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ERNANI MAIA A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR? Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção parcial do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso São Paulo 2005

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ERNANI MAIA

A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção

parcial do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso

São Paulo2005

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ERNANI MAIA

A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Dissertação apresentada à Universidade Presbiteriana Mackenzie para obtenção

parcial do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Egídio Alonso

Aprovada em Maio 2005

Banca Examinadora

Prof. Dr Luís Antônio Jorge

Prof. Dr. Francisco Spadoni

Prof. Dr. Carlos Egídico Alonso

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Maia, Ernani.

Orientador: Carlos Egídio Alonso

A nova Máquina de Morar: Um hardware de morar?, Universidade

Presbiteriana Mackenzie. São Paulo: 2005 - 142p.

1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura

Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7.

Avanços Tecnológicos

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A vida é aquilo que aconteceenquanto pensamos em outra coisa.

O. Wilde

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AGRADECIMENTOS

Em memória de meu Pai grande incentivador deste trabalho e responsável por todas as minhas

vitórias no passado e ambições para o futuro.

À Érika Eiko, minha mulher, pelo amor e compreensão.

Ao meu orientador Prof. Dr. Carlos Alonso pela competência em me deixar progredir sem

imposições autoritárias e idiossincráticas e pelos cafés durante as orientações.

À Arquiteta Evelise Grunow e Arquiteta Tatiane Santa Rosa pelas contribuições multidisciplinares.

Além de todos aqueles os quais importunei obrigando-os a ouvir meus devaneios sobre

arquitetura e telemática.

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RESUMO

O presente trabalho tem como tema a comparação entre dois importantes períodos históricos da arquitetura, que são a era industrial e a era informacional, em que vivemos. Cronologicamente, trata-se, em primeiro lugar, do advento da industrialização entre os séculos XIX e XX e, posteriormente, do advento da era telemática na virada do século XXI, em que pesam o enorme desenvolvimento e especialização do uso integrado de tecnologias computacionais e de sistemas de comunicação mundiais.A forma de comparação é ao mesmo tempo contextual e pontual. Pontual porque configura-se a partir do recorte da produção de um dos mais importantes entusiastas da arquitetura moderna da era industrial, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, e, com relação ao período atual, a partir da análise das novas ferramentas criativas e operacionais à disposição do exercício da arquitetura. E contextual porque tais análises parciais são fundamentadas em conceitos urbanos, tecnológicos, culturais, econômicos e sociais de cada um de seus períodos.O termo de tal comparação será, então, delineado a partir do recorte da arquitetura residencial desses dois períodos e universos pontuais, ou seja, a partir da análise das formulações de Le Corbusier sobre os chamados Estabelecimentos Humanos, em que ocupa papel fundamental o programa da moradia moderna, e sobre o sistema de proporção espacial que denominou Modulor. No caso da arquitetura contemporânea, o recorte será estabelecido a partir da análise das novas possibilidades da arquitetura da casa tendo em vista conceitos como realidade virtual, simulação, entre outros, disponíveis à atuação dos arquitetos da era informacional.

1.Arquitetura. 2. Le Corbusier 3.Máquina de Morar 4. Arquitetura

Contemporânea. 5. Arquitetura e Realidade Virual 6.Telemática 7. Avanços

Tecnológicos

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ABSTRACT

The following work compares two imporant historic phases of Architecture. The Industrial Age and the Age of Information, which we’re living on. Firstly it’s analysed the industrialization period, between the XIX and XX centuries and after, The Telematic Age, at the turn of the XXI century, when the use of computer tecnologies and international systems communications prevails. The comparision between these two phases is, at the same time, contextual and specific. The last mentioned, because it configures a panoramic view of one of the most important characters of Modern Architecture at Industrial Age, the architect Le Corbusier. About the present situation, this work analyses the new creative and operational tools to the exercise of Architecture. It’s a contextual work because its’ partials analysis are based in urban, tecnological, cultural, economical and social concepts of each historical period. Residential Architecture is the common theme between the analysis of these two periods.The term of such comparison will be, then, delineated from the cutting of the residential architecture concerning those two periods and punctual universes, in other words, from the analysis of Le Corbusier formulations on the so referred to Human Establishments, in which the program of modern home assumes a key role, and on the system of space proportion that he called Modulor. In case of contemporary architecture, the cutting will be set forth from the analysis of the new possibilities concerning home architecture having in view concepts, such as virtual reality, simulation, among others, available for the performance of information-era-related architects.

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Figura 29.................93Figura 30.................94Figura 31.................99Figura 32...............104Figura 33...............104Figura 34...............105Figura 35...............105Figura 36...............106Figura 37...............110Figura 38...............110Figura 39...............110Figura 40...............114Figura 41...............117Figura 42...............120Figura 43...............120Figura 44...............124Figura 45...............128

Figura 01.................17Figura 02.................18Figura 03.................21Figura 04.................22Figura 05.................26Figura 06.................27Figura 07.................27Figura 08.................29Figura 09.................32Figura 10.................39Figura 11.................40Figura 12.................42Figura 13.................44Figura 14.................45Figura 15.................46Figura 16.................56Figura 17.................68Figura 18.................68Figura 19.................68Figura 20.................78Figura 21.................78Figura 22.................80Figura 23.................80Figura 24.................87Figura 25.................87Figura 26.................88Figura 27.................92Figura 28.................92

LISTA DE FIGURAS

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SUMÁRIO

1. Resumo. 2. Abstract. 3. Sumário.4. Introdução 5. PARTE I – Le Corbusier e a Máquina de Morar.

5.1. A condição “pré-moderna” e o florecimento de um espírito novo.5.2. A casa moderna.5.3. Le Corbusier e a evolução do pensamento purista.5.4. A importância do legado Corbusieriano.5.5. Le Corbusier e a máquina de morar.

