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VANDERNEY LOPES DA GAMA
Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira
(Programa de Letras Vernáculas)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016.
A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO
INQUIETANTE E MODERNO
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A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO
INQUIETANTE E MODERNO
VANDERNEY LOPES DA GAMA
Aluno do Curso de Doutorado em Literatura Brasileira
(Programa de Letras Vernáculas)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Orientador: Prof. Doutor Alcmeno Bastos
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016.
3
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Professor Doutor Alcmeno Bastos (Orientador)
_____________________________________________________
Professor Doutor Adauri Silva Bastos - UFRJ
_____________________________________________________
Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UFRJ
_____________________________________________________
Professor Doutor Jose Luis Jobim De Salles Fonseca - UERJ
_____________________________________________________
Professor Doutor Jorge Luiz Marques de Moraes
Colégio Militar do Rio de Janeiro e Colégio Pedro II
_____________________________________________________
Professora Doutora Stefania Chiarelli – UFF (Suplente)
_____________________________________________________
Professor Doutor Marcos Pasche (Suplente)
Rio de Janeiro,
Fevereiro de 2016.
A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO
INQUIETANTE E MODERNO
Vanderney Lopes da Gama
Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura
Brasileira).
4
5
À minha esposa, Nádya, e ao meu filho, Miguel,
que, mesmo não percebendo, contribuíram com a
realização de mais um sonho.
6
A G R A D E C I M E N T O S
A Deus, por ter me fortalecido para a batalha que travei tanto na execução
desta tese como na lida diária.
Aos meus queridos e sempre amados pais, que, apesar de não estarem mais
aqui, puderam ver meu êxito, certamente torcendo por mim de onde quer que estejam.
Altamiro e Dona Ideleia vocês foram os melhores pais que um filho poderia ter.
Obrigado.
Ao Professor Alcmeno Bastos, meu orientador, que em meio à correria do dia a
dia demonstrou preocupação e paciência.
Ao amigo Flavio García, com suas pequenas e singelas observações feitas no
exame de qualificação desta tese e nos e-mails trocados. Obrigado pelos textos.
Ao amado e mais novo membro da família, meu filho Miguel. Apesar do
distanciamento, muitas vezes uma simples parada nas leituras era suficiente para
perceber em seu sorriso meigo e tenro a renovação das forças que em alguns momentos
julguei ter perdido.
Aos meus irmãos e alguns amigos que souberam entender a dificuldade de
trilhar esse caminho, gostaria de externar minha eterna gratidão pela compreensão e
pela torcida positiva. Embora me mantivesse distante em muitos momentos, sempre
pude contar com a sinceridade e o apoio de vocês.
7
R E S U M O
A NARRATIVA INSÓLITA EM MURILO RUBIÃO: UM FANTÁSTICO
INQUIETANTE E MODERNO
Vanderney Lopes da Gama
Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em
Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).
Esta tese tem por objetivo a narrativa insólita de Murilo Rubião, estudada sob
óptica existencialista. No entanto, nela, serão discutidas desde as ideias mais
tradicionais da narrativa fantástica, seguindo a linha de pensamento de T. Todorov e de
Filipe Furtado, até as contribuições mais contemporâneas sobre o tema. Contudo, dentro
dessa nova abordagem possível da literatura fantástica moderna, a teoria existencialista
de Jean Paul Sartre será elencada como aquela que melhor se aplica às narrativas do
escritor mineiro, uma vez que, para o filósofo, o único ser realmente fantástico na
atualidade é o homem. Segundo ainda Sartre, o fantástico contemporâneo não necessita
de seres sobrenaturais, mortos-vivos, fantasmas, nem de castelos mal-assombrados ou
cemitérios, porque o elemento fantástico está preso ao cotidiano do homem [e no
homem] que vive tanto nas grandes cidades como nas do interior. Ele é o indivíduo no
qual se manifestam as crises pelas quais a humanidade tem passado, as consequências
diretas do progresso e da vida tal qual é conhecida.
Dos trinta e quatro contos apresentados aqui, apenas trinta e dois foram
publicados quando Murilo Rubião ainda estava vivo. ―A diáspora‖, conto esquecido em
um banco de taxi, só foi publicado depois da morte do autor e depois de uma extenuante
procura. O conto ―As unhas‖ só chegou recentemente ao conhecimento do público
graças à doação da família do escritor ao Centro de Estudos Literários da Faculdade de
Letras da UFMG, sendo selecionado pela Profª. Vera Lúcia Andrade, atual diretora do
CEL, e pela bolsista de Iniciação Científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val.
Palavras-chave: Insólito – Murilo Rubião – Sartre – Fantástico – Existencialismo.
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R E S U M E N
LA NARRATIVA INUSUAL EN MURILO RUBIÃO: UN FANTÁSTICO
INQUIETANTE Y MODERNO
Vanderney Lopes da Gama
Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos
Resumen de la Tesis Doctoral sometida al programa de Posgrado em Letras Vernáculas,
Facultad de Letras, de la Universidad Federal de Rio de Janeiro - UFRJ, como parte de
los requisitos necesarios para optar al título de Doctor en Literatura Brasileña.
Esta tesis tiene como objetivo la narrativa inusual de Murilo Rubião,
estudiados bajo la óptica existencialista. Sin embargo, se discutirán desde las ideas
tradicionales de la narrativa fantástica, siguiendo la línea del pensamiento de T.
Todorov y Filipe Furtado, aportaciones más actuales sobre el tema. Sin embargo, dentro
de este nuevo enfoque de la literatura fantástica moderna, la teoría existencialista de
Jean-Paul Sartre se introduce como el que mejor se aplica a narraciones del escritor
minero, ya que, para el filósofo, el único realmente fantástico en la actualidad es el
hombre. Según Sartre, el fantástico contemporáneo todavía no necesita seres
sobrenaturales, zombies, fantasmas, o castillos embrujados o cementerios, porque el
elemento fantástico se une a la vida cotidiana del hombre [y en el hombre] que vive en
las grandes ciudades y en el interior. Él es el individuo en que se presentan crisis en la
que el hombre ha pasado, las consecuencias directas del progreso y de vida que se
conoce en los principales centros urbanos.
De los 34 relatos presentados aquí, sólo 32 fueron publicados cuando Murilo
Rubião todavía estaba vivo. "A diáspora", cuento olvidado en un taxi, sólo fue
publicada después de la muerte del autor y después de una ardua búsqueda. El cuento
"As unhas" hace poco vinieron a la atención del público gracias a la donación de la
familia del escritor para Centro de Estudios Literarios de la Facultad de Letras/UFMG,
ser seleccionada por la profª. Vera Lúcia Andrade, actual Director del CEL y la beca de
iniciación científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val.
Palabras clave: Inusual – Murilo Rubião – Sartre – Fantástico – Existencialismo.
9
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................... 11
1. A narrativa insólita através dos tempos ................................................................ 14
1.1. O insólito e a Idade Média ............................................................................ 16
1.2. A narrativa insólita no Brasil......................................................................... 19
2. Teorizando sobre o fantástico .............................................................................. 24
2.1. O fantástico como gênero textual .................................................................. 24
2.2. A narrativa fantástica: novas contribuições ................................................... 28
2.3. Sigmund Freud e o Estranho ......................................................................... 37
2.4. O existencialismo de Jean Paul Sartre ........................................................... 41
2.5. O existencialismo e a literatura fantástica ...................................................... 44
3. A narrativa de Murilo Rubião: um fantástico inquietante e moderno .................... 52
4. Narrativas comentadas de Murilo Rubião ............................................................ 66
4.1. A hipérbole ................................................................................................... 66
4.1.1. O Ex-mágico da Taberna Minhota ........................................................... 66
4.1.2. Bárbara.................................................................................................... 69
4.1.3. A cidade .................................................................................................. 71
4.1.4. O homem do boné cinzento ..................................................................... 73
4.1.5. Memórias do contabilista Pedro Inácio .................................................... 76
4.1.6. D. José não era ........................................................................................ 78
4.1.7. A lua ....................................................................................................... 80
4.1.8. Os dragões............................................................................................... 83
4.1.9. A armadilha ............................................................................................. 85
4.1.10. O edifício .............................................................................................. 87
4.1.11. Aglaia.................................................................................................... 90
4.1.12. A fila ..................................................................................................... 93
4.1.13. Botão-de-rosa ........................................................................................ 97
4.1.14. O bloqueio ........................................................................................... 100
4.1.15. A diáspora ........................................................................................... 104
4.1.16. As unhas .............................................................................................. 108
4.2. O incesto (?) ................................................................................................ 112
4.2.1. A casa do girassol vermelho .................................................................. 112
10
4.2.2. O lodo ................................................................................................... 115
4.3. A ambiguidade............................................................................................. 119
4.3.1. O pirotécnico Zacarias ........................................................................... 119
4.3.2. Mariazinha ............................................................................................ 121
4.3.3. Elisa ...................................................................................................... 124
4.3.4. Marina, a Intangível .............................................................................. 125
4.3.5. O bom amigo Batista ............................................................................. 128
4.3.6. Epidólia ................................................................................................. 130
4.3.7. O convidado .......................................................................................... 133
4.4. A loucura ..................................................................................................... 137
4.4.1 A noiva da Casa Azul ............................................................................. 137
4.4.2. Os três nomes de Godofredo .................................................................. 139
4.4.3. Ofélia, meu cachimbo e o mar ............................................................... 141
4.4.4. Bruma (A estrela vermelha) ................................................................... 143
4.4.5. A flor de vidro ....................................................................................... 145
4.4.6. Petúnia .................................................................................................. 148
4.5. A metamorfose ............................................................................................ 153
4.5.1. Alfredo .................................................................................................. 153
4.5.2. Teleco, o coelhinho ............................................................................... 155
4.5.3. Os comensais ........................................................................................ 157
5. Considerações finais ......................................................................................... 161
6. Referências Bibliográficas ................................................................................ 165
11
Introdução
O foco principal desta tese é a abordagem da narrativa insólita de Murilo
Rubião. Contudo, antes de se empreender tal feito, faz-se necessária a apresentação de
alguns pareceres importantes para o melhor andamento deste trabalho. E, para isso,
acredita-se que o percurso inicial deve partir do próprio termo insólito e a que tipo de
literatura insólita aqui se faz referência.
Segundo Antônio Geraldo da Cunha, no Dicionário etimológico Nova
Fronteira de língua portuguesa, o termo insólito — assim como sólito — tem a sua raiz
no verbo soer, que significa ―ser comum, frequente, vulgar‖. Sendo assim, proveniente
do latim in-solitus, o adjetivo insólito pode ser entendido como ―desusado, inabitual
e/ou incomum‖. De acordo ainda com Lenira Marques Covizzi, no livro O insólito em
Guimarães Rosa e Borges, o termo ―carrega consigo e desperta no leitor o sentimento
do inverossímil, incômodo, infame, incongruente, impossível, infinito, incorrigível,
incrível, inaudito, inusitado, informal...‖ (1996, p. 26). Diante dessas duas
apresentações, acredita-se que o segundo sentido atribuído ao vocábulo é aquele que —
por ser mais completo e por dar conta de uma quantidade maior de situações
relacionadas às narrativas que aqui se estudarão — se pretende ratificar nas páginas a
seguir.
Desta forma, exclui-se a possibilidade de generalizações, pois o fato de toda —
ou quase toda — literatura ser ficção não quer significar a inclusão dos diversos tipos de
texto no rol das narrativas insólitas a que se refere esta tese. Na verdade, será utilizado
esse termo para dar conta das narrativas de Murilo Rubião que trafegam pelo universo
fantástico. Por esse fato, também é importante salientar que o termo insólito poderá ser
empregado como forma sinonímica daquele universo [e vice-versa] e que, por esse
motivo, no capítulo a seguir, se faz necessária a elaboração de um mapeamento da
trajetória que esse tipo de narrativa percorreu até se encontrar com o escritor brasileiro.
Um dado bastante discutido com relação às narrativas de Murilo Rubião é o fato
de elas não se encaixarem com certa facilidade às teorias acerca do fantástico que
circulam pelo ambiente acadêmico. Há uma espécie de resistência entre as narrativas do
escritor mineiro e as teorias mais tradicionais que abordam o fantástico. Elas não
preenchem completamente as lacunas encontradas nos contos de Murilo Rubião — na
verdade, nenhuma teoria tem esse privilégio. Os argumentos estruturalistas ora
adéquam-se àquelas narrativas, ora afastam-se delas. A hesitação, por exemplo, tal qual
12
o modelo de Todorov, não aparece claramente tipificada na narrativa do escritor. Na
verdade, os contos de Murilo Rubião possuem uma peculiaridade: eles não apresentam
os elementos indicadores da hesitação a que Todorov faz referência em seus estudos. Ao
procurar cegamente por eles, o crítico corre o risco de anular todo um universo
construído com o intuito de provocar não só o prazer da leitura, mas também a reflexão
crítica.
Como é possível perceber, as questões sobre o insólito muriliano estão longe
de serem esgotadas. No entanto, esse ―não esgotamento‖ não quer dizer que os estudos
já feitos sobre Murilo Rubião foram insuficientes ou inconsistentes. Na verdade, ele
indica a complexidade da obra de um autor que — mesmo utilizando os limites entre o
real e o não real — conseguiu plantar interrogações na mente dos leitores mais atentos
aos seus truques e jogadas enigmáticas.
No conjunto das teorias, apesar de ter recebido várias críticas, a definição que
Todorov deu ao fantástico serviu durante muitos anos como referência relevante aos
estudos literários. Os estudiosos que seguiram as ideias todorovianas receberam a
denominação de estruturalistas, porque entendiam a narrativa como um conjunto de
elementos estrategicamente constituídos para a manutenção do gênero até o final do
conto. No entanto, há outras possibilidades. Atualmente, há estudiosos que consideram
a narrativa fantástica moderna como um modo discursivo. Nesses casos, o fantástico
não é visto como um gênero, como apregoava Todorov, mas sim como uma decorrência
do próprio discurso literário que pode surgir a qualquer momento na narrativa. Autores
como Remo Ceserani, Irène Bessière, Irlermar Chiampi, dentre outros, veem o
fantástico dessa forma. Há outros que, como Ana Gonzalez Salvador, acreditam que a
narrativa fantástica é melhor caracterizada como uma ―categoria estética‖ que segue as
mesmas leis da pintura, da música e de outras formas de arte. Segundo a autora, assim
como um pintor é capaz de produzir outras realidades ―el escritor logra producir una
ilusión referencial‖(1980, p. 32). Existem ainda estudiosos que perceberam o fantástico
ora como um gênero, ora como um modo discursivo. Nesse rol, estão Filipe Furtado –
considerando o livro A construção do fantástico na narrativa e publicações mais
recentes do autor – e David Roas. Por fim, há autores que veem o fantástico com uma
conotação existencialista. Assim, todos os elementos que compõem a narrativa foram
disponibilizados na teia textual com o único objetivo de representar as incertezas e as
angústias do homem no cenário moderno. Em um artigo intitulado ―Aminadab, ou o
fantástico considerado como uma linguagem‖, o filósofo Jean Paul Sartre apresenta essa
13
visão da narrativa fantástica contemporânea. Lenira Marques Covizzi, no livro O
insólito em Guimarães Rosa e Borges, também sugere uma abordagem existencialista
quando entende que as crises pelas quais o homem contemporâneo passou estão direta e
indiretamente sinalizadas na narrativa fantástica moderna.
Pelo que se tem dito até agora, nota-se que esta tese tem como objetivo a
realização de leituras crítico-interpretativas das narrativas insólitas de Murilo Rubião,
buscando relacioná-las à definição do fantástico na atualidade. Para isso, como se verá a
seguir, primeiramente, será feito um pequeno panorama da narrativa insólita até seu
encontro com o escritor mineiro. Depois, serão elencadas as ideias de estudiosos mais
tradicionais que contribuíram com a criação de teorias desse tipo de narrativa. Nesse
momento, serão chamados à discussão autores que apresentaram visões divergentes das
que foram postuladas pelos estruturalistas, incluindo-se nesse escaninho os dizeres de
Freud, quando este discorre sobre o estranho. Por último, também será apresentada a
teoria existencialista do filósofo Jean Paul Sartre como fundamentação teórica que,
associada a outras áreas do conhecimento humano, proporciona uma abordagem mais
satisfatória dos contos do escritor mineiro. O filósofo pode ser considerado o precursor
da teoria existencialista acerca do fantástico moderno, pois trata a questão, focalizando
objetivamente a condição humana como o elemento capaz de desencadear o fantástico
na narrativa insólita moderna.
Após a apresentação deste panorama e arcabouço teórico, será feita uma
abordagem mais minuciosa da vida e da obra de Murilo Rubião, dando maior ênfase ao
trabalho de construção literária do escritor, apontando alguns traços relevantes,
marcantes e singulares em suas narrativas. Nessa parte, serão apontadas algumas
características emblemáticas e frequentes na literatura de Murilo que contribuíram para
a construção do escritor que hoje se conhece. Depois, será realizada a leitura crítico-
interpretativa dos contos de Murilo Rubião, observando-se atentamente a convergência
e/ou divergência de suas narrativas com a teoria existencialista.
Por fim, serão apresentadas as considerações finais, enumerando os resultados
encontrados, ratificando algumas ideias referenciadas na parte inicial do trabalho e
retificando outras que possam surgir no percurso da tese. A essa altura, espera-se que os
resultados encontrados sejam suficientemente convincentes para tornar este trabalho
algo representativo e importante para uma abordagem séria e bem embasada da
literatura insólita em Murilo Rubião.
14
1. A narrativa insólita através dos tempos
A narrativa insólita provocou certo medo e fascínio no leitor de outrora. Antes
mesmo de se ter noção da escrita, é sabido que os povos antigos tinham, por hábito,
passar suas crenças e costumes contando histórias através da oralidade. O sábio da tribo
era um ancião que buscava reconstruir os caminhos de sua cultura, narrando histórias
nas quais era possível notar a presença de elementos sobrenaturais, terroríficos e
assustadores, enfrentados por um herói que representasse aquele povo ou nação. Logo,
pode-se dizer que esses relatos mitológicos, que se reportavam a todo um passado
histórico e a toda uma forma de cultura, foram, indiretamente, as primeiras
manifestações orais das narrativas insólitas. Segundo Selma Calasans Rodrigues, há
uma diversidade de opiniões sobre o suposto nascimento do fantástico, mas, para a
pesquisadora,
Temos de enfrentar a diversificação de opiniões. Sobre o nascimento e a
natureza do fantástico várias delas se entrechocam. Pode-se, porém,
classificar algumas de acordo com afinidades. A primeira considera o
fantástico de todos os tempos, desde Homero e As mil e uma noites
(RODRIGUES, 1988, p. 16).
A questão é complexa e aparentemente insolúvel. H.P. Lovecraft, no livro O
horror sobrenatural em literatura, no capítulo intitulado ―O inìcio do conto de horror‖,
sugere que o sentimento de medo e terror está enraizado nos elementos que
compuseram o ―folclore‖ dos povos mais primitivos:
O terror cósmico aparece como ingrediente no folclore mais primitivo de
todas as raças, e é cristalizado nas baladas, crônicas e escritos sagrados mais
arcaicos. Ele era, aliás, uma característica saliente no elaborado cerimonial
mágico com seus rituais para a evocação de demônios e espectros que
floresceu desde tempos pré-históricos e atingiu seu apogeu no Egito e nas
nações semitas (LOVECRAFT, 2008, p. 19).
O fato é que histórias insólitas sempre acompanharam o homem pelos diversos
estágios de sua evolução. Pode-se pensar, por exemplo, nas narrativas religiosas que
fazem referência à criação do universo e das espécies como um todo. Em um livro de
contos organizado por ele, o escritor Flávio Moreira da Costa relaciona a narrativa
apocalíptica como uma das primeiras manifestações do fantástico. Ainda segundo o
autor, pode-se inferir a existência do gênero desde os primórdios do século XIV. É
dessa época o conto ―O rato e o eremita‖, datado de 1373 e que fazia parte de um
―manuscrito encontrado do Hitopadoxa — um conjunto de 43 histórias derivadas do
15
Panchatantra1‖ (COSTA, 2006, p. 33). Seguindo por demais essa tese, o antologista cita
o conto ―A sentença‖, que pertence ao escritor chinês Wu Cheng‘en que teria vivido na
primeira metade do século XVI (1500-1582) e que também ratifica tal pensamento.
Enfim, as referências poderiam ser inúmeras. Como se vê, nos parcos exemplos
elencados anteriormente, as narrativas de cunho insólito têm a sua gênese em tempos
bastante remotos. Alguns estudiosos já apontaram o século XIX como o apogeu dos
textos fantásticos. Contudo, esse fato não inviabiliza a possibilidade de se ter
esporadicamente representadas, em determinados momentos do crescimento e
autoconhecimento da natureza humana, narrativas que colocassem o homem em contato
com um universo imaginário adormecido, desconhecido, sobrenatural, impossível ou
irreal.
Uma constatação — talvez sólida — dessa hipótese manifesta-se naquilo que
Sigmund Freud chamou de inconsciente. É nele que os homens de todos os tempos
guardam seus medos, seus traumas, suas frustrações e suas neuroses arquivadas pelo
tempo. Basta uma pequena ―chave‖ catalisadora para que qualquer um desses elementos
venha à tona:
Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas
possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente
aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos
de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas
crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem
de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo
que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho... (FREUD, 1976, p. 308).
1Panchatantra é um conjunto de cinco volumes de histórias escritas por um professor para instruir os
príncipes nos vários aspectos da realeza. Os cinco volumes juntos servem como um guia para um rei
previdente, ajudando-o a decidir como governar, como escolher seus amigos, seus ministros, como se
administrar na vida diária, entre outras coisas. A coleção de histórias do Panchatantra é realmente
valorosa para os pais, ajudando-os a guiar — a si e aos filhos — segundo os valores da vida humana.
Toda história do Panchatantra tem uma moral: ―Há muito tempo, no reino de Mahilaropya, viveu um rei
que governava perfeitamente. Ele tinha três filhos, que não eram inteligentes. O rei estava preocupado
com a sucessão do trono, pois sabia que seus filhos eram incapazes de governar. Ele procurava
desesperadamente um bom professor para seus filhos, que lhes ensinasse as escrituras e os tornasse sábios
em pouco tempo. O ministro do rei indicou-lhe, então, uma autoridade qualificada, Vishnu Sharman.
Vishnu Sharman era velho e o rei se preocupava em como o professor realizaria seu trabalho se mesmo um homem inteligente levava mais de doze anos para apreender todos os elementos da escritura. Então
Vishnu Sharman convenceu o rei que ensinaria aos príncipes sobre a conduta real através de uma série de
histórias, que seriam mais efetivas que as escrituras. Assim, Vishnu Sharman compilou a coleção de cinco
volumes intitulada Pancha Tantra, que deveria ser um guia para príncipes sobre o comportamento de um
rei‖. Traduzido e adaptado por Rafael Brito (disponìvel em
http://www.templodoconhecimento.com/portal/modules/smartsection/item.php?itemid=116), acessado em 15/09/2013, às 14h: 32min.
16
Ao postular tal pensamento, Freud oferece uma pequena alternativa para uma
conjectura do porquê de as narrativas insólitas terem tido uma vida tão longa desde os
primórdios da civilização do homem até os dias de hoje. Segundo o psicanalista, pode-
se aventar que a leitura de tais narrativas é uma forma de colocar o indivíduo em contato
com um universo imaginário adormecido, mas ainda presente em sua existência. O
estranhamento dos acontecimentos nesse tipo de narrativa é algo do qual o leitor não
pode fugir e que, por outro lado, já lhe é — de alguma forma — familiar. Essa
familiaridade de certo modo o atrai, pois o faz mergulhar em um universo repleto de
mistérios, de incertezas e de questionamentos que, na verdade, é representativo de sua
própria psique. Com relação a essa afirmação, repare no que Freud comenta quando da
análise do ―Homem da Areia‖, de E. T. A. Hoffmann:
Curiosamente, porém, ainda que a história do Homem da Areia aborde o
despertar de um medo da primitiva infância, a ideia de uma ―boneca viva‖
não provoca absolutamente o medo; as crianças não temem que as suas
bonecas adquiram vida, podem até desejá-lo. A fonte de sentimento de
estranheza não seria, nesse caso, portanto, um medo infantil; mas, antes, seria
um desejo ou até mesmo simplesmente uma crença infantil (ibidem, p. 291 -
292).
Nota-se que, nesse caso, a sensação de estranhamento deve-se à realização
absurda — e insólita — de uma vontade inerente à criança. O medo provocado por um
evento desse tipo tem suas raízes em outro momento. Percebe-se que a realização
sombria de um desejo de criança faz com que o destinatário final do texto busque
inconscientemente em sua mente os mesmos temores que o assolavam na infância,
quando ainda não diferenciava com clareza o mundo real do da fantasia.
1.1. O insólito e a Idade Média
Voltando à questão de uma possível gênese da literatura fantástica, pode-se
dizer que um momento singular das narrativas com temática insólita desenvolveu-se no
período da Idade Média. Esse período da história do homem provocou e provoca
reações diversas — quando analisado mais de perto — devido ao teor contraditório — e
por que não, paradoxal? — que o envolve. Se de um lado, podia-se acreditar em um
paraíso na terra,
17
A natureza é extraordinariamente generosa: encontra-se nesse reino todo o
bestiário real e fantástico da Idade Média, inclusive grifos, cinocéfalos, fênix
e ciclopes. Abundância, ar perfumado, flora deliciosa: tudo contribui para
deixar os habitantes felizes (MINOIS, 2011, p. 115);
por outro, sabe-se que esse foi um dos períodos mais violentos e opressores da história
da humanidade. Desde as guerras e disputas territoriais e religiosas até ao tratamento
dado a doenças e ao homem de maneira geral, percebe-se que na Idade Média a criação
de um mundo literariamente imaginário era uma fuga e também uma forma de violação
de preceitos, valores e regras impostos pela nobreza e pelo clero. Por isso, não seria
errado considerar que muitas narrativas insólitas originaram-se no contexto religioso da
era medieval. O acadêmico estruturalista russo Vladimir Propp sugere algo parecido
quando, no artigo “As transformações dos Contos Fantásticos‖, afirma que
O conto (fantástico) vem de antigas religiões, mas a religião contemporânea
não vem dos contos. Ela não os cria mais, mas modifica seus elementos. Há
também alguns raros casos de uma verdadeira dependência inversa, isto é,
casos em que os elementos da religião advêm do conto. A história da
santificação do milagre de São Jorge com o Dragão pela Igreja ocidental
fornece-nos um exemplo bastante interessante (PROPP, 1979, p. 251).
Não é gratuito que na história da literatura ocidental sejam tão comuns
narrativas com personagens ―desajustados socialmente‖, rotulados como leprosos,
mendigos, ladrões ou loucos: ―Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde
todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade‖ (FOUCAULT,
2008, p. 14). Tais personagens são uma maneira de mostrar a natureza humana em
estado bruto e ―não-livre‖. Todo afronte ou qualquer comportamento que não
comungasse com os ditames pré-estabelecidos por tais formas de poder era duramente
castigado e/ou excluído da sociedade. Nesse sentido, pode-se conjecturar que o
indivíduo louco era banido porque trazia consigo uma verdade incômoda àquele modelo
padronizado de pensar e de se comportar:
a loucura tem (...) uma força primitiva de revelação: revelação de que o
onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma
profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo
às voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites; e
revelação inversa, mas igualmente dolorosa, de que toda a realidade do
mundo será reabsorvida um dia na Imagem fantástica, nesse momento
mediano do ser e do nada que é o delírio da destruição pura (ibidem, p. 27).
18
É importante destacar o fato de que a Idade Média pode ser dividida em dois
momentos emblemáticos. O primeiro compreende os séculos V e X; e o segundo, os
séculos XI e XIII. No primeiro caso, nota-se um claro combate às crenças populares e
ao paganismo mundano. Há uma aceitação da incorporação do milagre na vida
cotidiana, atribuído à figura dos santos e/ou novos heróis detentores de poderes
divinos2. No segundo momento, segundo Le Goff, ocorre ―um vivo reflorescimento do
maravilhoso3, em razão de certo relaxamento exercido pelo controle da Igreja, que se
consagra essencialmente à luta contra os hereges‖ (2010, p. 107). Nesse sentido, pode-
se dizer que na Idade Média, as narrativas insólitas eram revestidas de um valor
religioso que as situavam no escaninho dos acontecimentos maravilhosos. No entanto,
de acordo ainda com Le Goff, foi somente no final do século XII e início do século XIII
que ocorreu uma preocupação mais acentuada em diferençar o que tinha proveniência
divina do que era ―diabólico‖, ―discernindo entre o miraculoso de origem divina e o
mágico de natureza diabólica‖ (ibidem, p. 107).
As narrativas insólitas que se reportam à Idade Média estão repletas de
histórias em que seres demoníacos e/ou sobrenaturais colocam-se em franco duelo com
―heróis‖ escolhidos, representando o combate maniqueìsta do bem contra o mal que se
repete desde tempos remotos. Por isso, essas histórias eram, de certa forma, narrativas
transgressoras de uma dada ordem, pois admitiam a existência de seres que afrontavam
a estabilidade e a linearidade do pensamento divino-cristão, colocando em xeque a
própria ideia do que era certo ou errado, do que era bom ou ruim, do que era pecado e
do que não era, do que era divino e do que era humano, do que era cristão e do que era
pagão:
2 A arte figural cristã, a oficial dessa época, substitui a verossimilhança pelo alegorismo, teoria que foi
amplamente divulgada graças a Dante, mas que remonta a Santo Agostinho, São Jerônimo, Beda Escoto é
outro e que oferece quatro sentidos para a interpretação das obras: o literal, o alegórico, o moral e o
anagógico (místico). ECO, Humberto. Obra aberta. São Paulo, 1969, p. 42-43. 3 Maravilhoso é o ―extraordinário‖, o ―insólito‖, o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano.
Maravilhoso é o que contém a maravilha, ou seja, ―coisas admiráveis‖ (belas ou execráveis, boas ou
horríveis), contrapostas às naturalia (CHIAMPI, 1980, p. 48).
Nesse sentido, é importante salientar a definição orientada por Carpentier sobre o tema: ―lo maravilloso
comienza a ser lo de manera inequívoca cuando surge de una inesperada alteración de la realidad (el
milagro), de una revelación privilegiada de la realidad, de una iluminación inhabitual ó singularmente
favorecedora de las inadivertidas riquezas de la realidad, de una ampliación de las escalas y categorías de
la realidad, percebidas con particular intensidad em virtud de una exaltación del espíritu que lo conduce a
un modo de ―estado limite‖ (CARPENTIER, 1968, p. 78 – 81).
19
As regras de leituras são homólogas às de um governo autoritário que guia
seus concidadãos em seus atos. A literatura de caráter popular da Idade
Média, entretanto, não está sujeita a esse tipo de alegorismo e muitas vezes
faz dele a paródia (como Aucassin et Nicolette, por exemplo). Assim a
imaginação corre solta. Basta lembrar a obra de Jeronimus Bosch, pintor que
muito herdou do imaginário popular e que é, para nós, um surrealista avant la
lettre (RODRIGUES, 1988, p. 21 – 22).
Ora, como se vê, para Selma Calasans Rodrigues, a narrativa insólita ofereceu
ao indivíduo daquele período a possibilidade de se manifestar em seu próprio tempo,
tocando em temas que normalmente não entrariam no rol das histórias mais lidas.
Imagine-se, por exemplo, como histórias de fantasmas, sobre o retorno de mortos, sobre
a homossexualidade, a troca de identidade entre um homem e uma mulher ou a
existência de vampiros seriam aceitas por uma sociedade ainda tradicional e em sua
maioria seguidora temerosa dos valores cristãos? Tomemos por exemplo os temas do tu:
o incesto, o homossexualismo, o amor a vários, a necrofilia, uma sensualidade
excessiva... Tem-se a impressão de ler uma lista de temas proibidos, estabelecida por
alguma censura (TODOROV, 2008, p. 167).
Portanto, somente na narrativa de ―caráter popular‖ tais temáticas puderam ser
abordadas sem que seus divulgadores sofressem maiores prejuízos dos censores
medievais. Enfim, a Idade Média foi considerada como um momento em que o
misticismo, o mistério e a magia ou eram elementos cristãos ou eram mundanos. Por
isso, para Le Goff, foi somente na passagem do século XIV para o século XV que
ocorreu uma mudança na compreensão estética dos relatos maravilhosos. É a partir do
final do século XV que tais narrativas puderam ser observadas mais como objeto
literário do que como um relato com fundo religioso propriamente dito.
1.2. A narrativa insólita no Brasil
O pensamento antropocêntrico renascentista elegeu a razão como palavra de
ordem, fato este que não colaborou muito com a propagação de narrativas com
temáticas insólitas em território brasileiro. Nos séculos subsequentes à Idade Média,
embora já se tivesse deixado os rigores de uma cultura teocêntrica para trás, ainda havia
certas reminiscências daquele pensamento religioso. Na verdade, foi somente a partir da
metade do século XVIII e início do século XIX que as histórias fantásticas tiveram seu
apogeu e reconhecimento:
20
Trata-se de um fato importante. Uma tradição literária inteira foi redescoberta
e recuperada; foram definidos e estudados os mecanismos de operação de um
modo literário que forneceu ao imaginário do século XIX a possibilidade de
representar de maneira viva e eficaz os seus momentos de inquietação,
alienação e laceração, e de deixar essa tradição como legado para a tradição
moderna — como uma das descobertas expressivas mais vitais e persistentes.
(CESERANI, 2006, pp. 7 – 8).
O (re) surgimento — agora com maior intensidade — de narrativas ―realistas
irrealistas4‖ e de certo sentimento de liberdade que predominou no chamado século das
luzes5 fez com que surgisse mais tarde uma infinidade de teóricos que buscaram defini-
las, esquematizá-las e até rotulá-las, sugerindo um arcabouço teórico que ou não levava
em consideração todas as especificidades do texto literário; ou, simplesmente, não
preenchia os vazios deixados por seus antecessores.
Fora do Brasil, escritores como Mary Wollstonecraft Shelley, E. T. A
Hoffmann, Guy de Maupassant, Théophile Gautier, Edgar Alan Poe, William Wymark
Jacobs, Horace Walpole, Henry James e H. G. Wells, Franz Kafka — dentre outros —
produziram narrativas que ainda hoje são citadas como modelo do que veio a ser
chamado de literatura fantástica por muitos estudiosos. Em terras brasileiras, pode-se
dizer que as manifestações desse tipo de narrativa não foram muito representativas.
Entre o século XVIII e XIX, escritores como Aluisio Azevedo, Machado de Assis,
Gastão Cruls, Coelho Neto e Álvares de Azevedo figuraram entre os poucos
representantes que se aventuraram vez ou outra nessa chamada narrativa insólita.
Embora se tenha conhecimento de que os escritores brasileiros pré-modernos e
modernos sempre tiveram maior inclinação para a narrativa mais documental e
―realista6‖, que sondasse as mazelas e as disparidades sociais que se faziam presentes
4 Essa expressão foi utilizada pelo professor Alcmeno Bastos em um artigo intitulado ―Os realismos
irrealistas na literatura brasileira contemporânea‖. Acredita-se que tal terminologia tenha sido escolhida
para que se evitasse uma rotulação limitadora das narrativas de temáticas insólitas produzidas na
contemporaneidade. O arquivo está disponibilizado em www.alcmeno.com 5 Como se sabe, o século XVIII, também chamado século filosófico e época das Luzes, foi por excelência
o século do racionalismo. Um período de fermentação intelectual em que, aos preceitos irracionais ou
supersticiosos da opinião comum, tanto quanto os dogmas indiscutidos e indiscutíveis da Fé, os filósofos contrapunham o seu direito de livre exame de tudo à luz da Razão soberana. Por isso mesmo, podia a
grande Enciclopédia de Diderot e d‘Alembert proclamar que ―o filósofo não admite nada sem prova, não
concorda nunca com as noções falazes; ele estabelece exatamente os limites do certo, do provável e do
duvidoso‖ (PAES, 1985, p. 189). 6Segundo Antonio Candido, a literatura brasileira esteve, por um bom tempo, dedicada à narrativa
documental e ―isto contribuiu para incutir a acentuar a vocação aplicada dos nossos escritores, por vezes,
verdadeiros delegados da realidade junto à literatura. Se não decorreu daí realismo no alto sentido,
decorreu certo imediatismo, que não raro confunde as letras com o padrão jornalístico; uma bateria de
fogo rasante, cortando baixo as flores mais espigadas da imaginação. Não espanta que os autores
21
em quase todo território nacional, no decorrer do século XX, nota-se um número mais
significativo de autores que produziram narrativas que abrangiam o universo fantástico.
Nomes como Lima Barreto, Carlos Drumonnd de Andrade, Monteiro Lobato, Duílio
Gomes, Amândio Sobral, Berilo Neves, Mário de Andrade, Orígenes Lessa, João
Guimarães Rosa, Rubens Figueiredo, Victor Giudice, José J. Veiga e Murilo Rubião são
representantes nas letras nacionais daquele realismo irrealista citado há algumas linhas.
Eles fazem parte de um rol de escritores que fizeram literatura fantástica em algum
momento de suas trajetórias, contrariando em alguns casos o gosto do público leitor em
determinadas épocas. Entretanto, apesar dos nomes elencados, dos autores brasileiros
relacionados anteriormente, acredita-se que Murilo Rubião e José J. Veiga tenham sido
os únicos a se dedicarem exclusivamente à construção de narrativas insólitas.
O mineiro Murilo Rubião — o objetivo desta tese — escreveu (e reescreveu
incansavelmente) apenas trinta e quatro contos que trafegam pelo universo insólito. Se
se pode dizer que existe um fantástico nacional moderno, o nome de Murilo Rubião
encabeça a lista dos autores brasileiros que o realizaram. Jorge Schwartz, na introdução
do livro Murilo Rubião: A poética do Uroboro, afirma que o escritor ―nas nossas letras
inaugura um gênero narrativo cuja temática encontra filiação em Machado de Assis e
em Franz Kafka‖ (p. 01). Embora o escritor só tenha tido conhecimento do autor de
Metamorfose quando já havia escrito e publicado suas primeiras narrativas, pode-se
observar em Murilo Rubião uma veia fantástica que remete àquela realizada fora das
letras nacionais:
Murilo faz figura de inaugurador, entre nós, de uma nova tendência da
literatura fantástica, que rompe os padrões do realismo tradicional e só
encontra antecedentes ou parentesco fora de nosso âmbito literário, com a
obra de Kafka e dos pós-kafkianos. Uma afinidade logo percebida por Álvaro
Lins, que soube lê-lo compreensivamente no momento de sua estreia, embora
Murilo, àquela altura, desconhecesse Kafka (ARRIGUCCI, 2001, p. 145).
Murilo Rubião inaugura uma nova tendência fantástica na literatura brasileira
porque, como já se mencionou anteriormente, não fazia parte da tradição literária no
Brasil o mundo fantasioso, caótico, absurdo, insólito e surreal das narrativas do escritor
mineiro. É verdade que escritores como Cornélio Penna e Aníbal Machado também
tenham se aventurado por tais caminhos. Contudo, segundo Davi Arrigucci Jr., a arte de
Cornélio Penna
brasileiros tenham pouco da gratuidade que dá asas à obra de arte; e, ao contrário, muito da fidelidade
documentária ou sentimental, que vincula à experiência bruta‖ (CANDIDO, 1981, p. 27).
22
tem traços marcantes de um remanescente do Simbolismo, que incorpora a
tradição da literatura gótica e cria obras em que o clima de mistério é mais
importante do que a plausibilidade em função do real. Pelo caráter estático,
revela pendor para a composição pictórica, em detrimento do movimento
narrativo, de modo que a força expressiva recai sobre imagens emblemáticas,
de projeção alegórica (ibidem, p. 143 – 144).
E no caso de Aníbal Machado o insólito
não supõe uma quebra da moldura verossímil do realismo. É claramente um
fator poético, de invenção mitopoética, funcionando como pedra de toque de uma verdade oculta sob a aparência do hábito cotidiano, resguardado pelo
senso comum (ibidem, p. 144).
Como é possível perceber nas duas citações, as narrativas dos respectivos
escritores se diferenciam das de Murilo Rubião porque em Murilo — como, aliás, se
tentará mostrar mais adiante — há uma banalização do elemento insólito de tal forma
que o fantástico e o real tornam-se faces de uma mesma moeda. O sentimento de
estranhamento diante de algumas situações nas quais o leitor é colocado é incorporado
tão logo o mesmo chegue à linha ou ao parágrafo seguinte:
É curioso mesmo como, passado o primeiro momento fatal, em que a gente
verifica que o caso é impossível e às vezes se preocupa dois segundos com
um símbolo, uma alegoria escondida, o que é mais curioso é o forte dom de
impor o caso real, o mesmo dom de um Kafka: a gente não se preocupa mais,
e preso pelo reconto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real
(MORAES, 1995, p. 187).
Parece que o ―mundo muriliano é produto da intenção de um autor que busca a
construção harmoniosa dos elementos insólitos no contexto da realidade habitual,
mediante a paralisação da surpresa‖ (2001, p. 146). Essa busca a que Davi Arrigucci Jr.
se refere pode ser identificada quando o leitor mais habilidoso se vê diante de um
verdadeiro xeque-mate. O ―encurralamento‖ a que leitor, personagem e narrador são
submetidos faz com que a escrita de Murilo torne-se tão enigmática como são suas
epígrafes. Não se pode deixar de mencionar também que a situação final em que o leitor
se encontra na leitura dos contos é fruto de uma busca hiperbolicamente incessante de
elaboração da linguagem. Se de um lado há um escritor que deixou uma obra
numericamente pequena — sem, no entanto, desvincular-lhe a qualidade; por outro
percebe-se um intelectual já preocupado desde o início de sua vida como escritor com a
palavra:
23
Infelizmente, escrever é para mim a pior das torturas. Uma simples carta,
como esta, me custa sangue, suor e um sacrifício imenso. Arranco, de dentro
de mim, as palavras a poder de força e alicates. Por outro lado, a minha
imaginação é fácil, estranhamente fácil. Construo meus ―casos‖ em poucos
segundos. E levo meses para transformá-los em obras literárias (ibidem, p.
40).
Nas diversas cartas que troca com Mário de Andrade, nota-se um sentimento
bastante intensificado do desejo de laboração do discurso poético. Não se pode afirmar
que tal sentimento fosse fruto de uma pressão imposta por ele mesmo ao escrever ou se
era oriundo das exigências do amigo Mário, que em algumas dessas cartas, cobra maior
desenvoltura e acabamento ao texto:
No ―Mágico‖ a escolha da profissão de funcionário público me parece muito
fácil, pouco sutil, pouco ―inventada‖ e mesmo banal. É uma alusão muito por
demais conhecida. O sarcasmo, a dor-de-corno da vida enfraquece muito,
sem renovar em nada o caso ―funcionário público‖. É humorismo, é antes
graçola em que qualquer Joel Silveira caia (ibidem, p. 33).
Por fim, é esse Murilo Rubião que se tentará estudar mais adiante. O Murilo
que inaugura nas letras nacionais um fantástico moderno e que — diferentemente do
que postulou Todorov e outros que seguiram a linha estruturalista de pensamento —
usou sua insegurança e suas dificuldades com a palavra como ferramentas para tornar
seu produto final uma verdadeira obra de arte. Uma obra de arte tão complexa e singular
que para melhor analisá-la será acrescida à abordagem literária uma abordagem também
filosófica existencialista, seguindo os padrões do que Jean Paul Sartre denominou como
tal. Isso não quer dizer que tudo o que foi considerado por outros estudiosos do assunto
será deixado de lado. Muito pelo contrário. A seguir, procurar-se-á fazer um
mapeamento de alguns autores que estudaram o fantástico e as suas respectivas
abordagens. Contudo, como já se mencionou anteriormente, o viés, o caminho, o norte
que se desejará seguir nesta tese será o enfoque existencialista que se pode — ou não —
perceber nas narrativas de Murilo Rubião.
24
2. Teorizando sobre o fantástico
É reconhecidamente inegável que a teoria de Tzvetan Todorov sobre o
fantástico — como gênero textual — é considerada uma das principais referências
relativas ao tema. Todavia, nota-se mesmo em sua teoria a utilização de algumas ideias
levantadas por alguns de seus antecessores. Segundo Remo Ceserani, Todorov
―lembrava as definições dadas pelo filósofo (...) Vladimir Sergeevic Solov‘ëv, pelos
especialistas franceses Castex, Caillois e Vax‖ (CESERANI, 2006, p. 45). Ora, não se
pretende fazer um levantamento dos conceitos desses e de outros estudiosos anteriores a
Todorov, mas esse dado torna-se importante no contexto da tese para demonstrar que os
estudos literários se completam e, mesmo aqueles que em algum ponto divergem de
uma determinada acepção crítico-literária, servem como referência opositiva à análise,
enriquecendo o trabalho e as discussões. Por esse motivo, acredita-se que ter como
ponto de partida aquilo que Todorov procurou definir como fantástico é satisfatório.
2.1. O fantástico como gênero textual
No livro As estruturas narrativas, Todorov apresenta a arquitetura da narrativa
fantástica como algo pensado e elaborado com um único e preciso propósito: provocar a
hesitação no leitor implícito7; uma hesitação sentida também pelo personagem que
vivencia a experiência insólita. Ele considera que esse sentimento — levado até ao fim
da história — é o elemento fundamental para que o fantástico se instaure:
Primeiro, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de pessoas vivas e a hesitar entre uma
explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
evocados. Em seguida, essa hesitação deve ser igualmente sentida por uma personagem; desse modo, o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a uma
personagem e ao mesmo tempo a hesitação se acha representada e se torna
um dos temas da obra... (TODOROV, 1979, p. 151-152)
7 Wolfgang Iser, no livro O Ato de Leitura, considera que o leitor implìcito ―encarna todas as
predisposições necessárias para que a obra literária exerça seu efeito — predisposições fornecidas, não
por uma realidade empírica exterior, mas pelo próprio texto. Consequentemente, as raízes do leitor
implícito como conceito são implantadas firmemente na estrutura do texto; trata-se de uma construção e
não é em absoluto identificável com nenhum leitor real‖ (1976, p. 36).
25
É claro que essa definição sofreu — e ainda tem sofrido — alguns ataques,
pois acreditar que um único comportamento tão subjetivo e, portanto, tão abstratamente
emotivo seja o responsável pela concretização de uma estrutura tão complexa quanto à
fantástica, poderia deixar de fora textos que não se adequassem aos modelos
todorovianos. Nesse sentido, Ceserani afirma que a definição de Todorov ―foi acusada
de ser abstrata demais, ou restritiva demais, ou ainda simples demais‖ (op. cit. p. 49).
Além da hesitação, o estruturalista acredita que há outros indícios espalhados
na narrativa que direcionam o discurso para o fantástico. Para ele, um narrador
autodiegético8, um leitor implícito, os modalizadores e o uso reiterado do imperfeito e
de certos sinais de pontuação são elementos que associados à hesitação configuram o
fantástico.
Certamente, essa teoria não seria a mais indicada para promover uma análise
dos contos de Murilo Rubião, da mesma forma como não fora para os de Kafka. Há dois
motivos básicos que o próprio Todorov deixa transparecer nas entrelinhas. O primeiro é
porque de acordo com ele ―o fantástico teve uma vida relativamente breve. Apareceu de
maneira sistemática no fim do século XVIII‖ (1979, p. 164), o que excluiria por
completo as chances de o escritor mineiro poder ser considerado um representante
daquela literatura; e o segundo motivo, relativo à narrativa kafkaniana e por extensão à
de Murilo Rubião, é porque
Se abordarmos esta narrativa com as categorias anteriormente elaboradas,
vemos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais.
(...), o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações
indiretas, como o ponto mais alto de uma gradação: ele está contido em toda
primeira fase. (...) Qualquer hesitação torna-se de imediato inútil
(TODOROV, 2008, op. cit., p. 179).
À maneira de um Kafka, nas narrativas de Murilo nota-se que os elementos
enumerados por Todorov não se fazem integralmente presentes na teia textual. Nele, os
acontecimentos estranhos não surgem como uma forma de romper a noção de equilíbrio
inicial para em seguida restaurar um equilíbrio outro. Eles surgem e são banalizados na
própria narrativa a tal ponto que o fantástico torna-se algo pertencente àquela realidade;
o real torna-se a exceção, o incomum, o inabitual. Nas palavras de Jean Paul Sartre, ―o
8 ―Nas histórias fantásticas o narrador diz habitualmente ―eu‖: é um fato empìrico que se pode verificar
facilmente‖ (ibidem, p. 90) e ―o narrador representado convém, pois, perfeitamente ao fantástico. Ele é
preferível à simples personagem, que pode facilmente mentir‖ (ibidem, p. 91).
26
homem ―normal‖ é precisamente o ser fantástico; o fantástico torna-se a regra, não a
exceção‖ (2005, p. 181).
Outro nome que figura no rol dos estudos fantásticos é o de Filipe Furtado. O
autor português constrói uma base teórica sobre a narrativa fantástica que, em alguns
momentos, corrobora as ideias de Todorov e, em outros, se distancia por demais das
ideias de seu antecessor.
No livro A construção do fantástico na narrativa, no qual o fantástico é
estudado como gênero9, Furtado primeiramente questiona a importância dada aos
chamados ―reflexos emocionais que a obra possa vir provocar no destinatário da
enunciação‖ (FURTADO, 1980, p. 10), colocando em segundo plano o papel do
receptor do enunciado. Embora o autor reconheça a importância dos estudos
todorovianos, já no início do primeiro capítulo observa-se que ele rejeita a ideia de que
o fantástico está diretamente relacionado com o sentimento de hesitação. Para Furtado,
o fantástico é construído a partir do momento em que se instaura a ambiguidade na
narrativa. E esta, por sua vez, surge quando fenômenos metaempíricos abalam a noção
de realidade que se construiu no decorrer dela, introduzindo novas [ou outras]
possibilidades.
Outro aspecto importante para Furtado é o fato de que no fantástico sempre
haverá uma luta entre seres ―naturais bons‖ e ―seres extranaturais‖ maus. Segundo o
autor, ―só o sobrenatural negativo convém à construção do Fantástico, pois só através
dele se realiza inteiramente o mundo alucinante cuja confrontação com um sistema de
natureza de aparência normal a narrativa do gênero tem de encenar‖ (ibidem, p. 22). No
entanto, por outro lado,
o sobrenatural religioso positivo não pode assumir uma posição dominante no
conjunto da temática de qualquer narrativa fantástica, pois a fenomenologia
metaempírica propícia ao gênero deverá ser completamente alheia à
experiência física ou psíquica do destinatário da enunciação... (ibidem, p. 25)
Por isso, o elemento insólito é comum às narrativas fantásticas e o embate entre
os fenômenos empíricos e os metaempíricos ou entre o sobrenatural positivo e o
negativo — protagonizado sempre por forças maléficas — representa, na narrativa, a
9 Embora o autor tenha considerado o fantástico como um gênero inicialmente, já no referido livro deixa
transparecer a ideia de que o fantástico também pode ser visto como um modo discursivo, quando cita no
desenrolar de seu estudo termos como ―discurso do metaempìrico‖, ―processos discursivos‖,
―modalidades organizadas‖, etc. Finalmente, essa outra acepção do autor fica melhor evidenciada no E-
Dicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, disponibilizado em
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=listalpha&alpha=f&Itemid=2.
