A Narrativa trivialíssima

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Narrativas triviais sobre trivialidade

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A narrativa trivial

Livro 1

A narrativa trivial

Mesmo que a grande massa da produo literria seja trivial e atenda anecessidades dominantes no mercado, a maior parte do apetite pela narrativatrivial atendida hoje pela televiso. Isso poderia liberar uma parte daproduo literria para um tipo de produo mais refinado, mas este espaotenderia a ser preenchido por alguns programas de televiso. Sendocomercial, a televiso no tem interesse em promover a leitura enquantoconcorrncia. No se deve confundir o instrumento de comunicao com asrelaes de poder que nele instrumentalizam a manipulao.

Apesar da aparncia de variao e da grande variao das aparncias, anarrativa trivial se caracteriza pela repetio e pelos clichs, a nvel deenredo, personagens, temrio, valores e final. Existe a narrativa trivial dedireita e a narrativa trivial de esquerda; existe a narrativa trivialmasculina e a narrativa trivial feminina. Exatamente porque a sua estruturaprofunda to repetitiva que a estrutura de superfcie da narrativatrivial precisa ser to variada. Corresponde a uma idade mental infantil,no-desenvolvida ou regressiva.

Direita volver!

Nas narrativas triviais de direita aparece a diferena entre o socialmentealto e o baixo, como nas obras clssicas, mas procurando criar, provocar ereforar uma fascinao no-crtica do baixo pelo alto. Para tanto, a classealta no precisa aparecer nem atuar diretamente: basta que os valores einteresses que ela representa sejam os preponderantes. So narrativastriviais por causa das caractersticas j mencionadas quanto ao automatismode sua estrutura profunda: so incapazes de apreender ou mostrar a naturezacontraditria e complexa da realidade. Elas usam diferentes veculos:cinema, tev, revistas em quadrinhos, novelas etc.

Os nomes dos super-heris que constituem as dominantes desses sistemas podemvariam enormemente: Capito Marvel, Buck Rogers, Kojac etc. O heri pode serbranco ou at preto, homem ou mulher, atuar sozinho ou em grupo, ser umpolicial ou um cidado, ser de carne e osso ou ser um super-heri de tev oude revista em quadrinhos, ser rico ou ser pobre etc.: a sua funo bsica sempre a mesma. Ele o defensor da lei. A lei , para ele, aplicao dajustia. a lei que ele defende - geralmente a favor do governo, maspodendo inclusive fazer com que ele se volte algum momento contra algumrepresentante governamental - , por baixo de todos os mil escamoteamentos,a lei da propriedade privada, a lei da estrutura vigente nesta sociedade. Aprpria lei no vista como gerada em funo de certos interesses e no deoutros etc.

Sempre se tem a mesma estrutura profunda: uma norma violada, uma normasubordinada lei maior da manuteno da propriedade privada; o heriprocura o vilo que a violou: o violador encontrado e punido; violasressoam para o heri. A diviso entre bem e mal rigidamente maniquesta;bom heri quem defende a lei; mau quem vai contra a lei. A prpria leinunca discutida nem questionada: ela absoluta.

Este heri masculino de direita de certo modo um pseudo-heri: sempre jse sabe que no fim ele vai vencer. Ele "masculino" porque geralmente umhomem (ainda que a Mulher Maravilha e as Panteras faam o mesmo tipo depapel) e porque em geral esse tipo de narrativa se volta para um pblicoformada por homens (que at preferem ficar curtindo belas garotasdesempenharem esses papis cheios de golpe de jud). Ele de "direita"dentro da simples diviso que se coloca em nossa era entre a defesa docapitalismo e a luta em favor do socialismo. A estrutura profunda dessasnarrativas representa e constitui uma orientao que poltica. Sob aaparncia de diverso, tem-se uma doutrinao ideolgica.

Em geral esse heri ainda que em si seja considerado insubstituvel, contacom algum auxiliar mgico, que pode ser desde um assistente, uma pistolaespecial ou at uma singular habilidade. O vilo pode ser desde um agenterusso, a mfia, uma potncia interestelar, um vizinho ganancioso at umdrago especial ou um rob estragado. No fim o heri vence e recompensado,de preferncia pelo sorriso do chefe e a companhia de uma das beldades.Quanto mais essas narrativas tm todas o mesmo substrato, tanto mais elasprecisam sofisticar a sua parafernlia (como se mostra tipicamente nosfilmes de 007). Aparentemente uma poca esclarecida, nenhuma foi maisdominada por mitos e mistificaes do que a nossa.