6. PARTE II – Novas possibilidades na produção arquitetônica residencial.

6.1. Introdução: As novas possibilidades e condições na prática da arquitetura6.2. Alternativas ao Moderno6.3. O espaço coletivo e individual na era das tecnologias telemáticas6.4. Panorama da Arquitetura Contemporânea6.5. Fundamentação para as novas ferramentas arquitetônicas6.6 – A aplicação da ferramenta computacional na Arquitetura6.7 – O programa habitacional contemporâneo sob a perspectiva das novas ferramentas arquitetônicas digitais

7. Conclusão.8. Bibliografia.

.................06

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4. Introdução

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

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As mudanças que os avanços das tecnologias telemáticas1 propiciam à

produção e representação arquitetônica e, conseqüentemente, à sociedade

contemporânea, derivam, entre outros fatores, da utilização dos computadores

pessoais associados a logicionárias2 cada vez mais avançadas e competentes.

Assim, seja pelo advento da globalização econômica, pela maciça

utilização mundial de computadores pessoais, mediados por redes virtuais, ou

ainda pela inexorável afirmação do capitalismo em todo o mundo, o fato é que

a sociedade hoje não mais pode ser considerada igual à sociedade de apenas

dez anos atrás.

Tais mudanças sociais são comparáveis às alterações ocorridas após

a revolução industrial, assim como ao advento invenção da imprensa, dos

métodos modernos de anestesias, das técnicas de arado, entre tantos outros

acontecimentos que marcaram a evolução da humanidade. Ou seja, são

mudanças substancias, originárias do desenvolvimento de novas ferramentas

tecnológicas que servem ao relacionamento entre o homem e seu meio.

No entanto, a velocidade das transformações atuais é fato inédito na história da

humanidade, de forma que a justaposição, no tempo e no espaço, da inebriante

tecnologia da informação que a fundamenta, particularize o momento atual no

quadro evolutivo humano.

Neste sentido, o conceito de evolução está vinculado à descoberta e

invenção de novas ferramentas, desde as mais sofisticadas até as mais

rudimentares, dentre as quais pode-se destacar as conquistas tecnológicas do

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

1Telemática: Ciência que trat2 Logicionaria: Parte de Um sistema eletrônico, de um instrumento, de um microcomputador ou computador, constituída de informações, algoritimos e procedimentos contidos em seu sistema de memória e armazenamento secundário. É a logicionaria que determina a operação de todos os subsistemas de computador, de terminando seu modo de operação e o caráter das operações realizadas. Em inglês Software.(ZUFFO, 1997).

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homem moderno.

Independente da natureza de tais descobertas e ferramentas, o que se

pode afirmar é que sua apropriação pela sociedade no decorrer da história altera

profundamente não só os modelos comportamentais, mas também as próprias

instituições sociais. A tecnologia afeta, assim, também as condições sociais,

políticas e psicológicas de toda a sociedade em que está inserida, sobretudo

porque é freqüentemente definida por forças sócio-econômicas dominantes.

Assim, como outras ferramentas do passado, as novas ferramentas da

evolução telemática parecem condicionar a forma como entendemos o mundo

e o lugar e que nele ocupamos. Trata-se, portanto, de algo que extrapola a

finalidade específica de um meio pragmático, o que equivale a dizer que os

computadores têm superado a materialidade de uma peça inerte de metal e

plástico.

Como expressa James Steele (2001), “[...] o computador é um componente

virtual da reconstrução real e simbólica do mundo que temos entre as mãos.

Também é a manifestação mais potente da habilidade do homem no uso da

tecnologia para dominar a natureza”.

Tal reflexão é interessante, na medida em que explicita a íntima relação

entre tecnologia e comportamentos sociais, e, conseqüentemente o enorme

potencial da primeira em ocasionar consideráveis mudanças no meio ambiente

e nos modos de apropriação do território.

Ou seja, as tecnologias parecem exercer, historicamente, uma influência

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

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dicotômica sobre a humanidade, já que, embora tragam implícita a idéia

evolutiva, de grandes benefícios sobretudo aos meios produtivos, por outro lado

são também importantes instrumentos simbólicos. O que equivale a dizer que

a tecnologia pode transformar o desenvolvimento psicológico, tanto individual

quanto coletivo, e, assim, servir a conotações autoritárias.

De qualquer forma, a revolução industrial é sem dúvida o ponto de

partida da configuração epistemológica em que vivemos, ou seja, e conforme

veremos adiante, desde a invenção das máquinas industriais e da descoberta

de diversas fontes de energia, o mundo mudou consideravelmente. E isto inclui

também as transformações dos meios de produção, da ciência, dos costumes

e modos de espacialização no território, assim como as novas compreensões

espaciais e temporais, entre outros.

Em relação ao binômio espaço / tempo, que fundamenta a discussão

arquitetônica em qualquer fase da civilização, a revolução industrial foi

caracterizada por uma percepção cíclica, mecânica e racional, tanto com relação

à percepção do espaço como do tempo.