27
antinomia temática do discurso fantástico. Resultante dessa tensão entre tal embate
instaura-se a ambiguidade que passa a estar representada na narrativa. Para Filipe
Furtado, ela só existe no fantástico:
É, portanto, a criação e, sobretudo, a permanência da ambiguidade ao longo
da narrativa que principalmente distingue o fantástico dos dois gêneros que
lhe são contíguos, até porque, noutros planos, as divergências entre eles são
quase sempre bem menos profundas (ibidem, p. 40).
Por fim, além desses pontos, Furtado acredita que o narrador homodiegético é
o que melhor se adéqua à narrativa fantástica; e, ao invés de um leitor implícito, há um
narratário10
. Todos esses elementos são emoldurados pela influência que o espaço na
narrativa exerce sobre as personagens. Para ele, o espaço é híbrido. Normalmente, a
narrativa inicia em um ambiente normal e termina em um espaço perturbador ou
alterado ou, ainda, transformado negativamente pelas forças sobrenaturais negativas:
torna-se óbvio que um ambiente demasiado anormal ou delirante, por não
contrastar convenientemente com a manifestação sobrenatural, impede o
desenvolvimento da ambiguidade e tende a anular a verossimilhança da
intriga (ibidem, p. 125).
Essa questão é bastante representativa, pois interfere até mesmo na noção de
equilíbrio representado na narrativa. É através da alteração entre um e outro ambiente
que se amenizam ou se enfatizam as ocorrências insólitas. Se esse hibridismo não
existir, a narrativa estará submersa em um universo normal e linear ou caótico e
alucinado; portanto, estranho. Filipe Furtado afirma que
Esse emprego alternado de cenários permite reequilibrar a construção
fantástica sempre que se torne necessário corrigir o caráter demasiado
insólito ou demasiado quotidiano que acontecimentos ou personagens podem
assumir, conferindo credibilidade à ação e mantendo sempre o grau
conveniente de indecisão nas eventuais leituras a que o texto seja submetido (ibidem, p. 125-126).
É claro que, quando se fala em Murilo Rubião, nota-se que tais ideias ora se
adéquam, ora são impraticáveis. Um dos traços mais comuns às narrativas de Murilo é
justamente o caos controlado, o insólito absurdo. Nesse sentido, o cenário não surge
diante do leitor em pleno equilíbrio e depois sofre abruptamente uma inversão,
10 Termo e conceito correlato do termo e conceito de narrador, o narratário constitui presentemente uma
figura de contornos bem definidos no domínio da narratologia. (...); o narratário é uma entidade fictícia,
um ―ser de papel‖ (REIS, 2002, p. 267).
28
instaurando-se um desequilíbrio perturbador. O que incomoda é justamente o fato de o
insólito se manifestar imediatamente ao leitor nas primeiras linhas do conto como se
não o fosse. Ora, no decorrer da leitura o leitor é levado, em pleno voo às cegas, a trazer
consigo a certeza de estar em um ambiente absurdo — muitas vezes habitado por seres
incomuns, mas plausíveis por sua dimensão humanizada. Veja que em Murilo não se
fala em poética da incerteza, em ambiguidade ou em hesitação. O fantástico nele surge
na certeza de se estar a caminhar por um universo insólito, mas ao mesmo tempo
aceitável. Tecendo um comentário sobre a narrativa de Murilo Rubião e de José J.
Veiga, Alfredo Bosi, no livro O conto brasileiro contemporâneo, diz que
O fantástico irrompe, nestes, como o intruso no ritmo cotidiano; e o evento
novo, que poderia soar apenas imprevisto e aleatório, passa a exercer, na
estrutura profunda da trama, a função de revelador de um processo inexorável
na vida de um grupo (―A Usina atrás do morro‖, de Jose J. Veiga) ou na vida
de um homem (―A Flor de Vidro‖, de Murilo Rubião). (2006, p. 14).
2.2. A narrativa fantástica: novas contribuições
As ideias defendidas por Todorov e por Furtado ajudaram a perceber o
fantástico em algumas especificidades. No entanto, alguns autores consideraram o
fantástico sob outro olhar. Nesse rol, estão, por exemplo, Remo Ceserani, Irlemar
Chiampi e Irène Bessière, que acreditam que não se deve falar em gênero fantástico,
mas sim em ―modo fantástico‖ (CESERANI, 2006, p. 67). Dessa forma, eles amenizam
as questões que tanto Todorov quanto Furtado não resolveram inicialmente, apesar de
terem contribuído com os estudos literários.
Contrariamente ao que se tem percebido na terminologia empregada pelos
estudiosos elencados até o presente momento, Remo Ceserani, no livro intitulado “O
fantástico”, utiliza o termo ―modo‖ para referir-se ao fantástico. O autor não considera
esse tipo de narrativa como um gênero, mas sim como um modo literário. Segundo ele,
o fantástico surge de preferência considerado não como gênero, mas como
―modo‖ literário, que teve raìzes históricas precisas e se situou
historicamente em alguns gêneros e subgêneros, mas que pôde ser utilizado (...) em obras pertencentes a gêneros muito diversos (ibidem, p. 12).
O modo a que ele se refere pode ser encontrado com certa facilidade nos
diversos gêneros literários. Para ele, ―em obras de cunho mimético-realista, aventuresco,
29
patético-sentimental, fabuloso, cômico-carnavalesco, entre outros (ibidem, p. 12)‖ não é
difícil encontrar alguns elementos que também se fazem presente na narrativa fantástica.
Segundo Vitor Manuel de Aguiar e Silva, no livro Teoria da Literatura,
Os modos literários representam, por um lado a nível da forma de expressão,
possibilidades ou virtualidades transtemporais da enunciação e do discurso
(...) e, por outra parte, a nível da forma do conteúdo, representam
configurações semântico-pragmáticas constantes que promanam de atitudes substancialmente invariáveis do homem perante o universo, perante a vida e
perante a si próprio. (...) Os modos literários, na sua invariância, articulam-se
polimorficamente com os textos literários concretos e individualizados pela
mediação dos gêneros literários (1984, p. 389 – 390).
Como é possível perceber na definição acima, nota-se que o texto literário é
capaz de proporcionar a criação de possibilidades inimagináveis, incomuns ou absurdas;
através dele o indivíduo pode ter contato com ―realidades‖ incômodas e, às vezes,
insolitamente estranhas. No âmbito da diegese, o modo fantástico cria novas e
inquietantes realidades nas quais o leitor se vê diante da possibilidade de experimentar
temas e situações que, segundo as convenções do universo empírico, são impossíveis,
irreais ou sobrenaturais. É nesse sentido que se pode deduzir a significação dada à
expressão ―efeito fantástico‖ (p. 65). Ao entrar em contato com esse universo, o leitor
percebe esse efeito no ato da leitura.
Ceserani considera, ainda, que o modo fantástico também elege a primeira
pessoa como um dos ―procedimentos narrativos‖ mais importantes (ibidem, p. 68); e, no
tocante à linguagem, o autor diz que ela não é transitiva nem intransitiva. Para ele, há
um terceiro caminho: ―o das potencialidades criativas da linguagem‖ (ibidem, p. 70).
Portanto, as palavras são capazes de criar uma nova e diversa realidade que não estaria
diretamente subordinada a um referente extratextual, ou seja, o texto configura uma
realidade não mimética e se volta para si mesmo, podendo ou não ter como seu referente
um universo do lado de fora dele.
Embora enumere dez procedimentos narrativos e retóricos e elenque oito
sistemas temáticos recorrentes no modo fantástico, Ceserani chama a atenção para o
fato de não haver procedimentos nem temas isoladamente considerados próprios de uma
ou de outra modalidade literária específica. Dessa forma, ele elimina também as
estratégias de construção do gênero segundo a conceituação todoroviana. Para ele, o que
caracteriza e caracterizou o fantástico ―foi uma particular combinação, e um particular
emprego, de estratégias retóricas e narrativas, artifìcios formais e núcleos temáticos‖
(ibidem, p. 67). Esses elementos — que não são exclusivos do fantástico — surgem em
30
um dado momento da narrativa como mecanismo de abertura ou falseamento da própria
noção de realidade, introduzindo-a em um universo em que a racionalidade é ameaçada
pela presença de seres que refletem estrategicamente as transformações por que passa o
homem. Seguindo esse viés, Irène Bessière considera que
El relato fantástico utiliza los marcos sociológicos y las formas del
entendimento que definen los dominios de lo natural e lo sobrenatural, (...)
para organizar la confrontación de los elementos de una civilización relativos
a los fenómenos que escapan a la economia de lo real y de lo surreal, cuya
concepción varía según lás épocas (BESSIÉRE, 2009, p. 85).
Nota-se que o discurso fantástico utiliza-se de elementos que de alguma forma
estão em confrontação com o universo natural. Com ele, o escritor cria uma narrativa
que acena não com novas verdades, mas sim com impossibilidades possíveis, dado o
teor muitas vezes paradoxal dos textos fantásticos. Ratificando os dizeres de Bessière,
Remo Ceserani diz que o modo fantástico ―serviu (...) para alargar as áreas da
―realidade‖ humana interior e exterior que podem ser representadas pela linguagem e
pela literatura e, ainda mais, para colocar em discussão as relações que se constituem,
em cada época histórica‖ (2006, op. cit., p. 68). Ainda de acordo com ela, esse é um
modo discursivo que, pelo fato de lidar com uma temática inquietante e perturbadora —
e por isso mesmo, instigante de investigação — recupera e resgata no leitor — e nesse
caso fala-se no leitor de carne e osso — o gosto por ouvir e contar histórias de aventuras
nas quais o universo sombrio, sobrenatural ou terrorífico deixa de ser algo distante.
O modo fantástico faz-se presente tão logo a ocorrência insólita manifesta-se
na narrativa. Essa manifestação é perceptível através de um trabalho minucioso e
preciso de montagem de um quebra-cabeça — que é próprio do discurso literário —
com a finalidade de construção de um universo particular e absurdo:
El relato fantástico es su propio motor, como todo relato literário; la
descripción semántica no debe asimilarlo ni a testimonios o a meditaciones
sobre los hechos extranaturales, ni al discurso del subconsciente: está
dominado interiormente por una dialéctica de constituición propia del
proyecto creador del autor (op. cit., p. 85).
O elemento insólito torna-se tão ou mais atraente do que essa outra realidade
devido ao modo como o discurso foi estrategicamente montado para provocar tal
comportamento no leitor. Por isso, ainda segundo Bessière, o fantástico recupera a
verdadeira função do imaginário: ―a de difundir a prática e o gosto pela estranheza, de
restabelecer a produção do insólito e de fazê-la passar por uma atividade normal‖ (2009,
31
p. 29), sem, no entanto, deixar de enunciar o fato de que se trata de uma história de
ficção e que, por isso mesmo, o leitor encontra-se à mercê da vontade do criador
daquele ―novo‖ mundo.
Irlemar Chiampi, no livro O Realismo Maravilhoso, vai um pouco mais além
nessa questão, pois, para ela, o gosto pelas narrativas insólitas está diretamente
associado ao sentimento de medo provocado no leitor por aquilo que ela denominou de
―inquietação fìsica‖ (1980, p. 53). Segundo a autora,
O ponto chave para a definição do fantástico é dado pelo princípio
psicológico que lhe garante a percepção do estético; a fantasticidade é,
fundamentalmente, um modo de produzir no leitor uma inquietação física
(dúvida). (...) O medo é entendido aqui em acepção intratextual, ou seja, como um efeito discursivo (um modo de...) elaborado pelo narrador, a partir
de um acontecimento de duplo referencial (natural e sobrenatural) (1980, p.
53).
Subentende-se que Irlermar Chiampi, inicialmente, também considerou o
fantástico como a poética da incerteza. No entanto, embora ela mesma tenha postulado
tal possibilidade, a autora entende que ―a simplicidade dessa fórmula não pretende
escamotear as dificuldades de definição de um gênero transcultural e trans-histórico‖ (p.
53) como é o fantástico. Acredita-se que o ponto principal a que a autora se refere é o
fato de ela considerar o medo como um efeito discursivo próprio daquela narrativa. Ele
aparece encenado no próprio texto. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que ele se faz
presente como uma das estratégias que o escritor constrói para alcançar um determinado
fim: o fantástico como modo literário.
Ana Gonzalez Salvador, no livro Continuidad de lo Fantástico: por una teoria
de la literatura insólita, apresenta uma concepção diferenciada. Para ela, o fantástico
não é gênero e, tampouco, um modo literário. A autora entende por fantástico ―una
produción determinada de lo imaginário que, por su relación com las Artes (pintura,
cine, literatura) entra en el campo de categoria estética‖ (1980, p. 27). Para ela, ―como
el pintor que crea la ilusión de un volumen en una superfície plana gracías a la
perspectiva, también el escritor logra producir una ilusión referencial‖ (p. 89). É,
portanto, uma forma de expressão subjetiva do imaginário de uma dada época que pode
ser vista como tentativa não de representar a realidade empírica, mas de criar uma
possibilidade ilusória da realidade, baseando-se no e transformando o familiar em algo
inesperado, insólito ou absurdo. Sendo assim, o efeito estético do texto é sugerido para
provocar prazer no leitor e não o medo. Da mesma forma que um apreciador de
32
incríveis pinturas sente-se agraciado diante de uma belíssima tela, o leitor sentir-se-á
depois da leitura de uma boa narrativa fantástica.
Para Ana Gonzales, ―La diferencia introducida por la literatura fantástica reside
en el nível del contenido que, según las características observadas, expressa una relación
no mimética com lo que existe en una lucha entre lo que es y lo que no es o no puede
ser‖ (p. 33). Segundo esse prisma, ―lo fantástico será una creación de la imaginación,
irreal, falsa e irracional‖ (p. 32). O universo representado na narrativa não é uma
representação daquele que o leitor conhece — e nem tem obrigação ou pretensão de sê-
lo —, pois a realidade construída pela leitura pode ser apenas um fragmento de uma
totalidade impossível de abarcar de uma só vez, devido ao próprio processo de leitura.
Nesse sentido, a narrativa insólita tende a expressar uma pseudonecessidade de ―abarcar
la realidad em su totalidad‖ (p. 34). Na impossibilidade de fazê-lo, o discurso fantástico
volta-se para si mesmo, levando o leitor a mergulhar muitas vezes em um texto cujo
referente11
intencionalmente se perdeu ou não se constituiu. Essa característica do conto
fantástico cria no leitor o que Ana Gonzalez denominou de ―vacio lógico‖. Em outras
palavras, a aparente falta de sentido dos acontecimentos elencados na narrativa
fantástica, na verdade, no contexto no qual estão inseridos, é uma forma de
representação de um universo próprio, incomum e absurdo que converge para uma
realidade inesperada, pois ―estos relatos admitem pues una lectura literal y no
referencial y nos recuerdan que la realidad del lector no debe proyectarse em la de la
ficción‖ (p. 63). Como se verá mais adiante, no caso de Murilo Rubião há algumas
situações que não se adéquam às narrativas do escritor mineiro. No entanto, no
momento propício tais situações serão apontadas.
A autora, assim como Todorov, considera que ―el cuento parece ser el modo de
enunciación ideal para lo fantástico‖ (p. 43). Ela acredita que os relatos curtos tendem a
manter a tensão criada pelo discurso literário no tempo necessário para a constituição do
fantástico. No entanto, em alguns momentos, algumas ideias da autora também remetem
ao existencialismo sartreano, pois, segundo ela, assim como as artes representativas, o
discurso fantástico é construído também com o intuito de levar o homem a expressar
sua condição de estar no mundo. Ratificando esse pensamento, Ana Gonzalez considera
que o conto fantástico realiza ―el eterno deseo humano, capital y siempre parcialmente
11 Para Ana Gonzalez, ―se llama referente a lo que el signo linguìstico remite en la realidad extre-
linguistica y no debe ser confundido con un dado inmediato de la realidad. (...) una palabra o un discurso
pueden referirse a una noción, un objeto o una situación inexistentes‖ (p. 64).
33
frustrado, de expressar lo que es‖ (p. 29). De certa forma, Sartre sugere com a teoria
existencialista que o único ser realmente fantástico na modernidade é o próprio homem
com suas questões, daí o caráter essencialmente humano dos personagens que compõem
o discurso ficcional fantástico do século XX.
No livro O insólito em Guimarães Rosa e Borges, Lenira Marques Covizzi —
outra estudiosa do tema — salienta a ideia de que a narrativa fantástica moderna encena
um mundo em crise, uma ―crise de valores porque a realidade convencionada, seus
conceitos e representações não são mais aceitos sem dúvida‖ (1978, p. 27). Esse
sentimento é responsável pela instauração da ―exceção no cotidiano‖ (p. 25) e pela
sensação de um alto grau de estranheza na literatura. Embora o século XX tenha sido
marcado pelas grandes ―conquistas‖ tecnológicas, nota-se que o cidadão é bombardeado
por uma gama de situações diárias que o frustram ou o deixam impossibilitado de
solucionar questões que vão além do universo táctil, perceptível e cognoscível. Segundo
a autora, é justamente nesse estado de crise e caos que a literatura lançará mão do
imaginário, do insólito: ―nesse quadro, a presença da palavra crise era inevitável. E um
mundo em crise é um mundo não sólito, tanto no plano sociológico-psicológico, quanto
no da expressão artìstica‖ (p. 26). Ora, considerando essa nova roupagem do momento
social, histórico, cultural e artístico, a literatura insólita surge como uma das formas de
expressar um universo imaginário cultivado e inflado por uma postura do homem frente
às novas percepções que possui de sua existência e à realidade. Nesse sentido, pode-se
aventar que essa forma de perceber a insurgência do insólito na literatura do século XX
alia-se de certa forma à teoria de Sartre, uma vez que, para o filósofo, o fantástico hoje
tende para a sondagem dos aspectos existenciais do homem moderno; e como a própria
autora considera, nessa nova literatura insólita ―nota-se a plataforma do pensamento
existencialista como princìpio narrativo‖ (p. 54).
Lenira considera que a literatura insólita moderna possui uma peculiaridade
que é própria do momento atual: a literatura tem deixado de ser apenas uma forma
documental da realidade. Aliada ao elemento estranho predominante na narrativa
insólita, percebe-se uma linguagem que critica o próprio fazer poético. O discurso
fantástico volta-se para si numa espécie de metalinguagem, construindo, de um modo
singular, uma referencialidade paradoxal, ou seja, uma que não aponta para o lado de
fora do texto, mas para a própria linguagem que o constitui. Isso ocorre porque ele ―não
se volta mais especificamente para o referente, para o desenvolvimento de uma ação ou
problema‖ (p. 29). Nesse sentido, o insólito surge também como um discurso que reflete
34
os paradoxos das convenções. Por isso a autora considera que a estranheza própria do
insólito ―existe num novo nível porque desborda aquilo que era considerado seu limite –
a pura ficção – para exercer uma função crìtica‖ (p. 27). É claro que não se deve
entender o termo ―crìtica‖ com uma conotação panfletária, pois para Covizzi
os elementos do mundo em crise são reelaborados ficcionalmente, resultando
em utopias, em estruturações de sociedades com base em mitos seculares, em
grande dose de ironia onde fica implícita a sua crítica à realidade
transfigurada (p. 57).
Nota-se que, segundo a autora, o discurso insólito traz consigo uma realidade
utópica e transformada. E é justamente essa nova realidade que configura a crítica a que
ela se refere. Ora, a reelaboração desse mundo caótico segue os padrões de uma
narrativa absurda e incômoda que, por sua vez, converge para um discurso literário com
elevado grau de estranheza, buscando representar a realidade transfigurada em algo
muitas vezes irreconhecível através de uma linguagem voltada para si mesma enquanto
forma emblemática do fazer poético. É nesse sentido que Lenira Marques Covizzi
reconhece a metalinguagem no relato fantástico. Para ela, a linguagem assume tal
dimensão ao representar um universo caótico, colocado em relação de absurdidade com
a própria noção de realidade do leitor. Sendo assim, o relato literário absurdo é um
espelho do universo que circunda aquela narrativa e, por isso, é uma crítica a si mesmo.
No livro A ameaça do fantástico: aproximações teóricas, há momentos em que
David Roas considera o fantástico como um gênero: ―a literatura fantástica é o único
gênero literário que não pode funcionar sem a presença do sobrenatural‖ (2014, p. 31),
―precisamos colocar a história narrada em contato com o âmbito do real extratextual
para determinar se uma narrativa pertence ao gênero‖ (p. 45), ―a primeira manifestação
literária do gênero fantástico foi o romance gótico inglês‖ (p. 48) e ―A literatura
fantástica torna-se, assim, um gênero profundamente subversivo‖ (p. 56); e em outros
momentos, o autor entende que o fantástico pode ser o produto de um trabalho intenso
com a linguagem e que, portanto, deveria ser interpretado como um modo discursivo
que busca construir o efeito de uma realidade possível: ―a condição indispensável para
que se produza o efeito fantástico é a presença de um fenômeno sobrenatural‖ (p. 30),
―poderìamos pensar o fantástico como uma espécie de hiper-realismo‖ (p. 53), ―o
fantástico é um modo narrativo que provém do código realista‖ (p. 54), ―a realidade é
vista como uma composição de construtos tão ficcionais quanto a própria literatura‖ (p.
35
87) e ―O discurso fantástico é, como alerta Roberto Reis, um discurso em relação
intertextual constante com esse outro discurso que é a realidade‖ (p. 121).
Embora trabalhe com as possibilidades elencadas no parágrafo anterior, é
visível nos estudos de David Roas uma importante contribuição para o entendimento do
fantástico na atualidade. Trafegando pelos dois caminhos – o do gênero e o do modo ou
discurso literário – ele oferece uma visão que une as contribuições de pesquisadores
mais tradicionais com outros mais contemporâneos.
Segundo o autor, o fantástico necessita do elemento sobrenatural instaurado em
um espaço semelhante àquele em que está o leitor. O surgimento desse elemento
transformará a noção de estabilidade do mundo real em algo incômodo e\ou perturbador
e instaurará o fantástico, provocando questionamentos ou dúvidas relativas àquela
realidade, concebida como uma nova possibilidade no âmbito diegético. É claro que
partindo desse pressuposto três pontos importantes devem ser observados. O primeiro
deles é que o termo sobrenatural não se refere somente a histórias de fantasmas ou a
coisas desse tipo. Na verdade, sobrenatural é tudo aquilo que ―transgride as leis que
organizam o mundo real‖ (ibidem, p. 31). Qualquer acontecimento insólito que surge na
narrativa, perturbando o equilíbrio e a estabilidade do que o leitor considera como real
ou que esteja além de uma ideia de possível convencionado, poderá ser considerado
como tal. O segundo ponto que merece destaque está relacionado ao conceito de
realidade. Para o autor, a realidade do texto literário fantástico é ―uma construção
fictìcia, uma simples invenção‖ (p. 69) que não tem necessariamente a intenção de
representar ou reproduzir o real extraliterário, pois ―no mundo pós-moderno não há
realidade, e sim simulacro‖ (p. 88). É por isso que David Roas considera a
verossimilhança como uma ―necessidade construtiva necessária para o desenvolvimento
satisfatório da narrativa‖ (p. 52). Nesse sentido, o texto dialoga com o leitor, levando-o
a conferir, nesta outra realidade, algo que remeta a dele. A constatação da proximidade
ou do distanciamento gera o sentimento de perturbação diante da narrativa. Dessa
forma, chega-se finalmente ao terceiro ponto. Se se pensar no sobrenatural e numa
simulação de realidade, notar-se-á a não referencialidade da narrativa fantástica.
Considerando que o ―fantástico supõe, portanto, o desajuste entre o referencial literário
e o linguìstico‖ (p. 56), o leitor terá diante de si uma ação ambientada em um espaço
que remete a algo semelhante ou muito próximo ao seu, mas que na verdade é apenas
uma construção imaginária, um simulacro. Acredita-se que o incômodo ou a inquietude
do leitor diante desse tipo de narrativa surja justamente pelo fato de a mesma – embora
36
possa ser considerada uma ―realidade virtual‖ –, às vezes, se aproximar do mundo
socialmente convencionado por ele. Por isso, para David Roas,
a narrativa pós-moderna rejeita o contrato mimético (cujo ponto de
referência é a realidade) e se manifesta como uma entidade
autossuficiente que não requer a confirmação de um mundo exterior (―real‖) para existir e funcionar. (...)
A obra literária é contemplada então como um experimento verbal
sem nenhuma relação com a realidade exterior ao universo linguístico (p. 88).
Nota-se nas palavras de Roas um aproveitamento do pensamento de Antonio
Candido quando este discorre sobre o real na literatura. Para ele, ―não há literatura sem
fuga ao real‖ (CANDIDO, 1981, p. 27). Essa fuga faz que o escritor seja levado a
construir algo com aparência de real, mas não necessariamente ele, o real. Por isso,
Antônio Candido considera que a realidade representada no texto literário goza de
autonomia e liberdade: ―uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula
que obteve para plasmar elementos não-literários: impressões, paixões, ideias, fatos,
acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador‖ (p. 34). E, claro, esse ―ato
criador‖ não está, necessariamente, amalgamado a um contrato mimético cuja cláusula
predominante seja a realidade, mas sim, uma possível, outra ou uma pseudorealidade.
Como se pode notar com certa facilidade, a discussão sobre o tema é
aparentemente infindável. Seja como gênero literário, categoria estética, modo
discursivo ou efeito discursivo, o fantástico ainda tem provocado muitos embates
teóricos. Para os leitores desse tipo de texto — que a cada ano que passa se tornam mais
ávidos por novas narrativas e eventos relacionados ao tema — essa discussão também
tem proporcionado a percepção de uma literatura menos comprometida com o real
empírico e que trafega com naturalidade por caminhos completamente opostos à
literatura documental.
Neste subcapítulo, foram citados alguns nomes de pesquisadores e estudiosos
que contribuíram em algum momento e de alguma forma com os estudos sobre o
fantástico na atualidade. Contudo, por outro lado, é sabido que muitos outros poderiam
figurar ao lado dos nomes aqui elencados. No entanto, se faz necessária uma pausa
nessas questões teóricas para que o trabalho siga seu curso normal. Por isso, no próximo
subcapítulo, será feita uma pequena e singela menção à abordagem que Sigmund Freud
faz sobre o estranho e, em seguida, será apresentada a teoria existencialista de Jean Paul
37
Sartre. A primeira poderá ser usada para complementar, em alguns momentos, questões
não resolvidas pela análise filosófica. A segunda servirá de base para a análise das
narrativas de Murilo Rubião, quando assim for possível, pois como já fora sinalizado
nas páginas anteriores, os escritos de Murilo Rubião não se encaixam num modelo
teórico tão perfeitamente delineável.
2.3. Sigmund Freud e o Estranho
Antes de tudo, acredita-se que é importante explicar o motivo da escolha de um
artigo que discorre sobre o Estranho – com uma visão psicanalítica do mesmo – em uma
tese que tem como temática principal as narrativas fantásticas de Murilo Rubião,
focadas sob a óptica sartriana.
Uma possível explicação para tal escolha é o fato de o autor apresentar
algumas situações que, mesmo de forma indireta, deixam transparecer a noção que o
psicanalista tinha do discurso poético. Embora em nenhum momento do artigo ele se
refira ao fantástico como gênero, notam-se alguns aspectos interessantes em sua teoria
justamente pelo fato de Freud apresentar outra [e possível] interpretação para a inserção
do insólito nas narrativas fantásticas do Pós-Romantismo. Outro ponto que merece um
pouco de atenção é que Sartre busca uma abordagem do texto literário que não se esgota
apenas na construção deste. Olhando por esse prisma e aceitando tal possibilidade da
função do texto literário, constata-se que literatura, filosofia e psicologia podem
caminhar juntas para contribuírem entre si e para o enriquecimento dos estudos
literários, uma vez que todas essas áreas possuem um mesmo elemento em comum: o
homem.
Inicialmente, a primeira questão bem aprofundada pelo psicanalista está
relacionada à etimologia do termo. Para ele, o vocábulo ―estranho‖ por si só carrega
uma variada gama de possíveis interpretações. De forma sucinta e resumida, o que
parece comum é o fato de esse tema estar relacionado a tudo que é assustador,
amedrontador, insólito, incomum, etc. Sobre tal aspecto, Freud diz que o estranho
Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca
medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num
sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que
desperta o medo em geral (FREUD, 1976, p. 275-276).
38
Como se pode observar, essa definição — um tanto quanto simples para a
questão — seria o que um leitor ou pesquisador mediano poderiam aventar sobre o
tema. No entanto, para o psicanalista, o problema da definição do termo vai além do
senso comum. Na verdade, em seu estudo, ele demonstra que o caráter assustador do
elemento ou fato estranho ocorre não pela estranheza de uma dada ocorrência, mas sim
pela familiaridade desta. Segundo ele, ―o estranho é aquela categoria do assustador que
remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar‖ (FREUD, 1976, p. 277). A
professora Nadiá Paulo Ferreira, em um artigo intitulado ―O insólito é o estranho‖,
ratifica a tese de Freud ao comentar que
Fantástico, realismo mágico e terror são os significantes mais usados pela
teoria da literatura para classificar as obras literárias que elegem o estranho
como tema. Essa classificação não entra em contradição com a abordagem
freudiana desde que façamos a seguinte retificação: o estranho se caracteriza
pela transformação do familiar em assustador (FERREIRA, 2009, p. 109).
É claro que, pensando assim, a delimitação do termo segue os parâmetros da
psicanálise e não os da literatura. No entanto, não seria um trabalho por demais árduo a
aplicação dessa postulação teórica a algumas narrativas murilianas, uma vez que o
escritor mineiro constrói — à primeira vista — um universo absurdo; e esse universo é
visto dessa forma porque o leitor o reconhece, muitas vezes, como algo semelhante ao
seu; daí advém o aspecto de familiaridade.
Essa forma de pensar o estranho choca-se com a noção que o senso comum
tem. Para Freud, o estranho não é o desconhecido, mas sim algo que por ser / fazer parte
de um universo adormecido no homem – portanto, conhecido e familiar – pode vir a se
manifestar em um determinado momento de sua vida. Para tanto, basta que esse homem
entre em contato com algo incomum que desperte nele alguma sensação de medo,
terror, horror ou pavor. Sobre essa questão, Freud comenta que,
Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo
afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie,
transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre os exemplos de
coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento que
amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o estranho; e deve ser indiferente a
questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente assustador ou
se trazia algum outro afeto (FREUD, 1976, p. 300).
De certa forma, pensando por esse prisma, notar-se-á uma aproximação entre o
existencialismo sartreano – que considera o homem como o único ser realmente
39
fantástico – e a psicanálise freudiana, pois para os dois autores o homem aparece como
elemento central dos acontecimentos. O primeiro dá relevância aos estados de espírito
que assolam o ser moderno; o segundo demonstra que a sensação de estranheza pode
estar relacionada ou a fatores próprios da infância: a castração, a repressão, os medos
próprios daquele período; ou, então, a questões que estejam ligadas às crenças ou a
situações inconscientemente adormecidas:
Nós – ou os nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente
aconteciam. Hoje em dia não mais acreditamos nelas, superamos esses modos
de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas
crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem
de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo
que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do
estranho... (FREUD, 1976, p. 308).
Como se vê, segundo o autor, o estranho pode estar relacionado a alguma
ocorrência passada que, por uma razão qualquer, retorna modificada, subvertida ou não.
Daí advém o caráter familiar, pois, tendo feito parte da existência desse ser em algum
momento de sua vida (ou de seus antepassados), ela apenas retorna ao seu estado de
origem, não como uma situação nova, mas sim, como um despertar inconsciente. Sendo
assim, o conjunto de categorias de coisas estranhas a que se refere o psicanalista é, em
sua maioria, uma manifestação de temores relacionados aos complexos de castração
referentes ao período da infância. Como exemplo singular para demonstração de tais
complexos, ele cita a narrativa de ―O Homem de Areia‖, de E. T. A. Hoffmann, que faz
alusão direta ao medo que a personagem, enquanto criança sente de perder a visão:
Ademais, eu não recomendaria a qualquer oponente da concepção
psicanalítica que escolhesse particularmente essa história do Homem de
Areia, para apoiar o argumento de que a ansiedade em relação aos olhos nada
tem a ver com o complexo de castração. Por que razão, então, colocou
Hoffmann essa ansiedade em relação tão íntima com a morte do pai? E por
que o Homem de Areia aparece sempre como um perturbador do amor?
(ibidem, p. 289 -290).
Outro ponto importante para o psicanalista é a função que o duplo assume no
indivíduo. Tanto na teoria freudiana como na sartriana pode se encontrar referência ao
duplo. Para o psicanalista, ―quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só
pode advir do fato de o duplo ser uma criação que data de um estádio mental muito
primitivo, há muito superado‖ (ibidem, p. 295). Para Freud,
40
Originalmente, o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, uma
enérgica negação do poder da morte, como afirma Rank; e, provavelmente, a
alma imortal foi o primeiro duplo do corpo. Essa invenção do duplicar como
defesa contra a extinção tem sua contraparte na linguagem dos sonhos, que
gosta de representar a castração pela duplicação ou multiplicação de um
símbolo genital. (ibidem, p. 293)
Freud acreditava que a divisão duplicada do ser humano em alma e corpo fazia
parte dos temores que certos povos primitivos desenvolveram em relação à morte,
sempre envolvida em uma atmosfera de mistério e medo. É por esse motivo que,
segundo o psicanalista, muitas religiões criaram a alma como um subterfúgio que daria
ao homem a possibilidade de ser eterno.
Em Sartre, essa referência à ocorrência do duplo no discurso ficcional surge
quando o filósofo afirma que ―o fantástico oferece a imagem invertida da união da alma
e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o da alma‖ (SARTRE, 2005, p.
137). Para ele, o duplo é uma das formas que um escritor tem de manifestar a condição
humana em sua mais profunda caracterização.
Há algumas páginas, foi visto que, segundo Todorov, o gênero fantástico é
instaurado na narrativa pela manutenção da hesitação, que se mantém mesmo quando a
última página do livro é fechada. Para Freud,
É verdade que o escritor cria uma espécie de incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos está conduzindo
pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria
criação. (...) Não se trata aqui, portanto, de uma questão de incerteza
intelectual: sabemos agora que não devemos estar observando o produto da
imaginação de um louco, por trás da qual nós, com a superioridade das
mentes racionais, estamos aptos a detectar a sensata verdade... A teoria da
incerteza intelectual é, assim, incapaz de explicar aquela impressão (FREUD,
1976, p. 288-289).
Ao que parece, o autor considera o sentimento de incerteza irrelevante para a
manutenção da impressão de estranheza. No entanto, ele deixa claro que o leitor ―deve
se curvar à decisão do escritor e considerar o cenário como sendo real, pelo tempo em
que este se colocar em suas mãos‖ (FREUD, 1976, p. 288). Não há incerteza, mas, por
outro lado, deve haver uma identificação entre o leitor e o universo insólito que lhe é
apresentado.
Como se vê, o psicanalista direciona sua teoria para a psique humana. O
estranho, em sua concepção, faz parte de um sentimento de perplexidade diante do
elemento assustador e insólito. Se esse sentimento conduz o leitor a um universo normal
41
ou anormal, verdadeiro ou não-verdadeiro, natural ou sobrenatural, não é tão relevante,
pois a questão que se coloca nesse caso é que essas possibilidades fazem parte da
condição humana em um dado momento de sua existência. Nesse sentido, o sujeito se
vê diante de um vazio que lhe causa estranhamento ou horror, perspectivando sua
própria natureza; e o que se torna estranho nessa natureza é ―o real que (...) emerge das
entranhas do nada para assombrar o homem‖ (FERREIRA, 2009, p. 121).
2.4. O existencialismo de Jean Paul Sartre
Se há um assunto — dentre tantos outros — que não cessa de provocar
discussões e questionamentos nos estudos sobre a literatura insólita contemporânea e de
tempos atrás acerca dos caminhos trilhados por este tipo de narrativa, esse assunto são
os rumos que as histórias fantásticas têm tomado nos últimos anos. É sabido que os
pressupostos teóricos elencados pelos estruturalistas — mais precisamente por Todorov
— como já foi visto, não refletem mais a diversidade de narrativas que ora oscilam entre
um modelo contemporâneo de fantástico e um modelo mais tradicional do gênero. Para
as narrativas insólitas contemporâneas, há estudiosos que acreditam em que o arcabouço
teórico proposto por Jean Paul Sartre sobre o existencialismo seja também mais
pertinente e satisfaça melhor às necessidades e às características dessa literatura pós-
utópica12
. Antes de tudo, porém, é importante levantar alguns pontos emblemáticos
sobre o existencialismo, partindo, primeiramente, de uma breve tentativa de defini-lo.
Segundo o crítico João da Penha:
Tanto quanto uma doutrina filosófica, o existencialismo passou também a ser
identificado como um estilo de vida, uma forma de comportamento, a
designar toda atitude excêntrica, que os meios de comunicação divulgavam com estardalhaço, criando uma autêntica mitologia em torno do movimento e
de seus adeptos (PENHA, 1998, p. 7).
Por esse prisma, nota-se que o termo passou a designar um comportamento
contemplativo daqueles que se desviavam de um padrão consensual e usual. Talvez esse
12 A designação me parece mais precisa que pós-moderno, por dois motivos. Primeiro, porque evita certas
ambiguidades — por exemplo, supor que se trata de um período cujo objetivo é encerrar definitivamente
a modernidade, o pós sugerindo a ruptura radical e não uma redefinição de caminhos. Depois, porque
aponta para a diferença principal entre o imaginário estampado na produção estética, não só a literária, da
primeira metade do século (e um pouco além) daquele que, a partir pelo menos do final dos anos 60,
temos vivenciado. (CARNEIRO, 2005, p. 13).
42
seja um dos motivos por que as ideias de Jean Paul Sartre tenham sido veementemente
combatidas. Os comunistas diziam que as ideias de Sartre incitavam as pessoas a
―permanecerem num quietismo de desespero‖ (SARTRE, 1970, p. 233), adotando uma
postura contemplativa, donde provinha uma filosofia burguesa; o filósofo francês Henri
Léfèbvre chegou ao despropósito de considerar as postulações sartrianas de ―metafìsica
da merda‖ (1998, p. 11); Jacques Maritain classificou-as como ―mìstica do inferno‖
(1998, p. 12); no Brasil, o pensador e crítico Tristão de Athayde afirmava: ―Sartre, sem
dúvida, é detestável‖ (1998, p. 12); o escritor russo llya Ehrenburg tinha desprezo pelas
ideias do filósofo e, por último, até mesmo o papa Pio XII afirmava que o
existencialismo ameaçava ―os fundamentos da fé cristã‖ (1998, p. 12). Com relação a
este último, entende-se a ameaça, pois a ideologia pregada por Sartre era a de um
existencialismo ateu: ―Se o homem primeiramente existe, não sendo nada a princìpio, se
a ideia de Deus é eliminada, se a cada instante o homem tem de escolher aquilo que vai
ser, então só a ele cabe criar os valores sob os quais dirigirá sua vida‖ (1998, p. 46); ou,
ainda: ―O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se
Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência (...) este
ser é o homem‖ (SARTRE, 1987, p. 242).
Se de um lado havia os ateus — Sartre, Heidegger e alguns outros filósofos —,
por outro lado, alguns existencialistas possuíam uma formação cristã: Jaspers, Gabriel
Marcel e Kierkegaard. O filósofo Soren Kierkegaard, por exemplo, via o homem como
único ser singular. Em sua teoria, esse ser apresenta três estágios em sua existência: o
estético, o ético e o religioso. Para ele, o homem que permanecia apenas no estágio
estético condenava-se à total depravação, pois viveria toda sua vida entregando-se a
todos os prazeres e sensações; no ético, o homem é um ser livre, mas ainda cerceado
pelos limites culturais impostos pela sociedade — é o estágio em que o indivíduo tem
consciência de suas falhas. Contudo, somente no estágio religioso o homem conseguiria
uma ―relação com o Absoluto‖ (1998, p. 23). Daí advém o motivo de se considerar que
―a fé tudo pode‖ (p. 24) e que ela está acima dos ―princìpios da razão e da moral‖ (p.
24).
Apesar de toda discordância no que diz respeito às opiniões das diversas
camadas da sociedade daquela época, pode-se aventar que o existencialismo alcançou
grande repercussão no período pós-guerra por uma questão de apego a um novo valor: a
liberdade. Segundo o crítico Jack Reynolds,
43
Existem obviamente muitas razões para esse fenômeno fundamentalmente
filosófico capturar a atenção do público do modo que o existencialismo o fez,
notadamente, a Segunda Guerra Mundial e a ocupação alemã da França, que
intensificaram as preocupações existenciais com liberdade, responsabilidade
e morte. As manifestações literárias do existencialismo também permitiram
que uma maior quantidade de pessoas possuísse ao menos uma compreensão
provisória acerca do que ele significava (REYNOLDS, 2014, p. 13).
O mundo pós-guerra sentenciou o homem a viver na incerteza de suas
conquistas até então. Por isso, uma filosofia que pregou a morte de Deus — num
cenário caótico e no qual Ele não esteve presente — ou uma revalorização do ―eu‖, em
que o homem agora é a sua própria razão de ser; ele existe, — pois ―a existência
precede à essência‖ (SARTRE, 1970, p. 67), foi recebida com certa desconfiança e
rejeição iniciais. Nela, o homem tem o controle sobre sua existência. Para Sartre,
―primeiro o homem existe, depois é; primeiro age e depois define-se a partir de tal ação‖
(1987, p. 61). De acordo com o filósofo, ―a existência precede a essência‖. Dentre os
entes que compõem tal dimensão, apenas o homem é.
Como se pode notar, a filosofia existencialista de Sartre difundia a visão de que
o homem é o único ente que tem condição de compor sua essência. O conjunto de
situações e vivências vai aos poucos consolidando e configurando o ser. Por esse
prisma, percebe-se uma anulação da importância da figura de um Deus e uma afirmação
da autossuficiência de o homem ser capaz de tudo, inclusive de construir sua
liberdade13
. Segundo João da Penha, a liberdade para o existencialismo ―é a capacidade
do indivíduo de decidir sobre sua vida escolhendo-a e por ela se responsabilizando‖
(PENHA, 1998, p.47).
Por um lado, a liberdade absoluta do ser perante a vida constitui uma postura,
muitas vezes, contemplativa da mesma. E foi esse comportamento que deu origem à
associação entre o existencialismo e o modo de vida burguês, uma vez que este podia se
dar ao luxo de ter tal postura. No entanto, por mais irônico que possa parecer, é
justamente esse sentimento que provoca a angústia do homem. A consciência de que
não é possível viver em plena liberdade — no sentido sartreano — faz com que o
indivíduo viva com um profundo sentimento de pessimismo enraizado em si. Por isso,
Sartre afirma que ―o homem é ―por natureza‖, consciência infeliz, sem superação
possìvel do estado de infelicidade‖ (1970, p. 130).
13 Para Sartre, liberdade é a ―possibilidade de dizer não‖. (...) a liberdade é o que precisamente me
estrutura como homem, porque é uma designação específica da própria qualidade de ser consciente, de
poder negar, de transcender (SARTRE, 1970, p. 130).
44
2.5. O existencialismo e a literatura fantástica
Naquele cenário mundial, a nova realidade que se configurou inserira o
sentimento de incerteza na humanidade. Como forma de delineamento desse novo
homem moderno, as expressões artísticas se voltaram para questões da subjetividade
humana. Na literatura fantástica, por exemplo, é possível perceber o (re) aparecimento
de uma poética que privilegia a linguagem em si, em detrimento do elemento
referencial, numa tentativa de sondagem desse novo ser que se construiu. Sendo assim,
não é incorreto afirmar que a crise por que o mundo passou [e passará nos anos
posteriores a 1945] projeta a possibilidade de a narrativa insólita – muitas vezes
impregnada de uma atmosfera absurda – surgir como mecanismo de ratificação daquela
subjetividade.
No rol dessa literatura voltada para o universo imaginário, na qual a
referencialidade é muitas vezes substituída pelo sentimento de absurdidade, Murilo
Rubião é um nome que se destaca com certa amplitude. Primeiro, porque a narrativa
fantástica de Murilo encena um modelo que dificilmente se dobra às interpretações mais
tradicionais do insólito na literatura brasileira; e, em segundo lugar, porque a
perplexidade do leitor ante um universo imaginário, fantástico e absurdo constrói-se a
partir da constatação de que há algo de reconhecível no relato ficcional que tangencia a
realidade e que, embora apresente tal similitude entre este e aquele universo, cria-se
uma realidade virtual, gerando um sentimento de prazer perturbador, oriundo dessa
percepção.
Na teoria sartriana sobre o existencialismo, não há muitas referências ao
fantástico. Na verdade, ele abordou o tema em um artigo que será apresentado em
algumas linhas. No entanto, antes, é salutar evidenciar que, para Sartre, fazer arte é,
incondicionalmente, passear pela irrealidade. Segundo ele, ―a arte é a irrealidade, gera-
se numa intencionalidade do imaginário, desprende-se, pois, da vida real e imediata‖
(1970, p. 166). Para o filósofo, ―a arte é a expressão de uma sensibilidade, de uma visão
de mundo, e como tal intervém no domìnio das relações imediatas‖ (p. 190). Nesse
sentido, abre-se um leque de possibilidades para as artes de forma geral, pois, sendo elas
uma manifestação liberta do pensamento racional14
do homem, só terá fundamento,
motivação e explicação em si mesma. Somente a arte explica a arte.
14 O a-racionalismo da dimensão existencial é apenas um esforço de restituir a tudo a sua autenticidade
original, de nos recuperarmos no limite do estar sentindo, do estar a ver pela primeira vez (ou do repetir,
45
No artigo ―Aminadab, ou o fantástico considerado como uma linguagem‖,
Sartre direciona sua interpretação do fantástico para uma localização espaço-temporal
contemporânea e faz uma abordagem existencialista do mesmo. Pelo que se pode
observar nesse artigo, os aspectos relacionados à construção do discurso literário em si
são deixados de lado. Para ele, o único objeto realmente fantástico é o homem. Não
qualquer espécie de homem, mas aquele que está completamente entregue e integrado
ao mundo que o circunda, um homem que se encontra despojado de quaisquer
sentimentos obscurecedores da sua visão da realidade cotidiana, que, de certa forma,
alcançará reverberações profundas na alma desse ser moderno:
Por uma curiosa contrapartida, o novo humanismo precipita essa evolução:
Blanchot, na esteira de Kafka, não mais se preocupa em contar os feitiços da
matéria; os monstros em carne viva de Dalí certamente lhe parecem um
estereótipo, assim como os castelos assombrados pareciam um estereótipo a
Dalí. Para ele já não há senão um único objeto fantástico: o homem
(SARTRE, 2005, p. 138).
De acordo com Sartre, ―o fantástico oferece a imagem invertida da união da
alma e do corpo: a alma toma o lugar do corpo e o corpo o da alma‖ (ibidem, p. 137).
Tendo em vista essa acepção sobre a narrativa insólita, não seria difícil entender o
porquê de o filósofo considerar Kafka — em especial o Kafka de ―Metamorfose‖ — o
verdadeiro precursor da literatura fantástica moderna, uma vez que, na obra acima
citada, a personagem Gregor Samsa é um belo exemplo deste homem ao avesso,
ofuscado e oprimido tanto no seio familiar quanto no social. Ora, de acordo com o
filósofo, o fantástico adequou-se àquele novo mundo do pós-guerra e, como uma forma
de sondagem do homem que ocupa esse universo, esteve obrigado a se adequar a uma
nova subjetividade. Sobre esse aspecto Sartre diz que
Assim não é necessário recorrer às fadas; as fadas tomadas em si mesmas são
apenas mulheres gentis; o que é fantástico é a natureza quando obedece às
fadas, é a natureza fora do homem e no homem, apreendida como um homem ao avesso (ibidem, p. 137).
Considerando a afirmação de Sartre de que o único objeto fantástico
contemporâneo é o homem, pode-se, então, concluir que a temática principal da
narrativa fantástica para o filósofo é justamente o retorno ao humano. Se nos séculos
anteriores as histórias do gênero estavam repletas de monstros, fantasmas, bruxas,
do recuperar o passado, a sua aparição original) aquilo que endureceu e arrefeceu em ideias (1970, p.
106).
46
duendes ou fadas, na atualidade a encenação é outra. Agora, os elementos que povoam
tais histórias são um reflexo da psique do homem moderno, oprimido por diversos
fatores que o levam a externar sua alma e a refletir sobre sua própria imagem: o corpo
— ―O meu corpo é todo ele, para outro, um centro de significações que me escapam,
porque me não vejo de fora. Eis porque ele é para mim razão de preocupações‖
(SARTRE, 1970, p. 156). Por isso, o filósofo afirma que o fantástico, assim como os
outros discursos literários, passou por um processo de domesticação e renunciou a toda
uma exploração de universos transcendentes para ter como foco primeiro a condição
humana. A esse respeito o autor comenta:
Não é nem necessário nem suficiente retratar o extraordinário para atingir o
fantástico. O acontecimento mais insólito, isolado num mundo governado por
leis, reintegra-se por si mesmo à ordem universal. Se fizerem um cavalo
falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado. Mas se ele persistir em
discursar em meio a árvores imóveis, sobre um solo inerte, eu lhe admitirei o
poder natural de falar. Não verei mais o cavalo, mas o homem disfarçado de
cavalo (SARTRE, 2005, p. 136).
Há, no fragmento acima, dois pontos bastante importantes para a caracterização
desse novo fantástico. O primeiro deles é que, pela situação esboçada, Sartre confirma
sua tese de que ―a essência do fantástico é oferecer a imagem invertida da união da alma
e do corpo‖ (2005, p. 139); imagem esta que assume um caráter mìtico15
. Esta
representa a dimensão de si mesmo para o indivíduo de quem ela é o reflexo e, para o
outro, diagnostica uma perturbadora consciência limitadora da realidade. O segundo
ponto é que o autor exclui, completamente, a figura de um leitor implícito16
. Quando
fala de um eu, percebe-se que ele está se referindo a um leitor real, de carne e osso e,
portanto, deslocado do espaço narrativo e externo ao discurso literário: ―O leitor escapa.