O heri da narrativa trivial um pseudo-heri; s aparentemente ele arriscaa vida; de fato, j de antemo se sabe que ele vai vencer. Ele serve paraassegurar que o sistema vigente superior. E ele efetivamente o , nomomento, a ponto de este tipo de narrativa ser preponderante. Quanto maiseste heri um pseudo-heri, tanto mais se necessita fazer dele umsuper-heri. Quanto mais fracos os homens numa sociedade, tanto mais elesprecisam de super-heris. E tanto mais super-heris eles recebem para semanterem fracos. Esses "heris" aparentemente correm grandes perigos e s noltimo instante salvam a situao e a si mesmos, um resultado j esperadopelo espectador ou leitor, pois pertence a potica normativa e ao cdigo dognero: isto corresponde situao do prprio receptor. Apesar dos perigosque corre em seu dia-a-dia para sobreviver, -lhe assegurado que, no fim,tudo vai dar certo. Que tudo acabe dando certo o que mais deseja oinstinto de sobrevivncia. Por outro lado, existe a implcito um sonho dejustia e de valorizao dos mais fracos, que transferido para o reino dafantasia.

O automatismo do trivial um conservadorismo. O seu happy end arestaurao da situao anterior violao inicial da norma. Esta aimplcita a tese de que a felicidade a manuteno do status quo. O queest, alis, plenamente correto para aqueles que so mais beneficiados pelasituao. O automatismo subjacente variao de superfcie correspondetambm vigncia das mesmas estruturas de poder e trabalho, o cansao dosoperrios aps um pesado dia de trabalho. A pessoa no tem mais, ento,condies fsicas para uma ateno concentrada: s quer ainda relaxar. Ateleviso o seu relax-center mais barato. O automatismo da estruturaprofunda corresponde ao automatismo do trabalho em srie e se respalda nodesinteresse quanto a efetivas mudanas sociais. Cria-se a fico de que,por mais coisas que aconteam ante os olhos do espectador ou do leitor, elemesmo jamais atingido nem envolvido por elas, ele mesmo no tem anda a vercom isso. A noite lhe ensinada no se envolver o que acontece suavolta durante o dia. -lhe tambm ensinado que o melhor manter o statusquo, enquanto outros que se encarregaro de "fazer justia".

A trivialidade o modo dominante de produo e consumo de narrativas porquecorresponde ao modo de produo dominante de mercadorias, ou melhor, estemodo de produo no setor das narrativas enquanto mercadorias. A atenoconcentrada e demorada que exigida pela natureza nica da grande obra dearte, ao invs de ser liberada e desinibida pela automatizao, funcionacomo ocasional osis dentro dessa preponderncia mesmice sob a aparncia dediversidade. As obras triviais tendem ao happy end, assim como as obrasliterrias mais artsticas tendem ao bad end. Este final infeliz podecontudo funcionar como um modo de esconjurar a infelicidade na vida, assimcomo o final feliz corresponde ao desejo de felicidade inerente a todo serhumano.

Se todo heri grego produto da hybris, mantendo em si essa duplicidade dedeus e homem, fato que acaba se revelando ao longo do seu percurso, taldupla dimenso tende a se configurar tambm nos heris triviais e, de modomais flagrante, nos super-heris. O mocinho de far-west geralmente pareceprimeiro um bom mocinho que no quer meter-se em encrencas, mas depoisaparece o seu lado mais herico, divino. Um simples e medroso jornalistacomo Clark Kent se torna o Super-Homem. Uma simples secretria se transformanum passe de mgica, na Mulher-Maravilha. O Pateta, com alguns amendoins, setransforma no Super-Pateta. E todos eles so defensores da justia e da lei.

Por outro lado certas figuras de carne e osso passam a corporificar, nomeios de comunicao, determinadas figuras mticas do passado: um boxeadorpeso-pesado um novo Hrcules; uma atriz o prprio mito da eternajuventude; outra uma Afrodite revivida. A dimenso de divindade que estpor trs de cada uma dessas figuras serve para conferir uma enormeautoridade a elas no momento em que passam a recomendar determinadosprodutos para o consumo da populao. No s elas so mercadorias de consumopblico, mas servem para estimular o pblico a consumir mercadorias, tantomais quanto menos necessrias elas forem.

No caso dos super-heris importados, em geral eles no so pessoalmenteproprietrios do capital. Batman constitui uma exceo; tambm o fato de eleter como que uma dupla personalidade - a de cidado normal e a desuper-heri - configura a natureza hbrida clssica: homem e deus. Paraenfrentar heris to super, os viles acabam tendo de ser super-viles:deuses dos infernos, demnios disfarados de gente, bonecos do mal.

Assim tambm, figuras populares como Nossa Senhora dos Navegantes so comoque reencarnaes da deusa Diana, uma deusa da fertilidade, assim como aprpria Penlope j o era. Em torno de cada uma dessas deusas h como queuma disputa para saber quem ser o seu companheiro e, portanto, rei. Essesritos propiciatrios da reza no s antropomorfizam a natureza comonaturificam o rei; o rei precisa ser forte, para representar as forasfecundadoras da natureza. Por isso o rei precisa ser, aparentemente,substitudo toda vez que perde a sua fora. A no ser que ele coloquealgum - o rei Momo - em seu lugar por alguns dias, durante os quais estegoza de todos os privilgios: o carnaval. Aps esses dias, o rei substitutoser sacrificado: quarta-feira de cinzas. O rei um heri por excelncia deum povo, ainda que seja um rei simblico: serve para a auto-afirmaao dessepovo; a vitalidade personificada. A risada do heri a prpria alegria deviver.