Assim, com a evolução das navegações e os avanços anteriores dos

métodos cartográficos, o espaço passou a ser percebido por uma configuração

bem definida, da mesma forma em que o tempo também sofreria influências da

medição cronometrada dos relógios mecânicos, que passaram a ser instalados

em todas as partes das cidades industriais.

Também o advento das novas formas de transporte alteraria a relação

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entre o espaço e o tempo na era industrial, já que as noções de velocidade e

distâncias conquistariam novas conotações. E entende-se aqui velocidade não

só de deslocamentos físicos, mas também do fluxo tecnológico e científico, cada

vez mais dinâmico desde o advento industrial, sobretudo a partir do momento

em que a ele se conjugaram os meios telemáticos e as redes mundiais de

interatividade.

Estas iminentes alterações, originadas especialmente pela utilização

dos novos avanços informacionais, parecem clamar também por uma nova

abordagem no contexto arquitetônico. Ou seja, embora o debate sociológico se

mostre vanguardista, a exemplo de interessantes publicações de Paul Virilio,

Pierre Lévy ou Manuel Castells, no campo da arquitetura, contudo, a realidade

é outra.

Talvez o temor de certa associação “futurologista” ou a excessiva

preocupação historicista de muitas universidades brasileiras, sejam fatores

contrários à discussão mais ampla do tema. Nos Estados Unidos, por exemplo,

conforme cita James Steele (2002), aspirantes aos cursos de arquitetura e design

procuram as universidades que tenham em seu quadro docente professores que

se destacam na discussão acerca das interfaces entre tecnologia da informação

e arquitetura, entre tecnologia da informação e design, a exemplo do professor

Willian Mitchell, do Massachussets Institut Tecnology, que é considerado um

dos precursores da discussão da arquitetura e do urbanismo no novo panorama

tecnológico contemporâneo.

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A proposta de Mitchell é decifrar este novo fenômeno através da análise

de suas possíveis conseqüências no panorama atual da arquitetura. Como

destaca Steele (2001, p.08): “[...] um grande debate épico que acompanhou

a revolução industrial, eloqüentemente conduzido por Jonh Ruskin, William

Morris e Thomas Carlyle, mudou a direção da arquitetura do século XX”.

Pode-se dizer que os fenômenos sociais, econômicos e produtivos da

revolução industrial embasaram a atuação de Le Corbusier, que participou

como agente modificador do que denominava estabelecimentos humanos

também através de sua obra teórica.

Assim, é lícito afirmar que Le Corbusier participou na plenitude de uma

revolução velada e abstrata, talvez ainda em voga, que surgiu em meados dos

século XVIII e ficou conhecida como revolução industrial, de forma a configurar

paradigmas arquitetônicos para as gerações que o sucederiam.

A proposta do presente trabalho é, então, traçar um panorama contextual

da atuação de Le Corbusier, de forma a compreender seus conceitos de moradia

ideal ao novo homem industrial. E, de forma análoga, analisar as tecnologias

telemáticas e de realidade virtual que caracterizam nossa era, com o intuito

de indagar se a moradia contemporânea necessita de um novo modelo ou, ao

contrário, se a máquina de morar de Corbusier ainda pode ser considerada um

paradigma válido.

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5. Parte I - Le Corbusier e a Máquina de Morar

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 01 - Casa Dom-ino. Fonte:http://www.ruf.rice.edu/ Acessado em: 14 abr. 2004.

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O desenvolvimento da moderna vanguarda arquitetônica e,

conseqüentemente, das casas modernas, pode ser compreendido como a

extensão lógica da revolução industrial. As mudanças ocorridas nas cidades,

nos transportes, nas utilidades e infra-estrutura públicas, assim como na

economia fomentada pelas indústrias, contribuíram, entre outros aspectos,

para o surgimento das habitações modernas.

Com a revolução industrial, a humanidade passou a transferir para as

máquinas o enfadonho trabalho cotidiano, apesar de gerar com isto outras

rotinas não menos desgastantes, isto afetou definitivamente as relações sociais

através não só dos objetos que invadiram a vida diária, ou das transformações

na hierarquia familiar e social. As evoluções técnicas passaram a atingir a

humanidade com intensidade infinitamente superior a sua evolução até então,

pois até as pequenas coisas do cotidiano passaram por sensíveis processos de

transformação.

O homem viu sua força e capacidade produtiva multiplicadas pelos motores

e por outros adventos industriais, isto levou a humanidade a um repentino salto

na qualidade de vida, nas formas de captar e produzir riquezas, embora, por

outro lado, tenha-se também ampliado as misérias, mazelas e desigualdades

sociais.

5.1 A condição “pré-moderna” e o florescimento de um espírito novo.

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 02 - Ilustração de operários ingleses. Revolução Industrial. Fonte: http://www.learnhistory.o r g . u k / c p p / 1 7 5 0 g a l . h t m . Acessado em: 20 jun. 2004.

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A partir da emergência da máquina como fator produtivo, a sociedade foi

levada a mudanças irreversíveis em todos os sentidos da vida cotidiana, evento

que, obviamente, não ocorreu repentinamente. Ao contrário, o processo de

transformação foi ritmado pela própria velocidade dos avanços tecnológicos,

assim como pela enorme ampliação dos meios de comunicação disponíveis.