Ele está de fora, de fora com o próprio autor; contempla esses sonhos como
contemplaria uma máquina bem montada, e só perde o pé em raros momentos‖
(SARTRE, 2005, p. 149).
15 O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem
limites formais, mas não substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é
infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de
falar das coisas. Uma árvore é uma árvore. Sim, sem dúvida. Mas uma árvore, dita por Minou Drouet, já
não é exatamente uma árvore, é uma árvore decorada, adaptada a um certo consumo, investida de
complacências literárias, de revoltas, de imagens, em suma, de um uso social que se acrescenta à pura
matéria. (BARTHES, 1989, p. 131 – 132) 16 É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista não este ou aquele leitor em
particular, real, mas uma ―função‖ de leitor, implìcita no texto (do mesmo modo que nele acha-se
implícita a noção do narrador). A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma
precisão com que o estão os movimentos das personagens. (TODOROV, 2008, p. 37)
47
Ainda com relação à caracterização de um fantástico moderno, Sartre assinala a
capacidade de renovação que o mesmo adquiriu com o advento da modernidade.
Nenhum elemento na estrutura do texto é tão importante quanto o sujeito que participa
dos acontecimentos narrados na história. Pelo que se tem visto, pode-se afirmar que a
única situação realmente concreta é que a linguagem alegórica torna-se um elemento
comum ao fantástico existencialista sartreano, pois, utilizando-se desse expediente,
constata-se que as construções metafóricas que compõem o universo da narrativa são,
na verdade, a viabilização de um meio para alcançar um determinado fim, que seria a
imersão do ser concreto e secular [o ser em anverso] no seu próprio eu; e a emersão de
um eu abstrato — ou uma imagem virtual — [o ser em reverso]:
Só que para encontrar lugar no humanismo contemporâneo o fantástico vai se
domesticar tal como os outros gêneros, renunciar à exploração das realidades
transcendentes, resignar-se a transcrever a condição humana. (...) Nada de
súcubos, nada de fantasmas, nada de fontes que choram – há apenas homens,
e o criador do fantástico proclama que se identifica com o objeto fantástico.
Para o homem contemporâneo, o fantástico tornou-se apenas uma maneira
entre cem de fazer refletir sua própria imagem (ibidem, p. 138-139).
E ainda:
Vê-se o procedimento: já que a atividade humana, vista de fora, parece
invertida, Kafka e Blanchot, para nos fazer ver de fora nossa condição sem
recorrer aos anjos, retrataram um mundo ao avesso. Mundo contraditório, onde o espírito se torna matéria, já que os valores aparecem como fatos, onde
a matéria é corroída pelo espírito, já que tudo é fim e meio ao mesmo tempo,
onde, sem deixar de estar dentro, vejo-me de fora (ibidem, p. 146).
Segundo essa teoria, o homem-cavalo (ou o cavalo-homem) é o caminho
utilizado pelo escritor para atingir um fim qualquer que ponha em evidência o mundo
em reverso do ser humano. Ao criar o cavalo falante, o escritor estaria olhando o mundo
do homem em anverso por uma perspectiva em reverso, pois, segundo Sartre, essa
proposital desordem na aparência natural das coisas é uma forma de demonstrar a
verdadeira revolta dos meios contra os fins, própria da narrativa fantástica, uma vez que
o universo representado naquela mensagem (meio) é caracterizado por um conteúdo
(fim) absurdo e incomum. Nesse ―outro‖ universo, ―tudo é fim e meio ao mesmo
tempo‖:
48
No mundo ―em anverso‖, uma mensagem supõe um remetente, um
mensageiro e um destinatário; ela só tem valor de meio: seu conteúdo é que é
seu fim. No mundo ―em reverso‖ o meio se isola e se põe para si: somos
assediados por mensagens sem conteúdo, sem mensageiro ou sem remetente.
Ou, ainda, o fim existe mas o meio vai corroê-lo pouco a pouco (ibidem, p.
141).
É exatamente nesse aspecto que Sartre diz que a produção literária de Kafka –
e também a de Maurice Blanchot – desponta como representativa do fantástico
contemporâneo, pois, ao dar a vida a Gregor, ele utiliza a ficção [= meio] para falar do
mundo interior de um ser, que é cotidiano e cognoscível [= fim]. No entanto, o que se
produz é uma narrativa absurdamente insólita que choca o leitor, em um primeiro
contato, pela percepção de um processo de desconstrução da cômoda realidade em que
ele está. Isso ocorre também porque o espaço narrativo habitado por Gregor é tão real
quanto o que o leitor pode observar ao seu redor. Talvez, por esse motivo, alguns
estudiosos da obra de Murilo Rubião consideram-na bastante influenciada pela de
Kafka. Nas narrativas de Murilo, é possível perceber esse choque entre o mundo
ficcional e o real. Há uma aproximação perturbadora daquele espaço com a noção de
real que o leitor tem. Dessa aproximação, poder-se-ia aventar a possibilidade de a
narrativa fantástica gerar uma terceira realidade, que seria, segundo David Roas, uma
―realidade virtual‖.
Quando o filósofo cita o exemplo de uma história em que a personagem chega
a um restaurante e pede ao garçom um café com creme e, depois de vários impasses,
recebe em sua mesa um tinteiro, ele deixa claro que o leitor não pode dar nenhuma
explicação racional, pois somente agindo dessa forma o fantástico estaria mantido.
Refletindo sobre essa situação, nota-se que o autor, de certa forma, faz referência ao
fantástico todoroviano, quando admite a ideia de que deve haver uma aceitação do
universo representado na narrativa e nenhuma explicação racional deve ser oferecida
aos fatos elencados, mantendo-se a dúvida até o fim desta. Tanto Sartre quanto Todorov
(e Filipe Furtado) acreditam que deve haver uma identificação do leitor com o material
narrado e, também, com o herói, para que o gênero seja mantido até o termo da
narrativa. No entanto, o que parece estar diferentemente subentendido na teoria
existencialista é que o tipo de leitor para Sartre não é o leitor implícito, mas sim o de
carne e osso, um leitor real:
49
Se o leitor puder pensar, ao ler contos desse tipo, que se trata de uma farsa
dos garçons ou de alguma psicose coletiva, teremos perdido a partida. Mas se
soubermos dar-lhe a impressão de que falamos de um mundo onde essas
manifestações insólitas figuram a título de condutas normais, então ele se
achará de golpe mergulhado no seio do fantástico (SARTRE, 2005, p. 140).
Essa questão torna-se importante porque se acredita num trabalho de leitura
que completa o sentido do texto literário; ele [o leitor] é co-participante do processo de
construção do sentido do texto. Segundo Antoine Compagnon, no livro O demônio da
teoria: literatura e senso comum, ―o objeto literário é feito de lacunas, de buracos e de
indeterminações. Em outros termos, o texto instrui e o leitor constrói‖ (2012, p. 147).
As lacunas, os buracos e as indeterminações são preenchidos no ato da leitura, pois
quando o texto é lido cria-se uma expectativa sobre determinada narrativa — ou
acontecimento dela — que é construída pelo repertório que o leitor traz de outras
leituras. Nesse sentido é que Antoine Compagnon sugere que ―o leitor implìcito é uma
construção textual, percebida como uma imposição pelo leitor real; corresponde ao
papel atribuído ao leitor real pelas instruções do texto‖ (2012, p. 148). Sendo assim, é
ele [o implícito] que propõe um modelo de leitura ao leitor real, definindo, muitas
vezes, um ponto de vista que delimitará o(s) sentido(s) do texto.
Nesse ponto, tanto Todorov quanto Sartre percorre caminhos paralelos, uma
vez que ambos reconhecem a importância desse ser (seja implícito ou de carne e osso)
como participante ativo na construção de significações. O filósofo ratifica sua tese
quando diz que ―ninguém pode entrar no mundo fantástico se não se torna fantástico‖
(2005, p. 143). Entendendo-se essa citação como fazendo referência à figura do leitor
que se identifica com o herói da narrativa, ficará fácil perceber que ele estabelece uma
relação entre sua teoria e a de seus antecessores estruturalistas, pois, segundo aqueles,
um dos elementos constitutivos do gênero é justamente essa identificação entre o
destinatário, uma personagem [de preferência o herói] e o universo representado na
história: ―O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das
personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos
acontecimentos narrados‖ (TODOROV, 2008, p. 37). Filipe Furtado completa a questão
dizendo:
uma das formas mais seguras de conduzir o destinatário da enunciação à
incerteza quanto ao teor da ocorrência extranatural consiste em suscitar nele a
identificação com a personagem que melhor reflita a percepção ambígua dessa ocorrência e a consequente perplexidade perante a coexistência das
duas fenomenologias contraditórias que aparentemente a confrontam
(FURTADO, 1980, p. 85).
50
Como se pode observar, as teorias convergem para uma possibilidade de
aproximação, pois, para Sartre, ao que parece, o leitor é um ser comum, real [pessoa de
carne e osso] enquanto, em contrapartida, para os outros dois autores, esse leitor ou é
implícito (Todorov) ou é o destinatário primeiro da enunciação, o narratário17
(Furtado).
No fragmento a seguir, percebe-se mais uma vez que ele faz referência à figura de um
tipo de leitor, mas, pelo contexto de suas palavras, observa-se a referência ao leitor real:
Se estou no avesso de um mundo pelo avesso, tudo me parece direito.
Portanto, se eu habitasse, eu mesmo fantástico, um mundo fantástico, não
poderia de modo algum considerá-lo fantástico: eis o que vai nos ajudar a
entender o desígnio de nossos autores.
Não posso então julgar este mundo, pois meus juízos fazem parte dele. Se o
concebo como uma obra de arte ou como uma relojoaria complicada, é por
meio de noções humanas; e se o declaro, ao contrário, absurdo, é igualmente
por meio de conceitos humanos (SARTRE, 2005, p. 145).
O leitor participa da história enquanto expectador dos acontecimentos e —
dependendo do seu grau de envolvimento com o texto literário — como um compulsivo
interpretador das pistas deixadas nele. Ele não é um ser fantástico; é um leitor que pode
ou não ―aceitar‖ o universo insólito da narrativa. Assim como em Todorov, a ideia de
Sartre, na verdade, remete a um pacto de leitura. Ora, se o leitor se predispõe a ler
histórias fantásticas, ele, no mínimo, deve aceitá-las como tal e adentrar tal universo
sem questionamentos que contrariem a ―normalidade‖ desse processo. Dessa forma,
leitor, narrador e personagens são alguns dos elementos em que o autor deve pensar
antes de compor sua obra final. Eles são, na verdade, partes integrantes da história, o
que, segundo Antonio Candido18
, remete à famosa tríade que compõe o universo
literário: autor /obra / público.
Enfim, de acordo com o que se pôde observar na teoria oferecida por Sartre,
não há dúvidas de que ele considera o fantástico como um gênero contemporâneo que se
realiza utilizando-se de uma temática que prioriza o homem moderno e todo o universo
que circunda esse ser. Percebe-se, também, que alguns elementos tão badalados pela
17 Termo e conceito correlato do termo e conceito de narrador, o narratário constitui presentemente uma figura de contornos bem definidos no domínio da narratologia. Tal como na díade autor/narrador, também
a definição do narratário exige a distinção inequívoca relativamente ao leitor real da narrativa, e também
quanto ao leitor ideal e ao leitor virtual; o narratário é uma entidade fictícia, um ser de papel com
existência puramente textual, dependendo diretamente de outro ser de papel, o narrador que se lhe dirige
de forma expressa ou tácita. (REIS, 2002, p. 267) 18 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Vol. I. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1981, p. 23-33.
51
teoria estruturalista, relativas ao gênero, não foram consideradas pelo filósofo. Para ele,
não há hesitação ou ambiguidade. O tipo de leitor ficou claramente definido em sua
teoria: é o real. Até mesmo quando o autor cita o espaço em que a narrativa é encenada,
ele diz que tudo ali ―representa um espaço de matéria subjugada; seu conjunto é
submetido a uma ordem manifesta e a significação dessa ordenação é um fim – um fim
que sou eu mesmo‖ (2005, p. 139); ou seja, esse espaço limitar-se-á a um universo
representativo daquele que o leitor tem diante si. Isso quer dizer que o espaço narrativo
fantástico é visto como um lugar onde só podem habitar seres alegoricamente capazes
de evidenciar a subjetividade desse homem moderno, assolado por questões existenciais
muitas vezes perturbadoras. Esse ambiente é uma projeção de seu próprio mundo
interior; de suas crises.
52
3. A narrativa de Murilo Rubião: um fantástico inquietante e moderno
Numa época em que se privilegiava uma literatura crítica, inovadora e
socialmente engajada com as mudanças pelas quais o país passava política e
culturalmente, o escritor Murilo Rubião inicia sua vida literária escrevendo contos que
aparentemente não representavam a realidade daquela sociedade. Em um período em
que os escritores modernistas gozavam as conquistas pelas quais lutaram a turma da
primeira fase e a do romance de 30, Murilo publicava, em 1947, seu primeiro livro de
contos, O Ex-mágico, tangenciando A Metamorfose de Kafka sem que soubesse disso.
Davi Arrigucci Jr., no livro Achados e Perdidos: ensaios de crítica, comenta que
Do ponto de vista da originalidade, o juízo é facilmente verificável. Pensada contra o quadro geral de uma ficção lastreada sobretudo na observação e no
documento, escassa em jogos de imaginação, a narrativa fantástica de Murilo
Rubião surge duplamente insólita (1979, p. 51).
Enfim, em um cenário em que a literatura pendia para a narrativa mais
documental, numa tentativa de representar a realidade e as desigualdades da sociedade
brasileira, Murilo produz uma literatura insólita que poderia ser hoje entendida como
desencadeadora de um fantástico inquietante e moderno que, embora não se destacasse
— como alguns podem supor — pela motivação de ratificar aquela crítica ao sistema, é
possível notar nas entrelinhas um discurso que busca no insólito a explicação para a
absurdidade do cotidiano do homem moderno. Davi Arrigucci Jr. considera que em
Murilo ―o real volta sob nova face, e a ruptura com a aparência realista será ainda um
modo de, como se verá, encontrar-se mais fundo com a realidade‖ (2001, p. 145). É
nesse sentido também que Hermenegildo J. Bastos afirma que a literatura do escritor
mineiro deve ser vista não só ―como ruptura, mas também como continuidade‖ (2001,
p. 50). Para o professor, por mais paradoxal que possa parecer, a ficção de Murilo
contribuiu para a reflexão dos caminhos que o realismo tomaria na literatura brasileira,
pois, segundo ainda Arrigucci, ―o fantástico dá lugar ao afloramento de um real mais
fundo‖ (2001, p. 147).
Ao considerar que ―o leitor entende, por fim, (...) que o problema não é apenas
dos personagens, mas da sociedade a que pertencem‖ (p. 57), Bastos sugere que há um
profundo senso social e crítico inserido na narrativa fantástica do escritor mineiro.
Dessa forma, entende-se o porquê de ele considerar o fantástico em Murilo como uma
atualização da ficção realista que se vinha realizando na literatura nacional. A
53
irrealidade e a fantasia seriam uma forma alegórica de tratar temas próprios do universo
real:
A ficção muriliana gira em torno da questão do progresso – ―progresso‖,
antes de mais nada, da forma e procedimentos literários, mas também das
organizações sociais e das relações humanas. A evolução da forma e o
progresso social são duas faces de uma mesma moeda. O narrador e os
demais personagens são prisioneiros do progresso (BASTOS, 2001, p. 63).
No livro Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte, organizado por Flavio
Garcia e por Maria Cristina Batalha, no artigo ―Murilo Rubião e o fantástico brasileiro
moderno‖, Batalha afirma que o fantástico no escritor mineiro traz para a literatura ―a
inquietação do homem moderno, perdido em um mundo que não compreende mais‖ (p.
34). Segundo ela, o insólito em Rubião surge como uma possibilidade criticamente
reflexiva de o homem repensar sua inserção na sociedade que o circunda. Assim, Maria
Cristina Batalha considera que a ficção muriliana ―promove a denúncia da perda dos
valores éticos e humanìsticos‖ (p. 34) e que ―os protagonistas são metonìmias da
humanidade inteira‖ (p. 34). Daí advém o teor crítico do fantástico em Murilo.
Ratificando essa ideia, Antonio Candido diz que
Com segurança meticulosa e absoluta parcialidade pelo gênero (pois nada
escreve fora dele), Murilo Rubião elaborou os seus contos absurdos num
momento de predomínio do realismo social, propondo um caminho que
poucos identificaram e só mais tarde outros seguiram (CANDIDO, 1987, p.
208).
Murilo Rubião, no sentido mais literal do termo, foi um artista da palavra. É
conhecido de todos que acompanham a trajetória do escritor mineiro o processo de
escritura e reescritura de seus textos. Tendo escrito e publicado apenas trinta e dois
contos19
, suas publicações muitas vezes traziam poucos textos inéditos e apresentavam a
reescritura de outros já conhecidos. O trabalho com a palavra era tão importante quanto
a obra em si. O jornalista e professor Antônio Carlos Hohlfeldt, no livro O conto
brasileiro contemporâneo, diz que ―do contista requer-se, pois, entre outras coisas,
imaginação e observação, experiência e persistência, mas sobretudo o contínuo corte do
texto, a fim de alcançar o efetivo final‖ (1981, p. 19). Ora, relacionando tal pensamento
com as idas e vindas de Murilo ao texto, nota-se que o escritor mineiro cumpriu todos
19 Depois da morte do escritor, o conto ―A diáspora‖ foi publicado e recentemente veio a público o conto
―As unhas‖, também publicado postumamente, totalizando 34 contos no somatório dos que vieram para o
domínio público.
54
os pré-requisitos necessários a um contista, pois não há como negar a capacidade
imaginativa e observadora e a persistência com que Murilo realizou sua obra. Tal
persistência pode ser percebida tanto na temática como no processo de reescrituração
dos contos.
Flávio Carneiro, no artigo ―Escrever é escrever de novo: a escrita infinita em
Murilo Rubião20
‖, afirma que na narrativa de Murilo ―a reescritura aparece como mais
uma volta na espiral projetada pelo autor e reflete a capacidade do texto de se superar a
cada linha, buscando o espaço que aparentemente se esconde atrás da parede da
finitude‖ (2013, p. 89). Ciente de que o conto possui peculiaridades próprias e certas
limitações, Murilo trabalhava sua narrativa numa busca incansável pela perfeição da
linguagem num espaço curto que é o conto. Segundo Alfredo Bosi,
Na verdade, se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa
e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção. E mais, o mesmo
modo breve de ser compele o escritor a uma luta mais intensa com as técnicas
de intervenção, de sintaxe compositiva, de elocução (2006, p. 7).
Pavla Lidmilová chegou a considerar que Guimarães Rosa, Clarice Lispector e
Murilo Rubião mudaram as feições do conto moderno. No entanto, contrariamente aos
outros dois, segundo ela, ―o estilo de Murilo Rubião é elegantemente clássico, claro e
conciso ao máximo‖ (1984, p. 75). Nota-se que o escritor mineiro tinha consciência do
seu trabalho artesanal. Ele sabia que lidar com a palavra requereria dedicação e esforço.
Esse é o destino fatal de quem escreve e se compromete com o que faz. Maurice
Blanchot, no livro A parte do fogo, no capítulo intitulado ―Kafka e a literatura‖, afirma
que
O escritor não pode lavar as mãos. No momento em que escreve, ele está na
literatura e está nela completamente: é preciso que seja um bom artesão, mas
também esteta, pesquisador de palavras, pesquisador de imagens. Ele está
comprometido. É a sua fatalidade (BLANCHOT, 2011, p. 22).
Por outro lado, o processo de reescrituração em Murilo Rubião é um trabalho
repetitivo que está ligado ao próprio aspecto cíclico de suas narrativas. Davi Arrigucci
Jr. considera esse trabalho de reescritura — metamorfoseando o texto nunca acabado —
como uma obsessão de Murilo. No mesmo sentido em que se percebe o tema da
metamorfose em seus contos, percebe-se esse processo no próprio fazer poético:
20 Publicado no livro Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte, organizado por Flavio Garcia e Maria
Cristina Batalha, pela EdUERJ, 2013.
55
O ato de modificar ou transformar os contos se casa, por exemplo, à mudança
contínua de faces e nomes de determinados personagens, como é o caso de
Teleco, Godofredo e suas mulheres, Alfredo, Petúnia e outros mais. Faces e
nomes escorregadios, que se colam ora aqui ora ali, carregados por um
mesmo fluxo. E logo também se casa à transformação propriamente dita dos
seres, que viram e desviram animais e plantas, numa instabilidade do ser, o
que implica a questão mais profunda da identidade não fixada (ARRIGUCCI,
2001, p. 151).
Reescrever, então, era tão importante quanto criar seus personagens. Eles
pareciam tão inacabados como a própria narrativa — talvez por esse motivo eles sofram
tantas e profundas transformações. Davi Arrigucci Jr., ao analisar o conto ―O Edifício‖,
relaciona aquela edificação com a construção do discurso poético em si. Para ele, ―a
construção infindável de um ―absurdo arranha-céu‖, a que sempre é possìvel acrescentar
novos blocos, pode ser entendida também como uma alegoria da própria construção
ficcional que se está lendo‖ (1979, p. 54 - 55). Como se pode notar, as metamorfoses e
os comportamentos exagerados e reiterados de seus personagens podem ser vistos, na
verdade, como uma espécie de metáfora da escrita camaleônica do escritor mineiro.
Jorge Schwartz ratifica essa tese ao dizer que ―esse tenaz retorno ao texto não deixa de
representar uma tarefa análoga ao penoso trajeto de seus personagens, perdidos num
mundo de incessante procura, e sem respostas para as questões fundamentais do
homem‖ (1982, p. 102).
Acredita-se que é nesse sentido que o próprio Murilo considerava fazer
literatura uma maldição:
Sempre aceitei a literatura como uma maldição. Poucos momentos de real
satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto
prazer. Depois, é essa tremenda luta com a palavra, é revirar o texto, elaborar
e re-elaborar, ir para a frente, voltar. Rasgar (SCHWARTZ, 1974, p. 5).
O escritor tinha prazer em criar a história. Depois se iniciava uma verdadeira
via crucis literária. O autor possuía uma extrema preocupação com o que escrevia e
como escrevia. Há estudiosos que acreditam que esse trabalho com a linguagem era um
desejo de dar vida e autonomia ao texto que, mudado de acordo com as necessidades de
cada momento e/ou situação, estaria sempre renovado e contemporâneo. Audemaro
Taranto Goulart, por exemplo, considera que no próprio processo de fazer e refazer o
texto já está instaurado o insólito. Para ele,
56
O desejo do sentido percorre o texto e, pelo simples fato de ser desejo,
contemporiza sua realização, adiando sua satisfação, num processo de volta
ao sujeito da leitura, para instilar nele uma carga de desconfianças onde se
projetam sensações de frustrações e impotência.
Essa temporização na realização do desejo articula-se não apenas com a
busca do sentido mas ela vai além: representa a busca do sentido mais
preciso. Nessas condições, pode-se perceber uma outra consequência que é a
possibilidade de se evitar o esclerosamento do texto, a sua caducidade. O processo de reescrever o texto revela, pois, esse outro ângulo: a preservação
de sua contemporaneidade semântica (Itinerários: revista de Literatura, 2002,
p. 16 – 17).
Se, por um lado, o trabalho com a linguagem caracteriza um perfeccionismo do
autor; por outro, ele sinaliza certa dificuldade em chegar à obra prima acabada: perfeita.
Isso pode ser notado no fato de o próprio Murilo perceber sua limitação com a língua
portuguesa. Em algumas cartas enviadas a Mário de Andrade, vê-se um escritor que
reconhece suas limitações e demonstra preocupação com esse fato. Ao informar ao
amigo sobre seu primeiro livro, Murilo comenta:
Os meus amigos já tinham feito demasiadas restrições aos contos. Se
recebesse outras, acho que desistiria e ficaria inédito para sempre. Não
pretendo, seu Mário, não pretendo de forma alguma fazer uma pequena obra-
prima. Eu estou aprendendo a escrever e aproveitando essa aprendizagem
para pôr para fora tudo o que me corrói por dentro. Não tenho cultura, não
domino essa paupérrima e desgraçada Língua Portuguesa e ainda, apesar de
todos os meus recalques (tenebrosos recalques!) e sofrimentos, ainda não sofri tudo o que tenho capacidade para sofrer (MORAES, 1995, p. 41).
Como se pode observar nessa e em outras passagens elencadas no livro
organizado por Marcos Antonio de Moraes, o escritor mineiro tinha suas razões para
buscar a expressão exata em seus contos. Ele, o contista, ―sabe que não pode proceder
acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar com
profundidade‖ (CORTÁZAR, 2011, p. 152) para imprimir o máximo de expressividade
em seu texto. Enfim, seja por um motivo ou por outro, o fato é que, mesmo que não o
fizesse intencionalmente, Murilo conseguiu criar um estilo próprio de escrever. Nele, o
fato de o insólito literário estar tão bem amalgamado ao universo cotidiano do leitor
talvez só tenha sido possível, também, porque o escritor buscou a criação de uma
narrativa que desse conta de uma linguagem tão fantástica quanto suas ficções.
Assim como a temática, o próprio fazer poético é insólito. Nesse sentido, nota-
se uma prática hiperbolicamente comum em Murilo. O exagero — comum em algumas
de suas narrativas — transporta-se para o próprio fazer poético, como se o escritor
57
percebesse a necessidade de metamorfosear seu discurso repetitivamente no intuito de
perseguir dois objetivos: um pseudoacabamento do texto — o que o levaria a novas
mudanças —; e uma crítica à própria condição humana que se constitui inacabada e
fragmentada na modernidade. Segundo Jorge Schwartz, no prefácio do livro O
convidado, ―a temática narrativa [em Murilo] gira em torno da ausência de sentido das
coisas (...) trazendo como intersecção textual uma literatura que evidencia uma crítica
aguda à sociedade‖ (1974, p. 16).
Por último, com relação ao trabalho de reescritura do texto ficcional, é possível
cogitar a ideia de que reescrever não significava apenas escrever de novo o mesmo
texto. Parece que no caso de Murilo, reescrever fazia parte da construção de sua
identidade como escritor:
Tenho caminhado muito, dado socos, pontapés e trabalhado
desordenadamente. E, quase sempre, depois de árdua luta, fico sem saber se
avancei ao menos uns poucos passos, isto, porque caminho, aos trambolhões,
sem noção do que estou fazendo. Infelizmente, não gosto de fazer outra coisa
senão literatura. E não a faço, exclusivamente, para mim ou porque desejo
fazê-la (MORAES, 1995, p. 49).
Essa construção permitiu que ele criasse uma literatura na qual a realidade e a
fantasia fizessem parte de um mesmo universo. Nela, os acontecimentos são fantásticos
na concepção do leitor, que percebe o elemento estranho e o familiar diante de si,
representados em um ambiente que é e não é o mesmo que o seu. Segundo Davi
Arrigucci Jr, ―o que mais espanta em Murilo é a perfeita naturalidade da convivência
com o espantoso‖ (2001, p. 141). Há uma convivência banalizada entre a fantasia e a
realidade até que em um dado momento da narrativa o leitor já não se indaga mais sobre
a verdade do que lê, porque ele se vê diante de um mundo absurdo, porém familiar.
Como se poderá constatar nos contos que serão analisados mais adiante, a banalidade
com que os acontecimentos insólitos invadem a narrativa muriliana atribui uma
aparência de real a eles. Daì o ―insólito absurdo‖:
Numa tentativa de descrição genético-estrutural do conto de Murilo Rubião,
poderíamos estabelecer um esquema: constada determinada relação absurda
na vida, cria-se uma situação absurda simbólica (a situação ficcional) que
desencadeia uma série de absurdos técnicos (ou de efeito literário) que se desenvolvem até o absurdo final (a solução ficcional) que traz o leitor de
volta para o tema, fechando o ciclo (ZAGURY, 1971, p. 28 – 29).
58
Segundo Albert Camus, para quem O Mito de Sísifo representa a natureza
absurda da existência humana, ―o anseio humano por razão em um mundo
desarrazoado‖ (REYNOLDS, 2014, p. 31) é o responsável pelo sentimento de
absurdidade. As narrativas de Murilo sugerem ao leitor um processo de reflexão que
caminha ebriamente por uma existência ao mesmo tempo possível — dado à
familiaridade do mundo ali representado —, mas insólita, devido ao absurdo que se
constrói nos parágrafos subsequentes. Nesse sentido, observa-se uma relação entre a
ficção de Murilo e a de Kafka. Porém, embora alguns estudiosos façam essa
aproximação entre um e outro, o próprio escritor diz em entrevista que a escolha do
fantástico ―foi herança da infância, das intermináveis leituras de contos de fadas, do
Dom Quixote, da História Sagrada e das Mil e Uma Noites (SCHWARTZ, 1982, p. 3) e
não uma influência do escritor tcheco do qual só teve conhecimento anos depois de ter
publicado seu primeiro livro de contos. Como ele mesmo afirma, ―no inìcio dos anos 40
ninguém conhecia Kafka no Brasil, a não ser Mário de Andrade‖ (p. 3).
Como se pode notar, Murilo Rubião foi um escritor singular na literatura
brasileira. Seja pela qualidade de seus contos, seja por toda atmosfera que envolve a
criação deles, o fato é que a narrativa fantástica teve nele seu maior expoente no Brasil.
Conforme atesta Almeida Fischer — e outros críticos literários — pode-se dizer que ―o
escritor foi o primeiro brasileiro a produzir um livro que se enquadra por inteiro na
literatura fantástica modernamente entendida como tal‖ (1977, p. 78). Para o crítico, os
contos murilianos podem ser considerados ―de mestre‖ (p. 79). E com relação à
quantidade de livros escritos, Fischer dispara dizendo que
Entre abarrotar as prateleiras das livrarias de livros medíocres ou razoáveis e
ser autor de pouco mais de uma dezena de contos que se situam entre os
melhores já escritos em língua portuguesa, o ficcionista optou pelo segundo
caminho. No que, sem dúvida, obrou bem (1977, p. 79).
Embora seja relativamente fácil encontrar alguns autores que tenham essa
mesma visão, há outros que não atribuem ao escritor mineiro o rótulo de precursor de
um tipo específico de narrativa na literatura brasileira. O já citado Hermenegildo J.
Bastos, por exemplo, acredita que, mais do que delimitadora de um gênero ou modo
discursivo especìfico, ―a obra muriliana está ligada também às linhas de evolução da
ficção brasileira da segunda metade do século‖ (2001, p. 49). Ele considera a obra de
Murilo como a inauguradora de uma ruptura na noção de realidade. Segundo o
professor, nos contos fantásticos do escritor há um ―realismo de falsidade‖ (p. 51).
59
Através desse ―falseamento da realidade‖, a obra de Murilo Rubião seria, segundo
Bastos, capaz de demonstrar duas questões capitais da literatura: ―a questão da
derrocada dos projetos de modernização nacional e a questão do papel da literatura
nesses projetos‖ (p. 52). Por isso, acredita-se que Schwartz, ao afirmar que ―o texto
fantástico de Murilo Rubião mascara a mais realista das literaturas‖ (1974, p. 16), tenha
querido dizer que por trás de uma narrativa aparentemente ingênua encontra-se uma
forma renovada – ou inovadora – de falar de temas até então só explorados pela
narrativa de cunho estritamente realista e documental.
Álvaro Lins, no livro Os mortos de sobrecasaca, tece alguns elogios ao escritor
mineiro. No capítulo ―Sagas de Minas Gerais‖, ele comenta que ―o livro do Sr. Murilo
Rubião, representa, no Brasil pelo menos, uma novidade, com um tratamento da matéria
ficcionista que não me fora dado ainda encontrar em qualquer dos nossos autores‖
(LINS, 1963, p. 266). Ele chega a fazer algumas aproximações entre Murilo e Kafka,
negando, veementemente, que Murilo seja o Kafka brasileiro. No entanto, a impressão
que fica da leitura geral do capìtulo é a insatisfação: ―em O Ex-mágico [...]
permanecemos insatisfeitos quanto aos resultados‖ (p. 267) e ―o Sr. Murilo não
convence quanto ao problema de tornar lógico o absurdo‖ (p. 267). Quando se refere
aos contos ―O Ex-mágico‖, ―O Pirotécnico Zacarias‖ e ―Bárbara‖, Álvaro Lins
considera os dois primeiros ―sem intensidade psicológica‖ e o último como ―apenas
pitoresco; e de um pitoresco de mau gosto‖ (p. 267). Ora, o objetivo desta tese não é
retificar nem confrontar as teorias acerca do insólito em Murilo Rubião. No entanto,
parece que Álvaro Lins desconsiderou o fato de que o escritor está inserido em um
contexto. É possível que o crítico tenha deixado de cogitar a possibilidade de que a não
―intensidade psicológica‖ daqueles dois contos talvez tenha sido uma escolha do autor,
algo proposital; uma escolha pensada e calculada para inserir no próprio ato de leitura o
tédio da vida burocrática, acompanhado, muitas vezes, da exacerbação de desejos
infundáveis e fúteis da vida moderna.
Murilo foi um escritor de um único gênero textual. Sua obra é grandiosa pela
qualidade que se pode verificar em seus textos. Suas narrativas possuem algumas
marcas que se repetem com certa frequência. A primeira delas – e que chama a atenção
do leitor logo no início dos contos – são as epígrafes. Elas são fragmentos retirados de
textos bíblicos – fato este que denota a profunda ligação entre o escritor e o cristianismo
no início de sua carreira. Como ele mesmo afirma em entrevista, ―a base [das epìgrafes]
é a religião católica, uma religião que mais tarde não me convenceu. (...) abandonei a
60
religião e sou hoje um agnóstico‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 4). Na verdade, tais epígrafes
simulam uma pré-narrativa da narrativa; ou como supõe Jorge Schwartz, no livro
Murilo Rubião: a poética do Uroboro, ―surpreendentemente, elas constituem um
universo narrativo completo e autônomo, sìntese do pensamento de MR‖ (1981, p. 3).
Para o estudioso, a utilização desse recurso possui uma dupla e nova funcionalidade. Ela
é dupla porque o texto epigrafado possui agora duas funções: ele traz consigo a carga
semântica do texto do qual foi extraído e, consequentemente, cria um novo diálogo
entre ele e o texto no qual está agora inserido. Com relação à nova funcionalidade,
Schwartz diz que ―toda epìgrafe sofre uma perda de funcionalidade ao ser extraìda do
seu texto original, sofrendo uma consequente refuncionalização ao ser interpolada num
novo texto.‖ (1981, p. 4).
Dentro ainda do universo epigráfico, Davi Arrigucci Jr. endossa essa questão
assinalando que ―a Bìblia aparece literalmente como o Livro dos livros, o repertório
ilimitado de todos os temas, uma espécie de fonte perene‖ (2001, p. 151) a que Murilo
muito recorreu. É uma fonte inesgotável de temas na qual Murilo bebia com frequência.
Há um aspecto importante — com relação à utilização dessa fonte — que é
relevante para se entender o motivo de tal recurso:
Voltando continuamente a essa origem remota, a obra sugere a circularidade
do tempo e o eterno retorno dos arquétipos, a ingressão, a uma só vez,
renovadora e apocalíptica do reino do mito, onde rodopiam os começos e os
fins. Mas há ironia (2001, p. 152).
Segundo o crítico e professor Ronaldes de Melo e Souza, ―na obra de arte
regida pelo princípio da ironia, toda e qualquer parte aparentemente não-irônica se torna
radicalmente irônica‖ (2006, p. 36). Tal utilização seria uma maneira de o autor ironizar
– pela ―mera repetição ritualística‖ (p. 153) – o próprio discurso religioso? Nesse
sentido, poder-se-ia considerar que as epìgrafes bìblicas desconstroem ―o valor sagrado
do mito‖ (p. 153) daquilo que elas representam. Enfim, a circularidade do texto de
Murilo – retomada a cada reescrituração – também se manifesta na utilização desbotada
de um discurso que não funciona mais [pelo menos para o escritor]: o religioso. Daí
advém a ironia a que se refere o crítico Arrigucci. Os personagens de Murilo são
infelizes e caminham num ambiente próximo ao do leitor. Nesse ―entre-lugar‖ – nem
real nem irreal – o homem moderno se vê diante de uma nova, perturbadora e irônica
realidade: não há deuses, ou salvação, ou eternidade fora daqui. Só o agora. Ratificando
essa ideia, Schwartz afirma que ―não há lugar para salvação no universo muriliano. A
61
solidão toma conta dos personagens, que se caracterizam por uma perpétua procura e
um contìnuo desencontro‖ (1982, p. 102). Acredita-se que, talvez, por isso Murilo tenha
dito em entrevista:
Daí eu ter partido não para a eternidade que me ensinaram, mas para a
eternidade já na própria vida. Desse modo a vida seria apenas uma coisa
circular que não chegaria nunca àquela eternidade, mas também nós nunca
poderíamos nos livrar dela (SCHWARTZ, 1982, p. 4).
Como se pode notar, as epígrafes bíblicas apontam ironicamente para uma
outra questão bastante comum nos contos de Murilo: a dualidade vida x morte. Mesmo
que estejam deslocadas do texto original, elas potencializam essa dualidade, porque é
próprio do discurso religioso dividir a existência humana em pólos opositivos: sagrado e
profano, vida e morte, alma e corpo etc. Dessa forma, as epígrafes apontam para fora e
para dentro do texto. No primeiro caso, elas ainda estão revestidas do teor religioso
presente no texto original; no segundo, elas, de certa forma, se relacionam — em um
tom quase profético — com a narrativa que se descortinará. Por fim, pode-se considerar
também que tal utilização do discurso religioso ratifica o pensamento de Vladmir Propp
ao afirmar que ―o conto (fantástico) vem de antigas religiões21
‖.
Outra marca frequente nas narrativas do autor está relacionada à questão das
dualidades narrativas. Eliane Zagury sugere a visualização temática das ―dicotomias
essenciais‖ que desencadeiam as construções ficcionais em Murilo Rubião em três
subgrupos: a) vida-morte; b) indivíduo-sociedade; c) amor-incomunicabilidade (1971,
p. 29 – 34). Segundo ela, o autor recria em seus contos situações que remetem o leitor
para essas possibilidades dicotômicas de percepção da existência humana, construindo
personagens que representam em si a duplicidade do ser; personagens que vivem a
ilusão de ser o que não são ou [não] desejariam ser, fugindo da realidade que os
circunda. Só para citar duas obras, percebe-se que isso ocorre com muita clareza, por
exemplo, em ―Teleco, o coelhinho‖ e no ―Ex-mágico‖. No primeiro, o personagem
―coelho-menino‖ vive a ilusão de um desejo que só se realiza na morte. Sua existência
limita-se ao desejo do outro, buscando a autoafirmação enquanto ser ou, simplesmente,
sua aceitação perante o outro. No segundo, o personagem vive a ilusão de poder ter/ser
algo melhor, buscando, no tédio em que se transformou sua existência, encontrar uma
21 TOLEDO, Dionísio de Oliveira (org.). ―As transformações dos contos fantásticos”. In: Teoria da
literatura: formalistas russos. 2 ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1976. (p. 271).
62
saída para um drama sem solução: a morte em vida. Drama este que acompanha o
homem moderno em sua lida diária com o mundo que o cerca.
Nesse aspecto, a questão da ilusão na narrativa é capital porque ela é a
responsável pelo redirecionamento do desejo do herói reificado, sem identidade e,
paradoxalmente, sem desejo; apenas coisa. Ela reconduz a perspectiva dele para uma
―possibilidade impossìvel‖. Além dos dois contos já citados, tome-se aqui como
exemplo ―O edifício‖, ―Bárbara‖ e “Os comensais‖, dentre outros. No primeiro, há a
realização de uma obra impossível que nunca terá fim — na verdade, de que obra
realmente se trata? O narrador trabalha como um ilusionista. O desejo de João Gaspar
não é o dele, a realização da obra é uma diretriz a ser seguida; no segundo, há uma
mulher que possui desejos indesejosos. O que representariam tais desejos? Seriam eles
uma alegoria da sociedade moderna, consumista e materialista? No terceiro,
personagens que agem e se comportam como autômatos e/ou zumbis. Eles também não
seriam uma alegorização do comportamento comum do homem nas grandes cidades.
São bonecos que perambulam pelas ruas, esbarrando uns nos outros, sem, no entanto,
notarem a presença alheia. É por isso que se pode dizer que os personagens murilianos
são iludidos e iludem o leitor. Segundo Arrigucci, ―a existência dolorosa é o fardo
corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (2001, p. 157). Eles — na ânsia da realização de
um desejo [ou pseudodesejo] que não lhes pertence — afastam-se progressivamente do
universo real e penetram no insólito. O leitor se vê aprisionado em um xeque-mate
quando se depara com uma narrativa em que o absurdo se desenvolve com ares de
normalidade e os personagens sequer percebem a insolitude de suas atitudes. Eles
―vivem sob a pressão do inevitável‖ (2001, p. 158).
No livro O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão, Clément Rosset ratifica
essa tese afirmando que a ilusão é ―a forma mais corrente de afastamento do real‖
(2008, p. 17). É dessa forma que leitor e personagens são conduzidos pelos caminhos
insólitos nas narrativas de Murilo. Em um primeiro momento, está-se diante de uma
situação real, possível; dois ou três parágrafos depois, esse mesmo leitor encontra-se
deslocado de seu universo, mas, ao mesmo tempo, submerso em um outro absurdo,
porém aceitável:
A técnica geral da ilusão é, na verdade, transformar uma coisa em duas,
exatamente como a técnica do ilusionista, que conta com o mesmo efeito de
deslocamento e de duplicação da parte do espectador: enquanto se ocupa com
a coisa, dirige o seu olhar para outro lugar, para lá onde nada acontece
(ROSSET, 2008, p. 23).
63
Na verdade, todos são levados a crer nisso. Essa é a técnica de Murilo. Parece
que a todo momento ele conta com a ilusão. A criação da duplicidade pela ilusão dos
sentidos é uma forma de disfarçar nas entrelinhas o objetivo primeiro da narrativa:
construir uma reflexão crítica acerca de algo. Por que os personagens dele sempre
aceitam o insólito como algo banal? É a técnica da ilusão. O leitor — juntamente com
eles — desvia o olhar da reflexão crítica e fica — em um primeiro momento [ou em um
primeiro nível de leitura] — preso a um falso jogo entre realidade e imaginação. Como
se pode notar em seus contos, ele cria, conscientemente, uma estratégia de construção
ilusória. O leitor é colocado diante de um mundo que é e não é o seu através dessa
técnica. Ora, em um universo representado por seres fabulosos — animais falantes
―quase‖ humanizados — a suposta ―moral‖ da história está deslocada ilusoriamente
para o lugar da ironia que perpassa toda a narrativa de Murilo Rubião; ou seja, não há
moral nem ensinamentos; só há o homem com suas questões. É aqui que as narrativas
de Murilo tangenciam o existencialismo sartreano. Enfim, em um universo cheio de
situações hiperbólicas e insólitas, o leitor olha para onde o mágico quer que olhe. Sendo
assim, o Murilo-mágico prende a atenção do leitor pelo caminho do lúdico, da
imaginação, da mágica e do inesperado, camuflando um discurso que toca na questão
existencial do homem moderno sob a aparência do fantástico.
Uma terceira marca comum em alguns contos de Murilo são as metamorfoses
pelas quais seus personagens passam. Dentre as outras duas elencadas anteriormente,
acredita-se que essa seja a marca que melhor se alinha ao existencialismo de Sartre se se
considerar que ela esteja relacionada à condição do homem face às crises e
transformações por que esse indivíduo passa na contemporaneidade.
No artigo ―As metamorfoses do corpo e a construção do fantástico nas
narrativas de Murilo Rubião‖, Marisa Martins Gama-Khalil afirma que a literatura
fantástica é capaz de tematizar as ―modificações que permeiam a subjetividade do
sujeito e fazem com que ele, a cada momento, se torne diferente‖ (2013, p. 48). Tendo
como base essa acepção, pode-se aventar que a metamorfose constitui um mecanismo
deflagrador da incompletude do eu que se vê coisificado [e/ou banalizado] e que, por
extensão, representa a coletividade da sociedade em que vive. Jorge Schwartz,
considerando os contos ―Agláia‖ e ―Bárbara‖, toca na questão da coisificação dos
personagens murilianos ao afirmar que ―a descontrolada produção de bebês os reduz à
condição de objetos‖ (1981, p. 35) e ―o herói reificado está representado pela dimensão
colossal dos objetos pedidos pela sua insaciável esposa‖ (p. 35). Tanto em um como
64
noutro conto, nota-se a transformação alegórica dos personagens em máquinas a serviço
da produção e do consumo desenfreado, próprios do modelo de vida materialista.
Ao discorrer sobre A metamorfose, de Franz Kafka, Maurice Blanchot sinaliza
com a ideia de que a transformação do personagem em um inseto asqueroso representa
―o estado do ser que não pode deixar a existência, para quem existir é estar condenado a
sempre recair na existência‖ (2011, p. 18). Embora esteja submerso nos porões de sua
subjetividade, é através do mecanismo da metamorfose que o sujeito tenta (ou deseja)
projetar-se para fora dali. Mudar sua forma constitui uma maneira de oferecer ao outro
uma possibilidade diferente e radicalmente significativa de ver o eu. Havendo
repugnância ou não, o fato é que o inseto representa o máximo da significação que o
sujeito deseja para si. Embora de maneira negativa, somente naquela forma ele se fez
notar. Algo parecido ocorre em ―Teleco, o coelhinho‖ em ―O homem do boné
cinzento‖, em ―Alfredo‖ e em ―Bárbara‖. Não há repugnância. No entanto, as diferentes
formas e/ou mutações por que as personagens passam no percurso da narrativa
consolidam um final trágico — no caso dos três primeiros contos — e absurdo, no
último.
Todorov considera que ―as metamorfoses formam então por sua vez uma
transgressão da separação entre matéria e espìrito, tal como geralmente é concebida‖
(2008, p. 122). Dizer que Teleco se comporta como um coelho ou como um leão é algo
que não gera o insólito. No entanto, afirmar que o ser que fala ao personagem é um
coelho instaura o sobrenatural na narrativa. Há uma ruptura na ordem das coisas. Há
uma separação entre matéria e espírito. Não é da ordem das coisas um coelho falar. O
que sugere, então, essa transformação?
A metamorfose de maneira geral abre um leque de possibilidades de
entendimento dessa ruptura entre matéria e espírito. Poder-se-ia aventar algumas delas
aqui, contudo a que mais se adéqua à teoria existencialista de Sartre sugere a ideia de
que a excessiva transformação de um ser em algo que não que lhe cabe ser indicia a
crise existencial em que o homem contemporâneo se encontra. Há uma busca
descontrolada de se atingir a satisfação do eu naquilo que o outro vislumbra. Segundo
Eliane Zagury, em ―Teleco, o coelhinho‖, ―em sua medìocre fragilidade, o homem usa
do recurso da metamorfose para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (p.
1971, p. 32). Se se pensar nas máscaras sociais que o indivíduo coloca todas as vezes
que sai de casa para estudar, trabalhar, namorar, passear etc, notar-se-á que a
metamorfose social é mais comum do que se pode imaginar. Acredita-se que Jorge
65
Schwartz tenha querido sinalizar esse comportamento ao afirmar que ―o cotidiano tem
uma força demolidora, reduzindo o homem a máscaras petrificadas‖ (1982, p. 102). O
homem não age exatamente da mesma forma dentro e fora de casa. Há regras. Há
máscaras. Todorov de certa forma ratifica tal pensamento quando afirma que ―a
multiplicação da personalidade, tomada ao pé da letra, é uma consequência imediata da
passagem possível entre matéria e espírito: somos muitas pessoas mentalmente, em que
nos transformamos fisicamente‖ (2008, p. 124). No livro, Murilo Rubião: a poética do
uroboro, Schwartz, sobre o conto ―O convidado‖, diz que ―a máscara é necessária para
enfrentar o jogo social, e a descoberta do seu ―outro‖ não demora em se evidenciar‖ (p.
46). Portanto, é possível afirmar que se transformar em algo diferente para se adequar a
uma determinada situação é uma prática bastante comum nas sociedades modernas.
Como se pode notar, a obsessão de Murilo Rubião pela metamorfose tanto no
hábito de modificar constantemente seus escritos como também na criação de
personagens que se metamorfoseiam no percurso da narrativa é algo comum. Muitas
vezes, ―o homem usa tal recurso para se adaptar a cada situação e perde a sua
identidade‖ (ZAGURY, 1971, p. 32). Davi Arrigucci Jr. também considera que tal
artifício traduz uma característica dos heróis murilianos. Segundo o crítico, há uma
―instabilidade do ser‖ (2001, p. 151) que sugere uma desconstrução intencional da
identidade do personagem; é o que ele denomina de ―identidade não fixada‖ (p. 151). O
estudioso afirma que ―a pluralidade de nomes e de seres instáveis carrega consigo, todo
o tempo, a dúvida quanto à identidade do ser‖ (p. 164). É possível notar em suas
narrativas que seus personagens recebem um tratamento dissimulado. Como muitas
vezes eles não possuem uma caracterização definitiva, transformando-se ao sabor do
desejo alheio, fica a impressão de que há ―uma perpétua procura e um contìnuo
desencontro‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 102). O conto ―Godofredo e suas mulheres‖, além
de sugerir a questão da loucura, transita por essa possibilidade de leitura, uma vez que o
próprio personagem não identifica suas mulheres e nem a si mesmo, construindo uma
suposta situação de loucura e/ou esquizofrenia, que funciona como um processo de
desconstrução de sua própria identidade.
66
4. Narrativas comentadas de Murilo Rubião
A seguir, serão feitas as análises das narrativas de Murilo Rubião. Como forma
de direcionamento do trabalho, realizado durante a confecção desta tese, foram
escolhidos alguns temas que se fazem presente, com bastante frequência na obra do
autor. No entanto, para não fragmentar por demais os subcapítulos e de certa forma para
facilitar o desenvolvimento das interpretações dos contos, limitou-se as abordagens dos
mesmos em apenas cinco temas: a hipérbole, o incesto, a ambiguidade, a loucura e a
metamorfose. Porém, é importante salientar desde agora que a esquematização
priorizada aqui não tem a pretensão de ser a única capaz de solucionar as questões que
rondam as narrativas murilianas. Ela serviu para nortear a metodologia que seria
utilizada nas análises dos textos, e não como palavra final sobre as obras do escritor
mineiro.
