto combateu dos seus ―quase

companheiros‖, mas sim pela aceitação da solidão como elemento comum ao indivíduo

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moderno, independente de qualquer que seja sua vontade. Nesse aspecto, o homem é um

subproduto social. Não possui uma essência, pois deixou de ser. E o que dizer dos

contos ―Bárbara‖, ―O edifìcio‖, ―Aglaia‖, ―O lodo‖, dentre outros, em que o

comportamento dos personagens é relacionado alegoricamente ao do homem em

situações conflitantes entre o ser e o ter; entre o sujeito e as consequências negativas do

progresso; entre a pessoa e a ―maquinalização‖ do humano; entre aquilo que o indivìduo

pensa de si e a imagem que o outro tem dele, etc? Na verdade, esse é o grande

incômodo provocado pelos contos de Murilo. Os temas, camuflados em situações

distintas, sugerem uma leitura que deve ser direcionada para uma reflexão mais

profunda e inquietante. Mesmo numa narrativa curta, de apenas duas páginas e meia,

como no conto ―A lua‖, nota-se a crítica implícita na figura do personagem Cris, que

simboliza, por extensão, a morte do homem puro; aquele que não foi corrompido ainda

pelas exuberâncias da vida moderna. E é justamente nesse retrato social — que a

narrativa traça — que está a beleza do discurso fantástico em Murilo Rubião. Ele é

capaz de construir uma irrealidade tão inquietante no leitor que o obriga a repensar

certos conceitos pessoais, e por que não dizer coletivos, de sua própria realidade.

Outro aspecto que se pode verificar ao longo desta tese relaciona-se ao

ambiente em que ocorre a encenação da narrativa muriliana. Ora, se o fantástico

moderno, segundo Sartre, aboliu as fadas, os duendes, os monstros e todos os seres

sobrenaturais; nada mais natural do que uma mudança radical do ambiente narrativo. Se

antes, os castelos, os cemitérios e as mansões mal-assombradas faziam parte dessa

encenação; agora, o lugar em que o insólito absurdo se descortina é o mesmo do

cotidiano de uma cidade qualquer. Não há mais lugares assustadoramente penumbrentos

ou invadidos por forças sobrenaturais. Como foi possível perceber, Murilo ambienta

suas narrativas em lugares com os quais o leitor se identifica rapidamente. São

apartamentos abandonados, casas, edifícios, ruas de uma cidade, pequenos lugarejos

afrontados pelo progresso ou uma fila que nunca acaba. No entanto, os ambientes em si

só servem para provocar a sensação de que o insólito é realmente absurdo, pois se

desenvolve em um lugar muito parecido com aquele que o leitor conhece.

Se, para Sartre, não é mais necessária a existência de seres sobrenaturais e

misteriosos para que o fantástico passe a existir, pode-se dizer que as narrativas de

Murilo é um belo exemplo disso. De acordo com o estudo do filósofo sobre o tema, o

homem foi eleito pelo fantástico moderno como o verdadeiro ser realmente insólito. É

esse indivíduo que se vê diariamente na lida com suas questões mais íntimas, com suas

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reflexões internalizadas e com suas frustrações inadiáveis que dá vida ao fantástico. Por

isso é possível afirmar que os contos de Murilo convergem para o existencialismo

sartreano. Neles, o homem aparece como o protagonista da encenação de seus próprios

dramas. Ele se encontra preso a uma realidade incômoda, mas que não o surpreende

mais. Excetuando-se Pererico, o protagonista do conto ―A fila‖, não há hesitações ou

resistências. A aceitação da consciência da não-liberdade que assola os personagens faz

parte da psique desse ser moderno. Esse é sem dúvida um dos motivos que torna a

aplicação da teoria de Todorov quase infrutífera nos contos do escritor mineiro.

Todorov não via o homem, mas sim elementos estrategicamente disponibilizados na

narrativa com o intuito de se criar e manter o fantástico. Para ele a hesitação era o

principal de todos. No entanto, os personagens de Murilo aceitam, não hesitam. São

tristes e fadados ao fracasso. Mas aceitam o insólito com a naturalidade de quem já se

acostumou a ele.

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