Quando se refere à primeira geração da sociedade industrial, Le Corbusier

(1946, p.10) destaca: “[...] ébria de velocidade e de movimento, dir-se-ia que

a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar em torno de si própria; tal

qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada vez mais opaca.”

Foi neste período que se desenvolveram as teorias econômicas que

protagonizam grandes embates ainda em nossos dias, as quais, em certa medida,

teriam desencadeado guerras e revoluções durante os anos subseqüentes

à sua formulação. De um lado, figurava, então, o capitalismo emergente da

própria condição de trocas, lucros e desenvolvimentos, devidamente amparado,

nesse sentido, pela produtividade espantosa das recém-criadas máquinas.

Elas corresponderam, tanto fisicamente, ou seja em sua estrutura, quanto

idealmente, à concepção mecânica da produção em série, e, de certa forma, à

idéia de lucros exorbitantes, incondicionais.

Por outro lado, falava-se do conceito de igualdade social, da racionalização

do capital e, em suma, da intenção de solucionar o já latente problema da

classe operária, cada vez mais pobre e fragilizada por péssima qualidade de

vida.

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Contudo, ainda que surgido como reação às precárias condições urbanas

enfrentadas por boa parte da sociedade industrial, este conceito revelou-se

um ideal totalizador, sobretudo no sentido de ter justificado a idéia de Estados

centralizadores, anti-democráticos. Configurou-se portanto, na era industrial

mecanicista, um embate ideológico entre a igualdade de meios, sobretudo os

produtivos, e as polaridades econômicas e sociais.

Já no campo das ciências, tanto as econômicas, biológicas quanto as

sociais, a partir da segunda metade do século XVIII se delineou um período de

ampla efervescência, em muito decorrente da própria racionalidade iluminista.

Ao descartar dogmas e crenças religiosas como limites científicos, o Iluminismo

incentivou a busca pelo desconhecido, o que desencadeou não só uma nova

postura científica, mas também social e cultural, o que, de fato, transformaria

todos os paradigmas sociais vigentes até então.

Neste sentido, Eric Hobsbawm (1977, p.41), importante historiador

contemporâneo, escreve:

[...] de fato, o “iluminismo”, a convicção no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza – de que estava profundamente imbuído o século XVIII – derivou sua força primordialmente do evidente progresso da produção, do comércio e da racionalidade econômica e científica que se acreditava estar associada a ambos.

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

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É importante notar que a revolução industrial, apesar de constantemente

vinculada ao advento das máquinas e das energias, parece também originária

de um contexto delineado já desde os séculos XV e XVI, em que figuram cenários

como a organização dos exércitos e das marinhas, a preparação das grandes

expedições coloniais, os progressos nas tecnologias da mineração e metalurgia

e, entre outros, os novos e amplos alcances empresariais. Todos esses fatores

representaram terreno fértil para as raízes da sociedade industrial, o que pode

levar, ao início do século XVI, o ponto de partida da revolução industrial.

Porém, é recorrente em livros didáticos a classificação da revolução

industrial em pelo menos três fases: a primeira delas, caracterizada pela

criação de novas tecnologias de produção [como a máquina a vapor, a

fiandeira, o processo Cort em metalurgia e, de forma mais geral, a substituição

das ferramentas manuais pelas máquinas], teria começado pouco antes dos

últimos trinta anos do século XVIII. A segunda, observada aproximadamente

100 anos depois desse período, teria se destacado pelo desenvolvimento da

eletricidade, do motor de combustão interna, pela criação de produtos químicos

com forte base científica, da eficiente fundição do aço e, ainda, pelo início

do desenvolvimento das tecnologias de comunicação [como o telégrafo e a

invenção do telefone]. E a terceira, resultante dos enormes avanços dessas

tecnologias de comunicação, é conhecida como a revolução informacional.

Trata-se, em suma, da era da informática, da microeletrônica, da telemática

que será o objeto da segunda parte desse trabalho.

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 03 - Casas de operários em New Castle, Inglaterra. Data 1976. Fonte: www.conse rva t i on t e ch . com/ /x-MILLTOWNS/RL-Photographs-4x5/England-4x5s.htm. Acessado em 28 mar. 2005.

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Cada período trouxe consigo uma vastidão de novos produtos que, entre

outros fatores, propiciaram a mudança na polarização das riquezas e do poder

internacionais, assumindo posições de destaque aqueles países e elites que

se tornaram aptos a comandar o novo sistema produtivo, em decorrência da

rápida e abrangente apropriação dos avanços tecnológicos. Aliás, esta parece

mesmo uma constante na história da humanidade, ou seja, civilizações que

conseguem dominar novas tecnologias, sobretudo, aquelas voltadas à atividades

de dominação, como a guerra, tornam-se supremacias militares, econômicas e

intelectuais.

A complexidade e desdobramentos de cada fase do período industrial

testemunham a relevância da era mecanicista na história da humanidade.

Domenico de Masi, combativo sociólogo italiano de nossos tempos, quando

aborda o período industrial, afirma enfaticamente:

[...] com o nascimento da indústria iniciou-se um dos maiores empreendimentos da espécie humana, comparável à invenção da agricultura há dez mil anos, à criação da democracia, à invenção do direito internacional e do império global na Roma de Augusto. (MASI, 2000, p. 126).