4.1. A hipérbole
Um dos temas mais marcantes na obra de Murilo Rubião é o emprego da
hipérbole como uma estratégia usada para dimensionar a grandiosidade ou a pequenez
de um fato ou de uma situação qualquer. Tal dimensionamento vai do elemento mais
banal — como o crescimento injustificável das unhas de um personagem — até o
acontecimento mais representativo como, por exemplo, a construção de um edifício de
andares infindáveis. No entanto, como se verá a seguir, não importa a proporção desse
exagero na narrativa. O fato é que ele surge como uma forma de denunciar, demonstrar,
apontar, desnudar, criticar e caracterizar o universo no qual o homem contemporâneo
está inserido. Murilo consegue, com esse fantástico artifício, dar uma boa ideia de como
é a luta entre o indivíduo e os tormentos que assolam as pequenas e as grandes questões,
tanto pessoais quanto as coletivas, do sujeito moderno.
4.1.1. O Ex-mágico da Taberna Minhota
Tendo como base o livro Murilo Rubião: contos reunidos, da editora Ática, ―O
ex-mágico da Taberna Minhota‖ é o primeiro conto que possui o exagero como
mecanismo de ratificação do insólito. Nele, o narrador-personagem se apresenta como
alguém que não tivera um ―nascimento e um passado‖ (p. 9), fato este que já instaura o
67
elemento sobrenatural na narrativa nas primeiras linhas. Segundo as palavras do próprio
narrador, ele não teve ―pais, infância ou juventude‖ (p. 7) e num dia é surpreendido com
os cabelos grisalhos. Nesse conto, as situações hiperbólicas têm início quando, sem
perceber, o mágico retira o dono do restaurante do bolso. Uma mágica aparentemente
ingênua, mas que traduz a relação direta entre o homem e os números, numa quase
paródia à ―Ode ao burguês‖, na qual Mário de Andrade critica o comportamento
ganancioso do burguês que ―algarisma‖ tudo o que toca22
. A partir daí, os
acontecimentos insólitos tomam uma proporção exagerada e as mágicas vão aos pouco
saindo do controle. Segundo Schwartz,
a hipérbole, como figura de retórica por excelência na poética do Autor,
apóia-se na repetição para sua formalização no discurso. Deste modo, o
número de objetos mágicos criados pelo ex-mágico mostra o aspecto
reiterativo das ações, que se repetem até a saturação (1981, p. 73).
Seus números – que desde o início serviram como uma forma de
entretenimento para todos que presenciavam os truques – na verdade tornaram-se
rapidamente uma maneira de o mágico tentar driblar o tédio de sua existência. Afinal,
ele ―nascera cansado e entediado‖ (p. 7). A ideia de exagero se intensifica com os
truques espontâneos e descontrolados que o personagem realiza, demonstrando que ele
não tem mais domìnio sobre sua arte e sua própria vida: ―urgia encontrar solução para o
meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu
desconsolo‖ (p. 10). Até mesmo a tentativa de suicìdio fracassa. Por fim, tornar-se um
funcionário público foi, ironicamente, a única forma de cessar as mágicas: ―confiara
demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia‖ (p. 13).
Agora, insatisfeito com sua nova função, o ex-mágico vive a nostalgia dos tempos em
que ainda conseguia retirar algo das mangas: ―Não me conforta a ilusão. Serve somente
para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico‖ (p. 13).
Note que a hipérbole nesse conto ocorre pelo acréscimo quantitativo [a auxesis23
] de
objetos e animais que o ex-mágico consegue fazer aparecer espontaneamente.
22 Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
ANDRADE, M. 50 poemas e um Prefácio interessantíssimo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. 23 Segundo Carlos Ceia, no E-Dicionário de Termos Literários, a auxesis é ―uma espécie de ironia que
sobrevaloriza uma coisa que, pela sua natureza, não tem valor reconhecido (...). Neste caso, a auxesis ou
amplificatio só se distingue da hipérbole porque ocorre em contextos em que se combina com a ironia, o
que não é condição necessária à formulação de uma hipérbole‖. (Disponível em
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&link_id=465:meiosis-ou-meiose&task=viewlink),
acessado em 09 de julho de 2015, às 21h: 41 min.
68
De acordo com Pavla Lidmilová24
,
O aspecto fantástico dos contos de Murilo Rubião, das suas visões oníricas e
surrealistas ou das alegorias complicadas é extraído da psique humana. A
confrontação da sensação subjetiva e das relações sociais, do homem e das
suas circunstâncias, desemboca no diálogo com a tradição europeia de pensar
e de sentir, (...) e na crítica social (1991, p. 2).
Observando a citação acima, é possível dizer que, em linhas gerais, o conto
sugere uma interpretação existencialista, pois apresenta o homem como elemento
principal. Toda insatisfação e tentativa de fugir de uma vida sem sentido e cheia de
tédio refletem a crise do homem moderno. A mágica é um mecanismo de ilusão. Com
ela, cria-se uma realidade diferente da que se tem; o que proporciona uma visão onírica,
mas também crítica da existência do herói. Nesse caso, a narrativa insólita pode oferecer
duas críticas fundamentais: uma está diretamente relacionada ao comportamento do
homem diante de suas incertezas. Assim como o personagem, muitas vezes, o indivíduo
busca uma mudança, imaginando alcançar o êxito sem perceber que o que ele tinha
antes era especial. A outra crítica está relacionada à burocracia do serviço público, que é
capaz de aniquilar a criatividade e a liberdade do homem.
Para Sartre, liberdade é a ―possibilidade de dizer não‖. (...) a liberdade é o que
precisamente me estrutura como homem, porque é uma designação específica da própria
qualidade de ser consciente, de poder negar, de transcender (1970, p. 130). Desde o
início do conto, o personagem não goza de liberdade. Ele não está satisfeito com suas
mágicas nem consegue cessá-las. Não consegue sequer dizer não a si mesmo enquanto
mágico, tornando-se refém de sua própria condição. Enfim, o ex-mágico não tem
consciência de sua não-liberdade. Ele só a tem quando perde a capacidade de ilusionista
e cai na máquina burocrática que, por sua vez, o priva definitivamente da liberdade,
pois, agora, não há mais como retornar ao que era antes. Ele está preso em sua nova
realidade: ―Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços
vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite de fogos de artifìcio‖ (p. 13). Ser um
funcionário público equivale à morte em vida. É justamente nesse ponto que reside a
ironia de Rubião. O ex-mágico-funcionário-público é a imagem típica do homem em
busca de si mesmo.
24 LIDMILOVÁ, Pavla. ―O fantástico e os contos de Murilo Rubião‖. Suplemento Literário. Belo
Horizonte, v. 24, n. 1169, p. 2, set. 1991.
69
4.1. 2. Bárbara
A começar pelo próprio nome, que denota algo grandioso, agressivo, ―bárbaro‖
e fora do comum, o conto ―Bárbara‖ é outra narrativa que se utiliza da hipérbole como
mecanismo deflagrador do insólito. O conto narra a história de Bárbara — uma mulher
que à medida que pedia algo diferente, engordava — e seu marido — um homem que
existia apenas para ―lhe satisfazer os caprichos‖ (p. 33). O problema era que os pedidos
dela, desde o tempo de infância, eram todos insólitos: ―Pediu o oceano. Não fiz
nenhuma objeção‖ (p.35), ―pediu-me um baobá, plantado no terreno ao lado do nosso.
(...) tive que adquirir toda a propriedade por preço exorbitante‖ (p. 36), ―Seria tão feliz
se possuìsse um navio! (...), escolhi o maior‖ (p. 37) e ―Não pediu a lua, porém uma
minúscula estrela‖ (p. 39). Fora isso, ainda nascera uma criança raquìtica e feia, que
pesava apenas um quilo e ―anos após o seu nascimento continuava do mesmo tamanho,
sem crescer uma polegada‖ (p. 37).
Como se pode constatar pela leitura dos fragmentos, o exagero está presente
nos desejos da mulher, na realização [ou na tentativa de realização] deles e na criança
indesejada. O comportamento de aceitação, submissão e normalidade do marido diante
das situações hiperbólicas intensifica ainda mais o caráter fantástico da narrativa.
Ambos vivem em uma realidade absurda. Por isso ele não estranha os pedidos. Sua
única preocupação reside no fato de que a cada exigência da mulher, ela engordava. Isso
o aterrorizava. Como consequência desse pavor, há a deformação da imagem que o
narrador-personagem tem do outro: ―seria terrìvel viver ao lado de uma mulher
gordìssima e um filho monstruoso‖ (p. 35).
O marido vive exclusivamente para satisfazer os desejos de Bárbara. De acordo
com Eliane Zagury, a mulher ―aniquila a vida de seu marido com seus desejos absurdos,
forjando uma caricatura impressionante da sua capacidade de absorção — engorda
monstruosamente‖ (p. 34). Por outro lado, para Audemaro T. Goulart, o marido ―parece
dominado por incrìvel masoquismo‖ (1995, p. 147). Seu prazer residia na angustiante
tarefa de deixar sua esposa feliz, adquirindo os objetos desejados. No entanto, mesmo
com todo exagero da mulher e toda dedicação dele, é possível observar alguns
elementos importantes referentes à relação desgastada do casal. Como o próprio esposo
sinaliza, não há mais entre eles uma relação amorosa de homem e mulher: ―nos
casamos. Ou melhor, agora posso confessar que não passamos de simples
companheiros‖ (p. 33). Até mesmo o filho que nascera não foi fruto do afeto e carinho
70
entre os dois: ―Bárbara o repeliu. Não por ser miúdo e disforme, mas apenas por não o
ter encomendado‖ e (...) ―ela se negava a entregar-lhe os seios volumosos, e cheios de
leite‖ (p. 35). Essas passagens ratificam a ideia de que os dois viviam uma relação de
aparências e que o filho nascera de um não-desejo. Não havia sentimento, mas sim uma
relação de senhor e vassalo. A mulher estava presa aos seus desejos absurdos e o
marido, por sua vez, era escravo de seus caprichos insólitos. Talvez por isso a
necessidade de ter tantas coisas absurdamente grandiosas. Tê-las era preencher uma
lacuna deixada por alguma ausência.
Segundo Schwartz, ―são raros os momentos na obra do Autor em que o
elemento insólito, ou mesmo o sobrenatural, não se converte em trampolim metafórico
de uma crìtica social‖ (1981, p. 77). Nesse conto, como em tantos outros, pode-se
vislumbrar a construção de uma crítica a comportamentos corriqueiros e cotidianos que
se mostram inofensivos em um primeiro momento, mas que, na realidade, demonstram
uma perda da própria identidade e da condição de ser: as aparências, o consumismo, o
egoísmo e o materialismo da sociedade moderna. No conto, essa deteriorização da
identidade do ser tem sua culminância no desgaste da relação homem/mulher que já não
existe entre o marido e Bárbara. Nesse sentido, a deformação a que o narrador se refere
intensifica o caráter hiperbólico de desconstrução identitária de Bárbara: ―o corpo de
minha mulher que, de tão gordo, vários homens, dando as mãos, uns aos outros, não
conseguiriam abraçá-lo‖ (p. 38).
Por outro lado, é possível perceber que Murilo constrói uma crítica direta ao
comportamento consumista-burguês como sinalizadora do processo de aniquilação da
essência do ser. Primeiramente, o homem deveria ser; depois, ter. Aqui, ocorre o
contrário. Bárbara precisa ter para se realizar como pessoa; e o marido ratifica essa
necessidade quando deseja atender-lhe todos os pedidos sem medir esforços, mesmo
que isso signifique a negação absoluta de uma nova vida, metaforizada no filho que
nascera: ―O dinheiro escasso, desde a compra do navio, logo se esgotou. Veio a fome, o
guri esperneava, rolava na relva, enchia a boca de terra. Já não me tocava tanto o choro
de meu filho‖ (p. 38).
Outro fator que endossa a crítica construída ao longo da narrativa é o fato de
eles serem um ―modelo‖ de famìlia burguesa. Eles tinham dinheiro. Afinal, ele comprou
o terreno ao lado da casa deles por um ―preço exorbitante‖, comprou um navio e, como
o próprio narrador observa, ―já gastara uma fortuna com as suas excentricidades‖ (p.
37). Como é possível notar, eles eram uma família abastada financeiramente. Nesse
71
ponto, percebe-se a ironia do autor em relação à futilidade de uma sociedade consumista
e materialista, personificada na figura de Bárbara, que vê na obtenção de bens materiais
a razão de ser. Seus pedidos são tão ou mais fúteis do que a própria vontade do marido
em realizá-los. Acredita-se que a intenção de Murilo tenha sido mesmo a de
ridicularizar esse tipo de comportamento que não mede esforços para possuir tudo o que
o dinheiro pode comprar. Segundo Pavla Lidmilová, ―a introdução do elemento
fantástico representa, para o autor, um modo de denúncia da hipocrisia e dos
preconceitos do ambiente pequeno-burguês‖ (1984, p. 81). Por isso o insólito. Ele
consegue dar a verdadeira dimensão dos valores que a sociedade moderna elegeu como
essenciais. A família, o afeto e o carinho não estão no rol das coisas relevantes, mas sim
a capacidade de ter.
4.1.3. A cidade
No início do conto, Cariba, o personagem principal envolvido nos
acontecimentos, está a caminho de uma cidade, quando o trem para na ―antepenúltima
estação‖ (p. 57), lá permanecendo. Ele é forçado a caminhar até a cidade que desejava.
No caminho, faz algumas perguntas ao funcionário que o acompanha, recebendo dele
apenas resposta frias e secas. Percebe que as ruas estão vazias e as janelas estão
fechadas. Ao chegar à cidade que desejava, nota que os habitantes de lá o observam
com desconfiança. Logo em seguida, ele é preso pelos militares locais sob a alegação de
que o motivo da prisão era porque perguntava demais.
O exagero nessa narrativa está presente na relação entre o indivíduo e o mundo
que o cerca. Nessa relação, ―o modo pelo qual o herói tenta se integrar ao seu meio
delimita o percurso absurdo do indivìduo dentro da sociedade‖ (Schwartz, 1981, p. 39)
e cria um confronto entre a realidade e seus desejos, gerando um processo de
desajustamento entre o indivíduo e o meio em que está. Essa situação pode ser
constatada logo no início do conto, quando Cariba imagina que havia uma ―provável
desconsideração à sua pessoa‖ (p. 57) pelo fato de o trem estar parado por muito tempo.
O interesse dele eram as ―Belas mulheres?‖ do local; no entanto, ao indagar sobre isso
ao policial, recebe como resposta seca: ―Casas vazias‖. Essas passagens denotam esse
desajuste do sujeito com a realidade local. Tal fato fica ainda mais evidente quando o
policial lhe pergunta o que fora fazer ali e ele responde: ―Nada‖ (p. 59), fato este que
72
confirma as suspeitas do militar: ―Então é você mesmo. Como é possìvel uma pessoa ir
a uma cidade desconhecida sem nenhum objetivo?‖ (p. 59). Há, nessa relação, um tom
irônico que evolui paulatinamente para o cômico. Nota-se claramente que a comicidade
do acontecimento fica mais evidente quando as testemunhas do suposto crime não são
capazes de incriminar o meliante, mas somente Viegas, a prostituta local, teria
condições de fazê-lo.
Nesse aspecto, percebe-se que o exagero das ações dos militares — somado ao
dos homens usados como ―testemunhas‖— serve para reforçar a idiotização do sistema
que elege culpados sem provas, necessitando absurdamente da palavra final de uma
prostituta. Esse fato ridiculariza a credibilidade da polícia que se vê a mercê da
criatividade [ou não] de Viegas. Não se sabe, ao certo, se Cariba disse a ela que ―É
preciso conspirar‖ (p. 60) ou se ―Não é necessária a polìcia‖ (61). Isso não fica claro
porque na narrativa o personagem não desmente nem confirma o que é dito pela mulher.
Ele apenas a olha sem esboçar reação. Enfim, o fato é que — dando aos militares o que
os mesmos queriam — a prostituta descredencia o trabalho investigativo da polícia,
jogando por terra qualquer seriedade que se possa esperar do ―sistema repressivo de
uma cidade‖ (1981, p. 78). É por isso que Cariba configura-se como uma ―força
transgressora‖. Sendo ele de fora e não se adequando ao padrão local, transgride a
suposta normalidade das coisas; uma normalidade absurda, mas plausível para aqueles
que defendem o sistema.
Depois de ouvir o pequeno relato de Viegas, a única coisa que o narrador diz
sobre o personagem é que ―Cariba sentiu uma grande inveja de quem abraçara a mulher.
Que corpo tivera nas mãos!‖ (p. 61). Ou seja, ele estava mais interessado na mulher —
que enfim encontrara — do que na situação toda que se descortinava diante de si, o que
demonstra, também, que esse pseudo-herói foi colocado ali justamente para que a
engrenagem social funcionasse e se mostrasse eficaz; ele era necessário. É nesse sentido
que Schwartz afirma que ―a presença do acusado, mais do que necessária, torna-se
elemento vital justificador do sistema legislativo social‖ (1981, p. 78), mesmo que tal
elemento esteja, numa análise contextual da situação, ridicularizando todo o sistema.
Isso se dá pelo caminho inverso. Cariba representa o indivíduo assolado por um sistema
ineficaz. No entanto, ele passa a aceitar seu martírio passivamente se isso lhe trouxer a
oportunidade de ver a prostituta que, por sua vez, representa a anulação completa de sua
identidade e de sua liberdade enquanto ser pensante. Depois dela, nada mais importava.
73
Por último, há dois fatos que ratificam o exagero da burocracia e da inexatidão
das informações prestadas pelas pessoas envolvidas em todo processo acusatório: o
conteúdo do comunicado que chegou à cidade, dizendo que ―O homem chegará dia 15,
isto é hoje, e pode ser reconhecido pela sua exagerada curiosidade‖ (p. 62) e as frases
ambíguas de Viegas. No primeiro caso, é informado o dia, mas não o mês nem o ano em
que ocorrerá tal fato, o que deixa a mensagem muito vaga. Esse fato enfatiza o teor
irônico da narrativa. Como pode a burocracia de uma cidade capturar, prender, julgar e
sentenciar alguém baseado em uma informação tão frágil como a do comunicado que
chegou ao lugar? E mais! Como numa cidade correta e séria, poderia a palavra de uma
prostituta ter tamanho peso? Certamente, essas coisas são uma forma de ridicularizar a
todos os sistemas que agem de forma semelhante, descredenciando o indivíduo e dando
crédito àqueles escolhidos a dedo pelos que estão no poder. No segundo caso, as frases
da mulher são confusas. Quando ela diz ―Não me lembro do seu rosto, mas um e outro
são a mesma pessoa‖ (p. 61), demonstra imprecisão e, logo depois, afirma ―Sim, é ele‖
(p. 61), acusando-o firmemente, há algo que demonstra a montagem de uma cilada para
Cariba. Inicialmente, Viegas, assim como os outros policiais, vê na prisão do
desconhecido uma chance de se encaixar no sistema. Contudo, mesmo diante de tal
possibilidade, ela oscila. No final do conto, quando ela, ao visitá-lo na cadeia, diz ―É
você‖ (p. 63) e o narrador acrescenta a informação de que ―Cariba sente o imenso poder
daquela prisão‖ (p. 63), percebe-se que tanto a frase dela quanto a do narrador torna-se
ambígua dentro do contexto da narrativa, indicando que Viegas tinha um poder sobre
ele parecido ao que ela exercia sobre os militares e os homens daquela cidade. A prisão
a que o narrador se refere demonstra o domínio de Viegas sobre Cariba que, àquela
altura dos acontecimentos, faria qualquer coisa para poder continuar a vê-la, inclusive
aceitar a culpa.
4.1.4. O homem do boné cinzento
O conto narra uma história em que o narrador, Roderico, e o irmão, Artur,
recebem como vizinho um homem que usa um boné cinzento e ―entre os dentes escuros
trazia um cachimbo curvo‖ (p. 72). São dois os fatos insólitos nessa narrativa que
chamam muito a atenção: o velho Anatólio que já chega à vizinhança magricela e vai
aos poucos emagrecendo, tornando-se transparente, até que no final, ele deixa ―escorrer
74
uma baba incandescente pelo tórax abaixo‖ (p. 75) e incendeia-se, restando apenas a
cabeça encoberta pelo boné cinzento e o cachimbo que se apaga no chão. O outro fato
insólito ocorre com Artur, o irmão do narrador-personagem que, semelhantemente ao
velho, também vai sumindo aos poucos, encolhendo e, no final da história, transforma-
se em uma bolinha negra.
Contrariamente ao que ocorreu no conto ―Bárbara‖, a hipérbole em ―O homem
do boné cinzento‖ tem um caráter invertido (tapinosis). Ela serve para marcar o
desaparecimento gradativo tanto de Anatólio como o de Artur. É possível perceber que
o autor constrói um jogo antitético, criando uma relação em que a hipérbole enfatiza a
duplicidade dos fatos e/ou dos acontecimentos. Nota-se essa estratégia já no início do
conto, quando um velho solitário chega à vizinhança com uma mobília extravagante
para morar numa casa em ruìnas. Passagens como ―Além de ser demasiado grande para
uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços‖ (p. 71), ―A quantidade de volumes,
empilhados na espaçosa varanda do edifìcio‖ (p. 71) e ―Possivelmente a casa havia sido
alugada para depósito de algum estabelecimento comercial‖ (p. 71) realçam o exagero
da situação, reforçando o jogo entre os opostos: um velho solitário x mobília enorme e
rico celibatário x casa em ruínas.
Do mesmo jogo antitético, fazem parte o narrador e o irmão Artur. Este está
―sempre ao sabor de exagerada sensibilidade‖ (p. 71) e Roderico — de acordo com a
narrativa — se apresenta mais centrado e focado, sem dar asas à curiosidade e ao
exagero que controlava o irmão: ―Eu me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse,
nem se ocupasse tanto com a vida dos outros‖ (p. 73) e ―Impelido pela curiosidade, meu
irmão não me dava folga‖ (p. 73). Como se pode perceber, os dois irmãos também são
colocados nesse jogo de contrastes que percorre a narrativa. No entanto, só começa a
ocorrer uma ruptura desse caráter duplo dos fatos, quando Roderico percebe que o
irmão muda suas feições. Ao dizer ―Não tanto pelo magricela, que pouco que
importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-
lhe os olhos‖ (p. 74), o narrador sinaliza ao leitor que se opera uma mudança
semelhante à do velho em Artur: ele também estava emagrecendo. A culminância desse
processo se dá ao término da narrativa, quando o irmão de Roderico transforma-se em
uma bolinha preta.
Chega um momento em que o homem do boné cinzento, além de magro ao
extremo, também fica transparente. Esse fato surreal chama mais a atenção de Artur e
assusta a Roderico que percebe a possibilidade de ver através do corpo do homem os
75
objetos da casa se misturando aos órgãos internos. É como se a casa e Anatólio fossem
uma coisa só. No entanto, indiferente ao que lhe acontecia, Artur não percebe que
quanto mais insólita se tornava a situação de Anatólio, a dele também se agravava. É
nesse sentido que Audemaro T. Goulart diz que ―a tragicidade põe a descoberto a
fragilidade de Artur, realçando-lhe a incapacidade de desligar-se da inusitada figura de
Anatólio‖ (1995, p. 125). Artur se deixa levar pela observação exagerada do outro a tal
ponto que não nota que ele mesmo segue os paços do velho do boné cinzento. Tanto a
morte do homem do boné cinzento como a de Artur são retratadas de forma surrealista.
Assim como em outros contos de Murilo Rubião, essa narrativa apresenta
algumas possibilidades de leitura. Aqui, levar-se-á em conta o homem que se configura
no espaço do texto. Como não é difícil perceber, o velho Anatólio era um homem
solitário. Não se sabe se por escolha ou consequência da vida. É por esse caminho que
se julgou mais propícia a interpretação do presente conto. Acredita-se que um dos temas
que esteja presente nele é justamente a solidão do homem. Um homem que viveu toda
sua vida e ao chegar ao final dela encontra-se só e desamparado. Esse ser concentra em
si a síntese do mal Pós-Moderno. Ele é reconhecido pelo que tem e não pelo que é.
Chegar à velhice com uma mobília grandiosa e morar numa casa grande não são
indicativos de que esse indivíduo esteja rodeado de pessoas reconhecedoras de suas
conquistas.
Nesse aspecto, pode-se aventar que ir gradativamente emagrecendo indica
metaforicamente a situação do homem que num processo de insulamento vai aos poucos
se apagando da memória de todos, até se encontrar com a inevitável morte. Por isso
Murilo utilizou essas duas alegorias: o emagrecimento e a transparência. A primeira
conota a situação do ser em definhamento tanto físico quanto emocional; e a segunda, a
concretização do fim inevitável que o afastamento do convívio social pode trazer ao
homem. Isso também é possìvel perceber no conto ―Alfredo‖, em que o personagem-
peregrino transmuta-se em um dromedário e é visto por todos da cidade como um
animal. É por isso que é correto dizer que o homem é um ser essencialmente social. A
solidão fez com que Anatólio se fundisse aos utensílios de sua casa. Homem e objetos
passam a ser a mesma coisa. É o indivíduo coisificado no seu espaço de vivência. Ver
através dele as ―jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins‖ (p. 74) é dizer
que o velho não era mais. O processo de desconstrução do ser atinge seu ápice nesse
momento da narrativa. E, por último, não é à toa que ―o coração parecia estar
dependurado na maçaneta da porta‖ (p. 75). Metaforicamente, isso remete à ideia de
76
abandono. É possível conjecturar que esposa, filho [ou filhos], amigos, parentes e
pessoas que compuseram a vida de Anatólio simplesmente se foram ou o abandonaram,
deixando-o solitário para viver seus últimos dias.
4.1.5. Memórias do contabilista Pedro Inácio
Pedro Inácio, nome herdado do tataravô, narra suas memórias, tentando
justificar sua ―irresistìvel atração pelo amor e pela contabilidade‖ (p. 106). Para isso, ele
enumera dez pessoas que fizeram parte de sua historia. Relembrando as mulheres que
de alguma forma influenciaram em sua vida amorosa e tentando reconstruir sua árvore
genealógica, numa possível busca por repostas ao seu amor pelas mulheres e pelos
números, Pedro Inácio compõe um memorial que passa ao leitor a certeza da incerteza
de tudo o que está rememorado ali.
Não há como iniciar a leitura desse conto sem perceber a influência que
Machado de Assis exerceu sobre Murilo. A primeira parte das memórias remete o leitor
ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que também fica evidenciado em
uma das citações que antecede o conto. Por esse motivo e pelo tom que se instaura na
narrativa, pode-se perceber certo teor de ironia do narrador em relação à sua história e à
de seus supostos parentes. De certa forma, essa ironia ajuda a enfatizar o exagero das
ações dos antepassados do narrador-personagem no contexto, uma vez que ela auxilia
na construção de um relato grandioso e muitas vezes cômico das memórias de Pedro
Inácio. O desejo de conhecer suas raízes era tão intenso que o próprio personagem
reconhece que, depois de Dora —―uma espanholinha cor de lìrio, que gostava de dança
clássica e mascar chicletes‖ (p. 106), ele adquiriu uma verdadeira ―obsessão de
consultar alfarrábios e viver vasculhando árvores genealógicas‖ (p. 106).
O tom exagerado e irônico continua quando o narrador cita José Antônio da
Câmara Bulhões e Couto. Segundo ele, um beberrão que escreveu dez volumes que
discorriam sobre a utilidade das bebidas, e seis que abordavam o caráter não hereditário
do vício no álcool. O exagero está na quantidade de exemplares produzidos em uma
pesquisa que, ironicamente, não fora comprovada e não servia para nada. Seria isso
mais um ―emplasto‖? O lado cômico da situação fica reservado à constatação de que o
tal ancestral morreu de desgosto quando soube da morte de seus bisavós por causa de
cirrose hepática.
77
Outros personagens tão representativos e cômicos quanto José Antônio surgem
no decorrer da história: o piedoso e milagroso bispo Basílio da Câmara Bulhões e
Couto, o tataravô Pedro Inácio, o viajante Acácio, Tio Paulo, A Jandira, de inspiração
machadiana, Aspásia e Dora — que surge no início e retorna modificada no final do
conto —. Todos eles apresentam algum elemento que lhes aproxima a descrição na
narrativa do discurso irônico, cômico, materialista e, claro, exagerado: ―Quem chegar a
ler essas páginas poderá pensar que estou exagerando. Todavia, incorrerá em erro‖ (p.
107). A negação do exagero é consciência de que tal leitura é possível.
Como já foi dito anteriormente, as descrições dos personagens são marcadas
por situações inusitadas e grandiosas que denotam características marcantes de cada
uma delas. As mulheres estão diretamente relacionadas com o dinheiro gasto com elas
ou a recompensas. Jandira ―custou sessenta mil-réis de bonde, quarenta de
correspondência, setenta de aspirina‖ (p. 105); Dora custou ―algumas dúzias de
chicletes, cinco bilhetes de festivais (...), uma caixa de orquídea e apenas dois envelopes
de aspirina‖ (p. 106) e Aspásia, a noiva, deu-lhe um grande prejuízo, pois ele afirma:
―Como é dispendioso um noivado! Até hoje não sei em quanto me ficou esse meu
desafortunado romance‖ (p. 106). Nota-se que não se faz referência ao sentimento dele
por elas. Na verdade, todos os relacionamentos de Pedro Inácio estão racionalmente
identificados com um valor, o que sugere não a importância do sentir, mas sim quanto
se gasta para se ter tal luxo. Como é possível perceber, a equivalência entre
relacionamento e dinheiro é completa no texto. Segundo Schwartz, ―cada uma das
tentativas de relacionamento do herói é equacionada em termos econômicos, (...). Deste
modo, a pessoa nunca é identificada por aquilo que ela é, mas pelo que ela custa‖ (p.
35).
Ironicamente, os supostos parentes homens que aparecem no conto estão
vinculados a algum tipo de relacionamento [ou desejo] amoroso fracassado. O único
que foge a essa regra é o José Antônio, que morreu de desgosto. Ele ―não resistiu à
derrocada de suas teorias e criou, assim, uma lamentável exceção entre os da minha
honrada estirpe‖ (p. 107). O bispo Basìlio da Câmara morreu murmurando o nome de
uma chinesinha excepcional que não lhe retribuiu o amor; o tataravô Pedro Inácio,
depois de escalar a parede para chegar ao quarto das mulheres de uma fazenda, foi
encontrado morto ―vitimado por uma fratura na espinha. Morrera gloriosamente,
buscando o amor, entre queijos e cebolas‖ (p. 108); o viajante Acácio morreu
abandonado em Roma. No entanto, ―não se sabe se de fome ou paixão‖ (p. 108) e ―Tio
78
Paulo, que sempre limitou suas conquistas ao elemento africano‖ (p. 109), teve lepra e,
depois de alforriar suas escravas, por elas foi tratado até a sua morte. Nesse caso, não
houve ali um relacionamento amoroso entre um homem e uma mulher, mas sim um
reconhecimento por parte das escravas que o acolheram nos seus últimos dias de vida.
De certa forma, essas figuras masculinas estão envoltas em situações grandiosas em
nome de um amor que não se realiza porque, na verdade, não existia. Sendo assim, a
busca pela árvore genealógica torna-se a negação do amor e a ratificação do
materialismo comum àqueles homens que viam as mulheres desejadas como algo a ser
adquirido, como se fossem um bem material ou um bibelô.
Por último, falta dizer que ao buscar as causas de sua atração pelo amor e pela
contabilidade, Pedro Inácio elenca alguns antepassados que dizem a ele mais do que a
própria genética familiar. Embora aqueles homens não fossem realmente seus parentes
— porque fora trocado na maternidade e sua mãe tinha hábitos extravagantes à época —
há certa semelhança entre eles. Não é gratuito que o conto intitula-se ―Memórias do
contabilista Pedro Inácio‖. Em todas as situações nas quais ele está diretamente
envolvido, há uma referência direta ao dinheiro. Quando fala de si mesmo, desde o
primeiro parágrafo do conto até o último, Pedro Inácio dá a entender que para ele o
amor é um bem que o dinheiro pode comprar. Todas as mulheres que lhe passaram pela
vida foram ―pagas‖ de alguma forma. Esse comportamento atinge seu ápice quando, no
final da narrativa, depois de se encontrar com uma Dora mais ―gorda e flácida‖ (p. 110),
saìda de um sanatório, ele não dá importância ao fato e afirma que ―foi uma tarefa dura
a de refrear minha curiosidade em saber quanto lhe custara a estada no sanatório, talvez
bem mais do que meus estudos de genealogia‖ (p. 111). O mais importante era saber os
números, a quantia gasta e não como estava a pessoa. Ou seja, a história de seus
supostos parentes, na verdade, se confunde com a dele, que vê o amor e todas as
mulheres como algo mensurável pelo capital.
4.1.6. D. José não era
O conto inicia com um fato que serve como trampolim para a própria narrativa:
―uma explosão violenta sacudiu a cidade‖ (p. 125). A partir desse fato, surgem
conjecturas a respeito do que teria provocado tal acontecimento. No meio das tentativas
de adivinhação, surge o nome de D. José. Alguns diziam que o estrondo era porque ele
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estava ―matando a esposa a dinamite‖ (p. 125). Por fim, logo alguém percebe que
Danilo José Rodrigues, o D. José, estava apenas ―experimentando fogos de artifìcios‖
(p. 126). No entanto, mesmo sabedores do motivo da explosão, a turba continua a tecer
os mais diversos comentários a respeito de Danilo José Rodrigues, inclusive depois do
suicídio do personagem.
Sem sombra de dúvida essa narrativa poderia figurar no rol das histórias que
apresentam a ambiguidade como um dos temas centrais. A começar pelo próprio título
do conto ―D. José não era‖, nota-se que o leitor é levado, depois da leitura integral do
mesmo, a se questionar: não era o quê? Bom? Ruim? Marido fiel ou infiel? Assassino?
Vítima? São? Louco? Enfim, essas perguntas podem ser levantadas no decorrer da
história e gerar um sentimento de ambiguidade porque nenhuma delas é claramente
respondida nem pelos curiosos de plantão nem pelo texto em si.
No entanto, decidiu-se colocá-lo no sub-capítulo que aborda a hipérbole
porque, embora a ambiguidade esteja presente no conto, é através do exagero que se
constrói a narrativa. Os fatos elencados pelos curiosos são de natureza incerta, sempre
seguidos de uma possibilidade contrária à primeira e realçados por uma ideia exagerada
logo a seguir. Nota-se isso no início do conto, quando as explosões de fogos de
artifícios são duvidosamente relacionadas ao fim do mundo, a bombardeios, a exercícios
de artilharia e a uma invasão misteriosa. Porém, a única ideia com a qual todos
concordaram foi o fato de D. José estar matando a mulher com dinamite, o que, por sua
vez, dá a dimensão do tamanho dos absurdos que se poderia esperar daquelas pessoas.
Houve ainda quem duvidou de que a dinamite tivesse sido insuficiente para matar a
esposa e, por isso, D. José fora forçado a lançar mão do revólver. A partir daí, o insólito
está definitivamente instaurado na história. Somente em uma narrativa fantástica, um
revólver seria capaz de causar um estrago maior do que o de uma dinamite.
Há uma tragédia anunciada. Para Davi Arrigucci Jr., ela é uma espécie de
sacrifìcio, ―imposto como rotina necessária e corrosiva. Um trágico manejado a conta-
gotas, diluído no cotidiano, capaz de consumir os personagens em meticulosa morte
lenta‖ (2001, p. 159). Tivesse ele ódio da mulher ou a amasse; fosse o casamento deles
baseado em sentimento ou em interesse; houvesse meninos chorando de fome ou todos
mortos pela tuberculose; fosse ele um escritor de fábulas ou um louco que via duendes
em sua própria casa, a questão é que todas essas incertezas contribuíram para o fim
trágico de D. José. O suicídio dele era apenas uma questão de tempo. Todavia, até
mesmo o suicìdio não fora levado a serio pelos populares. Segundo Goulart, ―a
80
submissão a um destino impiedoso está caracterizada na impossibilidade de ele livrar-se
das injúrias e difamações de que era vìtima‖ (1995, p. 148). Há uma relação de causa e
consequencia. O fim trágico do personagem era inevitável. No entanto, ele não foi
suficiente para resgatar a dignidade do protagonista, pois depois da morte de D. José
alguns ainda difamavam sua memória. Nesse aspecto, percebe-se a ironia muriliana que
vê no dilaceramento social do indivíduo um dos males da sociedade contemporânea.
Esse dilaceramento social do indivíduo fica mais evidente quando um dos populares diz
que o povo ―Observava-o com ferocidade‖ (p. 127). Sendo assim, D. José se transforma
aos poucos em um ―elemento estranho que motiva as pessoas a emitirem juìzos de
valores a seu respeito‖ (SCHWARTZ, 1981, p. 79). A partir desse momento, a morte do
personagem é apenas uma questão de tempo. Caso não se matasse, uma outra morte
seria arranjada para ele.
É possível perceber que a relação que o mundo mantém com o indivíduo que
nele habita é o tema norteador dessa narrativa. O herói dela tem seu destino traçado
pelas consequências das difamações e injúrias construídas a seu respeito ao longo do
conto. O fim inevitável é ratificado através de um discurso em que se mesclam um tom
disfarçadamente sério e a graça mordaz, onde a ironia e a comicidade dos fatos servem
para realçar a crueldade de uma sociedade que proporciona o ―esquartejamento‖ público
do personagem enquanto ela se delicia com isso. É por isso que se pode relacionar este
conto ao existencialismo sartreano. Se de um lado, o homem aparece como elemento
central desse quebra-cabeça social violento, em que a dilapidação identitária faz parte
de um ritual legitimado pela sociedade; por outro, — encarcerado em um universo em
que o trágico e o cômico contribuem para uma desconstrução do indivíduo — esse
homem priva-se da liberdade que poderia dar-lhe a completa sensação de ser. Por isso
há o suicídio no fim do conto. Simplesmente porque D. José não era.
4.1.7. A lua
Neste conto, o narrador tem verdadeira obsessão por um personagem. Todas as
noites, sua única ocupação era ―vigiar os passos de Cris‖ (p. 133). Encostado ao muro
da casa observava sua vítima sem medo de ser descoberto. A rua era escura e deserta.
Cris caminhava pela escuridão percorrendo o mesmo trajeto de todos os dias, parando
em alguns momentos para recolher alguns objetos insignificantes que encontrava pelo
81
chão e que seriam posteriormente descartados. Passados alguns meses de perseguição,
numa noite qualquer, o narrador é surpreendido pela mudança no itinerário da vítima.
Depois de parar hesitante em frente a um cinema e de passar ―pela rua do meretrìcio‖
(p. 135), o personagem para diante de uma casa e ali tem um punhal mergulhado em
suas costas. Ele vai ao chão e do ―seu corpo magro saiu a lua‖ (p. 135). Uma prostituta
errante ―agarrou-a nas mãos‖ (p. 135). A mulher chora e deixa a lua escapar por entre os
dedos. O narrador se abaixa para ver o rosto de Cris e percebe que sua vítima possui um
―rosto infantil, os olhos azuis. O sorriso de massa‖ (p. 135).
A narrativa é curta. São apenas duas páginas e meia. No entanto, é, sem sombra
de dúvida, um daqueles contos em que o leitor termina a leitura em um verdadeiro
xeque-mate, imaginando respostas para algumas perguntas. Por que a fixação no
personagem? Quem é esse narrador? Quem é o Cris? Por que ele fazia o mesmo
percurso todas as noites? Por que, no dia do assassinato, ele mudou seu itinerário?
Enfim, há muitas dúvidas que se fazem presente quando da leitura do conto e que, na
verdade, nenhuma delas se esclarece por si só.
Audemaro Taranto acredita que essa narrativa serve como modelo para uma
análise que se desenvolve a partir de uma teoria freudiana. Para ele, ―a fixação do
narrador em Cris e o seu mórbido desejo de matá-lo encontram ressonância na teoria
psicanalìtica do duplo‖ (1995, p. 149). Por essa abordagem, Cris seria o duplo do
narrador-personagem. Há uma identificação entre este e aquele. Por isso o desejo de
conhecê-lo, de seguir seus passos, de saber suas manias e de matá-lo. Tanto um quanto
o outro são pessoas que vivem isolados socialmente. Dessa forma, o narrador começa a
perceber um elo que estabelece uma identidade entre ambos e que, de certa forma, o
torna dependente de Cris. Por isso, o desejo de matá-lo é uma forma de ele ―se libertar
do medo da morte‖ (1995, p. 153); morte esta que é tanto a fìsica quanto a social a que
os dois estão fadados.
Eliane Zagury e José Schwartz consideram o conto um exemplo de narrativa
em que elementos cristãos estão relacionados. Zagury afirma que ―o aspecto religioso
está claro no nome e na caracterização da vìtima‖, (...) assim como na figura da
prostituta que assiste à morte e detém a ascensão da lua (1971, p. 29). Sendo assim, o
assassinato de Cris — uma forma abreviada de Cristo ou de Cristão — era algo
inevitável. Dando maior profundidade a esse pensamento, Schwartz considera que o
conto foi estruturado a partir de estratégias narrativas que se desenvolvem em ―oposição
binária‖ (1981, p. 73): o perseguidor e o perseguido, luz e trevas; vida e morte, Cristo e
82
Judas, pecado e redenção. Para ele, Cris opõe-se ao narrador-personagem em alguns
aspectos. Há serenidade em seu comportamento, pois ―ele nunca se inquietava com o
que poderia estar se passando em torno dele‖ (p. 133). Cris possui luz, pois,
metaforicamente pensando, a lua que lhe sai do corpo depois de sua morte aponta para
essa ideia. Ter luz é ter vida. Seus olhos são claros e infantis, demonstrando a pureza do
personagem. Contrária a esses elementos todos é a condição do narrador-personagem.
Não há luz nele: ―Nem luz, nem luar. O céu e as ruas permaneciam escuros‖ (p. 133).
Ora, se luz é vida, a ausência dela é morte. Na narrativa bíblica, o personagem que se
opôs a Cristo foi Judas. Aqui, se se considerar que Cris representa a figura de Cristo,
não é descabido imaginar que o narrador ocupa a posição de Judas; aquele que deu o
―último golpe‖ no messias. Há, inclusive, passagens no texto que possibilitam uma
referência entre o narrador e aquele personagem bìblico [Judas]: ―Sombras maliciosas e
traiçoeiras vinham a meu encontro‖ (p. 133), ―A profunda escuridão que nos cercava‖
(p. 133) e ―já me acostumara ao negro da noite‖ (p. 134). Nelas, notam-se elementos
que conotam a ideia de um ser que vive sob a influência do mal, das trevas e da
escuridão. É importante também ressaltar o fato de o assassinato ter sido cometido
traiçoeiramente pelas costas, semelhante ao da narrativa cristã. Judas trai a confiança de
Cristo, entregando-o aos soldados romanos. No conto de Murilo, a traição é tipificada
no apunhalamento pelas costas, indicando a covardia da ação. Afinal, se o assassino
olhasse para o rosto infantil, os olhos azuis e o sorriso de massa do homem talvez não
tivesse tido coragem de realizar tal ato.
Conhecendo a biografia de Murilo, o ano da primeira publicação do conto
[1953], a ligação que ele mesmo reconhece ter tido com o Cristianismo e considerando
a teoria existencialista, acredita-se que a segunda visão apresentada tenha mais respaldo
no contexto geral da obra do autor. O que não quer dizer que a de Audemaro Taranto
esteja em desacordo, até mesmo porque a narrativa de Murilo vez ou outra passeia pelos
caminhos do duplo a que ele se referiu. No entanto, considerando que o homem aparece
como núcleo da narrativa e o elemento insólito surge a partir dele, é importante salientar
que mais relevante que a duplicidade desenhada na narrativa é a questão desse homem
que se encontra deslocado da sociedade por achar que não pertence a ela. Por isso houve
o ―julgamento‖, a ―condenação‖ e a ―crucificação‖. A morte de Cris simboliza, de
acordo com Schwartz, ―a condenação do homem ―puro‖, que não poderia viver na
sociedade sem ser contaminado por ela‖ (1981, p. 76). Essa suposta pureza também está
representada na lua que sai do corpo do personagem e no sorriso sem malícia estampado
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tanto no rosto da boneca como no dele no final do conto. Nesse sentido, pode-se dizer
que a morte do personagem simboliza a ideia de liberdade; uma liberdade que o homem
não tem em vida. Tanto Cris como o narrador não são sujeitos de suas próprias vidas.
No julgamento do assassino, Cris está preso à rotina de todos os dias. Seu
comportamento é parecido ao de alguém que caminha sem rumo e sem motivo aparente
pelas ruas da cidade, observando um mundo no qual não se encaixa direito. É
justamente nesse ponto que reside a identificação entre um e outro. Segundo o
observado-assassino, matar Cris equivaleria a possibilidade de ser livre para ambos: um
estaria liberto de um mundo para o qual não estava preparado; o outro, de uma vida sem
sentido.
4.1.8. Os dragões
Esse conto relata a chegada de um grupo de dragões a uma cidade. Desde o
primeiro momento em que chegaram, eles ―sofreram com o atraso dos costumes‖ (p.
137) do lugar e com a incompreensão e ignorância do povo. Alguns achavam que eles
pertenciam a uma raça ou país diferentes; o vigário, inicialmente, pensava que os seres
alados eram ―enviados do demônio‖ (p. 137); ―um leitor de jornais, com vagas ideias
científicas (...) falava em monstros antediluvianos‖ (p. 137). Em sua maioria, porém, o
povo acreditava que os dragões eram criaturas abomináveis. Somente as crianças
sabiam que eles eram apenas dragões. Nota-se claramente já no início do conto que
Murilo tece uma ironia crítica na qual ele convida o leitor a refletir sobre o
comportamento próprio do ser selvagem e do civilizado. É possível identificar uma
inversão nos valores e nos papéis dos seres envolvidos nessa crítica: aqueles que
deveriam agir como selvagens [os dragões], são puros enquanto não são corrompidos
pelos homens; já os supostos civilizados agem como se não o fossem.
O elemento fantástico nesse conto surge a partir do momento em que os dragões
aparecem na cidade. Não há nenhum espanto por parte dos habitantes dali. Goulart
considera que
Nessa narrativa, a normalidade caracteriza-se numa espécie de harmonia
entre o natural e o sobrenatural, quando o leitor percebe que nenhum espanto
existe numa convivência absolutamente normal que se estabelece entre
dragões e seres humanos, numa determinada cidade (1995, p. 26).
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Embora eles não vissem com bons olhos a chegada dos animais, nenhum dos
moradores achou estranho o surgimento de tais criaturas. Há uma perfeita harmonia no
que diz respeito à existência delas. No entanto, o insólito ganha uma dimensão maior
quando os dragões começam a ser tratados como pessoas. O padre até pensou em
batismo e alfabetização. Logo, com o convívio com os humanos, o comportamento dos
dragões foi se corrompendo e começaram a agir como seres inconsequentes, dados ao
vício da bebida, a mulheres e à vida boêmia. Aos poucos as criaturas foram
desaparecendo, até que só restou João, que sumira misteriosamente da cidade logo
depois da partida de um circo. Por fim, o conto termina relatando a rejeição que os
dragões criaram em relação ao lugar e às pessoas dali, e ―formando longas filas,
encaminhavam-se para outros lugares‖ (p. 142), fugindo da cidade.
Em ―Os dragões‖, a noção que se deseja passar em relação ao exagero não está
diretamente ligada à grandiosidade, ao aumento, à pequenez ou à diminuição de um
objeto, de um desejo ou de uma habilidade. Neste caso específico, a hipérbole pode ser
observada na relação exageradamente pessimista de como o ser humano é visto pelo
professor-narrador. O caráter e o comportamento humanos aprecem nesse conto como
algo profundamente negativo e aniquilador, de tal forma que fica sugerido no final do
conto um ―exìlio‖ para a raça humana. Ela deve ficar isolada e longe dos dragões, ou de
qualquer ser ―puro‖. Por esse motivo, é possível dizer que ele — o exagero — está
apoiado na capacidade destrutiva que o homem tem de aniquilar tudo o que toca.
Inclusive a pureza dos dragões que se encontra identificada no conto pelo fato de
―apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, saberem que
os novos companheiros eram simples dragões‖ (p. 138). Ratificando a ideia de pureza
dos animais, Jorge Schwartz assinala que ―o dragão surge como elemento puro, sem
contexto nem história, e instaura uma relação de identidade com as crianças da cidade‖
(1981, p. 40). No entanto, essa identidade se esvai à medida que os dragões crescem e
almejam uma vida humana.
Como se vê, não é difícil perceber que Murilo Rubião constrói uma narrativa
metaforicamente insólita para abordar questões que tangenciam elementos que
compõem uma visão crìtica e pessimista da sociedade. Para Schwartz, ―a sociedade
configura-se, assim, como elemento contaminador e propagador do mal‖ (1981, p. 41),
ou seja, fazer parte dela é correr o risco de se deixar contaminar pelo homem e seus
comportamentos desumanos. Segundo Eliane Zagury, nesse conto há uma ―tentativa de
absorção social (a educação dos dragões), mas, desta vez, a perspectiva é da sociedade e
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não do indivìduo‖ (1971, p. 33), como já ocorrera em outros contos do autor. Percebe-se
que a tentativa fracassa quando os dragões passam a ter comportamentos semelhantes
aos dos humanos, o que de certa forma causou-lhes maior rejeição e, consequentemente,
o desaparecimento sintomático das criaturas. Ainda de acordo com Jorge Schwartz ―a
ânsia de atribuir características humanas ao dragão faz com que sejam eliminados os
atributos dragonáceos‖ (1981, p. 39). Eles deixam der ser o que são e perdem a pureza
inicial dos primeiros dragões que chegaram à cidade, culminando na perda total da
identidade dos animais.
É possível perceber que a crítica que se encontra nessa narrativa constrói-se
através de um discurso que mescla a ironia e a comicidade dos fatos absurdos ocorridos
na cidade após a chegada dos dragões. Passagens como ―o padre afirmou uma tese: os
dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados‖ (p. 138), ―Como
jamais tivesse ensinado a dragões‖ (p. 139), ―Tudo fiz para destruir a ligação
pecaminosa e não logrei separá-los‖ (p. 140) e ―Mesmo o padre não dispensava o seu
comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade‖ (p. 141) deixam transparecer
que além do tratamento irônico dado à situação, há também um certo tom de exagerado
gracejo que desconstrói a legitimidade ou a seriedade das instituições referenciadas em
tais passagens: na primeira e na última, a credibilidade da igreja é posta em xeque; na
segunda, há um sutil deboche em relação à educação que é a base de qualquer
sociedade; na terceira, o casamento — considerado por muito tempo um dos pilares da
civilização moderna — também é colocado em descrédito, uma vez que a mulher
deixou o marido para viver com um dragão. Como se vê, Murilo consegue através de
uma narrativa simples e aparentemente despretensiosa provocar reflexões que vão além
da questão literária.