Esquerda volver!

Assim como existe a narrativa trivial de direita, existe a de esquerda: aprimeira afirma o status quo, a segunda prope modific-lo. Toda vez que umarevoluo se instaura num pas, ela precisa produzir muita literaturatrivial de esquerda para se legitimar e obter apoio para as mudanas que elaprocura implementar. Mas esse tipo de narrativa tambm existe antes dequalquer revoluo, como expresso das reivindicaes das classes baixas. Anarrativa trivial de esquerda procura simplesmente demonstrar que a classealta, e tudo o que a ela pertence, o baixo por natureza. , nesse sentido,o alto tudo o que pertencer classe baixa: dentro do mesmo padro declichs repetitivos da trivialidade de direita. claro que esses"esquerdismo" (termo usado por falta de outro melhor, mas no qual teria deser detalhada a dialtica a ele inerente) pode variar conforme a poca e omomento.

O grau de esquerdismo pode variar: do legal ao ilegal. De certo modo, um DomDiego/Zorro, medida que luta contra a dominao espanhola do Mxico, umheri trivial de esquerda assim como Robin Hood tambm o . A ideologiadeste - roubar dos ricos para dar aos pobres - pode aparecer em folhetinsnordestinos entronizando Lampio como heri (ainda que isso no corresponda verdade histrica): essa idia de redistribuio da riqueza social emsolues individuais, sem alterar radicalmente o sistema da propriedadefundiria, corresponde a uma perspectiva poltica que se poderia chamar desocial democrata.

A carncia bsica de trivialidade de esquerda que, ao fazer do altosimplesmente o baixo, e do baixo o elevado, ele no s desconhece a naturezacomplexa e contraditria da realidade como tambm imagina que a classebaixa, ainda que seja vista como depositria da esperana de redeno dahistria, possa ser melhor do que o todo da sociedade em que vive.

A narrativa trivial pode ser um espelho mgico em que cada classe contemplaa outra, mas tende a contemplar apenas sua prpria imaginao quanto outraclasse. No momento em que a narrativa trivial mostrasse a Branca de Neve dosanes operrios, teria o seu espelho quebrado em estilhaos pelos poderesvigentes: mas a narrativa artstica surge hoje da possibilidade anunciadapelos estilhaos.

Feminino / masculino

A narrativa trivial feminina pode usar diferentes veculos: a fotonovela, anovela-cor-de-rosa, a telenovela, o cinema gua-com-aucar etc. De um modogeral destina-se ao pblico feminino, o que caracteriza tambm o seu enredo.Basicamente tem se a sempre uma herona, uma mocinha com diversas virtudes,e um heri romntico, cheios de excepcionais qualidades. So como que deusessobre a terra. Esto predestinados a casarem um com o outro. Mas, para quehaja enredo, surgem vrios empecilhos entre eles, o mais freqente o fato deela ser pobre e ele ser rico: claro que o que ela mais quer "dar o golpedo ba", s que exatamente isso que no pode ser reconhecido. No fim,depois de diversas peripcias, tem-se o final feliz, com o casamento dessesmaravilhosos seres.

A moral da histria , primeira vista, a tese de que "o amor tudo vence".Subjacente a ela, h, porm, uma outra tese, que , basicamente, a de que amelhor coisa na vida pertencer a classe alta (o que no deixa de estarcorreto at certo ponto) e que o melhor que se tem a fazer se identificarcom ela e am-la atravs de todas as dificuldades e alegrias. Essasnarrativas triviais femininas podem ser, portanto, classificados, como "dedireita". So "femininas" dentro de um padro bem estereotipado, pois asprprias narrativas so estereotipadas, assim como o seu pblico. Elas so aanttese e o complemento das narrativas triviais "masculinas".

Nessas narrativas, a estruturao da sociedade em classes aparece como umproblema, mas como um problema a ser resolvido individualmente, pelamobilidade social, pela possibilidade de ascenso social. Potencialmenteseria possvel haver a narrativa trivial feminina de esquerda, mas umacategoria completamente sufocada entre ns, em vista das relaes de podervigentes. Uma srie como Malu Mulher caminharia nessa direo.

A narrativa trivial feminina de esquerda entre ns ainda mais restrita doque a masculina porque a mulher vive ainda mais sufocada do que o homem.

Transcrio do feita do captulo 10 do livro: O heri / Flvio R. Kothe - 1edio - So Paulo / tica, 1985