Embora tamanho êxito, sabe-se também que a revolução industrial

fez muitas vítimas, como exemplificam as condições desumanas de trabalho

vivenciadas nas fábricas e cidades pela própria classe operária. Segundo

Hobsbawm (1977), aos pobres que se encontravam à margem da sociedade

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 04 - Uma roda de fiar podia fazer às vezes de mil fusos. Em cima uma cena tradicional de casa de campo. Em baixo, (maquinas de fiar algodão 1835).

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burguesa restavam apenas três possibilidades: lutar para se tornarem burgueses,

aceitar as condições de opressão, ou se rebelar. Esta terceira possibilidade foi

seguida por muitos, desencadeando revoluções, como a ocorrida na França em

1789, a chamada Revolução Francesa, e várias outras revoluções posteriores,

culminando com a Revolução Russa, de 1917.

Porém, ainda que as origens da revolução industrial remontem, na

análise dos historiadores, à segunda metade do século XVIII, o ideário de Le

Corbusier, e das discussões desse trabalho sobre a moradia moderna, só se

estabeleceu cerca de duzentos anos depois, ou seja, na primeira metade do

século XX. Isso porque foi neste período, a partir de 1900, que efetivamente se

desenvolveram as habitações modernas, em muito vinculadas às possibilidades

de conforto originadas pelos avanços nos sistemas de aquecimento para

regiões de clima temperado, de refrigeração, de combate ao fogo, assim como

pelo desenvolvimento de novos materiais, como o concreto e o aço, além dos

fundamentais sistemas de saneamento básico.

Neste sentido, como vimos a revolução industrial foi gradualmente e

definitivamente mudando a sociedade e sua maneira de habitar e de se apropriar

do território, transformando conseqüentemente o curso dos acontecimentos

históricos, primeiro na Inglaterra e posteriormente em quase todo o mundo.

Segundo Leonardo Benevolo (1976) os principais fatores que influenciaram

as alterações ocorridas nas cidades foram o aumento da população devido

à diminuição do índice de mortalidade, o aumento significativo dos bens e

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

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contemporânea. Segundo Benevolo (1994, p.21 e 22):

A associação entre a indústria e a cidade depressa se consolidou: nas novas cidades, que se desenvolveram fora do sistema tradicional dos burgos e freguesias, empresários e operários podiam fugir aos vínculos anacrônicos do sistema corporativo isabelino; os empresários contavam com uma reserva de mão-de-obra sempre abundante e substituível, enquanto os operários, se bem que cruelmente explorados pelos novos patrões, encontravam na cidade uma maior variedade de escolha e uma possibilidade de reconhecer-se como classe, de se organizarem em defesa dos interesses comuns.

A situação das cidades pode ser considerada como termômetro do grau

de alterações que a sociedade sofreu nos anos contemporâneos à revolução

industrial. E foi no contexto de uma sociedade já familiarizada com as irreversíveis

condições sociais e urbanas de seu tempo, que floresceram as teorias de Le

Corbusier, balizadoras do presente trabalho.

Para ilustrar o desenvolvimento desta sociedade, e das alterações em seu

modo de espacializar-se no território, Le Corbusier (1943, p. 9/10) escreveu:

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dos serviços produzidos pela agricultura e pelas indústrias [sobretudo em

virtude do progresso tecnológico e do desenvolvimento econômico], e, por

fim, a redistribuição dos habitantes no território em conseqüência do aumento

demográfico e das transformações nos meios de produção [os operários , antes

campesinos, se tornaram assalariados e se transferiram para junto das fábricas,

formando aglomerações que originaram novas cidades], o desenvolvimento

dos meios de comunicação, que permitiu o salto da mobilidade tanto humana

quanto de produtos. A velocidade destas transformações afetou o equilíbrio

mundial, principalmente por sempre desencadearem outras transformações,

cada vez mais profundas e mais rápidas.

É patente a aceleração do ritmo evolutivo da humanidade. Antes de 1850,

nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbana e,

em 1900, apenas a Grã Bretanha atingia essa condição. Passados pouco mais de

100 anos, atualmente podemos considerar que todas as nações industriais são

altamente urbanizadas e, em todo o mundo, indiscriminadamente, o processo

de urbanização continua acelerado.

Neste sentido, Leonardo Benevolo observa a respeito das cidades da era

industrial: “[...] um edifício não mais poderia ser considerado uma edificação

estável, incorporada ao terreno, mas um manufaturado provisório, que poderia

ser substituído mais tarde por outro manufaturado.” (BENEVOLO, 1976,

p.552).

É provável então, que esta seja a origem da sensação de efemeridade

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Uma ruptura brutal, única nos anais da história, acaba de destacar, em três quartos de século, toda a vida social do Ocidente de seu quadro relativamente tradicional e notavelmente concorde com a geografia. A causa desta ruptura – seu explosivo – é a intervenção súbita, em uma vida ritmada, até então, pelo andar do cavalo, da velocidade na produção e no transporte das pessoas e das coisas. Com seu aparecimento as grandes cidades explodem ou se congestionam, o campo se despovoa, as províncias são violadas no âmago de sua intimidade. Os dois estabelecimentos humanos tradicionais (a cidade e a aldeia) atravessam, então, uma crise terrível. Nossas cidades crescem sem forma, indefinidamente. A cidade, organismo urbano coerente, desaparece; a aldeia organismo rural coerente, traz os estigmas de uma decadência acelerada: colocada em inopinado contato com a grande cidade, é desequilibrada e desertada.