4.1.9. A armadilha
A princípio, o referido conto não apresenta nenhum acontecimento que possa
provocar surpresa imediata no leitor. Nele, Alexandre Saldanha Ribeiro chega a um
prédio desabitado de dez andares. Embora estivesse carregando uma volumosa mala,
prefere subir pelas escadas. Já no décimo andar, para em frente ao último escritório e,
depois de tentar abrir a porta pela maçaneta, ele a empurra com os ombros para adentrar
a sala. Lá dentro, há ―um homem de cabelos grisalhos‖ (p. 154) com um revólver
86
apontado para Alexandre, dizendo para ele não fugir, pois o esperava há muito tempo.
Alexandre, num primeiro momento, imagina que o senhor era um farsante e acredita
que o velho tivesse adivinhado sobre ele. Mas, o homem afirma: ―— Nada adivinhei.
Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos (...), aguardava-o certo de que você viria‖ (p.
155), demonstrando que nada fora armado ou combinado com alguém. A partir daí, o
leitor é jogado em um beco escuro, pois está diante de uma cena que não se explica por
si só. Por fim, o velho consegue prender Alexandre na sala e lhe diz que não adiantava
gritar, pois ninguém iria ao prédio e os dois ficariam ali por ―um ano, dez, cem ou mil
anos‖ (p. 157).
Como se pode perceber, nessa narrativa o elemento insólito se instaura
paulatinamente e quase no final do conto, com as revelações do estranho homem, ele se
concretiza definitiva e hiperbolicamente. O exagero que se pode notar no texto está na
questão temporal, tanto na nova situação de Alexandre como na do velho. Este o havia
esperado por dois anos em um prédio desabitado com o intuito de castigar sua vítima
―do acaso‖; aquele ficou sentenciado a permanecer naquela sala por um perìodo
indeterminado. De qualquer forma, o insólito começa a tomar corpo quando o leitor
percebe que da mesma forma que o homem esperou por dois anos, ele esperaria tantos
quantos fossem necessários por uma vítima que poderia vir ou não; que poderia ser o
Alexandre, mas também poderia ser qualquer outra pessoa, ou não.
Embora haja um tom de familiaridade entre o senhor e Alexandre, durante a
maior parte da narrativa pouco se sabe sobre os dois. Somente quando o homem
pergunta ―o que aconteceu com Ema‖ (p. 155) é possìvel cogitar a possibilidade de que
eles se conhecem de alguma forma. Contudo esse é um expediente realizado pelo leitor,
pois não há qualquer dúvida ou hesitação representada no âmbito diegético que
justifique tal reflexão por parte dos personagens. E por outro lado, pode-se imaginar que
como os dois ―preparavam-se para golpes mais profundos ou para desvendar o jogo em
que se empenhavam‖ (p. 155), toda aquela encenação poderia fazer parte de uma
representação para ver quem se sairia melhor das situações inusitadas que poderiam
surgir na sala de um prédio abandonado.
Como bem assinala Jorge Schwartz, este conto de Murilo Rubião é um dos
poucos que ―se aproximariam mais de uma narrativa de suspense‖ (1981, p. 66).
Seguindo um modelo semelhante ao do escritor norte-americano Edgar Alan Poe, todos
os elementos foram combinados para criar uma unidade de efeito de tal forma que toda
a narrativa sugira uma tensão própria daquele tipo de história, inclusive no próprio
87
título. Segundo Nádia Battella Gotlib, no livro Teoria do conto, essa unidade é
responsável pela maneira como o leitor vai receber a obra, por isso ela ―deve ser forte
— e ter capacidade de marcar o leitor, prendendo-lhe a atenção, não deixando que entre
uma ação e outra se afrouxe este laço de ligação‖ (2006, p. 43). No conto ―A
Armadilha‖, o inìcio da narrativa já no prédio, a caracterização de Alexandre — com
uma mala enorme, subindo dez andares pela escada —, a porta emperrada que precisa
ser arrombada; o homem calmo, sereno e com um sorriso irônico no rosto, todo o
ambiente circundante e os diálogos trocados entre os personagens fazem com que a
narrativa entre num crescente, projetando a expectativa de um desfecho que não
acontece. Nesse ponto, está a diferença entre Murilo e Poe. No escritor mineiro há uma
quebra radical de toda a tensão provocada no decorrer da história. O fim não parece fim.
O leitor fecha o livro e tem diante de si a possibilidade de aceitar uma lógica absurda
que, no caso deste conto, seria um castigo ou uma vingança infinita — e não a morte
pela bala de um revólver, como seria mais comum numa narrativa policial.
4.1.10. O Edifício
Esse conto é um dos mais conhecidos do autor. Nele, o personagem João
Gaspar recebe a incumbência de dar continuidade à construção inacabável de um prédio
em que ―mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifìcio
que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares‖ (p. 159).
Havia também uma lenda que dizia ―que sobreviveria irremovìvel confusão no meio dos
obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifìcio‖ (p. 160). No entanto,
impulsionado pelo seu orgulho de recém-contratado, João Gaspar não deu crédito a tais
questões e tocou a construção. Contratou trabalhadores para que a obra não parasse e
ganhasse velocidade. Tanto é que ―de cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar
oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia‖ (p. 161). Na
madrugada em que chegaram ao 800º andar— como havia sido previsto — houve uma
confusão entre os operários e ―homens e mulheres se atracavam com ferocidade‖ (p.
162). João Gaspar tentou apaziguar os ânimos, mas nada adiantou. Fora atingido na
cabeça por ―um objeto pesado‖ (p. 162) e desmaiou.
Depois do ocorrido, o engenheiro desiste da obra e, só depois de muita
insistência dos auxiliares, retornou à construção. Tudo parecia voltar ao normal. Havia
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um ambiente calmo e todos se empenhavam nas suas tarefas. Contudo, depois da morte
dos últimos conselheiros, João Gaspar desanima e deixa de lado seu entusiasmo pela
obra. Por fim, desejando parar a construção, por achá-la sem sentindo e inexequível, o
engenheiro tenta convencer os operários a pararem o trabalho. Eles ignoram as palavras
de João e continuam a obra, trabalhando durante ―a noite e aos domingos, independente
de qualquer pagamento adicional‖ (p. 166). Vencido pelos operários e pelos voluntários
que se somaram a eles, João Gaspar andava pelo canteiro de obras tentando, em vão,
convencer a todos de que a obra deveria parar. No entanto, ―risonhos, os obreiros
retornavam ao serviço, enquanto o edifìcio continuava a ganhar altura‖ (p. 167).
―O edifìcio‖ é uma narrativa que, de acordo com a teoria de Todorov, apresenta
a maioria dos elementos comuns a histórias do gênero maravilhoso. Desde o início do
conto, a incorporação de uma situação inusitada e incomum ao universo natural é vista
como algo comum e aceitável: a construção de um prédio com andares ilimitados.
Percebe-se o exagero como parte intrínseca ao conto, dando-lhe, ainda segundo
Todorov, a subclassificação de Maravilhoso hiperbólico, pois ―os fenômenos não são
aqui sobrenaturais a não ser por suas dimensões, superiores às que nos são familiares‖
(TODOROV, 2008, p. 60). Um prédio que levou mais de cem anos para construírem
somente as fundações é, sem sombra de dúvida, uma situação exageradamente
inusitada.
Há ainda outros estudos que consideram esse conto uma alegoria do próprio
fazer poético de Murilo. O trabalho com a palavra, o cuidado meticuloso com o
acabamento do texto final e a escritura e reescritura incansáveis dos textos relacionam-
se com o trabalho infinito de João Gaspar na construção do edifício. A construção do
texto está metaforizada no prédio levantado gradativa e incansavelmente. Segundo Davi
Arrigucci Jr. ―O discurso ficcional também se coaduna com o princìpio de construção
do edifício: o conto, onde parece ecoar o mito do aprendiz de feiticeiro, permanece
ironicamente aberto para um contar inacabável: enquanto o edifìcio ganhar altura‖
(1979, p. 55). Audemaro Taranto Goulart acredita que ―a riqueza da obra de Murilo
Rubião é tão grande que nela encontramos, inclusive, um dobrar-se sobre si mesma.
Isso significa a chamada condição metapoética‖ (1995, p. 70). Nesse aspecto, a obra
literária volta-se também para a sua própria construção. Mais adiante em seu estudo
sobre o autor mineiro, Goulart sintetiza sua ideia afirmando que o referido conto é ―uma
outra narrativa metapoética, que pode ser lida como mais uma alegoria que Murilo
Rubião faz do ato de contar‖ (p. 75).
89
No entanto, apesar de essas abordagens serem plausíveis dentro do universo
que compõe a poética muriliana, buscou-se aqui aproximar a análise do conto da teoria
sartriana. Sendo assim, nada mais coerente do que relacionar a temática de ―O edifìcio‖
com a situação do sujeito moderno perante o progresso e suas consequências. De acordo
com Audemaro Taranto Goulart, em um artigo intitulado ―O fantástico Murilo Rubião‖,
publicado em Itinerários: Revista de literatura,
O texto de Murilo Rubião, escrito há anos, aponta uma direção contestadora do cinismo esclarecido presente na cultura da modernidade que, a pretexto de
melhorar a vida do homem, robotiza-o impiedosamente, colocando-o a
serviço da técnica, fazendo-o produzir numa automatização que desconhece a
linguagem humana para obedecer à lógica dos sistemas que erigem o capital
como senhor absoluto (1990, p. 22).
Nesse sentido, é correto dizer que João Gaspar sintetiza alegoricamente o
homem diante do crescimento incontrolável do progresso ao qual a sociedade moderna
está exposta. Na passagem ―— Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não
pense em terminá-la‖ (p. 160), nota-se de antemão que o destino da construção já estava
traçado. João Gaspar era apenas mais uma peça do processo; apenas um autômato que
perderia sua individualidade — no sentido literal do termo. Assim como acontecera com
os outros, ocorreria com ele: morreria antes de terminar a obra. Com esse fragmento é
possível perceber a dimensão em que cada elemento é colocado na narrativa: em
primeiro lugar está a obra que metaforiza o progresso em si e, em segundo, está o
homem que toca adiante a construção — ele é apenas uma parte insignificante do todo.
Há uma coisificação desse homem que é reforçada pelo exagero da construção.
Contrariamente ao prédio, a partir de determinado ponto do conto João Gaspar
torna-se um ser em desconstrução. Sua existência entra num processo de gradação
descendente até que sua total nulidade fica representada na narrativa nos discursos que
faz no final do texto. Suas palavras não são mais ouvidas. Ninguém dá importância a
elas. Segundo Sartre, isso representa a ―rebelião dos meios contra os fins‖. A obra se
agiganta, cresce, toma corpo e vida, enquanto o executor torna-se ínfimo diante de tal
grandeza:
O fantástico humano é a revolta dos meios contra os fins, seja que o objeto
considerado se afirme ruidosamente como meio e nos massacre seu fim pela
própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este
a um outro e assim por diante até o infinito, sem que jamais possamos
descobrir o fim supremo (SARTRE, 2005, p. 140).
90
Como se pode notar, indiretamente Sartre aponta para a hipérbole no texto de
Murilo. A construção não possui uma finalidade — nem precisa ter uma. Esse infinito
desconhecido que se alterna gradativamente está presente no conto. É ele que ratifica o
absurdo da construção. Ora, se se pensar que ―o absurdo é a total ausência de fim‖
(2005, p. 140) notar-se-á que João Gaspar estava fadado ao fracasso. Seu destino já
estava traçado e a advertência seria confirmada. Ele não terminaria a obra, pois o
elemento crucial do progresso é o objeto, não o sujeito. Como bem assinalou Davi
Arrigucci Jr., os personagens murilianos ―nada podem e vivem a angústia da
irrealização persistente, padecendo como vìtimas impotentes e marginais‖ (2001, p.
157). Segundo ainda Maria Cristina Batalha, nos textos de Murilo há ―a
problematização da crise do sujeito moderno, a consciência da coisificação do homem e
da perda da individualidade‖ (2013, p. 34). É por isso que a pequenez do indivìduo e
sua consequente anulação diante da grandiosidade do progresso e de suas consequências
é a verdadeira crítica à sociedade moderna representada nesse conto.
4.1.11. Aglaia
A história se inicia com o personagem Colebra, esposo de Aglaia, em
peregrinação pelos bares da cidade, acompanhado de uma moça morena. Segundo o
narrador, era hábito dele se embriagar e variar as acompanhantes: ―A mulher também
não era a mesma da véspera, mas já se acostumara a vê-lo mudar constantemente de
companhia‖ (p. 187). Quando Colebra chega ao apartamento e recebe o envelope com a
mesada enviada pela esposa e com as fotos dos filhos ―da última safra‖ a narrativa entra
em um processo autoexplicativo. A acompanhante o abandona depois da terceira dose.
Sozinho e delirante devido à quantidade de bebida ingerida, ele começa a ver os
meninos entrarem pela porta, ocupando o quarto numa enxurrada sem igual. Uns sobem
nos ombros dos outros, até que o lugar fica completamente tomado de crianças que,
amontoando-se sobre ele, o faz imaginar os ossos quebrados e as cartilagens rompidas;
pensando estar sufocado pelas fezes e urina das crianças, ele vomita.
A partir daí, há um encaixe25
explicativo na historia no qual fica sabendo-se
que Colebra casara com Aglaia em regime de separação de bens — imposto pelo pai
25 Segundo Todorov, ―o encaixe é uma explicitação da propriedade mais profunda da narrativa. Pois a
narrativa encaixante é a narrativa de uma narrativa. Contando a história de uma outra narrativa, a primeira
91
dela —, exigindo apenas o compromisso de não ter filhos. Depois do casamento os dois
viveram o extremo que a vida sexual poderia lhes proporcionar, sempre com o
meticuloso cuidado de não engravidar. No entanto, ―De repente, houve uma ruptura
violenta: cessaram as regras de Aglaia‖ (p. 189). O filho era indesejado. A consulta ao
ginecologista trouxe mais incertezas. Esperando o pior ela pensa em abortar.
Contrariados pelo médico, procuraram uma ―pessoa que se encarregaria da tarefa‖ (p.
190). Feito o aborto e vencida pelos ―limites do sofrimento fìsico‖ (p. 191), Aglaia
desmaia. À noite, o marido desperta com o estado de saúde dela agravado e a leva ao
ginecologista, e este lhe diz que teve o útero perfurado, o que impossibilitaria uma nova
gravidez. Desse momento em diante, o insólito se instaura hiperbolicamente na
narrativa. Aglaia, mesmo com o útero prejudicado e usando os métodos contraceptivos
indicados pelo médico, tem uma gravidez atrás da outra, diminuindo, inclusive, o tempo
de gestação: ―Nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias após a fecundação‖ (p.
1493). Reforçando o teor exagerado dos acontecimentos, as crianças ―jamais vinham
sozinhas, mas em ninhadas de quatro e cinco‖ (p. 193). Cansados os dois, Aglaia sugere
a separação do casal. Inicialmente, ele finge não querer, mas depois que ―nasceram as
primeiras filhas de olhos de vidro‖ (p. 194), acabou aceitando a proposta da mulher que
já havia mudado de ideia. No entanto, sem que tivesse nenhum tipo de sentimento por
ela e pelos filhos, ele a abandona e chama a parteira para acudi-la.
Não é difícil perceber que a hipérbole está presente neste conto. No entanto,
antes de abordá-la é importante levantar alguns pontos interessantes sobre o texto que,
de certa forma, contribuem para intensificar a ideia de exagero. O primeiro relaciona-se
ao comportamento materialista e capitalista dos personagens. Tanto o pai de Aglaia
quanto Colebra são indivíduos que priorizam o dinheiro. Quando o rapaz aceita casar
com ela, o pai impõe o regime de separação de bens, pois, segundo ele, estava
preocupado em ―preservar a fortuna da filha, havida com o falecimento de uma tia‖ (p.
188). Por sua vez, Colebra demonstra-se até pior do que o patriarca. Davi Arrigucci Jr.
ratifica essa ideia afirmando que ―Colebra (o marido de nome também grotesco, pela
sugestão animalesca) se casa com Aglaia por interesse (ao que tudo indica, sexual e
financeiro)‖ (2001, p. 160). Nota-se a preocupação dele em não deformar o corpo da
mulher: ―pensou, satisfeito, que nenhum filho nasceria para deformar aquele corpo‖ (p.
atinge seu tema essencial e, ao mesmo tempo, se reflete nessa imagem de si mesma; a narrativa encaixada
é ao mesmo tempo a imagem dessa grande narrativa abstrata da qual todas as outras são apenas partes
ìnfimas, e também da narrativa encaixante, que a precede diretamente‖ (TODOROV, 1979, p. 126).
92
189). Não há nele o desejo de paternidade e, ao que parece, também não há sentimento
algum por ela, que é, em suas mãos, uma máquina de fazer sexo e, mesmo sem seu
consentimento, de gerar filhos.
No decorrer da narrativa, o personagem demonstra claramente que o casamento
com Aglaia só lhe trazia benefìcios. Em passagens como ―tinham de salvá-la, senão ele
retrocederia na escala social, os amigos desapareceriam à notícia de que voltara a ser
um pobretão‖ (p. 191); ―O dinheiro era sua ideia fixa. Sem diploma, (...) e detestando
trabalhar, temia o possível retorno aos tempos dos pequenos empregos, dos biscates
humilhantes‖ (p. 191); ―pensou ter descoberto uma saìda, a única: pedir à esposa que
fizesse o testamento‖ (p. 191) e ―Na simulação de indiferença pela oferta, esperava
negociar um acordo e obter uma quantia maior que a oferecida‖ (p. 193) é possìvel
perceber que o esposo estava mais interessado na fortuna dela e na posição social que
adquirira depois do casamento do que em um relacionamento pautado num sentimento
nobre. De acordo com Goulart, Colebra é um ―amante da vida fácil e dos prazeres do
corpo‖ (1995, p. 65). Ele é a representação clássica do homem corrompido pelos valores
que o dinheiro pode comprar. Contrariando, por exemplo, o comportamento romântico,
Colebra personifica a ganância.
Esses elementos dão aos personagens uma dimensão coisificada. Eles
caminham pela narrativa, evoluindo — se é que se pode chamar de evolução — para um
estágio não-humano. Nesse aspecto, a hipérbole auxilia na construção dessa ideia, pois
o exagero das ações dos personagens — seja na questão do dinheiro, do sexo ou na
questão da produção desenfreada de filhos — intensifica a desumanização dos mesmos.
É nesse sentido que se pode dizer que Colebra não vê a esposa como a mulher, mãe de
seus filhos. Ele a vê como algo que pode lhe trazer vantagens. Por sua vez, Aglaia
transforma-se paulatinamente numa máquina de parir crianças. A repetição das
gravidezes indesejadas e dos nascimentos anormais de crianças em ninhadas ratifica a
tese de que a mulher é vista como um bem industrial. Arrigucci Jr. comenta que ―os
filhos são produzidos em série, como objetos industriais, por uma mulher reduzida à
máquina parideira‖ (2001, p. 159). Ainda segundo Jorge Schwartz, ―a descontrolada
produção de bebês os reduz à condição de objetos não apenas pela quantidade, mas pela
própria qualidade‖ (1981, p. 35). Isso pode ser verificado no conto, quando o narrador
diz que nasceram as primeiras filhas com olhos de vidro, fazendo referência direta a
bonecos autômatos. Dessa forma, pode-se afirmar que a total reificação dos personagens
93
é uma consequência direta do comportamento automatizado que o sujeito sofre na
sociedade capitalista, da qual ele não faz parte significativamente; apenas está nela.
Ora, considerando-se esses elementos, pode-se afirmar com certa precisão que
Murilo desejou chamar o leitor a uma reflexão bastante presente na vida das sociedades
modernas e industrializadas: homens e mulheres são vistos como máquinas que
sustentam o luxo do burguês:
―Mulher proletária — única fabrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês‖
(LIMA, 1978, p. 21).
Numa quase referência ao poema ―Mulher proletária26
‖, do poeta modernista
Jorge de Lima, Murilo Rubião constrói sua crítica camuflada em uma narrativa insólita
que, à primeira vista, soa engraçada, mas no aprofundamento da leitura, percebe-se, sim,
um humor negro e, claro, a ironia própria dos contos murilianos, tangenciando as ideias
de Sartre. Se o fantástico para o filósofo se caracteriza pela aceitação de que ―tudo é
desgraça: as coisas sofrem e tendem à inércia sem jamais atingi-la‖ (2005, p. 137),
pode-se dizer que em ―Aglaia‖ os personagens, transformados em coisas pelo
comportamento automatizado que adquiriram no decorrer da narrativa, são seres
insólitos que metonimicamente se referem ao homem moderno e suas questões. Às
vezes, escravo do outro; outras vezes, de si mesmo e de suas vontades e fraquezas. Eles
dão voltas inúteis e não percebem que, embora em movimento, não saem do lugar
porque andam circularmente, percorrendo os caminhos traçados pelo avançar da
modernidade — e todas as suas consequências. Sentimentos e emoções tornam-se
coadjuvantes em um mundo onde agir maquinalmente transformou-se na ordem do dia.
4.1.12. A fila
Pererico, o personagem principal, sai do interior do país com a incumbência de
entregar a um desconhecido gerente de uma fábrica uma mensagem particular,
acreditando se tratar de ―assunto de terceiros e [que devia] guardar sigilo‖ (p. 195).
26 LIMA, Jorge de. Antologia poética. São Paulo: José Olympo, 1978, p. 21.
94
Orientado pelo porteiro, o negro Damião, o viajante entra em uma fila imensa na
esperança de ser atendido. Contudo, como sempre pegava uma senha de numeração alta
e a fábrica fechava exatamente às dezoito horas, Pererico não conseguia falar com o
gerente, o que o forçava a ficar na cidade, embora suas economias já estivessem se
esgotando. Passados alguns meses, ele conhece Galimene, uma prostituta que
perambulava pelas redondezas da fábrica em busca de clientes. A mulher, vendo a
insistência de Pererico e o fracasso de sua missão, oferece-lhe abrigo. Inicialmente, ele
rejeitou a proposta, mas, com o passar dos dias e com o dinheiro esgotado, foi obrigado
a aceitar o convite. Um dia, cansado da espera e de tentar entrar na fábrica pelo caminho
tortuoso, ele resolve ser mais cordial com o negro Damião. Lá, o porteiro leva-o para a
parte interior do prédio e o coloca numa outra fila, na qual entra com uma senha ainda
maior do que as anteriores. Exasperado, Pererico sai dali e, encontrando Damião pelo
caminho, acerta-lhe um murro na boca. Passados alguns dias desse último fato, o
protagonista volta à fábrica e percebe que o lugar está vazio, mas não fechado. Havia
empregados dentro. O viajante não perdeu tempo e adentrou o lugar dizendo ao
porteiro: ―— Hoje, miserável, ou falo com o seu chefe ou lhe quebro os dentes e
espatifo os móveis do escritório‖ (p. 208). Nesse momento, fica sabendo que o gerente
faleceu e que no dia anterior ele atendera a todos que ali estiveram. O único que ficou
sem atendimento foi Pererico. Contrariado e revoltado com a cidade, decide retornar
para sua terra e, no dia de sua partida, Galimene, a prostituta-amiga, o encontra na
estação, levando ―camisa, calça, navalha e um frango assado‖ (p. 209) para que ele
voltasse com uma fisionomia melhor. Ali, o rapaz beija a amiga pela primeira vez e lhe
diz que jamais retornaria àquela cidade. Pererico tomou o trem e retornou sem cumprir
o que lhe foi designado.
Nesse conto, utilizou-se a hipérbole com o intuito de dimensionar um sistema
falido que trata as pessoas como qualquer coisa e a burocracia da vida nas grandes
cidades. Note que o protagonista que irá vivenciar esse dimensionamento angustiante
apresenta-se em situação antitética ao fato em si. Ele, um homem ―do interior do paìs‖
(p. 195), acostumado com ―cavalos, vacas, galinhas, cabritos‖ (p. 207) é levado, contra
a sua vontade, a entrar numa fila interminável para cumprir uma missão para a qual não
estava preparado. Ele não conhecia os trâmites da cidade nem como tinha que lidar com
as situações que foram surgindo diante dele. Esse desconhecimento fez que sua tarefa se
tornasse mais difícil e cada vez mais distante de se realizar. Isso é possível perceber nas
idas e vindas do protagonista. Chega um momento na narrativa em que seu objetivo se
95
perde e o leitor não quer mais saber sobre a mensagem que ele deveria entregar ao
gerente. Na verdade, a fila torna-se o elemento central da questão. Nisso é possível
perceber o que Sartre diz a respeito do discurso fantástico. Para ele,
O fantástico humano é a revolta dos meios contra os fins, seja que o objeto
considerado se afirme ruidosamente como meio e nos mascare seu fim pela
própria violência dessa afirmação, seja que ele remeta a um outro meio, este
a um outro e assim por diante até o infinito, sem que possamos descobrir o
fim supremo (2005, p. 140)
É exatamente isso que se presencia no conto. Todas as vezes que Pererico era
encaminhado para uma nova tentativa, via-se que a finalidade para a qual foi enviado
àquele lugar distanciava-se dele. A fila tornou-se ―o fim supremo‖. Agora, tanto
Pererico como o próprio leitor desejam vencê-la. No entanto, como já foi citado nesta
tese, os personagens murilianos estão sempre fadados ao fracasso ou à solidão; e não
será diferente com este. Com relação a essa predestinação ao fracasso, pode-se dizer que
toda a existência material e ideal do protagonista ―se condiciona, sem remédio, à
imposição burocrática, como se esta fosse uma condenação inevitável‖ (ARRIGUCCI,
2001, p. 161).
Embora Pererico seja um protagonista que destoe dos de outros contos do autor
— ele não aceita o absurdo com facilidade. Pelo contrário, opõe-se radicalmente a ele,
inclusive ameaçando o negro Damião, que ali tipifica a representação do sistema em seu
nível mais covarde — percebe-se que os que estão na mesma situação dele, aceitam
com muita passividade e naturalidade os descasos dessa burocracia. Goulart afirma que
o problema de Pererico deixa de ser uma simples manifestação da burocracia para aparecer como um problema humano muito mais abrangente. Trata-se,
na verdade, de alertar para uma situação de domínio a que os indivíduos estão
submetidos, porque, em geral, foram ―educados‖ para a ela se submeterem
(1995, p. 55).
Nesse aspecto, nota-se o valor social do fantástico a que Jorge Schwartz faz
alusão. Ele afirma que a linguagem simbólica do fantástico em Murilo está a serviço dos
elementos sociais identificáveis no texto. É nesse sentido que o estudioso considera que
―são raros os momentos na obra do Autor em que o elemento insólito, ou mesmo o
sobrenatural, não se converte em trampolim metafórico de uma crìtica social‖ (1981, p.
77). E, no conto ―A fila‖, nota-se essa crítica direta aos elementos que fazem parte do
universo não-ficcional sendo tratada com um efeito fantástico. A situação em si não é
insólita. Os cenários do conto também não: são ruas de uma cidade qualquer onde
96
passam pessoas e carros; onde há filas de bancos, de empregos; onde há fábricas,
prostitutas, etc. Em fim, não há nada que não pertença ao universo cognoscível. No
artigo ―O duplo e algumas implicações para o fantástico em Murilo Rubião27
‖, Viviane
de Guanabara Mury observa que
No conto de que tratamos, não há coelhos falantes, mágicas ou
metamorfoses; o personagem transita por ruas, corredores, repartições —
nada mais natural. Todavia, é esse natural que constitui motivo de assombro.
O espanto, contudo, parte apenas do protagonista (2013, p. 121).
Logo, o que torna esse conto fantástico é o caráter hiperbólico que os
acontecimentos tomam na narrativa. Para Schwartz, ―o tema da burocracia se formaliza
no conto ―A fila‖, onde a dimensão hiperbólica que esta adquire no transcurso da
narrativa é mimetizada pelo próprio ato da narração‖ (1981, p. 80). Como se pode notar,
quanto maior é a fila; maior é o texto. Este termina, quando aquela se extingue. Ou seja,
o caráter metapoético do discurso muriliano se relaciona com o tema do conto em si. É a
própria narrativa demonstrando ―ao vivo e em cores‖ a composição do exagero da
peregrinação de Pererico, da fila e do trabalho de escritura. Ainda com respeito a essa
questão, Davi Arrigucci Jr. afirma que, no referido conto, ―o fantástico, com sua
assombrosa multiplicação dos meios, é rigorosamente aqui uma alucinada máquina
burocrática‖ (2001, p. 161).
Por fim, restaram dois personagens: Galimene e o negro Damião. De acordo
com o que se viu até então, pode-se dizer que a figura da prostituta foi colocada ali para
dar a ideia de rebaixamento e da perda de identidade à que Pererico chegou. Orgulhoso,
independente e querendo defender seus direitos, ele é obrigado a viver dos favores e da
ajuda que a mulher lhe dá. Muitas vezes, para dormir ele esperava o último cliente dela
sair. Segundo o próprio narrador, ―habitou-se a esperar pacientemente, porque a demora
representava comida farta no dia seguinte‖ (p. 206). Sendo assim, constata-se que as
consequências a que o indivíduo é levado pelo sistema, muitas vezes o colocam numa
situação de humilhação completa.
Algo parecido ocorre com Damião. Durante a narrativa ele é retratado como
negro, preto e porteiro e, em vários momentos, o narrador faz referência à vestimenta
dele, deixando claro que, para Pererico, as roupas não eram tão boas como pareciam.
Esse negro Damião, ―ordenador da fila inacabável, torna-se, pois, um fator de bloqueio
27 FLÁVIO, García & BATALHA, Maria Cristina (org.). Murilo Rubião: 20 anos depois de sua morte.
Rio de Janeiro, EdUERJ, 2013.
97
intransponìvel‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 162). O porteiro — que em muito lembra o
soldado amarelo que inferniza a vida de Fabiano em Vidas Secas — representa o
indivíduo do sistema que, a qualquer custo, faz cumprirem-se as regras; sejam elas
corretas ou não. Aceitar toda aquela situação e ainda ser manipulado por um negro na
portaria da companhia fez que o personagem chegasse ao patamar mais baixo de sua
humilhação. No entanto, se opor a ele; significa opor-se ao próprio sistema. Esse foi o
erro do protagonista. Por isso, Pererico é advertido por Damião: ―— Você escolheu o
pior caminho‖ (p. 205). Indiretamente, desrespeitá-lo significava desrespeitar a própria
máquina burocrática que aniquila a liberdade e a identidade do indivíduo. Foi
exatamente isso que ocorreu com Pererico. Ele volta para sua terra, vencido não por um
negro, mas sim por uma engrenagem muito bem montada e predisposta a subjugar o
sujeito que não se adéqua a suas engrenagens.
4.1.13. Botão-de-rosa
O conto se inicia com um fato insólito: ―numa segunda-feira de março, as
mulheres da cidade amanheceram grávidas‖ (p. 223). O feito é atribuìdo ao personagem
Botão-de-rosa, um rapaz que, ao que parece, era mulherengo, com longos cabelos,
possuidor de uma banda de guitarras composta por doze músicos; ele lembra, em um
primeiro momento, uma espécie de hippie muito preocupado com a aparência. Enquanto
o povo da cidade encaminha-se para casa dele para promover um linchamento, Botão-
de-rosa está preocupado com as roupas e a sandália que melhor lhe cairão: ―Separou as
meias, o cinturão de fivela dourada e procurou uma sandália que combinasse com o
vestuário‖ (p. 223). O antagonismo das cenas relativas ao seu comportamento, em
alguns momentos, projeta na narrativa uma espécie de humor negro, beirando ao
sarcasmo. Esse sentimento é intensificado mais adiante quando surgem na história os
policiais, o juiz e a turba gritando ―Cabeludo! Estuprador! Piolhento!‖ (p. 224). Diante
desse quadro generalizado de insatisfação, é indicado o advogado José Inácio para
defender o réu que, ao chegar à delegacia, fica sabendo do delegado que seria acusado
por estuprar as mulheres. No entanto, por ordem de um juiz que mandava na cidade,
mudou-se a acusação para tráfico de heroína e, posteriormente, de maconha também. Os
supostos estupros foram deixados de lado. A partir daí, José Inácio, o advogado, em vão
tentará livrar o réu das penas cabíveis, segundo as regras do lugar. Por sua vez, Botão-
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de-rosa mantém-se calado e apenas ouve com atenção o que lhe é dito, aceitando
passivamente todas as acusações que lhe são feitas. Toda condução das acusações e dos
acontecimentos culmina na execução do personagem no final do conto.
Não é difícil perceber nessa história uma referência direta à religião. Segundo
Schwartz, o personagem central ―remete à figura de Cristo através de suas ações e dos
seus atributos‖ (1981, p.77). Audemaro Taranto Goulart, além de perceber tal
semelhança tanto no comportamento como no aspecto físico do personagem, aponta
também outros indìcios que sugerem tal comparação. Para ele, ―a presença de doze
figurantes do conjunto de guitarras, remete à imagem dos doze apóstolos que
acompanhavam Cristo‖ (1995, p. 142); há ainda o amigo Judô que o trai ―por algumas
doses de entorpecentes‖ (p. 143), apontando para a figura de Judas ao trair Cristo por
três moedas de ouro. As vestes, a barba, a cabeleira de Botão-de-rosa e a aceitação da
culpa sem nenhum questionamento são elementos que aproximam os dois personagens.
No entanto, embora a comparação seja inevitável, escolheu-se o caminho da
hipérbole para a análise deste conto. A concretização metafórica da figura cristã se
solidifica quase no final do conto. Todavia isso já não ocorre com o exagero. Aliás, toda
a narrativa está pautada nele. Desde a primeira frase do texto, quando o leitor sabe que
todas as mulheres de uma cidade estavam grávidas e, supostamente, de um mesmo
homem. O absurdo começa aí, donde é possível inferir que há algo estranho
acontecendo. O problema é que, da maneira como as coisas se desenvolvem no conto, a
impressão que se cria é a de que talvez não houvesse um culpado e, talvez, nem tantas
gravidezes. Alguém deveria pagar por algo que carecia de invenção; inventou-se a
gravidez, mas, depois, substituíram-na pelo tráfico. Ora, o texto faz referência a
―mulheres com os rostos protegidos por máscaras, que ocultavam as deformações da
gravidez‖ (p. 224). Por essa passagem, percebe-se que a gestação deforma o rosto, mas
o corpo não. Estranho de novo! Não há relatos de mulheres com suas enormes barrigas
deformadas, gemendo de dor, vomitando por causa dos enjoos ou algo parecido. Será
que havia gravidez? Ou em havendo, os homens todos, envergonhados de terem sido
traídos, aceitaram a mudança da acusação para não ficarem mal perante a sociedade?
Conforme fora dito por José Inácio, o advogado de defesa, ―isso não seria conveniente
para a cidade, pois a transformaria num imenso antro de cornos‖ (p. 231).
Esses questionamentos podem ser feitos levando-se em consideração a
condução de todo o processo de acusação até a execução de Botão. Eles ganham maior
proporção ainda quando o delegado recebe o telefonema do juiz que era praticamente o
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dono do lugar. Este manda que se troque a acusação. De estuprador, Botão-de-rosa
passou a traficante de drogas. Sem nenhum motivo real aparente, muda-se uma
acusação por outra, simplesmente porque assim quis ―o proprietário da maior parte da
cidade, inclusive dos prédios públicos, da companhia telefônica, do cinema, das duas
farmácias, de cinco fazendas de gado, do matadouro e da empresa funerária‖ (p. 225-
226). Até nisso, são dadas as dimensões hiperbólicas. Elas dão a ideia exata de até
aonde vão os tentáculos do poder exercido pelo Juiz naquele lugar.
Quando José Inácio surge na história, nota-se uma descentralização no status
das personagens. Se antes de sua chegada, poder-se-ia considerar Botão-de-rosa o
personagem central dos acontecimentos; depois dela, percebe-se que a figura do
advogado toma maior proporção na narrativa. É ele, inclusive, que vai dar movimento à
história. Botão não se manifesta. Fica calado o tempo todo, apenas esperando a sentença
final. Ele representa o tìpico personagem muriliano, pois ―a existência dolorosa é o
fardo corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 157).
O defensor, por sua vez, inconformado com a (in)justiça cometida contra seu
cliente, ficará sabendo que naquela cidade o sistema é outro. Afinal, de acordo com o
delegado, o advogado estava há pouco tempo no lugar e não sabia que ali prevalecia ―a
vontade do Juiz‖ (p. 225). Há passagens, inclusive, que o próprio defensor,
reconhecendo sua incapacidade de impedir a execução de Botão-de-rosa, se sente
ameaçado. Nos fragmentos ―Sua preocupação se transformou em medo ao ver-se
encarado pelos homens que postavam na rua‖ (p. 226), ―um número de indivìduos mal-
encarados aguardava sua saída, para segui-lo impiedosamente pelas ruas da cidade‖ (p.
228), ―José Inácio encolhera-se num canto e (...) obedeceu amedrontado‖ (p. 231) e ―O
duro espancamento de seu constituinte deveria ser tomado como um aviso do que lhe
poderia acontecer‖ (p. 232), é possìvel ter uma ideia de como José Inácio foi, aos
poucos, sendo desencorajado a continuar buscando justiça.
Ora, como se vê, é através de José Inácio que o leitor tem conhecimento das
injustiças cometidas por um sistema encabeçado por quem deveria evitá-las. Como já
foi dito, além de o legislador ser proprietário de grande parte da cidade, seu domínio
ultrapassava os limites da razão. Todos eram submissos à vontade e aos caprichos do
Juiz. Em passagens como ―Ao chegar a vez das testemunhas, estas asseguraram que, no
momento da prisão, o indiciado carregava heroìna consigo‖ (p. 227), ―para o advogado
o inquérito policial transbordava de irregularidades, algumas gritantes‖ (p. 227), ―José
Inácio ficou boquiaberto: Pena de morte! Ela fora abolida cem anos atrás!Ou teria
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estudado em outros livros?‖ (p. 228) e ―Se você não recorrer, lhe garantiremos uma
rendosa banca de advocacia. A promessa é do Juiz‖ (p. 232) tanto o leitor quanto o
próprio José Inácio percebem que não há o que fazer para retirar as acusações de Botão
e salvá-lo da execução.
Sendo assim, nesse conto, nota-se uma crítica direta ao sistema corruptível de
uma cidade. Como esse sistema é feito de homens e por homens, estes também são
passivos de corromperem-se. Nos dias atuais, essa narrativa não seria tão insólita,
porque o que está nela é o que se vê, de certa forma, nas entrelinhas dos noticiários em
que se camuflam verdades e nos quais se criam novas mentiras todos os dias da semana.
A não ser pela gravidez de todas as mulheres da cidade — que de acordo com os
acontecimentos narrados também pode ser questionada — o texto aponta uma falha na
relação homem x sistema. A história em si não apresenta um elemento insólito que se
mantenha até o final. Será que houve um engravidamento em massa das mulheres
locais? Até a acusação de estupro foi retirada e substituída pela de tráfico de drogas, o
que não é fantástico. A condução de todo julgamento é que é algo insólito.
O comportamento de Botão-de-rosa na maior parte da narrativa é o que permite
associá-la às ideias de Sartre. Ele, Botão, é a representação metafórica desse homem
moderno que se vê diante de um sistema desigual e contra o qual é impossível lutar.
Embora fosse aparentemente inocente, em nenhum momento o personagem tenta
convencer seus acusadores de sua inocência. Ele apenas observa e espera o que é
inevitável: sua execução. Ora, se ―o fantástico dá lugar ao afloramento de um real mais
fundo‖ (ARRIGUCCI, 2001, p. 147), fica claro que Murilo desejou mostrar esse real a
que se refere o crítico. Nele, está o homem e suas questões; o homem e seu universo.
Botão-de-rosa representa esse homem que observa sem esperanças, pois a sua condição
depende de um sistema composto de homens que se perderam em um mundo onde o
sólito é a exceção e o insólito é a norma, a rotina. Deixou de ser.
4.1.14. O bloqueio
Gérion, o protagonista desta história, deixa sua família e vai morar em um
edifício recém-construído cujos apartamentos estão todos vazios. Ele é o único inquilino
do lugar. ―No terceiro dia em que dormia no apartamento‖ (p. 245), ouve os primeiros
ruídos das máquinas trabalhando. Acreditava que, por se tratar de um prédio novo,
101
talvez fosse necessária alguma obra que ficara pendente. Por isso, mesmo o barulho
sendo intenso, inicialmente não se importou. Depois, com a intensificação dos estrondos
das máquinas, Gérion começa a se preocupar e a perder o sono. Ele começava a se ver
num beco sem saídas, pois saíra de casa para buscar na solidão e no silêncio a
tranquilidade que a vida em família não lhe dava e, agora, estava em um lugar
barulhento e agitado. Na verdade, o prédio estava sendo desconstruído. Há momentos
na narrativa que se percebe que a insólita desconstrução operava-se tanto na parte de
cima do edifício:
Pela tarde, a calma retornou ao edifício, encorajando Gérion a ir ao terraço
para averiguar a extensão dos estragos. Encontrou-se a céu aberto. Quatro
pavimentos haviam desaparecido, como se cortados meticulosamente,
limadas as pontas dos vergalhões, serradas as vigas, trituradas as lajes (p.
246)
como nos andares de baixo:
Gérion descia a escadaria indeciso quanto à necessidade do sacrifício.
Oito andares abaixo, a escada terminou abruptamente. Um pé solto no
espaço, retrocedeu transido de medo, caindo para trás. Transpirava, as pernas
tremiam (p. 248-249).
O mais interessante desse processo todo é que as tais máquinas responsáveis
pelos barulhos noturnos nunca eram vistas pelo personagem. Em certas partes da
narrativa, parece haver um esconde-esconde entre elas e o protagonista: ―mas a máquina
persistia em se esconder, não sabendo ele se por simples pudor ou se porque ainda era
cedo para mostra-se‖ (p. 251). Note que, metagogicamente, aos poucos elas assumem
uma outra conotação no contexto. Agem como se estivessem humanizadas. Por fim,
vencido pelo barulho e pelas máquinas, Gérion tranca a porta de seu apartamento com a
chave, esperando que finalmente a ―destruidora‖ acabasse de vez com seus sofrimentos,
que, nesse caso são dois: o barulho ou a própria vida.
Como se pode perceber pelo breve resumo feito acima, o texto apresenta
elementos que ratificam o exagero como parte intrínseca dele. Contudo, acredita-se que
tal recurso tenha sido utilizado para que, mais uma vez, se mostre o homem moderno e
suas questões, através da literatura fantástica. Todo o cenário remete à modernidade. As
ações tanto das máquinas quanto as de Gérion e as de sua mulher sugerem
comportamentos do indivíduo que habita os grandes centros urbanos. Por isso,
considerar que Murilo procura vasculhar o universo humano pelo viés da narrativa
insólita é uma forma de reconhecer na literatura do escritor mineiro um realismo tão
102
fundo que toca surrealisticamente na crise comum ao sujeito contemporâneo.
Ratificando tal pensamento, Cremilda Medina28
afirma que
o surrealismo não tem nada de escapismo, isto porque a crítica social que
faz é mais insidiosa, muito mais implacável. (...) O surreal está na realidade. Às vezes, uma pessoa comum pode não perceber a olho nu, mas
o escritor pega esse lado e quando o revive no texto, descobre toda a
relação, passa esse fantástico como cotidiano, como é a vida deste mundo
louco (1985, p. 8).
Como foi dito inicialmente, Gérion deixa a família e aluga um apartamento. No
decorrer da leitura, fica-se sabendo que essa atitude foi tomada para escapar da mulher
Margarerbe e para repensar sua vida. Por esses e outros motivos que surgem, devido ao
seu ato de reflexão, pode-se dizer que tal narrativa simboliza alegoricamente a vida
infeliz e cheia de transtornos com os quais o personagem não mais conseguia lidar.
Sendo assim, poder-se-ia considerar que o insólito absurdo surge como forma de
dimensionar a grandiosidade dos sentimentos contraditórios que coexistem na
subjetividade do protagonista. Se de um lado havia a repulsa em voltar para casa e
encontrar Margarerbe, ―gorda e porca‖, ―com o corpo dela a ocupar dois terços da cama.
O ronco, os flatos‖ (p. 248), ―a lhe chamar, a toda hora e na presença dos criados, de
parasita, incapaz‖ (p. 249); por outro lado, estava Seatéia, a filha, para à qual ―não
poderia deixar que fosse transferido o ódio que Margarerbe lhe dedicava‖ (p. 248). Tais
sentimentos contraditórios projetam no protagonista a sensação de que sua atitude foi
em vão, pois ―nauseado, lamentava o fracasso da fuga. Tornaria a partilhar do mesmo
leito com a esposa, espremido‖ (p. 248) por causa do amor à filha. Essa sensação
ratifica a ideia de incapacidade de lidar com seus problemas familiares e com suas
próprias decisões, o que de certa forma anula a imagem do homem provedor e viril e dá
ênfase a um ser débil e inexpressivo dentro da relação. Na passagem ―— Por que nos
abandonou, Gérion? Venha para casa. Você não viverá sem o meu dinheiro. Quem lhe
arranjará emprego?‖ (p. 247), é possìvel construir uma imagem mais clara tanto dele e
da esposa quanto da relação dos dois.
É interessante perceber que, enquanto Gérion está divagando sobre a mulher e
a filha, os barulhos das máquinas passam a um segundo plano, como se, na verdade,
eles não existissem naquele momento. Os estrondos ensurdecedores que antes
28 MEDINA, Cremilda. Murilo Rubião no conto fantástico antes que a lebre se levantasse. Suplemento
Literário. Belo Horizonte v. 20, n. 959, p. 8-9, fev. 1985, Série: Escritor brasileiro hoje, 18.
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chamavam a atenção do personagem agora não passam de ruídos que ―tinham perdido a
força inicial. Diminuìam, cessaram por completo‖ (p. 248). Sendo assim, fazendo uma
analogia entre a situação e o protagonista, pode-se dizer que talvez o prédio estivesse
sim em reforma, como o próprio síndico afirmou. Contudo a dimensão exagerada dos
barulhos e das máquinas pode ser uma interpretação de Gérion, dado a situação na qual
se encontrava. Também é possível conjecturar que talvez estivesse ainda sob o efeito do
sono, pois, como o narrador diz, ele ―levava tempo para se integrar no novo dia,
confundindo restos de sonho com fragmentos da realidade‖ (p. 245). Conforme atesta
Arrigucci Jr. ―num caso drástico como esse, estamos sob a pressão asfixiante de um
mau sonho‖ (2001, p. 147). Contudo, qualquer que seja a possìvel explicação, o fato é
que ver as máquinas destruindo a construção e empilhando o material desintegrado e em
pó — sem que nada sobrasse dos escombros que lembrasse a edificação — é uma
metáfora existencial de Gérion. Para Schwartz, ―a desmontagem progressiva e
regressiva do prédio converge para o indivíduo num processo redutivo que visa chegar à
sua essência‖ (1981, p. 81). Márcio Serelle endossa essa ideia ao afirmar que ―a
habitação humana se desfamiliariza, usualmente por força da hipérbole‖ (2002, p. 38),
criando, dessa forma, uma espécie de não-lar. Se se partir da premissa de que ―o lar
imita a criação do mundo: ele é um pequeno templo, uma janela aberta para o céu‖
(BRUNN, 1995, 92), será possível entender que o protagonista encontra-se
solitariamente em seu inferno particular.
Ainda segundo Goulart, ―A destruição do prédio insinua-se como a própria
destruição da personagem, enquanto a máquina destruidora e Margarerbe, de quem
Gérion tentava, inutilmente, escapar, são índices de uma mesma realidade angust iante‖
(1995, p. 155). Dessa mesma forma ele se encontrava, em ruínas. Esse é o bloqueio.
Dali, Gérion não consegue e não pode fugir. Ele está enclausurado em si mesmo,
lutando contra uma vida que não deseja mais. Por isso, tudo valia à pena. É nesse
sentido que o narrador afirma que o protagonista ―preferiu correr o risco a voltar para
sua casa, que abandonara, às pressas, por motivo de ordem familiar‖ (p. 246). O som
estridente das serras, britadeiras e de um pilão bate-estaca remetem à figura da esposa
gritando-lhe impropérios e humilhando-o diante de todos. Na passagem ―Pegara
novamente no sono e sonhou que estava sendo serrado na altura do tórax‖ (p. 245) há
uma referência direta ao sentimento de incapacidade internalizado por ele de tanto ouvir
a mulher assim o chamar. Por isso as máquinas demolidoras não são vistas pelo
personagem. Elas são fruto de uma mente que confunde a realidade angustiante e
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negativamente exaltada em que se encontra o indivíduo afundado em uma opressão
avassaladora. Os insuportáveis barulhos produzidos por elas assemelham-se aos da
mulher gorda, sentada ―comendo bombons‖ (p. 247), assemelham-se aos gritos dela, à
gordura, às flatulências; enfim, a tudo que possa ter auxiliado na desconstrução da
estabilidade da vida familiar.
4.1.15. A diáspora29
O conto narra a chegada do engenheiro Roque Diadema e de alguns
trabalhadores à pequena e calma Mangora, um lugar simples no qual os moradores
levavam uma vida tranquila e sossegada, sem as agitações e a correria das cidades
grandes. O engenheiro fora enviado ao local para a realização de um projeto: a
construção de uma ponte que uniria as duas margens de um rio. Segundo ele, a obra
estaria edificada num prazo de dois anos, e o tal projeto já estava aprovado por
instâncias superiores. Hebron — o homem que ―sabe das coisas‖ (p. 266) e uma espécie
de líder do lugar — foi chamado para receber o engenheiro e confirmar seus papéis e
palavras. Ele afirma que levaria aos companheiros de Mangora a documentação dos
visitantes e os convida a participar da reunião que decidiria o andamento das coisas. ―E
com direito a voto‖ (p. 266). O projeto foi recusado pela assembleia, obrigando Roque
Diadema a buscar novos meios para avançar com as obras. Hebron e os habitantes
ficaram felizes. No entanto, quando ―extensas caravanas de trabalhadores, trazendo
consigo rolos de grossos fios de arame trançado, sacos de cimento e ferramentas‖ (p.
267) começaram a chegar ao lugarejo, os moradores ficaram mais apreensivos. Nova
reunião é marcada, agora, porém, sendo vedada a participação dos visitantes.
Inconformado, o engenheiro se retira do lugar por um mês e, quando volta, traz consigo
as papeladas que comprovam que comprou ―dois terços de toda área urbana‖ (p. 267). A
partir daí, os homens se instalam e as obras avolumam-se, tornando a cidade um lugar
sujo e repugnante, haja vista como era antes. As edificações espalham-se sem controle.
29 Segundo o dicionário Larousse, o termo designa: 1. Dispersão dos judeus no decorrer dos séculos. 2.
Dispersão de um povo, de uma etnia através do mundo. (2001, p. 311). O conto foi publicado
postumamente. Segundo Vera Lúcia Andrade, certo dia quando Murilo voltava do trabalho, esqueceu
num táxi os originais de ―A diáspora‖. Aflito, ele divulgou amplamente o fato na imprensa local, com o
objetivo de recuperar o valioso manuscrito perdido. (...) Todo o esforço foi em vão, pois Murilo jamais
conseguiu reaver a sua ―Diáspora‖. Inconformado, pôs-se a reescrever o conto, gastando nessa tarefa,
como de costume, vários anos (ANDRADE, 1998, p. 275).
105
Alguns se rebelam, mas sem ameaçar o andamento do progresso. Hebron, o velho sábio
de outrora, agora não passa de uma sombra do que fora antes da chegada do engenheiro;
e este, pela primeira vez, delicia-se com ―o gosto da vitória‖ (p. 272).
Como é possível perceber por esse breve resumo, não há, nesse texto,
acontecimentos insólitos que se assemelhem a outros contos do autor. Não existem
mágicos, coelhos falantes, homens que desaparecem e viram uma bola negra, mulheres
gordas e infinitamente parideiras, etc. O fato insólito nesse aqui possui uma dupla
realização. Ele está ligado ao modo como o surgimento dos homens ―do outro lado da
montanha‖ se deu e à rejeição que representa o comportamento do povoado de Mangora
relativamente aos inesperados visitantes. Sendo assim, considerando os elementos que
sugerem a chegada do progresso à pacata cidadela, pode-se dizer que ocorre a hipérbole
indicando um aumento proporcional à diminuição gradual de algo. Nesse caso
específico, o que entra em um processo de desconstrução — analogamente ao de
construção da ponte — é o ritmo de vida do lugar, da liderança de Hebron, da união
entre os moradores, da preocupação com o humano, dentre outros elementos.
A forma como os visitantes chegam ao povoado lembra em muito A hora dos
ruminantes, de José J. Veiga. Essa narrativa conta a história de um lugar pacato
chamado Manarairema que tem a monotonia e a tranquilidade perturbadas quando
homens desconhecidos se instalam pelas redondezas. A partir do momento em que eles
chegam à cidade, toda calmaria se transforma e os habitantes do local, além das dúvidas
relativas ao surgimento deles, passam a ter que conviver com dois acontecimentos
insólitos: uma invasão repentina de cães que ninguém sabe de onde vieram e, da mesma
forma, o aparecimento de uma infinidade de bois que se instauraram pelas ruas, vielas,
morros, becos e caminhos da cidade. Excetuando-se os dois acontecimentos insólitos
citados em Manarairema, a chegada de Roque Diadema e de seus empregados seguem o
mesmo percurso. Eles vêm sem que ninguém saiba de onde, nem a mando de quem e se
instalam, provocando um misto de rejeição e curiosidade. Eles apenas ―desceram
vagarosamente (...) e ao chegarem à planura, no fim da tarde, os viajantes
descarregaram as mulas, aliviando-as dos teodolitos, picaretas, pás, enxada e provisões‖
(p. 265).
Essa maneira sorrateira de se acomodar nas terras sugere a conquista do lugar
paulatinamente. O engenheiro, representando o homem moderno e o progresso,
comporta-se como um indivíduo capaz de tudo para atingir suas metas, mesmo que
nesse tudo esteja incutido a ideia de dominação. Segundo Hermenegildo Bastos, ―a
106
história do fantástico está diretamente ligada aos conflitos decorrentes da consolidação
do poder burguês, esmagamento impiedoso da nobreza e do velho campesinato‖ (2001,
p. 71). Roque Diadema representa esse poder burguês. O progresso trazido por ele não é
sinônimo de crescimento, mas sim de deteriorização. Em passagens como ―Além das
moradias, edificadas sem planejamento‖ (p. 269), ―o lugarejo crescia
desordenadamente, as casas brotavam em todos os cantos, grimpando nos morros,
dependurando-se em ladeiras‖ (p. 269-267), ―Os veìculos (...) espalhavam a densa
poeira‖ (p. 267) e ―A premência de se instalar (...) obrigava os recém-chegados a se
despreocuparem do mìnimo de conforto e higiene‖ (p. 267) notam-se claramente as
transformações negativas por que a cidade passou. A Mangora de agora em nada
lembrava o lugar pacato, tranquilo e sossegado de antes. Houve uma transformação
profunda em tudo.
A maior prova dessa transformação profunda que ocorreu na cidade está
presente no comportamento dos habitantes. No início do conto, Hebron afirma ao
engenheiro: ―nada se faz aqui sem a concordância da maioria‖ (p. 266). Havia o respeito
e uma liderança reconhecida. O lugar não tinha um chefe instituído pelo poder nem pelo
dinheiro. Ao receber os visitantes, um morador local afirma: ―em Mangora, não
gostamos de chefes. Em todo o caso, converse com Hebron. Ele é quem sabe das
coisas‖ (p. 265-266). O velho era um líder instituído pelo respeito e pela aceitação de
todos. Suas palavras tinham valor e todos o consideravam um homem sábio. Até esse
momento da narrativa, pode-se dizer que Hebron ainda não havia sido tocado pelas
consequências da chegada da companhia à cidade. Nota-se que ele ainda goza dos
privilégios de sua condição perante o povoado.
Contudo, proporcionalmente inverso a isso está Damião Roque. No momento
em que ele apresenta as escrituras das terras e Hebron confirma a veracidade delas, o
engenheiro entra num processo de crescimento significativo na história, enquanto o
idoso começa sua vertiginosa queda. Enquanto um sobe e desponta para a glória da
vitória, o outro se anula gradativamente:
Olhavam-no com desconfiança e a sua companhia passou a ser evitada por
todos. Nesse meio tempo, perdeu regalias e funções. Até as de encarregado
das compras no outro lado da montanha (...) foram delegadas a meia dúzia de
rapazes inexperientes, escolhidos pela posição radical que mantinham contra
a permanência dos forasteiros em Mangora (p. 271).
107
Nesse aspecto, pode-se dizer que tanto Hebron como João Gaspar, do conto ―O
edifìcio‖, são semelhantes. Gaspar passou a ter uma existência vazia quando os
funcionários da obra começaram a ignorá-lo, inclusive zombando dele. Hebron, dadas
as diferenças circunstanciais da narrativa, aproxima-se dele, pois ele percebe que sua
importância para o povoado estava se esvaindo: ―A partir do dia em que confirmara a
legitimidade das escrituras apresentadas por Diadema, percebeu que a sua liderança
sobre os companheiros declinava‖ (p. 271). Na fatídica luta entre o bem e o mal, —
personificados, respectivamente, no homem simples e no progresso — tanto Hebron
quanto João Gaspar são exemplos claros do processo de enfraquecimento da força do
indivíduo perante a devastadora e gigantesca engrenagem da modernização. Não havia
como o velho sábio deter Roque Diadema. Seu conhecimento era rústico. Detê-lo seria
o mesmo que estagnar o avanço inevitável do progresso:
O que parecia real e palpável, o velho mundo das pequenas comunidades,
está em vias de desaparecimento. No seu lugar, a incerteza. Em ―A diáspora‖,
como vimos, confrontam-se duas formas de sociedade — uma, pré-moderna,
ágrafa, coletivista, mágica, que repousa sobre a autoridade dos sábios; a
outra, o grupo social moderno, desenvolvido, possuidor de máquinas e
tecnologias, cuja autoridade baseia-se na lei escrita, no documento
(BASTOS, 2001, p. 62).
Sendo assim, é correto dizer que insólito é o que a sociedade institui como
modelo. A deteriorização de um lugar paradisíaco — perdido no nada e com costumes
que remetem a outros tempos e lugares remotos da vivência humana — é visto como
algo sólito. Como consequência disso, o homem que ali vive entra num processo de
desencontro consigo mesmo, pois ele perde sua identidade para assumir aquela que lhe é
imposta pela força do progresso. Mangora e seus habitantes representam, inicialmente, o
ser em estado bruto, ainda não corrompido. Depois do advento Roque Diadema, os
mangorenses tornam-se aquilo contra o qual seu estilo de vida sempre esteve em
oposição. O crescimento da cidade corrompeu os princípios básicos de convivência
entre o antigo (o idoso Hebron) e novo (os rapazes da cidade). A harmonia é desfeita
pela incorporação de uma nova ameaça: a construção da ponte. Na verdade, essa ponte
metaforiza tudo aquilo que viabilizou a instauração de um processo que destruiu a
cultura dos habitantes de Mangora.
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4.1.16. As unhas30
O referido conto narra um fato insólito que ocorre com o personagem principal
da história, Henrique Canavarro. Ao que parece, ele está em seu quarto se aprontando
para uma festa na qual, segundo ele imagina, seria ―a figura central‖ (p. 4). Percebe-se
que Henrique Canavarro, homem vaidoso, inicialmente aparenta ter um ―fìsico atlético e
o rosto ainda jovem‖ (p. 4). Sua vaidade extrapola os limites do bom senso, levando-o a
um comportamento meio narcisista. Além da preocupação consigo mesmo, as únicas
coisas que lhe importavam eram ―assombrar a viúva Petúnia — sua mais recente
conquista — e amesquinhar os outros homens, que o invejavam e se empenhavam em
diminuir-lhe as qualidades‖ (p. 4). Por isso mesmo, ele decide não mais ir à festa, pois
acredita que sua ausência surtiria um efeito maior do que sua presença. Decidido, depois
de se olhar pela última vez no espelho, retira lentamente a roupa e se deita, imaginando
qual não seria a repercussão de sua falta no dia seguinte ao evento. No entanto, ―quando
puxou as colchas para cobrir-se, sentiu incomodar-lhe as unhas‖ (p. 4). A partir daì, o
insólito se instaura na narrativa e a hipérbole é evocada mais uma vez para dimensionar
as questões que permeiam o universo do homem contemporâneo. As unhas do
personagem crescem além do normal. Embora tivesse ido à manicura, ―as unhas tinham
crescido novamente‖ (p. 4). Não importava quantas vezes ele as cortasse, elas cresciam
muito e em pouco espaço de tempo. Chegavam a cinco centímetros de cumprimento.
Cada vez que ele cortava, mais elas cresciam. Caso Canavarro não acordasse de noite
para cortá-las, ele ―encontrava-as estendidas longe de suas mãos, subindo pelas paredes
como se fossem trepadeiras‖ (p. 4). Por conta disso, o protagonista isolou-se de todos,
pois era incômodo perceber que os outros notavam seu estranho hábito de ficar com as
mãos nos bolsos ou então cortando as unhas sem parar. Depois de procurar por ajuda
em outras cidades, Henrique Canavarro deixa de lado sua excessiva preocupação com
sua aparência e, ao acordar numa manhã qualquer, percebe que suas unhas não o
atrapalharam ao agarrar as velas. Sem que nada fosse feito para que o fato ocorresse, o
protagonista percebe que suas unhas voltaram ao tamanho normal. Logo lhe veio a ideia
30 Este conto inédito de Murilo Rubião encontra-se em seu acervo, doado pela família ao Centro de
Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG, tendo sido selecionados dentre vários outros,
também inéditos, pela Profª. Vera Lúcia Andrade, atual diretora do CEL, e pela bolsista de Iniciação
Científica Ana Cristina Pimenta da Costa Val. O conto, datado de 1950 (no início do texto lê-se 13/07/50
e, no final, 14/07/50), encontra-se datilografado em 6 páginas de 33 cm x 22 cm, contendo muitas
correções a lápis e anotações à margem (...), numa comprovação de que, para Murilo, o texto não estava
pronto. (RUBIÃO, Murilo. ―As unhas‖. Suplemento Literário. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 4-5, nov.
1994.
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de recomeçar a vida. No entanto, quando viu sua fisionomia no espelho do banheiro,
notou que ―era tarde‖ (p. 5). O conto termina com um homem velho, cheio de rugas,
olhando pela janela do quarto para um jardim do qual exalava um cheiro de flor suave
que lhe trazia lembranças da infância.
Um fato que chama a atenção do leitor nesse conto é a relação que o
protagonista estabelece com o espelho no desenrolar da narrativa. Laís Correa de
Araújo31
, no artigo ―Murilo Rubião: o realismo fantástico e as epìgrafes bìblicas‖ —
numa tentativa de conceituação da narrativa fantástica, estabelece uma comparação
entre esta e a definição de espelho:
Sabemos que a formação da imagem no espelho plano se dá pela reflexão da
luz em uma superfície polida. Essa reflexão, que acontece de maneira
ordenada, nos fornece uma imagem virtual, direita, reversa, mas simétrica.
(...) Por outro lado, a imagem será virtual (será vista em um ponto onde
temos a impressão de que os raios luminosos partem, divergentes, atrás do
espelho) e reversa colocada ao lado contrário ao seu natural. Assim, um papel
onde se lê normalmente a palavra ROMA, colocado diante de um espelho
plano, nos fornecerá como leitura a palavra AMOR e nos dará a ilusão de que
está dentro ou depois do espelho (1984, p. 3).
David Roas, no já citado A ameaça do fantástico: aproximações teóricas,
considera que o discurso fantástico é capaz de criar uma terceira realidade que, segundo
a terminologia dele, poderia ser denominada realidade virtual. A ideia do crítico
corrobora a tese de Laís Correa Araújo e, por conseguinte, ambas aplicam-se ao conto
por ora abordado. É através do espelho que se pode afirmar que o personagem enxerga
uma outra realidade que não é a real. Note, por exemplo, que o conto começa com ele
―Diante do espelho, com amoroso cuidado‖ (p. 4) preparando-se para a festa. Há
algumas passagens na narrativa em que o narrador dá indícios da exagerada
preocupação do protagonista com a imagem refletida. O segundo parágrafo inicia
afirmando que Canavarro ―Mirou-se demoradamente, antes de colocar a casaca,
satisfeito com o fìsico atlético e o rosto jovem‖ (p. 4). Pelo desenrolar da leitura, a
incerteza dos fatos instaura-se nesse ato contínuo de admiração egocêntrica, pois o
homem que termina o conto não é o mesmo que o iniciou. No início tem-se um
personagem jovem, com físico atlético, com belos cabelos sempre rigorosamente bem
penteados, e o que fecha a narrativa é uma sombra do que aquele fora um dia.
31 ARAÚJO, Laís Correa. ―Murilo Rubião: o realismo fantástico e as epìgrafes bìblicas‖. Suplemento
Literário. Belo Horizonte, v. 19, n. 926, p. 3, jun. 1984.
110
Dando continuidade a essa mania obsessiva, nas passagens ―Ao voltar-se para
o espelho, a fim de colocar a flor na lapela‖ (p. 4) e logo a seguir em ―Contemplou-se
ainda mais uma vez ao espelho, admirando a sua própria elegância‖, nota-se claramente
que o personagem vê algo que lhe agrada. No entanto, não seria incorreto considerar
que o que ele vê, na verdade, é a sua imagem reversa, ―colocada ao lado contrário ao
seu natural‖ (1984, p. 3). Aquilo que o protagonista imagina ver é o que ele desejaria
ser, não a realidade; é o seu contrário. Possivelmente, era uma imagem dos tempos em
que ele se enquadrava dentro daquelas descrições, guardada inconscientemente em sua
memória. É possível considerar essa afirmação depois de se atentar para o fato de as
unhas começarem a crescer justamente quando o personagem deita-se para dormir e se
descola efetivamente de sua outra imagem, a virtual. A partir desse instante, o
protagonista é forçado a deixar de lado a idealização de si mesmo e encontrar-se com
sua realidade táctil. Nesse sentido, o crescimento das unhas indicia a constatação de que
existe algo que, embora seja insignificante e contínuo, perturba sua existência e não
possui uma cura científica. É por isso que, apesar de Canavarro ter procurado a opinião
de outros médicos distantes de sua cidade, nada encontrou. A cura estava em si mesmo.
Ela se deu naturalmente, sem medicações e inesperadamente, diante do objeto que
outrora lhe servira para embarcar numa viagem pelos caminhos da memória, mas que,
agora, serve-lhe como meio de constatação de sua realidade:
Correu ao banheiro para fazer a barba. Tinha que tomar providências
imediatas, chamar o alfaiate, etc. mas, ao dar com a sua fisionomia no
espelho, viu que era tarde. Nele estava refletido um rosto cansado e velho. Rugas e amarguras estavam impressa ali (RUBIÃO, 1994, p. 5).
Para um homem cuja vida ganhava sentido na satisfação pessoal e motivado
apenas por suas conquistas, encontrar-se diante do espelho e perceber que sua imagem
real não reflete mais a que ficou como idealização de um momento ou de uma época,
significa reconhecer a inevitável passagem do tempo. Nesse aspecto, nota-se o elemento
insólito servindo como um elo que estabelece uma relação entre o sujeito real e o
virtual. É por isso que se pode afirmar que o fantástico traz à tona uma realidade mais
profunda do que a usual. O ser, diante do insólito, vê-se oprimido pela constatação da
realidade. Por isso há o fantástico; ele ―dá lugar ao afloramento de um real mais fundo‖
(ARRIGUCCI, 1987, p. 147).
Sendo assim e diante dessas considerações, é possível até o questionamento
dos fatos como um todo. Haveria mesmo uma festa na qual Henrique Canavarro seria ―a
111
figura central‖? A suposta viúva Petúnia seria de fato a última conquista do protagonista
ou não passava apenas de mais um dos seus delírios fantásticos? Afinal, ele se achava
bonito, atraente e causador de inveja nos demais homens da cidade; em sua mente,
quantas Petúnias não desejariam tê-lo ao lado. E, por último, não teria sido o
crescimento das unhas algo que só ocorreu no universo dos sonhos? Essas interrogações
ajudam a configurar esse indivíduo incapaz de lidar com sua nova realidade. A
percepção angustiante do passar do tempo diante do espelho no final da narrativa
resgata o personagem do universo fantástico e o projeta numa inevitável realidade
indesejada: a possibilidade da morte.
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4.2. O incesto (?)
Presente desde os antigos clássicos na literatura, o incesto é um tema bastante
delicado e difícil de abordar de forma relevante e significativa, pois, sendo um assunto
que extrapola o teor apenas literário da questão, proporciona discussões acaloradas e,
muitas vezes, visões de mundo estereotipadas de determinadas partes da sociedade. A
famosa tragédia de Sófocles, Édipo Rei, é um conhecido exemplo desse tema na
literatura clássica. Nos romances Os maias, de Eça de Queirós, e Lavoura Arcaica, de
Raduan Nassar, o incesto se faz presente como forma de externar certos conflitos
experimentados pelos personagens em seu convívio familiar. Nessa mesma linha, é
possível perceber o incesto em alguns contos de Murilo Rubião. Nas duas histórias do
autor mineiro elencadas aqui sob essa visão, nota-se que o tema é trazido à discussão
não por uma questão de ideologia perversa [como podem pensar alguns], mas sim como
forma de descortinar uma realidade perturbadora, apontada desde há muito tempo na
literatura, incluindo-se nesse rol, a própria narrativa bíblica.
4.2. 1. A casa do girassol vermelho
O conto ―A casa do girassol vermelho‖ desenvolve-se, em um primeiro
momento, a partir da temática do incesto. Toda a narrativa tem como pano de fundo o
ambiente da ―Casa do girassol vermelho, com os seus imensos jardins‖ (p. 16). Nela, há
seis personagens que são os responsáveis pelos desdobramentos dos acontecimentos.
São seis irmãos – três homens e três mulheres – que vivem um momento de
―entusiasmo contagiante‖ e de alegria ―desbragada‖ (p. 15). São seis jovens adotados
que experimentam uma falsa sensação de liberdade depois da morte do pai adotivo, o
velho Simeão. Segundo Hermenegildo Bastos, no artigo ―Do insólito ao espectral em
―Ofélia, meu cachimbo e o mar‖, ―no insólito não há liberdade: forças inimagináveis,
incontroláveis reduzem os personagens a meros objetos e joguetes32
‖ (p. 99). Eles não
imaginavam que o ―fantasma‖ do velho reprimiria a liberdade deles e os transformariam
32 BASTOS, Hermenegildo. ―Do insólito ao espectral em ―Ofélia, meu cachimbo e o mar‖. In: Murilo
Rubião: 20 anos depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
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em simples peças de um quebra-cabeça em que uma das partes se perdeu: o irmão morto
na represa.
O pai é apresentado desde o primeiro momento com ares de menosprezo e
rejeição absoluta. Frases e expressões como ―velho Simeão, o monstro‖, ―o carrasco, o
odiento está perdido‖ (p. 17), ―maldito satanás‖ (p. 18) e ―aquele porco imundo,
puritano hipócrita‖ (p. 18) dão a dimensão exata da relação conflituosa que havia entre
o patriarca e os filhos. Por outro lado, dona Belisária, a mãe adotiva que não pudera ter
filhos, era o oposto. Nela, os jovens encontravam o carinho e a segurança que faltavam
em Simeão. Depois da morte dela, a vida dos seis irmãos transformara-se em um
inferno devido à perseguição que começaram a sofrer do velho que só os deixou em paz
depois de um ataque cardíaco fulminante.
Depois da morte de Simeão, a Casa do girassol vermelho transformou-se em
uma espécie de paraíso. Há um clima de completa liberdade e de euforia entre os irmãos
que só é abalado com a morte de Xixiu na represa. O conto termina sugerindo que uma
das irmãs, Belinha, começa a dar sinais de uma gravidez: ―Abaixou-os depois para o
ventre, onde começavam a surgir as primeiras pétalas de um minúsculo girassol
vermelho‖ (p. 24).
Como é possível notar, essa narrativa não apresenta um elemento sobrenatural
fantasmagórico que provoca medo, terror ou pavor. O fato insólito baseia-se na relação
incestuosa entre os irmãos e no conflito entre estes e o pai adotivo. Segundo Jorge
Schwartz, uma das peculiaridades das narrativas fantásticas de Murilo é justamente a
capacidade de levar o leitor a um ―universo alicerçado num absurdo verossìmil‖ (1981,
p. 69). A história narrada mexe com o imaginário do leitor sem, no entanto, deixá-lo de
fora do senso de realidade. Afinal, é sabido que relações como as apresentadas no conto
não são uma primazia da ficção. Enfim, o que incomoda é a consciência da absurda
convivência entre a realidade e a ficção nesse e em outros contos do autor. Audemaro T.
Goulart ratifica essa ideia ao afirmar que o conto fantástico de Murilo Rubião ―insiste
em pôr a descoberto o processo de estrangulamento da personalidade dos indivíduos,
(...) abrindo-nos os olhos ao que não vemos à nossa volta‖ (1995, p. 61).
No contexto de sua primeira publicação, em 1947, é possível fazer uma leitura
alegórica do conto. Se se considerar que a narrativa fantástica contemporânea pretende
— como um de seus objetivos finais — levar o homem a refletir sobre o absurdo de sua
existência, notar-se-á que a Casa do girassol vermelho é o lugar da opressão, das não-
realizações. Conforme assinalou Davi Arrigucci Jr., ―os personagens nada podem e
114
vivem a angústia da irrealização persistente (...). A existência dolorosa é o fardo
corriqueiro desses ―heróis‖ de Murilo‖ (2001, p. 157). Há aí uma referência ao texto
bíblico no tocante a essa ideia de paraíso e de sofrimento. Até mesmo os jardins da casa
remetem a essa interpretação, pois, na verdade, eles são ―uma tentativa de voltar ao
paraíso perdido da infância (BRUNN, 1995, p. 93). A perda ali foi mais profunda, pois
os ―irmãos‖ construìram um mundo no qual podiam tentar possuir a felicidade e, nele,
as relações incestuosas faziam parte de um universo tão normal quanto outro
qualquer, porque, na verdade, no mundo construído por eles, não havia transgressões. A
noção de certo ou errado simplesmente não se aplicava a eles.
Depois da morte do pai adotivo, a casa assume feições de um paraíso na Terra.
Há um sentimento de liberdade absoluta que se manifesta no processo de erotização dos
personagens. No entanto, tal processo retrata não o envolvimento emocional entre os
supostos casais, mas sim ―um caráter substitutivo e reificado‖ (1981, p. 37) dos irmãos.
O comportamento deles ratifica a tese de que eles não passam de componentes de um
universo caótico, do qual são meras peças de um quebra-cabeça inacabado devido à
ausência do irmão morto e da família como célula unificadora.
Todos os seis vivem afastados de tudo e de todos, como se não houvesse nada
mais além deles. Essa ideia só é desfeita com a chegada do trem: ―Além de nós, havia
no mundo mais alguém‖ (p. 23). A consciência de um mundo fora dali surge como algo
ao mesmo tempo benéfico e ameaçador. No primeiro caso, é benéfico porque é a
sinalização de uma continuidade daquela suposta ideia de felicidade que os casais de
namorados experimentaram logo depois da morte do velho; é ameaçador porque com
esse ―novo‖ universo que se descortinará diante deles, surgirá o fantasma do velho
Simeão personificado nas regras que a sociedade impõe. Ora, embora os irmãos
pensassem que seriam felizes após a morte do pai adotivo, não perceberam que jamais
poderiam ter esse sentimento ali. Toda a atmosfera de aparente felicidade é
abruptamente rompida pela rememoração da morte de Xixiu, o mais rebelde de todos.
Na verdade, essa pseudoalegria dá feições ao elemento trágico33
que se instaura
paulatinamente na narrativa:
33 Segundo Wolfgang Kaiser, no livro Análise e interpretação da obra literária, trágica é, em primeiro
lugar, no uso da língua corrente, toda catástrofe que não deveria acontecer e que nos fere ou atinge pela
incompreensão e absurdo de seu desfecho.
115
―A morte daquele que se lhes antepunha como um carrasco leva-os ao
desespero e, nessa instância, o trágico se insinua através da revelação de uma
força superior que lhes marca a impotência de conduzirem-se a si mesmos‖
(GOULART, 1995, p. 115).
Nesse sentido, o velho Simeão cumpre o papel do elemento impositor. Era ele
o responsável por manter a ordem e as [absurdas] ―regras‖ sociais de convivência entre
todos na casa. Sendo assim, é correto afirmar que a relação incestuosa entre os ―irmãos‖
é uma forma afrontar a memória e tudo o que o velho representou para aqueles jovens.
4.2.2. O lodo
O conto narra a história de Galateu, um contador da Companhia de Seguros
Gerais que preferia gastar seu dinheiro com mulheres a tratar da própria saúde. Devido a
―uma depressão ocasional‖ (p. 235), fora parar no consultório do doutor Pink, um
analista que ―assegurou que o paciente carregava dentro de si imenso lodaçal‖ (p. 235).
Inconformado com o diagnóstico do psicanalista e perseguido pelo doutor que insistia
no tratamento e no pagamento dos honorários, Galateu começa a perceber que o mal
que o assola é algo que vai além de seu entendimento e do momento atual de sua vida.
Segundo sugere a narrativa, a raiz dele estava em feridas abertas que traziam ―uma
recordação desagradável do seu passado‖ (p. 237).
Dentre as narrativas analisadas nesta tese, pode-se afirmar que o conto ―O
lodo‖ é sem dúvida aquele em que o teor psicanalítico e filosófico está mais evidente.
Embora seja possível perceber uma certa ironia de Murilo no tratamento dado à ciência
freudiana, nota-se que a história se desenvolve tangenciando situações que dão primazia
ao estado em que se encontra o homem na atualidade com suas questões pessoais
aparentemente não superadas. É por isso que se desejou abordar essa narrativa,
buscando nela os elementos que ratificam a sugestão do incesto. Ele seria o responsável
pela repulsa tanto da ciência como do médico por parte do personagem central. O
doutor Pink surge-lhe como uma ameaça. Afinal, Galateu tentava ―concentrar-se no
trabalho, mas o pensamento girava entre o episódio sepultado no inconsciente e a
curiosidade malsã do doutor Pink‖ (p. 237). O que ele pensou ser apenas uma depressão
ocasional, na verdade mostra-se como o reaparecimento de sombras de um passado do
qual desejava fugir e que queria esquecer.
116
A ironia a que se fez referência acima fica evidenciada na maneira como o
doutor Pink vai se portando no decorrer da história. Primeiramente, ele surge como um
médico interessado na cura do paciente e que cobraria seus honorários como deveria ser.
No entanto, conforme a narrativa evolui observa-se que ao lado da ciência —
representada pelo médico — está a extrema importância dada ao dinheiro. O valor da
consulta — cinco mil cruzeiros — deveria ser pago mensalmente ainda que Galateu não
fosse ao consultório do doutor:
A insistência do Dr. Pink revira a mente de Galateu, numa alusão à ideologia
psicanalítica que, ao invés de resolver problemas do paciente, acaba
agravando-os. A recusa de Galateu, fazendo-se resistente ao tratamento,
revela a má condução do processo que culmina com a morte do indivíduo. Temos, então, o sujeito, consciente de si, instalado numa aparente segurança,
vítima de uma trama criada por uma pseudociência, elitista, reacionária e
presa aos objetivos econômicos (GOULART, 1995, p. 144).
Tão destruidora quanto as feridas abertas em seu corpo era a perseguição do
médico que, em determinados momentos, oscila entre o interesse no paciente e no
pagamento dos honorários. O ápice dessa relação conturbada é marcado quando o
protagonista é intimado a comparecer a uma audiência, sentindo dores insuportáveis,
para tratar de questões relativas aos pagamentos atrasados do médico. A partir daí,
Galateu cria verdadeira ojeriza à ciência e ao médico, relutando, inclusive, em chamá-lo
no momento em que suas chagas tornam-se mais agressivas. O doutor voltará a aparecer
no final do conto, dando um aspecto de quase profecia ao sonho do protagonista,
quando Galateu, moribundo, recebe a visita do analista em sua casa, e este, com um
bisturi, limpa ―as pétalas da ferida‖ (p. 244), enquanto a irmã Epsila, debruçada à cama,
assiste a tudo.
A história começa fazendo referência a uma inesperada visita de Galateu ao
analista. Devido a uma depressão, ele vai parar no divã de um médico e se vê diante de
um doutor, respondendo a ―perguntas imbecis sobre sua adolescência‖ (p. 235). Como
se perceberá no decorrer da narrativa, o comportamento cético do protagonista tem
menos respaldo no desconhecimento, até aquela data, da ―existência de semelhante
especialidade‖ (p. 235) do que no medo de ver um desconhecido vasculhando um
passado supostamente enterrado em sua mente. É nesse momento pretérito que estão as
raízes das chagas que surgirão no personagem. Como uma consequência direta de um
―inconsciente que é lodo puro‖ (p. 237), tais feridas emergem dele e manifestam-se
117
fisicamente em forma de ―uma ferida sangrenta, aberta em pétalas escarlates‖ (p. 238)
no lugar do mamilo esquerdo que havia desaparecido ao acordar pela manhã.
A forma como os acontecimentos vão se desenvolvendo sugere uma relação
incestuosa entre Galateu e a irmã Epsila. Tal sugestão vai ganhando corpo na narrativa
de tal forma que o próprio leitor começa a questionar quais segredos fizeram parte da
adolescência dos dois irmãos, a ponto de fazer com que o protagonista sinta-se invadido
por um doutor que lhe faz perguntas imbecis referentes àquele tempo. Outro fato que
levanta a possibilidade de tal relação está no tratamento que Galateu dá às mulheres.
Para ele, todas, inclusive a irmã e a mulher do patrão, são apenas joguetes em suas
mãos. Elas lhe servem a algum propósito. Nada mais. Talvez, a dificuldade em se
relacionar verdadeiramente com as mulheres encontre respaldo nesse passado
―pecaminoso‖ que mantivera com a irmã. Por fim, a chegada de Epsila com um filho
―retardado mental‖ (p. 241) projeta definitivamente a sugestão do incesto na narrativa.
Fosse ou não Galateu o pai da criança, a verdade é que, biologicamente, poder-se-ia
conjecturar tal fato, uma vez que é sabido que numa relação entre irmãos a porcentagem
de nascimento de um bebê com alguma deficiência é grande. Contudo, no âmbito
diegético, essa possibilidade só se ratifica quando Zeus, a criança, se dirige a Galateu
dizendo ―— Pai, a mãe mandou ela embora‖ (p. 242), referindo-se à empregada. O
protagonista não afirma nem desmente tal hipótese. Ele apenas questiona: ―Quem disse
que sou seu pai?‖ (p. 242) e fica ―meio desconcertado com a revelação‖ (p. 242) da
criança. Essas passagens somadas a outros elementos espalhados pelo texto remetem ao
relacionamento incestuoso dos dois irmãos.
Conduzindo a análise do conto por esse caminho, nota-se que o doutor Pink
figura metaforicamente como um superego de Galateu. O protagonista vai ao
psicanalista queixando-se de uma suposta depressão. No entanto, é a partir desse
encontro que a doença começa a progredir e a se manifestar fisicamente. É justamente a
rememoração de um passado do qual o personagem desejava fugir que traz à superfície
as lembranças desagradáveis da vida familiar. Em outras palavras, o médico é aquele
que vivifica a consciência transgressora de Galateu. Isso é perturbador. Corroborando
essa tese, note que tais recordações começam a incomodar mais intensamente o
protagonista depois da primeira consulta. E, depois do sonho, quando acorda sem o
mamilo esquerdo e com uma ferida aberta no lugar, o personagem vai a um
farmacêutico e se medica com uma pomada. Nesse ínterim, conforme o narrador afirma,
―Dois meses decorridos, a consciência tranquilizada‖ (p. 238), houve uma suposta
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melhora. Esse foi o período que Galateu esteve distante do analista. Bastou-lhe ―ouvir a
voz do médico‖ (p. 239) novamente, para acordar ―de manhã, com uma dor penetrante‖
(p. 239). Contudo, dessa vez, a pomada receitada pelo farmacêutico não adiantou. As
feridas voltaram mais profundas e doloridas. A partir daí, o estado de saúde do
personagem piora gradativamente, o que o levará à morte.
Somada a isso, é a chegada da irmã, acompanhada do filho, que
definitivamente desencadeará uma crise existencial em Galateu. Recebê-los em sua casa
equivale a trazer as recordações do passado para um momento presente. Ver a irmã
completamente diferente do que fora nos tempos de adolescente e ainda carregando uma
criança retardada mental, fez-lhe crescer o sentimento de culpa e de revolta contra ela e
contra si mesmo. Esses sentimentos confusos são percebidos no arrependimento do
protagonista ao abrir a porta: ―Arrependeu-se da imprudência: na soleira da porta
estavam a irmã e um menino com a aparência de retardado mental‖ (p. 241); na
percepção da irmã que ―perdera em doze anos, o viço, a suavidade de traços‖. Ela estava
―muito magra, os olhos sem brilho‖ e faltavam-lhe os ―dentes no maxilar superior‖ (p.
241). Tudo isso o leva a externar sua revolta. Por isso, em certas passagens da narrativa,
ele a chama de ―cadela‖ e de ―bruxa‖.
Perturbado pela presença deles em sua casa, o protagonista vai aos poucos
definhando até a morte. Todavia, a certeza de que a irmã estará presente em seu último
momento faz com que sua dor seja intensificada. Epsila manda embora a empregada,
pois, segundo ela, bastaria ―uma mulher para os serviços caseiros‖ (p. 242). Isso
quereria dizer que Galateu ficaria completamente dependente dela. Eis aí mais uma
ironia. Embora tenha querido fugir de seu passado, ele retorna e acompanhará seu
último suspiro, mesmo contra sua vontade. Enfim, na parte final do conto, o
personagem é encontrado desfalecido no chão da cozinha. Levado para o quarto,
exalando ―um odor fétido da pústula‖ (p. 244), ele aceita que o doutor venha a sua casa.
Na última cena no texto, está o analista limpando ―as pétalas da ferida‖ de um lado, e a
irmã do outro, debruçada ―sobre o corpo moribundo‖. Na verdade, essa passagem é a
concretização do pavor que Galateu possuía; sentimento este que lhe surge pela primeira
vez em forma de sonho. Para ele, mais do que sofrível, tal situação era a pior maneira de
morrer. Por isso, mesmo morrendo e diante da irmã — sua única parenta e testemunha
de seu passado — ele ―esboçava imperceptìvel gesto de asco‖ (p. 244).
119
4.3. A ambiguidade
Todorov já apontava para a possibilidade da ocorrência da ambiguidade na
narrativa fantástica, quando afirmava que a hesitação é um dos traços fundamentais do
gênero. Associada a outros elementos distribuìdos pela teia textual, a sua ―poética da
incerteza‖ contemplava uma realidade plural. Na mesma esteira estruturalista, porém
com uma terminologia diferenciada, Filipe Furtado substitui a hesitação pelo termo
ambiguidade. Para ele, esse é o traço fundamental do texto insólito que, relacionado a
outros elementos como o espaço em que a narrativa desenvolve-se, a identificação com
um narratário e a ocorrência de um fenômeno metaempírico que não se explica,
definitivamente configura o fantástico como gênero. Seja por uma visão ou por outra, o
fato é que quando a ambiguidade ocorre nos contos de Murilo, ela proporciona um
verdadeiro xeque-mate no leitor. Este fica indeciso diante dos fatos narrados e
questiona, mesmo depois de terminada a leitura, o porquê dos acontecimentos; ou se
eles realmente são o que aparentam ser.
Um fato que foi possível perceber nos contos analisados e que não é privilégio
só dos textos que compõem o subcapítulo que trata da ambiguidade é a possibilidade de
mais de uma abordagem na interpretação das narrativas de Murilo. Nesta parte
específica da tese, normalmente, a ambiguidade vinha associada à loucura, ou à
hipérbole; ou a hipérbole associava-se à loucura e ao incesto e etc. Isso, de certa forma,
dificultou um pouco a análise, pois, quando se opta por uma abordagem, escolhe-se um
caminho que pode, em alguns casos, excluir outro [ou outros].
4.3. 1. O Pirotécnico Zacarias
Um dos traços presentes no conto ―O Pirotécnico Zacarias‖ é a ambiguidade.
Embora esta surja nas primeiras linhas da narrativa e logo em seguida seja,
paradoxalmente, desfeita pelo narrador, nota-se que é através dela que o insólito vai aos
poucos se instaurando. O problema, agora, passa a ser do leitor que se vê diante de um
fato controverso, pois a leitura integral do conto, não a elimina por completo.
Segundo Jorge Schwartz, a ambiguidade
120
surge na medida em que o personagem-narrador descreve as incrédulas
reações daqueles que o circundam (...). Vemos como o próprio narrador
concilia as possíveis oposições (...), fazendo paradoxalmente da ambiguidade
a estabilidade da narrativa (1981, p. 64).
O narrador afirma: ―Em verdade morri, o que vem de encontro à versão dos
que creem na minha morte. Por outro lado, também não estou morto, pois faço tudo o
que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado do que anteriormente‖ (1998, p. 26). Já
no final do conto, ele afirma que ―nessa hora os homens compreenderão que, mesmo à
margem da vida, ainda estou vivo‖ (p. 32). Ou seja, o conto termina tão contraditório
quanto começou. Dessa forma, a narrativa abre algumas possibilidades de o leitor
interpretar o fato. Ou ele realmente está morto e, sendo assim, quase que
machadianamente, narra suas aventuras póstumas — o que seria um fato sobrenatural:
―Em O ‗Pirotécnico Zacarias‘, tenta-se burlar a morte com certa dose de humor negro
um pouco semelhante ao das Memórias póstumas de Brás Cubas‖ (ZAGURY, 1971, p.
30); ou então, ele estava metaforicamente morto, mas passou a se considerar vivo
depois de seu atropelamento. Pode-se ainda imaginar que tudo não passou de um
momento de delìrio provocado pelos efeitos da bebida: ―A bebida que antes da minha
morte pouco me afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente‖ (p.
31). Note que no conto não fica claro se a bebida foi ingerida antes ou depois do
atropelamento. Esse fato, segundo Todorov, incluiria a história no rol das narrativas
pertencentes ao gênero estranho. Por último, ainda, caberia uma interpretação alegórica
do fato narrado, já que o morto está mais ―vivo‖ do que antes. Morrer para tudo e todos,
nesse caso, seria uma forma de afirmar um novo começo, uma nova postura diante da
vida, já que quando ele pensava estar vivo, na verdade, não estava.
Enfim, essas são apenas possibilidades de leitura. Nenhuma delas é melhor ou
pior que a outra. No entanto, depois do que já foi dito a cerca do fantástico em Murilo e
das ideias de Sartre, fica sempre a questão: nesse conto, há alguma coisa que converge
para tais postulações? Acredita-se que sim. Se se considerar que na narrativa muriliana
―em geral, os lugares onde os acontecimentos ocorrem são os do dia a dia, e (...) os
personagens são metonímias da humanidade inteira34
‖ (BATALHA, 2013, p. 34),
poder-se-á aventar uma crítica implícita no conto em questão.
Na verdade, parece que o fantástico em ―O Pirotécnico Zacarias‖ não está
somente na vida-morte ou na morte-vida do personagem-narrador. Tanto é que o xeque-
34 BATALHA, Maria Cristina. ―Murilo Rubião e o fantástico brasileiro moderno‖. In: Murilo Rubião: 20
anos depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
121
mate a que é submetido o leitor não se desfaz. Insólita mesmo é a maneira como o
acontecimento é tratado. Um grupo de moças e rapazes embriagados, dirigindo um
automóvel, atropela um homem e não demonstra pesar pelo fato: ―todos os argumentos
analisados com frieza, prevaleceu a opinião de que meu corpo poderia sujar o carro‖ (p.
28). Com exceção de ―um dos moços — rapazola forte e imberbe — o único que se
impressionava com o acidente e permanecera calado e aflito‖ (p. 28), o grupo estava
mais preocupado em se livrar do problema. Nota-se na discussão entre os jovens uma
postura egoìsta e desumana. Enquanto ―o chão manchado de sangue‖ (p. 29) se
contamina da insignificância que emana do corpo e do fato ocorrido, é possível perceber
quais valores aquela juventude egoísta e mais preocupada com a diversão privilegia. Se
tais personagens são uma metonímia do homem moderno, não seria descabido dizer que
Murilo talvez tenha desejado chamar a atenção do leitor para o tipo de cidadão que a
sociedade moderna criou. Nesse sentido, o humor negro a que se refere Eliane Zagury
há alguns parágrafos acima aponta cética e ironicamente para uma deteriorização dos
valores e comportamentos humanos.
4.3.2. Mariazinha
Antes de qualquer coisa, é importante salientar que o referido conto poderia ter
sido analisado seguindo algumas abordagens de outros estudiosos. É o caso, por
exemplo, do ilustre professor e orientador desta tese, Alcmeno Bastos, e do professor
Audemaro Taranto Goulart. O primeiro realiza uma análise da narrativa, pautado na
questão da causalidade — visão esta também apresentada por Jorge Schwartz, na
poética do uroboro. Segundo Bastos, no artigo intitulado ―Murilo Rubião e a questão da
causalidade35
‖, ―o insólito muriliano deriva da peculiar maneira como a temporalidade é
subvertida, minando a confortadora certeza de que nada pode acontecer fora da ordem
natural que determina lugares fixos para o passado, o presente e o futuro‖ (p. 71).
Segundo ele, Murilo constrói contos que burlam a obrigatoriedade de as narrativas
seguirem o padrão tradicional de relatar os fatos. Muitas vezes, os textos são
intercalados por blocos que servem para situar o leitor no espaço e no tempo das ações
35 BASTOS, Alcmeno. ―Murilo Rubião e a questão da causalidade‖. In: Murilo Rubião: 20 anos depois
de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
122
narradas, sem, no entanto, seguirem uma ordem lógica de início, meio e fim. Por outro
lado, Audemaro vê nesse conto ―um exemplo perfeito da peripécia‖ (1995, p. 128) que,
de acordo com Aristóteles, ―consiste na súbita mutação dos sucessos, no contrário‖ (p.
127). Segundo Goulart, o fato de ―o morto falar de sua morte, voltar a ser vivo, narrar a
sua história e, novamente, ser morto, quer dizer, o presente se torna passado e se faz
novamente presente‖ (p. 129) é o que permite reconhecer a peripécia no conto.
Embora as duas abordagens sejam interessantes, buscou-se um caminho
diferente e que se aproximasse mais das considerações feitas acerca das teorias
sartrianas. Por esse motivo, o conto foi incluído na parte que aborda a ambiguidade. É
por esse viés que se deseja considerar a relação entre o homem e o universo que o
circunda.
Segundo Filipe Furtado, ―só o fantástico confere sempre uma extrema
duplicidade à ocorrência metaempìrica‖ (1980, p. 35). Essa duplicidade gera a
ambiguidade na narrativa, o que, muitas vezes, coloca o leitor diante de uma incerteza.
Por exemplo, o insólito no conto ―Mariazinha‖ se descortina aos poucos. Na primeira
parte [1943], há uma cena que só se torna plena para o leitor, quando este tem acesso às
duas outras partes. Nela, o narrador-personagem está relatando seu velório momentos
depois de ter se suicidado. Na segunda parte, que ocorre vinte anos antes, o narrador
detalha os acontecimentos que o levaram a tal fato. Nela, há alguns elementos insólitos
como filhos ―recolhidos aos ventres maternos‖ (p. 42), homens que ―voltaram a ser
solteiros‖ (p. 42), ruas que ―ficaram sem calçamento‖ (p. 42) e um padre que ―foi
nomeado bispo‖ (p. 42) que, no contexto da narrativa, tornam-se fantásticos porque
sugerem uma ruptura na normalidade dos acontecimentos. Por fim, na terceira parte,
[1943, novamente], se não fosse o fato insólito de o personagem Zaragota ser enforcado
de novo, as coisas retomariam sua suposta normalidade, inclusive com o bispo voltando
a ser padre, os filhos saindo dos ventres maternos, os homens se casando e o calçamento
voltado às ruas.
O leitor tem diante de si duas realidades. Uma que ocorreu no passado e outra
no presente. No entanto, nenhuma das duas pertence ao seu universo cronológico.
Portanto, as duas são pretéritas. O impasse ressurge quando, no decorrer da narrativa,
fica-se sabendo que quem narra é um narrador-personagem-defunto. Diante de um
personagem tão escorregadio quanto um Brás Cubas, paira a dúvida em creditar
confiança no seu relato, ou, simplesmente, rejeitá-lo por se tratar de alguém que percebe
a vida [ou a morte] por outro prisma. Eis a primeira armadilha de Murilo Rubião ―de
123
Assis‖. Afinal, a um morto, tudo lhe é concebido, inclusive o delírio que justifique o fim
trágico que teve a sua existência. Sendo assim, excluí-se a possibilidade do flashback,
pois, nesse quase-delírio, todos percebem e aceitam os acontecimentos narrados e quem
os narra é um morto. Não há uma ação psicológica que só ocorre na mente do narrador.
Sem sombra de dúvidas, o narrador-personagem é insólito, Mariazinha é
insólita e Zaragota, também. No entanto, o personagem que mais concentra em si teor
de insolitude é o Padre-Bispo-Padre Delfim. Ele é a personificação da ambiguidade. O
clérigo reúne em si a santidade do cargo que ocupa, mas também a ambição do ser
humano. Ele decide o que pode e o que não pode: ―proibiu a melancolia, as queixas
contra as ruas empoeiradas‖ (p. 43); ele decide quem vive e quem morre: — Josefino
Maria Albuquerque Pereira da Silva, enforque o homem!‖ (p. 43) e decide quem casa:
―toque os sinos e case com Mariazinha‖ (p. 43). Observa-se que o religioso possui mais
do que a fé ao seu lado. Havia nele uma espécie de liderança indiscutível. A vontade
dele era a de Deus: ―Ordenou que se expulsassem as lâminas de aço, os instrumentos de
metal‖ (p. 43); ―Como não houvesse quem discordasse, enforcou-se o canalha do
Zaragota‖ (p. 44) e ―dom Delfim jamais ameaçava duas vezes‖ (p. 44).
Nesse cenário montado por um morto-vivo-morto, os elementos insólitos
surgem como forma de criticar uma dada realidade. Ao que parece, o lugarejo ficava em
uma cidade pequena, talvez do interior. Num lugar como esse, a figura de um padre tem
grande respeito. Isso fica claro na maneira como o narrador o coloca na cena. No
entanto, o que chama a atenção é o fato de o ―homem de Deus‖ ser tão inescrupuloso
quanto o canalha que ―abusou‖ de Mariazinha. Em meio ao burburinho que cercava a
cidade por conta do que acontecera, Dom Delfim estava mais preocupado ―com o
adjetivo e com o perfume que vinha do lencinho branco de rendas‖ (p. 43). Nas
passagens ―Somente se preocupava com a festa comemorativa da sua elevação a bispo,
temendo que algum acontecimento imprevisível roubasse a pompa das homenagens que
deveria receber‖ (p. 43) e ―Levantou a cabeça, altivo, enérgico, e ordenou‖ (p. 43)
percebe-se a que tipo de homem religioso o narrador se refere. O religioso sem
religiosidade. Ele é apenas o título que carrega, e está mais preocupado com a pompa e
com os poderes que o cargo lhe dá do que em realizá-lo como deveria.
Como se pode notar, Murilo se utilizou de uma narrativa simples para
demonstrar alguns elementos que fazem parte da construção da personalidade desse ser
moderno: o homem. Acredita-se que a ambiguidade — marcada concretamente na
narrativa pela disposição temporal presente x passado —, de certa forma, faz parte da
124
natureza humana. No conto, Josefino Maria Albuquerque Pereira da Silva, o narrador,
reúne em si tal possibilidade porque, na situação de narrador-defunto, encontra-se
privilegiado pela re-memorização póstuma dos fatos ocorridos; Mariazinha apresenta-se
ambígua conforme a narrativa se desdobra. É uma mulher que aparenta ser uma coisa,
mas, na verdade, é outra. Isso fica insinuado no conto. Ela é a responsável pelo suicídio
de Josefino e, por fim, o padre. Personagem mais emblemático desse caráter ambíguo
que compõe o homem de todos os tempos: ambicioso, mas ostentador de aparências.
4.3.3. Elisa
O conto narra o momento em que uma mulher desconhecida chega pela
primeira vez à casa do narrador e, sem que ele esperasse, ela desaparece. Um ano
depois, ela volta e diz se chamar Elisa. A história termina com uma nova partida e com
a sugestão de que haverá um novo retorno da enigmática mulher.
A história em si é uma narrativa simples. Na verdade, a ambiguidade dela recai
na figura feminina que surge. Assim como Mariazinha do conto anterior, ela é
apresentada de forma misteriosa, enigmática e ambígua. É misteriosa porque, nas duas
vezes em que aparece, surge do nada, trazendo consigo os mistérios de sua vida:
―Raramente saia e nunca aparecia à janela‖ (p. 47), ―Não nos disse o nome, de onde
viera e que acontecimentos lhe abalaram a vida‖ (p. 48) e ―Andei por aì e nada fiz.