Pouco menos de um século antes de Le Corbusier, a França, com

a política econômica de Luis Napoleão, entre 1848 e 1870, já estimulara

empresários particulares a contribuírem com a reorganização da cidade de

Paris, que sofria na época com os problemas causados pela inexorável revolução

industrial. Iniciativas como a reorganização do sistema ferroviário, a reconstrução

do centro da cidade, a edificação de novos portos, os empréstimos do governo

às industrias, o encorajamento de novas linhas de crédito para a indústria e

para a agricultura, a reforma radical das tarifas, a realização de duas grandes

exposições internacionais em Paris, contribuíram, assim, para a promoção do

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Figura 05 – Napoleão III. Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Napoleon_III. Acessado em 10 nov. 2004.

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crescimento industrial francês durante o período de Luis Napoleão.

O imperador era auxiliado por administradores competentes, sobretudo

pelo Barão Haussman. Além disso, Napoleão III compreendeu a importância das

comunicações na promoção do desenvolvimento industrial e resolveu equipar a

França com um sistema de caminhos de ferro eficiente.

No entanto, não podemos nos esquecer que alguns dos pontos

fundamentais estabelecidos pela gestão do Barão Haussman, sobretudo na

condição de prefeito de Paris, foram a expulsão dos pobres do centro de Paris

e a substituição das ruas tortuosas medievais por longas avenidas, em suma,

iniciativas para o que se denominou de embelezamento da cidade. Estas

mudanças foram conhecidas como “estratégia de classe”.

Porém, todas estas alterações nas cidades foram acompanhadas também

por transformações na célula habitacional, de modo a ocasionarem mudanças

significativas no modo de habitar. A velocidade da máquina, as particularidades

produtivas, comportamentais e culturais capitalistas, enfim, as novas condições

de tempo e espaço do homem moderno, trouxeram consigo novas condicionantes

espaciais para a arquitetura e para o urbanismo. E sobre a casa, pode-se dizer

que é nela que o homem procura expressar sua condição epistemológica, seus

costumes e hábitos tão intimamente ligados ao ambiente social em que vive, ou

seja, pode-se considerar a moradia também como espelho de quem a habita.

E, assim, além do novo contexto urbano, das modernas fábricas e das

promissoras estradas de ferro, a revolução industrial apresentou ao mundo

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Figura 07 – A demolição de parte do Quartier Latin na reconstrução de Paris.

Figura 06 – Esquema dos grandes trabalhos de Haussmann em Paris: em preto as novas ruas, em tracejado quadriculado os novos bairros, em tracejado horizontal os dois grandes parques periféricos: o Bois de Boulogne (à esquerda) e o Bois de Vincennes (à direita).

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também uma nova forma de habitar: os cortiços. A fábrica era o núcleo

dos aglomerados urbanos e, portanto, toda a vida da sociedade tornou-se

subordinada a ela.

Era ela, entre outros, o agente de transformação da paisagem natural,

com suas chaminés lançando fumaça negra pelo céu das cidades e resíduos

poluidores pelos rios, o mesmo acontecendo com as locomotivas e as estradas

de ferro, que além da poluição, cicatrizavam e segregavam o território com

seus intrínsecos trilhos.

Às habitações restavam apenas os espaços intersticiais, como as áreas

ociosas entre as fábricas, os galpões e os pátios ferroviários. Outras vezes, eram

construídas ainda junto à grandes indústrias, fossem elas siderúrgicas, fábricas

de tintas, gasômetros ou de cortes ferroviários. Segundo Lewis Mumford (1961,

p.501): “[...] dia após dia, o mau cheiro dos dejetos, o negro vômito das

chaminés e o ruído das máquinas martelantes ou rechinantes, acompanhavam

a rotina doméstica”.

Na cidade industrial, que crescia com base em fundações antigas, os

trabalhadores foram inicialmente acomodados em velhas casas familiares,

transformadas então em alojamentos para aluguel. Nestas casas, cada quarto

se transformava em uma unidade de habitação, às vezes até para mais de uma

família. Com essa situação, somada aos dejetos das indústrias e das ferrovias,

as cidades tornaram-se bem pouco higiênicas, e passaram a sofrer sérios

problemas de saneamento básico, já que as infra-estruturas de água e esgoto

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ou não existiam, ou eram insuficientes.

Este panorama nada favorável do primeiro momento urbano-

industrial, originário da nova forma e organização do trabalho, se apresentou

como grande desafio aos planejadores das cidades. Não tardou, portanto,

o aparecimento de novas idéias que sinalizavam a melhoria das condições

urbanas das cidades industriais, cenário em que surgiram: Charles Fourier e

seus falanstérios; Tony Garnier e sua cidade Industrial; Ebenezer Haward e a

cidade jardim, Le Corbusier e a cidade radiosa; entre outros, explicitados por

Françoise Choay (1965).

É pertinente salientar que, no panorama apresentado nesta breve análise

da situação das cidades entre os séculos XVIII e XIX, e que perdurou ainda

até o período entre guerras, no século XX, embora os países europeus pouco a

pouco tenham conseguido equacionar seus problemas sanitários e urbanísticos,

cenário em que se destaca, por exemplo, o Barão Hausmman e as grandes

transformações de Paris, nos demais países, sobretudo os subdesenvolvidos ou

marginais no quadro de equilíbrio de forças da era industrial, pouco foi feito em

relação à melhoria das condições de vida de seus moradores.