Talvez amasse um pouco‖ (p. 49). Elisa é enigmática porque deixa transparecer mais do
que está dito na narrativa. Em passagens como ―como se obedecesse a hábito antigo‖ (p.
47), ―Aceitei os seus longos silêncios, as suas repentinas perguntas‖ (p. 48) e ―Mas
depois, Elisa (...) partiu de novo‖ (p. 49) nota-se uma personagem envolvida numa
espécie de segredo que deve [ou precisa] ser decifrado. A maneira como surge, o
comportamento que tem mesmo depois de algum tempo de convívio com as pessoas da
casa e seus olhos castanhos, que de certa forma remetem ao olhar de Capitu, em Dom
Casmurro, constroem uma atmosfera enigmática em torno de Elisa.
Nesse sentido é que se pode falar em ambiguidade no referido conto. Segundo
Goulart, Elisa representa ―a descoberta paulatina de situações desconhecidas‖ (1995, p.
137). Ela pode ser vista como a manifestação do desejo do narrador-personagem e a
simultânea interdição desse sentimento, que se dá a cada nova partida ou nova chagada.
Essa duplicidade de possibilidade percorre o conto. Desde o primeiro momento, quando
125
o rapaz a vê, até a conversa que ele tem com a irmã no fim do conto, demonstrando uma
preocupação em poder ser achado por Elisa caso volte novamente, remetem a essa
predisposição para a realização do desejo. Por isso, pode-se dizer que a relação que se
constrói entre a mulher e o narrador-personagem é de ambiguidade, pois ela não se
concretiza plena e satisfatoriamente, deixando tanto o leitor quanto o personagem na
dúvida dos sentimentos e das intenções de Elisa. Por fim, em uma última análise, poder-
se-ia ainda aventar que Elisa é a personificação do amor. Uma personificação que traz
em si os bônus e os ônus desse sentimento e, consequentemente, da perda dele.
4.3.4. Marina, a Intangível
Nesse conto, o personagem José Ambrósio, um jornalista desacreditado, se
desespera ao perceber que não consegue escrever o artigo para publicação. Mesmo
sabendo que ―o redator-chefe nunca aproveitava, na edição do dia, os seus artigos e
crônicas, nem deixava determinadas tarefas que deveria cumprir‖ (p. 78), ele procura
escrever algo que valha o seu trabalho noturno. Para isso, em forma de prece, recorre à
Marina, a Intangível que, segundo ele, também é conhecida como Maria da Conceição,
uma mulher que fugiu com o namorado e que só trouxe infortúnios para o rapaz. No
entanto, o fato mais surpreendente ocorre quando um baixinho narigudo surge diante do
jornalista dizendo ter recebido o recado dele e que estava ali para ajudá-lo a escrever um
poema para a tal Marina, a Intangível. A partir daí, o ―poema que se constrói a si
mesmo‖ (1995, p. 130) ficará metaforicamente sugerido no cortejo em que Marina
surgirá diante de José Ambrósio.
Não seria difícil perceber nesse conto a dificuldade de criação do artigo
vivenciada pelo personagem-narrador, o que de certa forma, poderia encaminhar a
análise da narrativa para uma analogia entre este e a trajetória do próprio Murilo,
configurando-se, assim, ―um elevado teor metalinguìstico‖ (1981, p. 84). No entanto,
como tem sido feito nas outras interpretações, buscar-se-á seguir um caminho que fuja
um pouco de outras análises. Por esse motivo, esta abordagem considerará a
ambiguidade como fator relevante no referido conto.
Inicialmente, pode-se dizer que todo o cenário está configurado para a inserção
do elemento insólito. Em passagens como ―Agoniado pela ausência de ruìdos na sala‖
(p. 77), ―eu jamais conseguiria romper o vazio que se estendera sobre a madrugada‖ (p.
126
77) e ―Afinal, duas pancadas longas e pesadas, que a imobilidade do ar fez ganhar em
volume e nitidez, ressoaram, aumentando os meus sombrios pressentimentos‖ (p. 77)
nota-se toda uma atmosfera de penumbra, expectativa e mistério. Há algo para
acontecer. Essa ideia é realçada pelos sentimentos confusos e desesperados de um
homem solitário na madrugada que recorre à crença [ou à superstição] para construir
algo real: o artigo. José Ambrósio recorre, em forma de prece, à Marina, a Intangível e à
Bíblia. A narrativa vai sendo conduzida de forma tal que o leitor aos poucos é envolvido
por esses elementos que compõem tanto aquele universo como também o personagem.
A partir de determinado momento da história, a questão que se pode colocar é:
até que ponto a palavra do narrador é confiável? A resposta para tal pergunta torna-se
ambígua, quando é possível perceber que aparecem no texto alguns dados que levam a
uma dupla interpretação dos fatos ali encenados. O primeiro deles, como já foi dito, é
todo o cenário montado no início do conto. O segundo é a inutilidade do artigo. Como
alguém anseia tanto escrever algo, sabendo que será descartado pelo chefe? Por que o
martírio na criação de algo que não serve para nada? Essas e outras perguntas vão
tomando corpo à medida que a história se descortina e o leitor começa a perceber que há
algo estranho na relação de José Ambrósio com a realidade que o cerca: ―A qualquer
momento poderia ser arrastado da cadeira e airado ao ar. A ação da gravidade estava
prestes a ser rompida‖ (p. 79). O terceiro e mais insólito dos fatos é o surgimento do
misterioso homem que diz trazer os versos para Marina, a Intangível. Nenhum outro
personagem confirma a existência dele. Só José Ambrósio o vê. O homem, apesar de
desconhecido, sabe muito sobre o jornalista, inclusive de uma doença que o próprio
narrador rejeita:
— Encomendou sim. Talvez não se recorde porque o pedido que me fez é
anterior à sua doença.
Descontrolei-me, ouvindo tão cretina afirmação. Eu, doente?! O melhor seria encerrar o assunto e cortar de vez o nosso diálogo (p. 81)
De que doença se trata? Será que esse homem realmente apareceu diante dele
ou tudo não passou de uma alucinação? No texto, isso não fica claro. Há apenas indícios
que possibilitam esse questionamento por parte do leitor. A ambiguidade reside no
caráter duvidoso desse personagem que se mostra aos poucos. Outro dado que ratifica
esse sentimento é o fato de o homem sugerir a publicação de uma poesia: ―— Toda e
qualquer modalidade poética foge à linha do jornal. Se nem os meus artigos, que são
mais importantes, ele publica‖. (...) ―— São versos para Marina, a Intangìvel‖ (p. 81).
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Nessas passagens, observa-se uma contradição do jornalista. Anteriormente, ele tinha
consciência de que seus textos não eram aproveitados pelo redator-chefe, mas, agora,
ele diz que seus textos são mais importantes. Importantes para quem, para ele? No
entanto, depois de saber que os versos eram para Marina, meio contrariado, ele aceita a
publicação e a sugestão de fazerem uma edição extraordinária toda dedicada a ela.
Enfim, como um suposto jornalista desacreditado seria capaz de criar uma edição
apenas para publicar algo de seu interesse, mesmo que o texto fugisse ao padrão do
jornal? Esses elementos desconstroem a credibilidade do personagem e, em alguns
momentos, chegam a permitir a dúvida de que se trata mesmo de um jornalista.
A maneira como o poema é ―escrito‖ também é insólita: ―— Vá me olhando e
escrevendo (...). E começou a fazer gestos com as mãos. Gestos vagarosos que,
ritmadamente, lhe cobriam e descobriam a face plácida, imóvel‖ (p. 82). José Ambrósio
não consegue decifrar o que os movimentos queriam dizer, mas afirma que ―sentia que
o poema de Marina poderia estar nascendo. Lindos e invisìveis versos‖ (p. 82). Na
verdade, parece que o suposto jornalista está tendo um devaneio, uma alucinação. Os
versos de Marina não precisam nem de folhas nem de máquinas para ser escritos. Eles
―são feitos de rosas despetaladas‖ (p. 83) e de girassóis. Como é possível perceber, há,
nessas passagens referenciadas, toda uma conotação surrealista do processo de criação
da poesia.
Por fim, o desfile de seres estranhos que antecedem à vinda de Marina reforça
a ideia de que é possìvel que o personagem esteja tendo um delìrio. Os ―padres
capuchinhos‖, a ―Filarmônica Flor-de-lis‖, e ―o coral de homens de cara murchas‖
formam o cortejo que precede Marina, a Intangível. Logo em seguida, ele a vê,
escoltada por ―padres sardentos‖ e ―mulheres grávidas‖, vestida com um ―vestido de
cetim com as barras sujas‖ (p. 84). Trazia um chapéu enfeitado com pena de galinha à
cabeça, os lábios muito pintados e ―olheiras artificiais muito negras, feitas a carvão‖. A
visão que José Ambrósio tem, mistura elementos religiosos e profanos. A Marina que se
lhe apresenta representa essa ambiguidade. Embora ela estivesse envolta e uma espécie
de auréola sublime, há uma quebra dessa visão quando o narrador relata as pessoas que
compõem o cortejo e dá ênfase à erotização de Marina. Essa mulher, meio santa meio
profana, com lábios ―excessivamente pintados‖ desperta o desejo do jornalista. Ao
perceber o rasgado do vestido, não sabe se olha para os olhos ou para as pernas dela. Há
um conflito explicável pelo estado de delírio do personagem. Delírio este que entra num
processo de declìnio no final do conto. Em passagens como ―os impressores,
128
caminhando com auxílio de cumpridas pernas de pau, encheram de papel o quintal‖ (p.
85), ―os muros, que antes via na minha frente, transformaram-se num só‖ (p. 85) e ―o
poema de Marina estava composto, irremediavelmente composto. Feito de pétalas
rasgadas e de sons estúpidos‖ (p. 85) nota-se que a agonia de José Ambrósio chegava ao
fim. Afinal, ele acredita que de alguma forma a experiência que teve foi suficiente para
ter projetado nele o poema que desejava escrever para Marina, a intangível.
4.3.5. O bom amigo Batista
O conto narra uma estranha relação de amizade entre José e o amigo João
Batista. Os dois se conhecem desde a infância, período em que José já era advertido
sobre a exploração do amigo. Segundo diziam, Batista comia-lhe a merenda, copiava as
atividades de João e bancava o valente com os outros meninos, deixando José sozinho
na hora da briga. No entanto, o amigo sempre dava uma explicação absurda que era
aceita por José. Todos da família tentavam mostrar ao rapaz quem era realmente o
amigo. Nada adiantava. Depois de crescidos, coisas parecidas continuaram a acontecer:
uma namorada roubada, o primeiro lugar no concurso do Ministério da Fazenda, a
ascensão de Batista dentro do órgão, dentre outros fatos. Por fim, cansado de ouvir de
todos e, agora, de Branca, sua esposa, que Batista não prestava, José decidiu fingir-se de
doido. A mulher não ligou, mas o amigo resolveu interná-lo num hospício. Lá, fica
sabendo pelo irmão e pelo delegado João Francisco, que Batista está vivendo com
Branca, sua mulher. Adivinhando uma suposta boa intenção do amigo, José diz:
―Naturalmente Batista descobriu que minha mulher planejava retirar-me daqui e, para
evitar que tal acontecesse, foi ao extremo da renúncia, atraindo-a para si. Pobre amigo‖
(p. 104).
Como é possível perceber, a estranha relação de amizade entre José e João
Batista extrapola as barreiras da sanidade. Embora durante todo o percurso do texto não
seja apresentado um fato que definitivamente estabeleça a insanidade do personagem
pode-se dizer que vez ou outra surjam indícios que levam o leitor a cogitar tal
possibilidade. Em passagens como ―Sentia-me deslocado em casa, uma necessidade de
andar pela noite adentro, sem parar, cansando-me, evitando os pensamentos‖ (p. 101),
―Deixava-me ficar pelos bancos das praças, invejando a insensibilidade das nuvens‖ (p.
102), ―Não é que esse cretino está maluco mesmo‖ (p. 102) e ―É uma calúnia! Estou
129
louco! Doido varrido!‖ (p. 103) nota-se que José de alguma forma tem um
comportamento que sugere um processo gradativo de desligamento de algo, que pode
ser da realidade. E é justamente nesse ponto que a ambiguidade se instaura. Diante do
cenário que é apresentado ao leitor, ele oscila entre uma e outra possibilidade: seria José
louco ou as pessoas exageravam no que falavam sobre o amigo Batista? Ou então: José
realmente enlouqueceu ou simplesmente estava se fingindo? Na verdade, essas questões
não são claramente respondidas no texto. A maneira como a narrativa é conduzida até
seu fechamento faz que o leitor saia dela sem ter certeza da situação de José.
Os limites entre a loucura e a não-loucura estão problematizados no conto. Fica
evidente que o amigo Batista é uma espécie de mediador entre esses dois pólos. É ele
que se interpõe entre José e a família, entre José e os amigos de trabalho e, por fim,
entre ele e a esposa ao enviá-lo para o hospício. No entanto, é José que assume tal papel
quando se diz louco para fugir da esposa e quando, no hospício, assume sua insanidade
na figura de Alvarenga Peixoto e, depois, ao conversar com Napoleão. Segundo Goulart
―José participa das duas realidades: a da sanidade e a da loucura, mostrando como
nenhuma delas tem predominância no contexto‖ (p. 51). Por isso pode-se falar em
ambiguidade nessa narrativa. Ao término do conto, o leitor ainda não consegue definir
qual era a verdade sobre o personagem. Para Goulart, diante das situações elencadas no
texto, o leitor é levado a assumir uma nova verdade: ―a de que os limites da
racionalidade, que foi problematizada pelo insólito, são limites do próprio homem‖ (p.
51).
É nesse aspecto que a narrativa tangencia o existencialismo sartreano, uma vez
que o que está sendo apresentado ao leitor é uma visão desse indivíduo moderno,
modificado pelas contingências de sua existência. Sendo assim, para o protagonista é
mais cômodo ver a sua realidade e acreditar nela como se fosse a única, e não a que
todos queriam que ele visse. Acreditar que o amigo Batista não se encaixava em tudo
que lhe falavam dele é uma maneira de o personagem manter-se alheio a questões que
ele não pode e não tem como controlar: que é o universo do outro. Esse José consegue
ser mais ingênuo do que o de Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, o de
Drummond conota uma figura resistente à realidade; já o de Murilo esconde-se dela,
desde os tempos de menino, para não sofrer ao percebê-la diferente daquilo que ele
imagina. Daí advém a aceitação do amigo Batista tal qual ele se lhe apresenta.
130
4.3.6. Epidólia
Nesse conto, Manfredo — o personagem principal — procura a namorada
Epidólia, que sumiu sem que ele percebesse. Durante toda a narrativa a procura pela
enigmática figura feminina — que em alguns aspectos lembram Elisa — norteia os
acontecimentos estranhos que se seguem. Manfredo não a encontra e, embora em alguns
momentos tenha-se a impressão de que a peregrinação chegará ao fim, uma nova busca
se inicia, trazendo consigo as dúvidas e as novas Epidólias que se constroem
diferentemente no decorrer da narrativa.
É possível perceber que uma das temáticas abordadas neste conto é a
ambiguidade sugerida pelos tênues limites entre real e irreal, entre o sonho e a realidade,
entre a loucura e a razão. Já no início da narrativa o leitor se depara com um
personagem que oscila entre um comportamento apenas emotivo e um comportamento
esquizofrênico. É através dele que se tem a sensação de que os acontecimentos
enumerados no texto podem ter ocorrido ou não, fato este que dá ênfase ao caráter
ambìguo da narrativa. Na sugestiva passagem ―Manfredo se distraìra por alguns
segundos, (...) quando percebeu que o braço, (...) perdera o contato com o corpo de
Epidólia‖ (p. 169), o personagem não dá credibilidade necessária ao leitor sobre seu
relato. Essa sensação é intensificada quando Arquimedes — ―o velho guarda que o
acompanhara do grupo escolar à universidade‖ (p. 169) e ainda o trata como o menino
Manfredinho — dá uma resposta que não comprova nem desmente a presença de
Epidólia ali.
Além do fato de o próprio Murilo afirmar em entrevista que ―Epidólia nasceu
de um sonho‖ (SCHWARTZ, 1982, p. 04), há elementos no texto que remetem a essa
leitura, o que remete também à incerteza dos acontecimentos. Inicialmente, pode-se
constatar que Manfredo estava de pijama no parque com a namorada. Mais adiante, o
personagem diz que ―Sentia-se sem condições de raciocinar objetivamente‖ (p. 170) e,
nesse mesmo momento, ele acredita que Epidólia disse-lhe que estava hospedada em
um hotel da cidade vizinha. A possibilidade do sonho ressurge quando o próprio
Manfredo se dá conta de que estava de pijama no meio da rua e não sabia se o trocava
por um terno que depois se sabe que ele não possuía. Outro aspecto que endossa a
possibilidade dele estar sonhando é o fato de o táxi que pegara para levá-lo à cidade ser
mais veloz e diferente do que os outros que ele via costumeiramente. Tudo ocorre em
131
um universo em que as coisas se realizam a mercê de suas vontades, convergindo para o
propósito do personagem: encontrar Epidólia.
Ao chegar ao hotel, diante do gerente ―só articulou com clareza o nome da
pessoa procurada‖ (p. 171) e, depois de algumas ponderações, conseguiu conversar com
o homem que o ajudou a entrar em um quarto que poderia ser de Epidólia. No entanto,
nada fica comprovado, uma vez que o local estava vazio, tudo arrumado — como se
ninguém houvesse dormido ali — e as roupas não estavam no armário. O único vestígio
encontrado foi uma calcinha manchada de vermelho, que segundo Manfredo ―era
sangue ainda úmido‖ (p. 172). Mas o sangue e a calcinha poderiam ser de qualquer
mulher. Não se pode nem afirmar com absoluta certeza que esse hoteleiro realmente
existiu. Como se nota, a narrativa entra em um processo de afirmação e negação. A cada
informação colhida no percurso da busca do protagonista surge outra que lhe anula a
validade. É nesse sentido que Goulart afirma que ―o acontecimento contrário ao
anunciado caracteriza-se, então claramente‖ (1995, p. 136) no conto, fazendo com que a
narrativa reforce por si só o caráter ambíguo dos acontecimentos ali encenados.
Na continuidade da história, outro elemento que ratifica essa encenação é o
personagem Pavão, um velho marinheiro inicialmente considerado ―amante dela‖ (p.
172) pelo hoteleiro. No entanto, esse marinheiro vive em uma cidade que não tinha mar.
O próprio protagonista questiona a existência de uma orla marítima. Mas como no
universo onírico tudo é possível, depois da junção das três localidades [Natércia,
Pirópolis e a Capital], ―com Pirópolis veio o mar‖ (p. 173). Outro fato insólito.
Na esteira dos acontecimentos estranhos, Manfredo retorna a casa para trocar
de roupas e lá se depara com um ambiente que ratifica a atmosfera insólita: ―A velha tia
passeava com a cara enrugada, o vestido sujo, amarfanhado. (...) Com agulha e linha
invisìveis, tenta pregar no pijama dele um botão solidamente preso‖ (p. 173). É possìvel
perceber que o surgimento da tia na narrativa planta um novo questionamento: seria ela
louca ou, no sonho, Manfredo a descreve assim? Essa dúvida se sustenta no
comportamento da velha, segurando uma agulha e uma linha que não existem e na
recomendação do pai dele, dizendo que ―não desse muita atenção às bobagens da sua
cunhada‖ (p. 174). Esses elementos levam a uma interpretação ambìgua dos fatos.
Depois de vestir um terno de um dos roceiros, Manfredo se encontra com o
personagem Pavão. O suposto amante — tomado de grande rancor — diz que Epidólia é
uma ―vaca ninfomanìaca‖ (p. 175) e, depois de dizer que ―não devia ajudar cornos e
imbecis‖ (p. 175), aconselha-o a procurar, na casa da frente, o pintor: ―o último amante
132
dela‖ (p. 175). Nesse momento, surgem novas informações que ratificam o ir e vir da
narrativa, intensificando a ambiguidade no texto. É esse pintor que ―padecia de uma
caxumba, entranhada no corpo todo‖ que provocará novamente a sensação de
proximidade e de afastamento do objetivo de Manfredo: encontrar Epidólia — que a
essa altura da história, tornou-se o do leitor também. A sensação de proximidade se dá
por dois motivos: pela descoberta de que Pavão era, na verdade, o pai que abandonara
Epidólia e porque o personagem acredita que sua busca está terminando e a imagem da
namorada permanece intacta, já que o marinheiro não fora amante dela. No entanto, um
novo afastamento surge quando Manfredo percebe que o pintor não era amante dela, e,
segundo ele, só a usava como modelo. Pintava retratos de mulheres nuas e ela posava
sem nada cobrar. Convencido da sinceridade do homem, Manfredo encontra-se com um
tio farmacêutico de Epidólia que o informa de que a sobrinha estivera ali ―há poucos
dias‖ (176) e que o pai dela — o suposto marinheiro amante — era um ―tipo ordinário,
depravado‖ (p. 177). Nota-se que do mesmo modo que a narrativa apresenta um fato
atenuador da angústia do protagonista, ela insere uma nova informação que mergulha o
texto na indefinição novamente. É nesse sentido que Jorge Schwartz afirma que o
referido conto ―condensa a temática do desencontro‖ (1981, p. 31). Tanto Manfredo
quanto o leitor são guiados por caminhos que só intensificam o sentimento de angústia
criado pela ânsia do encontro que nunca acontece. As duplas possibilidades que se
constroem ao longo do texto dão a ideia de que o encontro é tão incerto quanto à própria
existência de Epidólia. Afinal, no mundo dos sonhos, criam-se realidades irreais.
Na parte final, é possível observar que o desespero do personagem avoluma-se.
Acreditando encontrar a amada nas docas, conforme o tio da moça lhe falara, o rapaz
segue desesperado pelo caminho que o levaria ao encontro dela. Nesse percurso, o leitor
começa a perceber que a presença da namorada naquele lugar é tão incerta quanto
qualquer outro dado elencado na narrativa. Em passagens como ―Perto e longe, a amada
se perdia por detrás do casario‖ (p. 177), ―Chegara à exaustão e o nome da amada (...)
levava-o ao limite extremo da angústia‖ (p. 178) e ―Apertou o ouvido com as mãos,
enquanto o coro se distanciava, até desaparecer‖ (p. 178), nota-se que o conto entra num
processo decrescente. Aos poucos, a tensão da busca se esvai e com ela se vão todas as
certezas. O retorno à realidade traz a consciência de que Pirópolis não tem mar e o
parque e a cidade não são os mesmos que ele idealizara para sua amada. A partir daí,
rememorando o texto como um todo, observa-se que a ambiguidade sugerida nos limites
entre o real e o irreal e entre a sanidade e a loucura serviu também para construir a
133
imagem da figura feminina entranhada inconscientemente em Manfredo. Epidólia fora
(?) namorada/amante, filha/depravada, virgem/prostituta. Cabe ao leitor escolher com
qual ficará; ou não.
4.3.7. O convidado
Nesse conto, o personagem principal é convidado para uma festa. O convite, as
roupas, a situação e as pessoas são elementos estranhos que compõem essa narrativa
fantástica de Murilo Rubião. Nela, ―o autor subverte a realidade a partir de uma situação
banal e a transforma em um acontecimento insólito‖ (BATALHA, 2013, p. 44),
construindo uma narrativa em que a ambiguidade configura-se paulatinamente no texto.
José Alferes, o personagem principal dessa história, é um homem recluso e
solitário: ―A ideia era evidentemente absurda, tendo-se em conta que o seu círculo de
relações não excedia o corpo de funcionários do hotel‖ (p. 211). Ele recebe um convite
estranho, pois ―além de não mencionar a data e o local da festa, omitia o nome das
pessoas que o promoviam‖ (p. 211). A única exigência feita era a maneira como ele
deveria ir vestido a essa cerimônia. Para as mulheres não havia exigências, mas para ―os
cavalheiros fardão e bicorne ou casaca irlandesa sem condecorações‖ (p. 211). Ou seja,
há uma situação banal — que é o convite — pouco a pouco transformada em algo
insólito devido aos elementos que surgem na história. A roupa e a omissão de dados que
identificam o remetente, o local e a data, tudo isso direciona o conto para uma
interpretação ambígua dos fatos. Além disso, há ainda algumas construções na narrativa
que remetem à incerteza: ―julgou tratar-se de alguma festividade religiosa (...)
preocupado com a possibilidade de um equívoco‖ (p. 211); ―procurando localizar algo
perdido na memória‖ (p. 213); ―— Calculo que o nosso destino é o bairro de Stericon‖
(p. 215); ―— Não estou certo‖ (p. 215) ―Tem certeza que é neste lugar, Faetonte‖? (p.
215).
Acreditando se tratar de uma brincadeira de mau gosto, Alferes pensou em se
livrar do convite. No entanto, ―ao lembrar-se de Débora, a estenógrafa, pensionista de
um dos apartamentos no mesmo andar do seu‖ (p. 211), mudou de ideia. Desejando ter
um encontro com ela, nutriu a esperança de que o convite pudesse ter partido dela. No
entanto, não há indícios sólidos no texto que justifiquem tal pensamento. Esse
comportamento do personagem tende a ratificar o sentimento de dúvida que começa a
134
surgir com relação aos fatos narrados. Havendo o convite, José Alferes fora realmente
convidado? Há duas passagens no conto que sugerem esse questionamento. A primeira
ocorre quando, imaginando dançar com Débora, o narrador afirma que o personagem já
estava convencido: ―a festa estava bem próxima‖ (p. 212); a outra, quando o porteiro da
casa diz que os convites dos outros foram feitos por telefone e que o do protagonista
―foi o único expedido através dos correios‖ (p. 216). Ora, havia tanta vontade de
participar da festa que, mesmo com um convite que talvez nem fosse seu, ele ficou
entusiasmado com a situação. Poderia ainda ter havido algum erro na hora do envio do
mesmo pelo correio. Enfim, alegre pela possibilidade de ter um encontro com a vizinha,
o protagonista foi a uma loja alugar o traje necessário. Lá, perguntou ―ao velho se tinha
notìcia de recepção ou algo parecido para aquela noite‖ (p. 212). Todavia, ele lhe diz
que nada sabe e que Faetonte, um taxista estranho e misterioso, poderia lhe dar
melhores informações. Quando volta para o hotel, fica sabendo que Débora havia
viajado em férias e, como já havia gastado muito dinheiro com a roupa e ficaria
dispendioso conseguir outra ocupação para a noite, resolveu ir à recepção mesmo assim.
O taxista, depois de rodar por meia hora, passando ―por residências ricas, de
arquitetura requintada ou de mau gosto‖ (p. 215), leva-o a uma casa aparentemente
vazia. Aproximando-se dela, um porteiro recebe José Alferes e o introduz na casa. No
local, os membros da Comissão avaliam o protagonista, olhando-o de cima a baixo e o
aceitam. Do outro lado, nos fundos de um corredor, havia outros convidados
confabulando amigavelmente. José Alferes se sentiu deslocado, pois não tinha amizade
àquelas pessoas e em alguns momentos fora, inicialmente, confundido com o convidado
que estava sendo esperado por todos na recepção. Fato este que o obrigava a
cumprimentar as pessoas ou responder a perguntas sem sentido para ele. É possível
notar, mais uma vez, uma técnica comum nas narrativas de Murilo. Seus contos
apresentam-se num processo de idas e vindas. Segundo Davi Arrigucci Jr., ―o método
de composição de Murilo parece envolver um paradoxo: estende o texto para restringi-
lo; amplia-o para concentrá-lo. Assim seu discurso narrativo muda de forma
tenazmente‖ (1979, p. 54). Sendo assim, a cada nova situação, tem-se a ambiguidade
construída e, posteriormente, desfeita ou amenizada pelo personagem (ou narrador). Os
convidados acreditam ser ele a pessoa esperada. Conversam, sorriem, dirigem-lhe a
palavra, mas, logo em seguida, depois do conhecimento do falso convidado, ignoram-
lhe a presença na festa. A incerteza está inserida no contexto.
135
Depois de desfeito o engano, pois ―a notìcia da presença de um falso convidado
na festa circulara rápido‖ (p. 217), ele pode enfim circular sem ser incomodado. A essa
altura, José Alferes, cansado dos temas das conversas dos convidados — potrancas,
baias, selins, charretes e puros-sangues — conhece Astérope, ―uma bela mulher. Alta,
vestida de veludo escuro, o rosto muito claro, o cabelo entre negro e castanho‖ (p. 218).
A presença dela na narrativa contribui com a construção do sentimento de dúvida que
surge vez ou outra no conto. Misteriosa e enigmática, ela se apresenta ao protagonista
dizendo ―— O seu nome todos sabem, o meu é Astérope‖ (p. 218). Todos sabem o
nome dele ou ela está enganada pensando que ele é a pessoa esperada? Ou sua fala faz
parte da composição daquela personagem enquanto mulher escolhida para dar prazer ao
convidado? Na continuidade, ela diz a Alferes que não conhece o convidado, mas
afirma: ―Vou conhecê-lo melhor hoje, na cama, pois dormiremos juntos‖ (p. 219). Ela
teria sido ―escolhida pela Comissão‖ (p. 219) para esse papel: ―— Vale a pena correr o
risco‖ (p. 219). Como se pode notar, a presença dela tornará viva a dúvida até o final do
conto, conforme se mostrará mais adiante.
Confuso e ―metido em dúvidas, Alferes ouvia desatento a companheira‖ (p.
219), pensando e refletindo em tudo que acontecia ao seu redor. Não chegava à
conclusão alguma. Desesperado ele deixa a casa, se sentindo aliviado e desejoso de
chegar logo ao seu apartamento. Ao entrar no táxi que o levara à festa, Faetonte diz que
deve ficar ali para levar os membros da Comissão e que, portanto, ele deveria ir de outra
forma para casa. Tudo indica que há um complô contra o protagonista [ou então ele
deve permanecer ali por algum motivo]; nem o taxista o quer levar dali. Faetonte
assegura-lhe que o pediram para aguardar o convidado. Nesse sentido a dúvida,
novamente, se instaura e se ameniza em dois momentos. Alferes afirma que ―o
convidado não virá nunca‖ (p. 220), ao passo que o taxista rebate afirmando: ―— Tenha
paciência, estamos próximos ao acontecimento‖ (p. 221).
Calculando a distância, o falso convidado tenta voltar para casa entrando em
caminhos desconhecidos e em ruas que não levam a lugar algum: ―Mal andara cem
metros, as dificuldades começaram a surgir‖ (p. 221). Caminhando ebriamente, como se
fugisse de algo terrìvel, numa fuga tresloucada (ou alucinada), José Alferes ―teve a
impressão de que se embrenhara num matagal. Daí por diante, perdeu-se. Ia da direita
para a esquerda, avançava, retrocedia, arranhando-se nos arbustos‖ (p. 221). Por fim,
sem o chapéu — pois o perdera nas tentativas de ir embora —, com a roupa rasgada em
136
vários lugares, com a sapatilha rompida e os pés sangrando, ele retorna a casa e é
recebido pelo porteiro novamente.
Como um último recurso, o protagonista tenta convencer o taxista a deixá-lo
num ponto de ônibus para que pudesse voltar para o apartamento, o que lhe foi negado.
Pensou até em subornar o taxista, mas nada adiantou. Completamente desconsolado por
tudo e quase aceitando ―a ideia de retornar ao parque‖ (p. 222), Alferes é surpreendido
por Astérope que surge, dizendo-lhe conhecer o caminho. Ela o pega pelas mãos e o
leva dali. O conto termina com a interrogação: Saberia? — Dos olhos de Alferes
emergiu avassaladora dúvida. Mas deixou-se levar‖ (p. 222). Dessa forma, a mesma
dúvida [e outras mais] experimentada pelo protagonista, instaura-se definitivamente no
leitor. Saberia ela o caminho? José Alferes é ou não é o misterioso convidado? A fala
quase profética de Astérope, dizendo que conheceria melhor o convidado naquela noite
na cama, seria verdadeira ou apenas uma conversa à-toa que os dois tiveram? Se ela
estava fadada a dormir com o convidado, porque sai do local com alguém que
supostamente não era essa pessoa? Haveria realmente um convidado especial? Enfim,
há muitos questionamentos que se podem levantar. A verdade é que tanto o protagonista
como o leitor permanecem com todas as interrogações que se construíram desde o início
até o fim da história, o que ratifica o pensamento de Nelly Novaes Coelho, ao afirmar
que ―um dos elementos mais aflitivos [na obra muriliana] é a evidência da continuidade
do fenômeno em pauta. O conto acaba, mas persiste em nós a certeza de que aquele
absurdo vai continuar‖ (1966, p. 527-528).
137
4.4. A loucura
Assim como os outros temas elencados nesta tese, a loucura sempre exerceu
certo fascínio nos escritores brasileiros. Contudo, a maneira como ela foi vista e
abordada no decorrer dos séculos é que mudou. Para os poetas românticos, a loucura
funcionava como mais uma forma de escapismo. Através dela, o eu refugiava-se em um
mundo no qual podia ser feliz. No conto-novela ―O Alienista‖, de Machado de Assis —
escritor vinculado ao Realismo e ao Naturalismo nos livros escolares —, ela surge como
uma forma irônica de ridicularizar a sociedade e a nova ciência da época. Nos poetas
simbolistas, a loucura sugere o afloramento de um inconsciente adormecido e
inquietante. Para os modernos, ela possui variada significação. Às vezes, utilizada para
dar voz a questões particulares, como em de Lima Barreto; outras, denunciadora de uma
realidade incômoda, como em ―Sorôco, sua mãe, sua filha‖, de Guimarães Rosa, etc.
Como se pode perceber, o gosto pelo tema está presente na literatura desde
tempos remotos. No caso de Murilo Rubião não poderia ser diferente. Leitor voraz das
narrativas quixotescas e machadianas, o escritor mineiro utilizou-se da loucura para
sondar o universo do homem moderno assolado por questões diversas. Alguns de seus
personagens refugiam-se em um universo em que a loucura é interpretada como o lugar
dos lugares; um pseudoparaíso na terra. Lá, eles são visitados por imagens e situações
que compuseram [ou não] toda uma existência repleta de interrogações. Novamente,
nesse sentido, o existencialismo de Sartre sugere uma boa chave de leitura de tais
contos, pois os protagonistas murilianos estiveram, estão e estarão presos a um mundo
que só existe em suas mentes. Eles não são livres e, muito menos, felizes.
4.4.1. A noiva da Casa Azul
O referido conto narra a história de um rapaz que segue para sua cidade natal,
Juparassu, para se encontrar com a namorada Dalila. Em uma carta enviada um dia
antes, ela diz ter dançado com um ex-noivo na véspera de sua partida para o Rio de
Janeiro. Enraivecido com a situação, o narrador-personagem pega o trem e se dirige à
cidade. Lá chegando, fica sabendo que o lugar está abandonado devido a uma epidemia
de febre amarela, o que o levou ao esvaziamento e à deteriorização. Por fim, descobre
que Dalila está morta e, posteriormente, o narrador se desespera.
138
O insólito neste conto está marcado pelas vias da loucura. O primeiro fato a ser
considerado é que o leitor tem diante de si um relato que, ao mesmo tempo em que se
descortina, descredencia a veracidade dos acontecimentos relatados. Em nenhum
momento, o narrador reconhece sua loucura, mas vez ou outra surgem indícios na
narrativa que podem remeter a ela. Passagens como ―sem saber se estavam diante de um
neurastênico ou débil mental‖ (p. 51), ―arrancou-me bruscamente do meu devaneio‖ (p.
52), ―pressentia estar sob suspeita de loucura‖ (p. 54) e ―Fiquei siderado ao ver ruir a
tênue esperança‖ (p. 55) ratificam a ideia de que, aos poucos, o leitor vai construindo a
imagem desse personagem, e tal construção faz com que o relato do narrador se torne
duvidoso. Consolidando essa ideia, Goulart afirma que ―a atmosfera onìrica, reinante no
conto, mistura fatos e situações do passado na alucinada cabeça da personagem‖ (1995,
p.139).
Apesar de todos advertirem o rapaz sobre a inutilidade de ir à cidade — pois já
sabiam do estado em que ela se encontrava —, ele insistia em regressar. Na verdade,
esse regresso marca um reencontro com ele mesmo e com um passado idealizado dos
tempos de criança e de juventude. Um passado que surge como um devaneio, no qual o
personagem recria, à primeira visão da natureza que circunda o lugarejo, uma atmosfera
de lirismo. A partir daí, o sentimento de descontrole é intensificado com a frustração
gerada com a percepção da realidade na qual a cidade se encontra. De acordo com
Goulart, ―a busca do passado, numa idealização exagerada, desencadeia um processo de
frustrações que leva o narrador a descobertas angustiantes‖ (1995, p. 139). Vê, em
ruínas, a casa em que morou, as ruas desertas e a casa de Dalila em escombros faz com
ele perca de vez a razão e misture, nos dois últimos parágrafos do texto, o real com o
irreal. A partir daí, dois tempos são simultaneamente incorporados: o presente e o
passado. O primeiro intensifica a frustração e o segundo o distancia da realidade trágica
que é a morte de Dalila e a de suas raízes.
Ao fundar a psicanálise, Sigmund Freud entendeu que a loucura faz parte de
cada um e está, de certa forma, no inconsciente do indivíduo, adormecida e esperando
um momento ou situação que a desencadeie e que, portanto, os loucos são aqueles que
não resistiram à luta entre a realidade e a irrealidade; entre o mundo normal e o
anormal; entre a razão e desrazão. Pensando por esse prisma, pode-se dizer que o que
desencadeou a perda da razão no personagem foi a constatação do que todos lhe diziam
e da morte da namorada. Segundo Foucault, ―a loucura e todos seus poderes que as
idades multiplicam não residem no homem em si mesmo, mas em seu meio‖ (2008, p.
139
373). Ora, o contato com todo aquele cenário desencadeia um processo de alucinação no
qual o personagem mistura o presente [e o passado na parte final do conto]. A perda da
razão se torna algo definitivo quando, nas duas últimas orações, o narrador diz em tom
de desespero: ―Corta-me a agonia. Corro desvairado‖ (p. 56).
Acredita-se que esse narrador, primeiramente enlouquecido por causa de uma
carta, chega ao ápice no seu estágio de loucura quando percebe que sua fuga foi em vão
e que não há mais nada em Juparassu. Sendo assim e comparativamente, pode-se dizer
que daí surge a angústia do homem moderno. A constatação de que a idealização de
uma situação ou de um lugar prazeroso e harmonioso — que muitas vezes não pode ser
capaz de desligá-lo da realidade circundante — é capaz de levá-lo a mergulhar num
processo de frustração. É nesse sentido que Foucault afirma que ―é na exterioridade e na
pesada memória das coisas que o homem acaba por perder sua verdade‖ (2008, p. 373).
Fica claro, então, que as frustrações do sujeito contemporâneo estão no rol das situações
que modificam a essência do ser e não o deixam perceber que tudo, na verdade, faz
parte de um processo crítico que se vive na modernidade.
4.4.2. Os três nomes de Godofredo
Nesse conto, um homem está num restaurante, quando uma mulher que ele
julga ser desconhecida se senta a sua frente. Depois de alguns questionamentos, ele
pergunta se a convidou a dividir a mesma mesa. Para surpresa dele e do leitor, a mulher
responde que não é necessário que um homem convide a própria esposa para as
refeições. Ela se intitula a segunda esposa, pois, como a mesma o lembrou, a primeira
foi assassinada por ciúmes. João de Deus e Geralda passam a conviver e (re)viver um
lindo e idílico amor. Até que um dia, cansado de sua nova vida e da mulher, João a
enforca. Depois disso, vai ao restaurante e lá uma nova mulher se apresenta a ele
dizendo ser sua primeira esposa. Era Joana. Ela o chama de Robério, porém João de
Deus se autodenomina Godofredo. Desesperado com toda essa situação,
Robério/Godofredo sai correndo do restaurante e retorna para casa, onde, na entrada,
havia outra mulher ―bastante parecida com as outras minhas esposas‖ (p. 94). Aflito, ele
toma o pescoço dela entre as mãos e a mata, deixando seu corpo caído no tapete. Ao
adentrar sua casa, depara-se com uma quarta mulher que se chamava Isabel que diz ser
sua noiva. No último parágrafo do conto, nenhum desses fatos tem relevância para o
140
narrador. Na verdade, ele estava ―preocupado em redescobrir uma cidade que se perdera
na sua memória‖ (p. 95).
Como se pode perceber, essa é uma narrativa em que o elemento insólito
surpreende o leitor pela ilogicidade cronológica dos fatos. Em outras palavras, segundo
Alcmeno Bastos, no artigo ―Murilo Rubião e a questão da causalidade36
‖, nas narrativas
de Murilo ―o tempo parece não ter linearidade‖ (2013, p. 75). No caso da análise em
questão, essa não linearidade é o elemento que ratifica a sugestão de enlouquecimento
do personagem no texto. Como explicar, à luz de uma suposta ―razão‖, frases como: ―—
Sim, a segunda. E preciso lhe dizer que a primeira era loura e que você a matou num
acesso de ciúmes‖ (p. 89) e ―— Não. Sou a sua primeira esposa, a segunda você acaba
de matar‖ (p. 93). Há uma dúvida provocada por essas duas passagens: ou o
personagem está louco ou a segunda frase se antepõe à primeira em ocorrência, mas
encontra-se, na memória dele, posposta a ela. Essa dupla interpretação leva a leitura do
conto para um xeque-mate. A dúvida não se dissolve. E tanto a loucura quanto a
ambiguidade estão presentes nessa narrativa. Nela, o leitor se depara com questões que
não se dissolvem no decorrer do conto. Ao contrário. Elas se adensam e se aprofundam
mais a cada surgimento de uma nova mulher.
Não há indícios no âmbito diegético de que a ambiguidade possa ser desfeita.
Muito pelo contrário, ela se desenvolve na medida em que a narrativa se desenrola. O
surgimento da terceira mulher — possivelmente outra amante — e da noiva Isabel
provavelmente manterá esse quadro ambíguo, pois, ao deixar a terceira morta e entrar
em casa, Isabel já o esperava. Inclusive, há uma certa semelhança entre esse assassinato
e o da segunda esposa. O que sugere uma ação cíclica do sentimento de culpa do
personagem. É nesse sentido que se pode dizer que há um jogo de espelhos que refletem
imagens que se assemelham, mas também que não se diluem na mente do protagonista.
Basta ver as mulheres. Todas tinham algo que remetia à anterior: ―A semelhança entre
elas me assombrava‖ (p. 93); ―diante de mim, parada no vestìbulo, encontrava-se uma
mulher bastante parecida com as outras minhas esposas‖ (p. 94) e ―uma jovem de rara
semelhança com Joana e Geralda sorria‖ (p. 94). Com exceção da segunda, as outras ou
foram mortas por enforcamento ou essa possibilidade ficou de alguma forma
subentendida na narrativa.
36 BASTOS, Alcmeno. ―Murilo Rubião e a questão da causalidade‖. In: Murilo Rubião: 20 anos
depois de sua morte. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.
141
Segundo José Schwartz, nesse conto ―há um jogo de espelhos que não
aumentam, não diminuem nem deformam. Refletem apenas‖ (1981, p. 33). Eles
refletem um passado — personificado na figura das esposas — indesejado. O
assassinato das mulheres remete a um comportamento repetitivo de Godofredo. Até
mesmo a noiva, Isabel, correu risco de morte: ―A fita de veludo, que prendia um
medalhão antigo ao pescoço de Isabel, me fascinou por alguns segundos. Desviei os
olhos para o prato‖ (p. 95). A referência à fita e ao pescoço remete o leitor para o
enforcamento da segunda e da terceira mulheres; ou seja, ele não consegue se livrar
desse passado que o persegue. Se o conto continuasse, provavelmente Isabel poderia
estar morta depois de alguns parágrafos. Na verdade, as mulheres surgem-lhe como uma
vivificação do passado no presente. A cada novo relacionamento vinha à superfície da
memória o assassinato cometido anteriormente, projetando o protagonista numa espécie
de consciência assustadora. Essas mulheres configuram-se como partes da identidade de
Godofredo, uma identidade não fixada e perdida no tempo e na memória. Os elementos
que mais ratificam essa tese são justamente os diversos nomes do personagem e o
último período do texto quando o narrador-personagem, alheio a tudo que lhe ocorreu
até então, afirma: ―Desisti, preocupado em redescobrir uma cidade que se perdera na
minha memória‖ (p. 95). Essa passagem enfatiza tanto a ambiguidade como a loucura.
Esses dois elementos percorrem toda a narrativa e, no final dela, o leitor depara-se com
um protagonista que acredita estar num processo de autodescoberta. Contudo, o que
nem o personagem nem o leitor sabem é que quanto mais ele buscar em sua memória,
outras situações poderão dar vida àquela consciência assustadora de seu passado. Nesse
aspecto, é possível sugerir a loucura como elemento principal do conto, pois através
dela é que se pode dizer que houve um sepultamento das memórias do personagem. Tal
consciência surge vez ou outra em forma de recordações que são desencadeadas pelas
belas mulheres com as quais o protagonista se envolveu.
4.4. 3. Ofélia, meu cachimbo e o mar
Neste conto, o narrador afirma gostar de ―conversar com Ofélia durante o
jantar‖ (p. 113), acompanhado de seu cachimbo, tendo diante de si ―o oceano
enegrecido pela noite‖ (p. 113). Nessas conversas, ele conta suas aventuras marìtimas e
as de seus antepassados. No entanto, o insólito se dá pelo fato de Ofélia ser uma cadela.
142
Essa informação só é disponibilizada quase no final da narrativa quando o narrador diz
que ―Ofélia, que abomina meu silêncio, interrompeu agora os meus pensamentos com
um ladrido forte‖ (p. 117). Dessa forma, o leitor passa a perceber — ratificado por
outros indícios que aprecem na história — que, na verdade, as aventuras do simpático
senhor fazem parte de um universo criado em sua mente tão alucinada quanto a de seus
supostos antepassados.
Mais uma vez a condição do homem aparece como o elemento principal no
conto muriliano. O acontecimento insólito é incorporado à narrativa com o intuito de
proporcionar uma desestabilização da noção de real que o leitor possui ao adentrá-la.
Diante de tal constatação, resta-lhe a percepção de que o pensamento do narrador é tão
inverossìmil quanto é o de um louco. Segundo Davi Arrigucci Jr., ―o conto todo é,
assim, o resultado de um longo devaneio, cujos elementos romanescos — as
imaginárias façanhas marítimas — voltam à terra, com o latido forte do animal‖ (2001
p. 148).
Ora, se segundo Foucault, ―o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua
verdade‖ (FOUCAULT, 2008, p. 14), não seria descabido considerar que aquele homem
solitário, sentado na varanda de sua casa em um escondido vilarejo de Minas, é uma
representação típica do indivíduo que, ao chegar numa determinada fase de sua vida, é
levado a criar mundos fantásticos e, às vezes, surreais, para fugir da realidade que se
instaura arduamente ao seu redor: a finitude das coisas. Considerando a loucura, Goulart
ainda assinala a existência de dois mundos que podem ser relativizados nesse conto:
―um imaginário, construìdo pelo delìrio, e outro real, com toda a sua carga de
frustrações e decepções‖ (1995, p. 49). Para ele, a interpenetração do mundo natural
com o insólito proporciona também uma oscilação entre as noções de equilíbrio e
desequilíbrio, entre razão e desrazão. Nesse sentido, pode-se dizer que a loucura não se
instaura definitivamente, mas há sim num processo de ida e vinda que configura a
oscilação entre aquelas duas noções.
Algumas passagens do texto vão deixando indícios da loucura dos personagens
espalhados na narrativa: ―calo-me por instantes e me ponho a ouvir vozes soturnas‖ (p.
113), ―pegava uma velha roda de leme e ia para o alto de um morro para simular ordens
de comando‖ (p. 116), ―apenas sentia-se feliz quando, de porta-voz em punho,
comandava subordinados imaginários‖ (p. 116), ―Sei que ela espera por uma das minhas
habituais fantasias‖ (p. 118), ―Você podia ser mais tolerante com os meus inofensivos
devaneios‖ (p. 118) e ―gostaria tanto se aquele meu bisavô marinheiro tivesse existido!‖
143
(p. 118). Contudo, somente quando o leitor fica sabendo que Ofélia, na verdade, é uma
cadela é que se tem tal certeza. A loucura é o que permite ao narrador um passeio pela
fantasia. Ela lhe possibilita evadir-se da realidade numa tentativa de quebra da
monotonia que se instaurou em sua vida. Afinal, como o próprio narrador sinaliza,
―neste lugarejo, espremido entre montanhas, sem divertimentos, detestando caçadas e
tendo herdado a vocação do meu bisavô marinheiro...‖ (p. 118), o que mais poderia lhe
restar a não ser inventar histórias que o tirassem daquela realidade.
4.4.4. Bruma (A estrela vermelha)
O conto narra a história de Godofredo, seu irmão Og e sua irmã adotiva Bruma.
A história é narrada por Godofredo, que se sente enciumado pelo relacionamento que o
irmão tem com a irmã. É Godofredo que, depois de perceber as esquisitices de Og,
resolve levá-lo a um consultório psiquiátrico para tratar-lhe a anormalidade. No entanto,
ao chegarem ao local, ocorre uma mudança na expectativa tanto de Godofredo quanto
na do próprio leitor. O doutor Sacavém, após ouvir com atenção o que Og tinha a dizer,
chega à conclusão de que quem realmente precisava de tratamento era Godofredo.
Contrariado e desesperado ele sai correndo do consultório e volta para casa. Depois de
acalmar-se, resolve voltar ao médico e descobre que o prédio não existia — no lugar
havia apenas um terreno vago — e que ninguém conhecia o tal médico Sacavém.
Confuso, Godofredo senta-se na grama e, em desespero por saber ―que jamais
reencontraria Bruma‖ (p. 124), começa a ter as visões de que o irmão lhe falava.
De certa forma, a leitura dessa história lembra o conto ―Sorôco, sua mãe, sua
filha‖, de Guimarães Rosa. A quebra da barreira entre sanidade e loucura é realizada
quando os personagens envolvidos diretamente na situação percebem que, por mais
paradoxal que pareça, a loucura do outro, na verdade, é a dele próprio, o que ratifica o
caráter muitas vezes coletivo do comportamento desequilibrado. Em Rosa, a loucura é
tratada como um elemento que irmana toda uma cidade. Ali, depois da partida das duas
loucas [a mãe e a filha de Sorôco] todos entoam a mesma canção cantarolada por elas.