No entanto, se o foco da primeira parte do presente estudo é conhecer

o contexto em que Le Corbusier idealizou sua concepção ideal de moradia,

torna-se, portanto, imprescindível voltar às condições habitacionais do cenário

europeu industrial. Neste sentido, Lewis Mumford escreve que:

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Figura 08 – Plano da Cidade Industrial de Tony Garnier.Fonte: http://www.ctv.es/USERS/jbrarq/images/Acessado em 12 jan. 2005.

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A época da invenção e da produção em massa quase não atingiu a casa do trabalhador ou as suas comodidades, até o fim do século XIX. Introduziu-se o encanamento de ferro; assim também a privada aperfeiçoada; finalmente, a iluminação e o fogão a gás, a banheira com encanamento de água e drenos fixos; uma rede de distribuição coletiva de água, com água corrente ao alcance de todas as casas, e um sistema coletivo de esgotos. Todos esses melhoramentos, pouco a pouco, passaram a ficar ao alcance dos grupos econômicos médios e superiores, a partir de 1830; dentro de uma geração, a contar da sua introdução chegaram mesmo a transformar-se em necessidades para a classe média. Mas, em ponto algum, durante a fase paleotécnica, tais melhoramentos chegaram a estar ao alcance da massa da população. O problema para o construtor, era alcançar um nível módico de decência sem essas novas comodidades dispendiosas. (MUMFORD, 1961, p.504).

Como se vê, a urbanização e a moradia da cidade industrial pareciam,

sobretudo no primeiro século da revolução da máquina, sofrer diversos males,

o que fez surgir, já nas primeiras décadas do século XX, idéias revolucionárias

a respeito de formas de habitar e urbanizar as cidades. Amparadas pelo

amadurecimento da sociedade industrial, que efetivamente se conscientizara

das mudanças ocorridas em seu cotidiano, essas idéias prosperaram, então,

para o estabelecimento do chamado ideário Moderno, tanto nas artes quanto

nas ciências, que é a origem do que convencionou se denominar Movimento

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Moderno.

Com ele, surgem várias propostas, vários movimentos, sobretudo

europeus, que propunham o diálogo entre as tecnologias industriais e a

arquitetura, entre os quais, e talvez o mais importante, figura Walter Gropius

e a escola alemã Bauhaus. É neste contexto que foi lançada a base sociológica

da habitação mínima, voltada à população das cidades industriais, derivada da

abrangente análise das mudanças ocorridas nos núcleos familiares europeus.

A idéia era padronizar a sociedade através de seus núcleos familiares.

O objetivo era descobrir o programa mínimo habitacional, o que equivaleria

a ajustar o cotidiano e as necessidades humanas a partir da macro escala do

comércio e da economia mundial. E, entre outros reflexões, o que se concluiu

foi que o adensamento populacional, ou seja, que o desenvolvimento do grande

edifício de apartamentos, ofereceria vantagens essenciais às cidades, sobretudo

no sentido de se viabilizar economicamente a moradia da classe operária.

Por outro lado, o que se propôs, tal qual Le Corbusier, foi a construção

de casas em série, ou seja, moradias racionalizadas, pré-fabricadas, de forma

análoga ao princípio dos produtos industrializados que desempenhavam o papel

de grande ícone da revolução industrial.

Porém, foram os edifícios institucionais, e não os habitacionais, que

primeiramente concretizaram na arquitetura os dogmas do modernismo. Assim,

os pavilhões de exposição, as estações ferroviárias, as pontes e monumentos,

como o Palácio de Cristal, a Torre Eiffel e a Galeria das Máquinas, que, entre

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outros, tiveram a habilidade de exemplificar o trunfo da arquitetura moderna

desde a passagem entre os séculos XIX e XX. Nesse sentido, essas edificações

e monumentos é que funcionaram como os grandes projetos simbólicos do

período.

A partir de então, a emergência de uma nova realidade arquitetônica, e o

desenvolvimento da indústria, passaram a influenciar cada vez mais experiências

práticas e teóricas, não só as de Le Corbusier, mas também, como no exemplo

anterior, as de Tony Garnier, idealizador da cidade industrial [Cité Industrielle

– 1909].

Impulsionada pela otimização nos métodos de produção, especialmente

pelas idéias de Henry Ford (1909), a economia no mundo capitalista foi

gradualmente conquistando espaço. Ford, por exemplo, ajudou a introduzir o

automóvel inclusive nas culturas populares, colaborando portanto, ainda que

gradualmente, para o desenvolvimento dos subúrbios descentralizados. Este

fator possibilitava, por sua vez, a baixa densidade da ocupação territorial e,

conseqüentemente, um passo em favor do anseio da sociedade pela residência

unifamiliar.

Por outro lado, a exploração de novos materiais, como o aço e o

concreto, possibilitaram o desenvolvimento de tipologias novas para os

espaços arquitetônicos, inclusive na forma de habitar. Em síntese, os elementos

arquitetônicos estandardizados, com sua estética formal inusitada, racional,

abriram, entre outros, a possibilidade de apropriação da iluminação natural e

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Figura 09 – Henry Ford e o Model TFonte: http://www.aaca.org/publications/rummagebox/2003/fall03/ford.jpg. Acessado em 12 mar. 2005.

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da aeração pela arquitetura. A máxima da racionalidade construtiva e projetual,

sobretudo em termos da estrutura independente, foi anunciada aos quatro cantos

através da célebre frase de Le Corbusier, a forma segue a função, pregando,

assim, o abandono dos adornos superficiais em detrimento da concentração

nas necessidades reais do homem moderno.