Aqui, ela aproxima os dois irmãos, pois depois que Godofredo é diagnosticado, passa a
ver a estrela vermelha e as cores que Og via. Paradoxalmente, havia semelhanças nas
diferenças entre os irmãos. Roland Barthes, no livro Mitologias, comenta que
144
o homem nasce, trabalha, ri e morre por toda a parte da mesma maneira; e, se
nos seus atos subsiste ainda alguma particularidade étnica, deixa‐se entender
pelo menos que existe, no fundo de cada um deles, uma natureza idêntica,
que a sua diversidade é apenas formal e não desmente a existência de uma
matriz comum (BARTHES, 1989, p. 114).
Embora os dois irmãos possuíssem características e comportamentos
diferentes, a matriz era comum. Nesse sentido, pode-se dizer que o desejo de afastar o
irmão de si e de Bruma é uma inconsciente percepção de que a loucura de Og e o seu
ódio — ao ver a irmã e o irmão felizes — potencializam a certeza do reconhecimento do
comportamento insano do outro, nele mesmo. Michel Foucault diz que ―neste
continente natural que é o mundo, a vizinhança não é uma relação exterior entre as
coisas, mas o sinal de um parentesco, ainda que obscuro. E depois, desse contacto
nasce, por permuta, novas semelhanças‖ (1966, p. 35). Acredita-se que essa ideia
encontra-se endossada no final do conto quando Godofredo passa a perceber que há
semelhanças entre ele e o irmão; um está no outro, inclusive no próprio plano da escrita.
A constatação da semelhança entre Godofredo e o irmão, no fechamento do conto,
promove uma ruptura nos limites entre a sanidade e a loucura. O choque provocado pelo
diagnóstico de loucura, quando Godofredo leva o irmão ao consultório do médico, é
desfeito e substituído pelo sentimento de cumplicidade. Ele agora percebe o que o irmão
queria lhe mostrar. Jorge Schwartz considera que ―o final da narrativa reforça a
possibilidade permutativa das ações dos heróis. Godô passa a vivenciar as experiências
de Og que desencadearam inicialmente a intriga do conto‖ (1981, p. 26).
Um dado importante que deve ser apontado é o fato de os acontecimentos
apresentados no conto não estarem marcados por uma temporalidade linear. Ao que
parece, a loucura de Godofredo constrói-se a partir das lembranças que tem de Og e de
Bruma. O retorno ao passado intensifica o sentimento tanto de perda [de Bruma] como
de arrependimento [por não acreditar no irmão], e isso desencadeia o processo de
enlouquecimento em Godofredo. Passagens como ―Abrigando somente duas pessoas, a
nossa casa parecia ter ficado maior‖ (p. 123), ―A lembrança de Bruma feria-me‖ (p.
124), ―A resolução veio lenta, conformada em saudade e remorso‖ (p. 124) e ―Sentei-
me na grama e me abandonei ao desespero, sabendo que jamais reencontraria Bruma‖
(p. 124) endossam a ideia de que o conto, na verdade, é um resgate de fatos e situações
vividos antes da partida de Og e Bruma. E, por último, outro elemento que ratifica essa
ideia, é o fato de não haver menção da presença do irmão e da irmã retornando para
casa; muito pelo contrário, quando Godofredo retorna e vê a mãe no ―alpendre da
145
fazenda‖ (p. 123), diz ―— Ficaram lá e não quero vê-los mais — gritei, subindo as
escadas‖ (p. 123). Ficaram lá, onde? No consultório, ou esse ―lá‖ vem revestido de um
valor temporal também? Não poderia estar ele se referindo ao passado? Nesse aspecto,
pode-se dizer que a loucura em Godofredo manifesta-se em um processo de
arrependimento, intensificado pelo remorso das ações e dos comportamentos que tivera
no passado em relação ao irmão e à irmã.
4.4.5. A flor de vidro
Em ―A flor de vidro‖, um narrador heterodiegético relata os delìrios de
Eronides, provocados pela perda angustiante da namorada Marialice. Tais delírios são
uma forma de reconstrução de um passado idílico em que o personagem supracitado
vivera belos, felizes, mas também trágicos dias de férias. Para poder reviver seus
últimos momentos com Marialice, a narrativa entra em um processo de flashback que
presentifica as ações vividas naqueles dias. O final do conto marca o término daquele
instante de delírio, trazendo o personagem para a dura e palpável realidade que,
inclusive, é marcada pela consciência da perda de uma das vistas.
O conto se inicia fazendo referência à flor de vidro. Segundo o narrador, dela
―restava somente uma reminiscência amarga‖ (p. 129). Nota-se também que a
presença/ausência de Marialice está diretamente associada a essa flor que,
simbolicamente, pode remeter o leitor a uma ideia de algo carregado de teor
sentimental, mas ao mesmo tempo frágil e quebradiço. Segundo Eziel Belaparte
Percino, no livro Murilo Rubião: senso e não-senso, ―paira a imagem posta desde o
título: flor vulnerável, fácil de esvair, frágil — o cair das pétalas, o estilhaçar do vidro.
A imagem contém tensões em miniaturas dentro de si mesma‖ (2014, p. 77). Enfim, a
flor de vidro possui uma dupla funcionalidade na narrativa. Ela constrói a noção de
efemeridade e de fugacidade dos belos dias ao lado de Marialice, mas também funciona
como algo prenunciador do retorno à realidade angustiante.
Já no primeiro parágrafo, percebe-se que a ausência/presença da figura
feminina se faz notar na mobília e na própria casa. Sentado ali, naquele ambiente em
que tudo e todos lhe lembravam a namorada, Eronides acompanhava o trem de ferro e
imaginava ouvir no apito da máquina o nome de Marialice. A partir daí, os fatos que se
146
sucedem ratificam a tese de que o personagem entra em uma espécie de devaneio no
qual a presença da mulher é marcada pelos momentos de alegria e de tragicidade.
Na continuidade da narrativa, Eronides não sabe se o nome de sua amada fora
gritado pelo apito da máquina, pela velha empregada Rosária ou se brotara do seu
pensamento. O fato é que se pode notar que há uma pequena perturbação na certeza dos
acontecimentos. Nesse momento de incertezas, ele opta por escolher aquilo que lhe é
mais prazeroso. Por isso, repete como se quisesse convencer a si mesmo: ―— Sim, ela
vai chegar. Ela vai chegar! (p. 129). Ele não só se convence como também acredita
piamente que o trem trouxera sua namorada novamente. Mas, na verdade, o trem traz
mais do que isso. Ele ilusoriamente traz consigo a possibilidade de o rapaz vivenciar a
―chegada‖ de Marialice. Nesse aspecto, nota-se que o trem é um elemento simbólico na
narrativa. Semelhantemente à narrativa de Guimarães Rosa referenciada no subcapítulo
anterior, pode-se dizer que pelo trem chegam e partem as particularidades do homem
[em Rubião] ou de um vilarejo inteiro [em Guimarães] e, por isso, a chegada e a partida
dele está diretamente relacionada com todo o processo alucinatório da personagem.
O trem trouxe consigo uma ―inesperada realidade‖ (p. 129). Mergulhado nessa
outra realidade — que, na verdade, já faz parte de um universo fora da realidade real —,
Eronides se prepara para ir à estação na ânsia de receber sua amada. Ainda há nele a
consciência do olho vazado [―colocou uma venda negra na vista inutilizada‖ (p. 129)] e
da passagem do tempo [―passou a navalha no resto do cabelo‖ (p. 129)]. Com uma
―alegria desvairada‖ (p. 130), ele ultrapassa todos os obstáculos e alcança a estação.
Quando lá chega e imagina ver Marialice descendo do trem rapidamente, os dois se
abraçam demoradamente. No conjunto da cena, pode-se dizer que esses fatos são
montados somente na mente de Eronides. O leitor é direcionado para uma espécie de
atmosfera fechada, onde só existem os dois amantes. Mas Marialice não retornou
realmente. Há um tipo de escapismo. O personagem acredita que sua amada agora viera
―para sempre‖ (p. 130), mas esse ―sempre‖ só durará o tempo de seu devaneio.
Como num sonho, as lembranças devem ser boas e devem se afastar da última
imagem real. Por isso, a namorada está mais jovem: ―Não envelhecera tanto como ele.
Os seus trinta anos, ágeis e lépidos, davam a impressão de vinte e dois‖ (p. 130); e por
isso também desiste facilmente da ideia de querer saber de um certo Dagô: ―se
convenceu de que não houvera outros homens. Nem antes nem depois‖ (p. 130). Tudo
deve estar perfeito. Essa ideia ganha força posteriormente, quando, ao acordar, Eronides
percebe na imagem do espelho que seus cabelos voltaram e que ―a venda negra [dos
147
olhos] desaparecera‖ (p. 131), e para completar o cenário, Marialice estava mais ―jovem
e fresca. Dezoito anos rondavam-lhe o corpo esbelto‖ (p. 131). Note que o personagem
reconstrói um momento emblemático de sua vida. Os dois ainda são jovens. A corrida
pela mata, o xingamento e a injúria de Marialice fazem parte daquele universo feliz,
mas ao mesmo tempo trágico.
Na penúltima parte do conto, o elemento prenunciador, referenciado na parte
introdutória desta análise, se instaura na narrativa quando Eronides diz ―ter divisado a
flor de vidro no alto de uma árvore‖ (p. 132). O simples surgimento desse elemento é o
bastante para recriar a ideia de perda. Por isso ele ―comprimia Marialice nos braços‖ e
―guardava para si as razões do seu terror‖ (p. 132). Avistar [ou pensar ter avistado] a
flor de vidro instaura a possibilidade do final trágico, e esse final coincide com o
término das férias e, consequentemente, do seu devaneio.
O cenário não poderia ser outro. Na última parte do conto, ―debaixo de um
tremendo aguaceiro‖ (p. 132), Eronides leva a namorada à estação e, depois que o trem
começa a se movimentar, ―a presença da flor de vidro revelou-se imediatamente‖ (p.
132). Nesse instante, a visão do personagem é turvada provavelmente pelas lágrimas, e
um murmúrio débil é o que sai de sua boca. Como se pode notar, os acontecimentos da
narrativa entram em um processo decrescente, de descontinuidade. É como se o
personagem pressentisse que seu devaneio quase perfeito estivesse chegando ao fim. A
imagem do lenço branco, do trem e dos trilhos paralelos, que nunca se tocam, endossa a
tese de que a partida [para sempre] de Marialice e a solidão de Eronides são tão reais
quanto a dura lembrança dos dias que não voltam mais.
Por fim, a última frase do conto carrega consigo uma significação que pode
dizer mais do que está dito. Com a frase ―Na volta, um galho cegou-lhe a vista‖ (p. 132)
o narrador fecha a história. No entanto, a expressão ―na volta‖ sugere algumas
conjecturas. Volta de onde? Esse ―onde‖ é um lugar concreto ou uma abstração? De
acordo com a análise desenvolvida aqui, acredita-se que o lugar a que a expressão se
refere é uma abstração criada por uma mente perturbada pela perda da namorada e pela
vida solitária. Não se sabe ao certo para quem ou para o que ele a perdeu. Contudo, fica
sugerido que, da mesma forma como ele teve uma ida para o mundo dos sonhos,
recuperando a vista e os cabelos e sua amada tornando-se mais jovem, deve haver
também um retorno à realidade. Por isso, essa expressão ―na volta‖ não se referir ao
retorno para casa, mas sim à volta para a realidade. Com esse retorno, ressurge a
148
consciência de que ele perdera uma das vistas em um daqueles passeios pelos bosques
com Marialice.
4.4.6. Petúnia
O conto se inicia de forma imprecisa, fazendo uma verdadeira confusão com
os nomes da mãe, da esposa e das filhas de Éolo. Ao que parece, esse procedimento
concede à narrativa um aspecto de devaneio experimentado pelo personagem principal,
pois percebe-se que tal mecanismo é uma forma de reiteração do comportamento que se
verificará mais adiante na história. Na segunda parte do texto — retornando o conto
antes do casamento — o narrador apresenta ao leitor a mãe de Éolo, dona Mineides,
uma mulher rica e preocupada com a fortuna da família. Por isso, ela desejava conseguir
uma esposa para o filho. Jamais permitiria que sua fortuna fosse ―para as mãos do
Estado‖ (p. 180). Realizando algumas festas, ela enchia a casa de moças desejando que
o filho se interessasse por alguma. No entanto, Éolo não dava importância e ―se irritava
ouvindo os gritinhos histéricos, as perguntas idiotas‖ (p. 181) das convidadas. Esse
quadro só mudaria a partir do momento em que ele visse Cacilda, uma mulher diferente
das demais, contudo muito parecida com ele. Tempos depois dona Mineides morre, os
dois se casaram e realizaram o desejo da mãe de colocar o retrato dela no quarto do
casal. Com o passar do tempo, eles tiveram três filhas: Petúnia Maria, Petúnia Jandira e
Petúnia Angélica. O relacionamento dos dois começa a se deteriorar e o retrato da mãe a
incomodar. Vez ou outra ele precisava ser retocado, pois ―a maquilagem da mãe se
desfazia no quadro, escorrendo tela abaixo‖ (p. 182). Num dia, voltando da cidade, Éolo
entra em casa e encontra as três filhas mortas no sofá. Desnorteado, procura pela esposa
e esta lhe diz que era a mãe a culpada pela morte das crianças. A partir daí Cacilda
começa a ter um comportamento estranho, saindo de casa e voltando quando bem
quisesse e sem dar satisfações ao marido. É nesse mesmo período que começaram a
nascer flores negras no ventre da mulher. Cheio de tudo e ―na impossibilidade de livrar-
se daquela presença obcecante‖ (p. 185), Éolo pega a mesma faca que usava para cortar
as flores que nasciam no ventre da mulher e a enterra no busto dela. Depois disso, ele
cava uma cova e joga o corpo lá dentro. O conto termina com a menção ao fato de que
Éolo lembrou-se de desenterrar as filhas para brincar [coisa que ele fazia todas as
noites] e às flores negras que agora se espalhavam pela casa e que poderiam denunciá-lo
149
à polícia. Por isso ele não dorme e vive em constante vigília, oprimido pelas obrigações
que lhe foram impostas.
A leitura integral do conto evidencia alguns fatos insólitos que, no conjunto da
obra, sugerem o comportamento anormal tanto do personagem principal como de sua
esposa. A impressão que se tem é que num movimento de ir e vir, e através da
rememoração em forma de devaneio nostálgico-masoquista, o personagem revisita
momentos de sua vida que inevitavelmente estão vivos em sua mente. Já na abertura do
conto, no segundo parágrafo, Éolo relembra as filhas e a presença da mulher que a essa
altura já fora assassinada. Na verdade, o início do conto dá algumas informações ao
leitor que servem para mergulhá-lo em um universo de interrogações. No entanto,
considerando apenas uma possibilidade de leitura, imagina-se que Cacilda tenha sido
assassinada por um marido que enlouquecera depois da morte das filhas. O que não fica
devidamente comprovado no conto é a autoria do assassinato das meninas.
Primeiramente, a mãe. Dona Mineides era uma mulher rica. Embora não fosse
do agrado de Éolo, ela desejava casá-lo para que toda sua fortuna ficasse com seus netos
depois de sua morte. O problema é que para isso a matriarca expunha o filho a mulheres
que não lhe despertavam o menor interesse. Mas isso pouco importava. Importava o que
ela queria e desejava. Como se pode notar, Éolo tinha uma mãe que exagerava nos
cuidados com o filho e não media esforços para ver suas próprias vontades realizadas.
Isso se comprova quando o rapaz conhece Cacilda, a mulher por quem ele se apaixona.
Como vontade a se realizar depois de sua morte, dona Mineides exigiu que fosse
colocado um retrato seu no quarto do casal. O pedido em si não é tão estranho, porém o
fato de o retrato ―ganhar vida‖ exigindo que o filho-marido vez ou outra retocasse a
maquiagem é, sem sombra de dúvidas, insólito. Definitivamente, aquele retrato era mais
do que uma lembrança. Ele representava o poder e a influência que a mãe tinha sobre o
filho mesmo depois de casado e de ela estar morta. A presença da imagem no quarto
representa a não-liberdade e a opressão controladora da mãe, que se intensifica no
decorrer da narrativa. Segundo Goulart,
A opressão, no conto, está representada por uma figuração metafórica,
centrada no código vegetal. (...) Assim, Cacilda, a esposa, passa a ser,
simplesmente Petúnia. (...) Assim, o percurso da metamorfose — D.
Mineides — Cacilda — Petúnia — fecha um ciclo que encontra, na metáfora
da flor, a cristalização do domínio (1995, p. 157).
150
Nesse aspecto, o comportamento de Éolo remete à fala de Sartre quando este
afirma que ―o espìrito humilhado, em escravidão, se esforça para obter a consciência e a
liberdade sem alcançá-las‖ (2005, p. 137). Mesmo casado e a mãe estando morta, o
personagem encontra-se preso e obrigado a perpetuar as vontades da matriarca, que se
coloca como mau agouro caso ele não as realize.
O devaneio. Como se pode perceber na parte introdutória do conto, há uma
variação dos nomes das mulheres seguidos de outros nomes de flores que,
metaforicamente, aludem à morte das meninas. As flores, com sua delicadeza e beleza,
sugerem a pureza das crianças. Por isso, imaginá-las assim ajudava o personagem a
manter as filhas sempre delicadas e puras em sua memória. Nota-se que Éolo se
encontra fora da realidade quando, se referindo às filhas, indaga: ―Por que Petúnia-mãe
as julgava mortas, se nada apodrecera?‖ (p. 179). Nessa passagem, ele está preso no
quarto e impedido de sair e de olhar pela janela, pois a mulher mandou trancar com
pregos todo o lugar. Já em seu devaneio, ele não reconhece a morte das filhas; percebe-
se que não tem conhecimento do que acontecera, ou então se refugiou na irrealidade
para escapar ao trágico fim que sua família teve. No entanto, só é possível chegar a essa
constatação quando se ligam as duas pontas da narrativa: o início e o final. Desse jeito,
entende-se por que a esposa insiste em dizer ao marido: ―— Chamo-me Cacilda.
Nenhuma delas se chama Petúnia — gritava a mulher‖ (p. 180). Com essa fala, ela
deseja exasperadamente demonstrar a delirante insistência do marido em nomear todas
como Petúnias, o que de certa forma, no contexto, evidencia o afastamento da realidade
do marido, afligido pela violência da cena: ―as três Petúnias jaziam inertes,
estranguladas. (...) Quis reanimá-las, endireitar-lhes os pescocinhos, firmar as
cabecinhas pendidas para o lado‖ (p. 183).
Há outros indícios na narrativa que sugerem um comportamento estranho de
Éolo e da esposa. É nesse sentido que se pode dizer que eles eram diferentes dos outros,
mas iguais entre si. Por exemplo, nas festas realizadas pela mãe, depois que todos se
retiravam, ele via pássaros invadirem a sala, voando em torno dos lustres. E, segundo o
narrador, tais pássaros ―jamais permitiam que outras pessoas, além dele, os vissem em
seus voos noturnos‖ (p. 181). Outro momento ocorre quando dona Mineides apresenta
Cacilda ao filho. A futura esposa diz ―— Lindos pássaros‖ (p. 182) e a mãe, sem saber
do que se trata e por não ver pássaro algum pergunta ―— Que pássaros?‖ (p. 182).
Como se pode notar, somente os dois viam tais coisas [ou pensavam que viam]. Da
mesma maneira ocorreu com os cavalos-marinhos que a mulher via. Na história,
151
ninguém mais confirma a existência desses seres. Até mesmo o que acontecia com o
retrato de dona Mineides provoca dúvida. Só havia os dois na casa. Não há como ter
certeza de que o retrato realmente se desfazia sujando a parede e o assoalho. Esses fatos
sugerem que tanto um como o outro apresentavam um comportamento estranho; algo
beirando à loucura.
Ainda tangenciando o devaneio de Éolo, pode-se dizer que outros
acontecimentos na narrativa levam a crer que o personagem, completamente tomado
pela loucura, agiu impulsionado pelas ideias criadas em sua mente. Por exemplo, no
início do conto, o narrador diz que o marido estava trancado no quarto úmido, não
podendo olhar pelas janelas porque foram trancadas com pregos. No entanto, no final da
história, o narrador afirma que Éolo não consegue sair de casa por causa dos cavalos-
marinhos que impediam a passagem dele. Por que cavalos-marinhos? Não seriam eles
uma referência insólita à vontade da mulher de mantê-lo preso? Afinal, tanto os animais
quanto Cacilda tinham o sono profundo. Eles só passaram a existir para Éolo quando
Cacilda surge em sua vida. Antes ele só via pássaros.
Em outro momento da história, o narrador faz referência às flores negras que
nasciam no ventre da esposa. Essas flores surgem depois que Cacilda começa a ter um
comportamento estranho. Ela saia e não dava satisfações ao marido e voltava tarde,
aparentando ―tranquilidade e espelhava, às vezes, certa euforia. Também costumava
assobiar‖ (p. 184). Para o marido, enlouquecido pelos trágicos acontecimentos, ela
poderia estar traindo-lhe a confiança. As flores negras são uma metáfora do pecado [ou
delito] cometido pela esposa em suas idas e vindas. Elas são um elemento premonitório.
O narrador não diz, mas fica sugerido que algo germinava ou na mulher ou na cabeça de
Éolo. Sendo assim, a morte era inevitável, pois o marido, além de perder as três filhas
para uma mulher que culpava a sogra pelo assassinato, ainda seria obrigado a viver com
a lembrança que aquele casamento lhe trazia; afinal ―Éolo não tinha planos para
casamentos, porém sua mãe pensava de outro modo‖ (p. 180). Por isso, matar a mulher
era, na verdade, uma forma de matar o desejo da mãe, a traição da esposa e libertar-se.
No entanto, liberdade é um estado de que os personagens murilianos não
gozam. Portanto, Éolo jamais será livre. Agora ele tem a preocupação de manter a casa
limpa das flores negras do delito que cometeu, pois como ele mesmo afirma ―os
vizinhos não deixariam de denunciá-lo à polìcia‖ (p. 186) caso todos as vissem. Há
ainda o ritual de desenterrar as meninas Petúnias para brincar com elas e depois enterrá-
las novamente todos os dias e o retoque do retrato da mãe, que lhe ficou
152
obrigatoriamente incumbido. Como se vê, Éolo, menino mimado pela mãe e que vivia à
sombra dela, tronou-se um homem assombrado por fantasmas de pessoas que fizeram
parte de sua vida. Claro está que as flores negras são uma construção da mente dele.
Elas não existem. Essa foi uma forma alegórica de o narrador se referir ao lado escuro e
sombrio da existência humana. Percebe-se que o personagem — perturbado com os
acontecimentos de sua vida — encontra nesses elementos uma forma de escapismo;
uma maneira de desligar-se da realidade amarga e dura da perda das filhas e do convívio
com a mulher. Por fim, ele não está livre nem da mãe, nem da mulher, nem das filhas e
nem de si mesmo. Na verdade, nunca esteve.
153
4.5. A metamorfose
Esse é um dos temas que não poderiam deixar de ser elencados na obra de
Murilo Rubião. Presente na literatura fantástica de há muito tempo e nos grandes
escritores do gênero como Guy de Maupassant, Teófilo Gautier, Franz Kafka, dentre
outros, a metamorfose sempre provocou fascínio tanto no público como nos escritores
de todos os tempos. Como já foi dito aqui, ela sugere a ideia de que a excessiva
transformação de um ser em algo que não que lhe cabe ser indicia a crise existencial em
que o homem contemporâneo se encontra. Há uma busca descontrolada de se atingir a
satisfação do eu naquilo que o outro vislumbra. Segundo Eliane Zagury, em ―Teleco, o
coelhinho‖, ―em sua medìocre fragilidade, o homem usa do recurso da metamorfose
para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (p. 1971, p. 32). E é
justamente dessa forma que se percebe tal recurso nas narrativas de Murilo Rubião a
seguir.
4.5.1. Alfredo
Resumidamente, o conto narra a história de dois irmãos, Joaquim e Alfredo. O
primeiro é casado com Joaquina, e o segundo, transformado em dromedário, surge nas
redondezas do vilarejo em que o irmão mora. Sem estranhar, Joaquim leva o irmão para
sua casa e tenta fazê-lo retornar ao convívio social sem, no entanto, ter êxito. Como
consequência disso, os dois seguem pela estrada e retomam a peregrinação em busca de
respostas e da felicidade não encontrada.
Antes de relacionar o conto com a teoria sartriana, cabe ressaltar um ponto
importante desta narrativa. O personagem Joaquim é exemplo de um narrador que
apresenta algumas contradições que servem, no contexto da história, para realçar os
acontecimentos insólitos. Inicialmente, ele ridiculariza a superstição da mulher quando
esta diz que o estranho gemido que ouviram poderia ser de um lobisomem: ―Ri-me da
sua crendice (...). Era só o que faltava!‖ (p. 65). Algumas linhas depois, ele diz querer
explicar para a mulher ―que o sobrenatural não existia‖ (p. 65). Até aì, a estrutura criada
para a construção do fantástico está montada: um personagem crédulo e outro
aparentemente incrédulo no elemento sobrenatural. No entanto, há uma surpresa no
processo de leitura quando, mais adiante na narrativa, ele sai para encontrar o animal
154
que incomodava o povoado em que morava e diante dele afirma: ―Na minha frente
estava o meu irmão Alfredo‖ (p. 67). Alfredo era o animal e isso é aceito com toda a
naturalidade. Mais ainda, ele não esboça nenhum estranhamento em o irmão ser capaz
de se transmutar em porco, em nuvem, no verbo resolver e, por fim, em dromedário.
Esse comportamento, além de ratificar que o fato narrado realmente é insólito,
também instaura a dúvida no leitor, que, diante de tal constatação, é obrigado a perceber
que esse narrador é tão insólito quanto o próprio irmão. Quando leva Alfredo para casa,
Joaquim não permite que a esposa o chame de animal. A identificação entre os irmãos é
mútua. Tal identificação demonstra uma dupla impossibilidade: ―a de convivência com
a sociedade, ou a de sobrevivência do homem na solidão‖ (1981, p. 45). Eis a grande
questão. Joaquim, também andarilho, procurou ―em outros lugares a tranquilidade que a
planìcie não‖ (p. 67) lhe dera, enquanto Alfredo afastou-se da sociedade em busca da
felicidade. Talvez esse seja o motivo por que este é capaz de transformar-se em outros
seres e aquele não. Acredita-se que, neste caso, a metamorfose indica o processo de
insulamento do personagem. Eliane Zagury afirmara isso quando disse que ―em
―Alfredo‖, Murilo Rubião já utilizara a metamorfose em animal motivada pelo
afastamento do convìvio com o homem‖ (1971, p. 32).
É possível realizar uma leitura alegórica do referido conto. Joaquim e Alfredo
são a figura do homem em busca de respostas e da felicidade. O primeiro ―pensando
encontrar a felicidade do outro lado das montanhas‖ (p. 68) refugia-se num povoado
imaginando ter conseguido encontrá-la. Afinal, tinha esposa, uma casa e uma vida
comum. Entretanto, nada disso foi suficiente para preencher seus vazios. O segundo,
por sua vez, peregrinou por caminhos diferentes, metamorfoseando-se de acordo com
sua necessidade ou situação com o intuito de apaziguar os seus sofrimentos e os dos
outros. Contudo, foi tudo em vão, pois ambos buscavam ―uma serenidade impossìvel de
ser encontrada‖ (p. 68). É nesse aspecto que se pode dizer que os dois personagens são
um modelo desse ser em crise que vive a modernidade em busca de respostas e de si
mesmo. A busca é constante e, muitas vezes, sem respostas. No conto, o aspecto
continuativo e, por que não cìclico, dessa busca está bem marcado nas frases ―Cansado
eu vim, cansado eu volto‖ que abrem e fecham a narrativa.
Essa busca também evidencia uma característica fundamental dos personagens
murilianos: todos são infelizes. Embora com muita passividade busquem sair desse
lugar comum, eles não têm forças para sobrepujar a opressão do universo que o
circunda. Nesse sentido, dá para se ter uma pequena ideia do porquê de eles aceitarem o
155
insólito com plena naturalidade. A não aceitação torná-los-ia ainda mais oprimidos do
que já são, pois a consciência angustiante da incompletude de sua existência anularia o
efeito fantástico dos desejos insólitos. Por isso na poética de Murilo existem os
exageros, as ações enlouquecidas, as metamorfoses, a ambiguidade, a incerteza, as
viagens insólitas pelos caminhos da mente, etc. Esses elementos facilmente detectados
na obra do autor são um indício de que seus personagens não são apenas fantoches de
um universo literário, manipulados pelas mãos hábeis de seu criador e enclausurados
numa narrativa ingênua e despretensiosa. Muito ao contrário, eles apontam
metonimicamente para o indivíduo que — dentro do possível e numa situação
semelhante — se identifica com o contexto circundante e com a história narrada.
4.5.2. Teleco, o coelhinho
O conto, narrado em primeira pessoa, inicia com o elemento insólito
instaurando-se logo nas primeiras linhas. Uma voz sussurrada pede um cigarro e,
quando o personagem se vira, dá de cara com um coelhinho (Teleco) atrás de si.
Espantado, mas ao mesmo tempo comovido pela condição daquele ser, convida-o para
morar com ele e, a partir daí, novos e estranhos acontecimentos vão aos poucos
surgindo e mergulhando o texto em um universo fantástico.
Na sequência da leitura, percebe-se que Teleco é um coelho incomum, pois
possui a habilidade de se transformar no que quisesse: transmutara-se em girafa, cavalo,
leão, tigre, porco-do-mato, canguru, pavão, cachorro etc. Os dois [narrador
autodiegético e o coelho] parecem viver tranquilamente até o surgimento de Tereza.
Para agradá-la, Teleco deseja transformar-se em homem [Antônio Barbosa] e surgem,
então, as intrigas que provocarão a separação dos dois amigos. Em um impulso de raiva
e ciúmes, o narrador expulsa o canguru Barbosa e Tereza de casa e, depois de algum
tempo, ele retorna, transformado em cachorro e sozinho. Por fim, Teleco não controlava
mais a habilidade de se metamorfosear e, ininterruptamente, transmutava-se em diversos
seres, mesmo que não quisesse. Enfraquecido pelas sucessivas transformações, o
personagem metamorfoseia-se em uma criança encardida e sem dentes e, no colo do
amigo, morre.
Analisando a narrativa pelo prisma existencialista, pode-se vislumbrar a
ocorrência da teoria do filósofo Jean Paul Sartre, quando este aborda o fantástico.
156
Considerando que a narrativa fantástica para ele é um dos meios que um determinado
autor possui de demonstrar o mundo em reverso do homem moderno, abordando
questões que se diluem no comportamento deste diante da sociedade em que vive numa
constante e conflituosa convivência entre o indivíduo e os outros, é possível direcionar a
análise deste conto para aquilo que Sartre denominou fantástico:
Se fizerem um cavalo falar, pensarei por um momento que está enfeitiçado.
Mas se ele persistir em discursar em meio a árvores imóveis, sobre um solo
inerte, eu lhe admitirei o poder natural de falar. Não verei mais o cavalo, mas
o homem disfarçado de cavalo (SARTRE, 2005, p. 136).
Vendo a narrativa por esse viés, pode-se considerar que o fato de um coelho
falante se transformar em vários seres alude, direta ou indiretamente, à própria situação
do homem diante da sociedade que o circunda. Segundo Marisa Martins Gama-Khalil,
―tais metamorfoses, assim, metaforizam a condição do sujeito contemporâneo, condição
fluida‖ (2013, p. 56). Ora, ser visto sempre como o outro gostaria é, na verdade, uma
maneira de demonstrar que o que o eu deseja é exatamente o que o outro quer, porque
de certa forma o eu está no outro. No texto, essa ideia fica evidente quando o narrador
afirma que ―depois de uma convivência maior, descobriu que a mania de
metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de agradar ao próximo‖ (p.
144). Corroborando ainda com essa questão, em um artigo intitulado ―O insólito é o
estranho‖, a professora Nadiá Paulo Ferreira afirma que ―a imagem do outro passa a ser
reconhecida pelo eu como sendo sua própria imagem‖ (2009, p. 116). Sendo assim, ao
―ser gentil com crianças e velhos‖ (p. 144) através de suas transformações, Teleco está
diante de um espelho no qual é possível se ver. A realização do outro é a sua.
Outro ponto que reforçaria esse pensamento é o fato de as transformações
seguirem uma motivação apoiada numa relação de troca: melhor do que se virar e
encontrar um menino pedindo-lhe esmolas foi ter visto um adorável coelhinho; o leão e
o tigre surgem para assustar os vizinhos; o porco-do-mato aparece diante do delegado,
confundindo-o; transformado no canguru Barbosa rouba-lhe os utensílios humanos para
agradar Tereza; o cachorro que retorna arrependido e solitário, mesmo depois da
ingratidão cometida; a aparição do belo e colorido pavão, quando é perguntado sobre
Tereza e, por último, a derradeira transformação em ―uma criança encardida, sem
dentes. Morta‖ (p. 152).
É, portanto, possível relacionar a habilidade do coelho à crise de identidade por
que passa o homem contemporâneo que, no desejo de agradar o outro enquanto
157
extensão de seu próprio eu, acaba por perder sua verdadeira identidade. No conto, essa
perda está precisamente indicada no final da narrativa, quando Teleco não consegue
dominar mais sua habilidade de transformação e se metamorfoseia descontroladamente
―em animais os mais variados‖ (p. 151). A pesquisadora Jane Tutikian, no livro,
“Velhas identidades novas: O pós-colonialismo e a emergência das nações de língua
portuguesa”, considera que nos tempos atuais há uma perda da noção ―de fixidez, de
essencialidade ou de permanência‖ (2006, p. 12) da identidade do sujeito pós-moderno.
Segundo a autora vive-se hoje um momento de mobilidade identitária experimentada
pelo homem, que está associado às contingências tanto sociais quanto históricas e
culturais. Para ela, há ―uma espécie de celebração contìnua em relação às formas de
representação ou interpelação desses mesmos sujeitos‖ (p. 12). Nesse sentido, pode-se
afirmar que essa ―mobilidade identitária‖ tem como consequencia a perda definitiva da
mesma. Paradoxalmente, o homem multiplicado, na verdade, torna-se um; apenas
indivíduo, apenas uma sombra irreconhecível do que fora.
Parece que Murilo Rubião desejou chamar a atenção para essa questão,
utilizando-se de uma narrativa em que o elemento insólito transita pelos caminhos da
fantasia, da ironia, da tragédia e do lirismo, através de um personagem incomum, mas
sugestivo — algo que remete à mágica do coelho que sai da cartola. Nota-se que esse
ser infeliz, na ânsia de alcançar o inalcançável, sentencia-se à desconstrução do seu
próprio eu. Conforme assinalou Eliane Zagury, ―o homem usa o recurso da
metamorfose para se adaptar a cada situação e perde a sua integridade‖ (1971, p. 32).
No texto, esse fato está presente no total descontrole das transformações, o que leva o
coelho à exaustão e à morte. Nesse caso, tanto as transformações como a morte devem
ser vistas metaforicamente como algo que leva à perda da integridade do indivíduo
contemporâneo.
4.5.3. Os comensais37
O conto narra a história de um rapaz que todos os dias encontrava os mesmos
companheiros — os comensais — em um refeitório. O intrigante, tanto para Jadon
37 De acordo com Antônio Houaiss, comensal é ―pessoa que come à mesa juntamente com outrem;
conviva; indivíduo que come habitualmente em casa alheia; parasito; (biol.) organismo que vive dentro de
outro, sem que lhe seja útil ou prejudicial‖ (2001, p. 214).
158
como para o leitor, era o comportamento deles: não falavam, não comiam, olhavam para
o nada e tinham um aspecto de autômatos. Eles nunca chegavam. Pareciam estar sempre
ali. Depois de tentar por várias vezes desmascarar o segredo de seus insólitos
companheiros, — chegando cedo e saindo tarde do local para ver se eles chegariam ou
se levantariam antes dele das mesas — Jadon reencontra Hebe, um antigo amor de sua
vida. Embora tentasse trazê-la à realidade, assim como todos, Hebe não expressava
nenhum sinal de vida e, depois de puxá-la pelos braços e de perceber assustado que ela
se comportara como uma boneca desengonçada, o protagonista a deixa onde está e sai
desesperado para fugir dali, esquecendo-se de pagar a conta — coisa que ele sempre
fizera. Porém, desesperado por não encontrar a saída depois de tentar achar o gerente do
local para acertar as despesas, desmaia e, ao acordar, tenta lembrar-se de algo, mas é em
vão; olha-se no espelho, senta-se à mesa e, dessa vez, sozinho, comporta-se como um
daqueles homens que mais pareciam bonecos: ―Os braços descaìram e os olhos,
embaçados, perderam-se no vazio. Estava só na sala‖ (p. 263).
Esse conto é, sem dúvida, mais uma singularidade da complexidade que se
encontra na obra de Murilo Rubião. Nele, alguns elementos que conduzem o discurso
ficcional para o fantástico segundo Todorov aparecem vez ou outra. Se de um lado, há o
tempo imperfeito (espreitava-os, evitavam, aguardavam, estendessem, danassem,
tomavam, estavam etc) e raras expressões modalizadoras (talvez se sentassem, talvez
faltasse o sorriso, julgando que possivelmente se desorientara e tinha a impressão de
que não saíra do lugar), levando o leitor a questionar os acontecimentos; por outro,
existe um personagem que se coloca na história como se aquele lugar fosse real e, até
num certo ponto, tenta aceitá-lo com naturalidade. A hesitação não está encenada na
própria história, o que impossibilitaria, de acordo com a terminologia todoroviana, a
classificação do conto como um modelo de história fantástica.
Contudo, a narrativa apresenta elementos que possibilitam direcioná-la para a
teoria existencialista de Sartre. Ao comentar o texto existencial em Murilo Rubião,
Jorge Schwartz considera que o conto ―Os comensais‖ desenvolve-se em um ―contexto
plasmado pela exacerbação da individualidade, no sentido da desarticulação que o
homem sente em relação ao seu mundo circundante‖ (1981, p. 81). Nesse sentido,
observa-se que o texto murialino traz à tona uma questão peculiar à vida nos grandes
centros urbanos: a solidão em meio à multidão. Audemaro Taranto Goulart ratifica esse
pensamento quando assinala que, no referido conto, ―tematiza-se a solidão, só que esta
não acontece no isolamento absoluto, mas no meio de uma multidão de frequentadores
159
de um refeitório‖ (1995, p. 35). Cada companheiro de Jadon — se é que se pode chamá-
los dessa forma — representa aquela individualidade a que Schwartz faz referência. Há,
aí, uma alegoria bastante singular, na qual se observa uma crítica implícita ao
comportamento individualista do sujeito contemporâneo. Jadon se vê num lugar que
fazia parte de seu cotidiano, com pessoas que estavam sempre ali, tendo sempre o
mesmo comportamento. No entanto, todos estão voltados para si e ignoram a presença
do personagem. Em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, Eliane Zagury afirma que
―os comensais (...) são cadáveres sociais, meras presenças esvaziadas de qualquer
movimento38
‖.
Nem mesmo a rememoração de um momento lúdico, prazeroso e romântico foi
o suficiente para quebrar a realidade petrificada do lugar. Embora, no instante em que
começa a relembrar seu relacionamento com Hebe, o protagonista entre num processo
de reconstrução emotiva de seu passado ao lado da namorada, o comportamento dela o
traz de volta daquele universo nostálgico e irreal, dando-lhe a certeza da solidão em que
se encontrava. Na passagem,
Quando notou que as flores jaziam intocadas sobre a toalha, perturbou-se e o
desapontamento espalhou-se pela sua face. A custo prendeu um soluço,
prenúncio de um desespero prestes a desencadear-se. Com apaixonada
violência tentou ainda subtrair Hebe à sua dolorosa clausura, mas aos poucos
a sua voz perdia a segurança, o calor. Levou a mão à boca, sem conseguir
evitar o pranto, um pranto manso (p. 260).
Observa-se nesse fragmento que Jadon percebe desesperado que aquela que lhe
poderia dar ainda algum resquício de esperança de se manter humano não está mais ali.
O que ele vê diante de si é apenas uma sombra do que ela fora, afinal Hebe conservava
―a mesma beleza acanhada de moça do interior, o mesmo vestido de bolinhas azuis‖ (p.
259). A volta à adolescência constitui-se numa forma de escapismo, no qual o
personagem procura manter viva, mais nele do que na namorada, a certeza de que o
sentir é o que o diferencia dos demais que ali estão. Seu desespero inicia-se a partir do
momento em que ele percebe que sua luta foi em vão.
Ora, pelo que se tem dito até aqui, pode-se afirmar que a indiferença de todos
desconstrói a humanidade das relações entre os homens. Sendo assim, como partes de
um mesmo sistema, há a necessidade da metamorfose. Para fazer parte desse universo,
sem que tal comportamento lhe afete — não haverá mais o sentir humano —, o
38 Zagury, Eliane. ―Murilo Rubião, o absurdo convidado ao fantástico‖. Suplemento do Jornal do Brasil.
Rio de Janeiro, 22 mar. 1975, p. 35.
160
indivíduo se vê obrigado a agir como seus convivas; ele precisa se encaixar no modelo
pré-estabelecido, mesmo que isso implique na perda de sua identidade e o projete em
um mundo em que ele próprio passe a ser mais um autômato, desligado de tudo e de
todos. Para Maria Cristina Batalha, o protagonista, ―preso, como os outros personagens,
em sua própria solidão e isolamento‖ (2013, p. 41), percebe que a transformação
naquilo que ele rejeitara inicialmente é algo inevitável. Está completo o processo de
reificação de mais um personagem muriliano.
161
5. Considerações finais
Tentar estabelecer uma data ou época específica para o surgimento do
fantástico seria quase o mesmo que desejar apontar objetivamente quando o homem
adquiriu a capacidade de se expressar através da escrita, pois como foi apontado na
parte inicial desta tese, o gosto pela narrativa insólita vem de longas datas, remontando
a um período anterior ao da escrita. Mesmo quando o homem não dominava tal técnica,
ele possuía a arte da palavra oral, e muitas histórias foram criadas, inventadas,
imaginadas e repassadas de geração em geração oralmente. Há toda uma névoa de
mistério que envolve o surgimento não só do fantástico, mas da literatura como forma
de manifestação artística. No caso da narrativa insólita, o clima de mistério, o
misticismo, as religiões, as criaturas mitológicas, os estados de espírito do homem, as
novas descobertas científicas de todos os tempos, tudo isso contribuiu para o
enriquecimento e o aprimoramento desse tipo de narrativa. Na verdade, ela sempre
esteve relacionada a elementos que se referiam simbolicamente ao homem e ao espaço
no qual ele estava inserido. Foi assim nas civilizações ágrafas, na Idade Média, nos
séculos passados e está sendo assim no atual.
Embora, no Brasil, a literatura fantástica só tenha alçado voos maiores nas
últimas décadas, pode-se dizer que a fortuna crítica sobre o tema é vasta e bastante
heterogênea. Se, de um lado, há estudiosos que vislumbraram o fantástico como um
gênero, por outro [ou outros lados], há aqueles que veem possibilidades de leituras que
se adéquam ao fazer literário em sua totalidade. Os estruturalistas imaginaram fórmulas
que pudessem dar conta da complexidade dos textos insólitos, enquanto as correntes
mais contemporâneas vislumbraram um repertório teórico que preenchesse os espaços
vazios deixados por seus antecessores. A verdade é que — visto como gênero, como
modo literário, como categoria estética ou através da teoria existencialista sartriana — o
fantástico foi aos poucos se adaptando a cada momento histórico do homem. Acredita-
se que essa adaptação ocorreu quando o discurso realista tornou-se demasiadamente
saturado e já não tão expressivo. Nesse momento, o insólito surge como uma forma
diferente e a mais de atingir um mesmo alvo: a reflexão crítica do leitor pelo caminho
inverso.
Uma boa referência do que foi dito acima é o nome de Murilo Rubião, que se
destaca dentre aqueles que fizeram literatura fantástica em terras brasileiras. Ele foi um
escritor que utilizou a narrativa insólita para, através da ironia e crítica veladas, dar voz
162
ao universo insólito que também é o do homem contemporâneo. Seus contos dão conta
da tragédia humana, esmiuçada pelo viés do cômico, do humor, do sonho, do lírico, da
loucura e etc. Acredita-se que esta tese tenha demonstrado que, por trás de um discurso
aparentemente despretensioso, os contos do autor mineiro estão tão ligados à realidade
quanto aquela literatura documental que tanto agradou aos críticos brasileiros de
outrora. Contudo, a crise evidenciada nas histórias fantásticas de Murilo tem como
elemento principal a ser trabalhado o homem que sofre as consequências diretas ou
indiretas de um processo de perda de sua identidade e de sua essência. Isso se dá de
maneira insólita.
Como foi possível perceber pelas análises dos textos, os contos murilianos
trazem à superfície questões que fazem parte de um contexto no qual o sujeito
contemporâneo está inserido. Ora pelo dimensionamento hiperbólico, ora pela utilização
da ambiguidade; ora pela sugestão da loucura ou do incesto; ora pelas metamorfoses, o
fato é que os personagens de Murilo transcendem as barreiras da linha na folha de papel,
desaguando na incômoda posição de denunciador de um mundo semelhante àquele que
o leitor tem diante de si. Seus protagonistas vivem a triste sina de estarem presos a uma
irrealidade real [ou a uma realidade irreal], com acontecimentos insólitos que só passam
a ser assim concebidos pelo efeito de surpresa que o leitor manifesta. Tal manifestação é
provocada pela consciência de que o destinatário final do texto tem diante de si um
mundo estranho, mas, ao mesmo tempo, possível e — depois de uma boa olhada —
nem tão estranho assim. Essa é a surpresa maior.
Ora, o ex-mágico não incomoda pelas mágicas descontroladas ou pelo fato de
ele ter se tornado um burocrático do serviço público. O que mais incomoda nele é a
constatação de que esse ser não é tão de papel assim. Excetuando-se as questões
literárias, é possível perceber nele a mesmice e o tédio da vida do indivíduo que não se
encontra [em todos os sentidos] e que se sentencia à morte em vida. Da mesma forma, o
sentimento de perplexidade do leitor não ocorre porque quem fala é um coelhinho, no
conto ―Teleco, o coelhinho‖. Na verdade, o que o provoca é a percepção de que o
universo que circunda o homem é tão absurdo que somente através do insólito esse
absurdo pôde ser escamoteado na figura dócil e gentil de um simpático coelho. Fosse o
coelhinho um menino sujo e desdentado desde o início do conto talvez a história não
acontecesse. Em ―Os comensais‖ a inquietação do leitor com Jadon se dá não pela
aceitação da incorporação do comportamento que tanto combateu dos seus ―quase
companheiros‖, mas sim pela aceitação da solidão como elemento comum ao indivíduo
163
moderno, independente de qualquer que seja sua vontade. Nesse aspecto, o homem é um
subproduto social. Não possui uma essência, pois deixou de ser. E o que dizer dos
contos ―Bárbara‖, ―O edifìcio‖, ―Aglaia‖, ―O lodo‖, dentre outros, em que o
comportamento dos personagens é relacionado alegoricamente ao do homem em
situações conflitantes entre o ser e o ter; entre o sujeito e as consequências negativas do
progresso; entre a pessoa e a ―maquinalização‖ do humano; entre aquilo que o indivìduo
pensa de si e a imagem que o outro tem dele, etc? Na verdade, esse é o grande
incômodo provocado pelos contos de Murilo. Os temas, camuflados em situações
distintas, sugerem uma leitura que deve ser direcionada para uma reflexão mais
profunda e inquietante. Mesmo numa narrativa curta, de apenas duas páginas e meia,
como no conto ―A lua‖, nota-se a crítica implícita na figura do personagem Cris, que
simboliza, por extensão, a morte do homem puro; aquele que não foi corrompido ainda
pelas exuberâncias da vida moderna. E é justamente nesse retrato social — que a
narrativa traça — que está a beleza do discurso fantástico em Murilo Rubião. Ele é
capaz de construir uma irrealidade tão inquietante no leitor que o obriga a repensar
certos conceitos pessoais, e por que não dizer coletivos, de sua própria realidade.
Outro aspecto que se pode verificar ao longo desta tese relaciona-se ao
ambiente em que ocorre a encenação da narrativa muriliana. Ora, se o fantástico
moderno, segundo Sartre, aboliu as fadas, os duendes, os monstros e todos os seres
sobrenaturais; nada mais natural do que uma mudança radical do ambiente narrativo. Se
antes, os castelos, os cemitérios e as mansões mal-assombradas faziam parte dessa
encenação; agora, o lugar em que o insólito absurdo se descortina é o mesmo do
cotidiano de uma cidade qualquer. Não há mais lugares assustadoramente penumbrentos
ou invadidos por forças sobrenaturais. Como foi possível perceber, Murilo ambienta
suas narrativas em lugares com os quais o leitor se identifica rapidamente. São
apartamentos abandonados, casas, edifícios, ruas de uma cidade, pequenos lugarejos
afrontados pelo progresso ou uma fila que nunca acaba. No entanto, os ambientes em si
só servem para provocar a sensação de que o insólito é realmente absurdo, pois se
desenvolve em um lugar muito parecido com aquele que o leitor conhece.
Se, para Sartre, não é mais necessária a existência de seres sobrenaturais e
misteriosos para que o fantástico passe a existir, pode-se dizer que as narrativas de
Murilo é um belo exemplo disso. De acordo com o estudo do filósofo sobre o tema, o
homem foi eleito pelo fantástico moderno como o verdadeiro ser realmente insólito. É
esse indivíduo que se vê diariamente na lida com suas questões mais íntimas, com suas
164
reflexões internalizadas e com suas frustrações inadiáveis que dá vida ao fantástico. Por
isso é possível afirmar que os contos de Murilo convergem para o existencialismo
sartreano. Neles, o homem aparece como o protagonista da encenação de seus próprios
dramas. Ele se encontra preso a uma realidade incômoda, mas que não o surpreende
mais. Excetuando-se Pererico, o protagonista do conto ―A fila‖, não há hesitações ou
resistências. A aceitação da consciência da não-liberdade que assola os personagens faz
parte da psique desse ser moderno. Esse é sem dúvida um dos motivos que torna a
aplicação da teoria de Todorov quase infrutífera nos contos do escritor mineiro.
Todorov não via o homem, mas sim elementos estrategicamente disponibilizados na
narrativa com o intuito de se criar e manter o fantástico. Para ele a hesitação era o
principal de todos. No entanto, os personagens de Murilo aceitam, não hesitam. São
tristes e fadados ao fracasso. Mas aceitam o insólito com a naturalidade de quem já se
acostumou a ele.
165
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