Esta analogia, porém, entre a ciência funcionalista e a arquitetura racional,

por vezes gerou manifestações arquitetônicas sem caráter estético, portanto,

fria e distante dos anseios do habitat ideal, ainda que a casa idealizada pela

vanguarda moderna tenha se tornado um dos símbolos da mudança estética

e social. Os modernistas lutaram para contribuir significativamente com o

desenvolvimento da nova sociedade, porém, com algumas exceções, ficaram

limitados a um círculo restrito de intelectuais, artistas e homens de negócios

burgueses que, conseqüentemente, não atingiram na plenitude os sistemas

sócio-econômicos populares.

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5.2 - A Casa Moderna

Neste trabalho, a análise das proposições de Le Corbusier para a habitação

ideal de seu tempo tem dois objetivos precisos. Em primeiro lugar, a idéia

é situá-las cronológica e tecnologicamente na história da arquitetura e, por

outro lado, a intenção é buscar elementos, subsídios teóricos, para a análise da

habitação contemporânea face às novas transformações tecnológicas, que será

delineada na segunda etapa da pesquisa.

Podemos citar três contribuições fundamentais da moderna vanguarda

arquitetônica à história da arquitetura. São elas: a idéia de conforto ambiental,

a experimentação de novos materiais e técnicas construtivas e, por fim, a

criação de um estilo arquitetônico revolucionário.

Conforto ambiental no sentido da ampla preocupação com aspectos

climáticos, entre os quais destacam-se a idéia geral de salubridade das

edificações através da incorporação da aeração e da insolação como elementos

projetuais; a liberdade de materiais e de métodos construtivos enquanto a

extrema proximidade dos arquitetos modernos em relação às tecnologias

emergentes, fato que possibilitou o rompimento com padrões estilísticos e

construtivos históricos; e estilo revolucionário como junção desses fatores

principais.

E, de maneira complementar, um dos principais feitos de Le Corbusier

foi integrar o legado clássico arquitetônico às novas tecnologias de seu tempo,

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interpretando, assim, os anseios da sociedade que emergia no início do século

XX. Além dele, arquitetos renomados à época, como Gropius, Mies, Neutra,

Wright, Lucio Costa, entre outros, adotaram também o pressuposto de que

vivia-se uma nova era, caracterizada principalmente pela proliferação das

máquinas e pelo intenso processo de urbanização.

Para eles, era unânime a convicção de que a sociedade não mais poderia

viver nos moldes anteriores à revolução industrial. Pelo contrário, estes

arquitetos buscavam estabelecer uma nova expressão da sociedade através da

moradia a ela idealizada, traduzindo, assim, através da arquitetura, toda uma

expressão epistemológica da sociedade industrial.

A divulgação e a proliferação das idéias destes arquitetos sobre o que

se denominou a casa ideal foi possível, entre outras circunstâncias, pelas

grandes exibições internacionais ocorridas nas décadas iniciais do século XX.

Entre elas, figuram as chamadas Exposições Internacionais, como a Exposição

Internacional de Artes Modernas e Industriais de Paris, de 1925; a Exposição

Weissenhofsiedlung Housing, em Stuttgart, 1926; a Exposição de Arquitetura

Moderna de Nova Iorque, em 1932; a Progress Century em Chicago, 1933; e a

Futurama (Feira do Mundo), também em Nova Iorque, em 1939.

Por outro lado, fatores como a disponibilidade de bens produzidos em

grande escala, novos meios de transporte, experimentação nas artes plásticas

[exemplificada pelos alcances do cubismo], e o amadurecimento das teorias

científicas, influenciavam, em conjunto e ainda que indiretamente, também os

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projetos arquitetônicos da casa moderna.

Também os conceitos de racionalização e de padronização foram rapidamente

exportados do campo do capitalismo industrial para a arquitetura que, embora

inicialmente contestasse tal concepção econômica liberal, posteriormente se viu

deslumbrada pelo novo cenário de produtos estandardizados. Assim, através

de mecanismos projetuais, a vanguarda arquitetônica do período procurou

colocar-se em sintonia com os processos produtivos vigentes em sua época, o

que tornou a casa produzida em grande escala, tal qual um automóvel ou uma

geladeira, um dos grandes desafios para os arquitetos modernos.

Economicamente, os cidadãos de classe média passaram a participar

ativamente do cenário cultural industrial, e a eles é que se direcionaram os

pressupostos, inclusive estilísticos, da nova arquitetura. De saída, portanto,

foi configurado certo problema de identidade, e de aceitação, por parte das

camadas mais pobres da sociedade, o que equivale a dizer que, embora o

modernismo arquitetônico tenha sido imposto às classes menos favorecidas

economicamente, suas referências culturais eram as da classe média intelectual.

Como exemplo, vale destacar que os projetos residenciais de Le Corbusier

tiveram como clientes cientistas, engenheiros, intelectuais, enfim, membros da

classe social ávida por se firmar culturalmente.

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5.3 - Le Corbusier e a evolução do pensamento purista.

Charles Edouard Jeanneret, conhecido desde 1923 pelo pseudônimo de

Le Corbusier, nasceu em La Chaux-de-Fonds, na Suíça, em 1987, e entrou para

a história como o arquiteto que mais influenciou o urbanismo, a arquitetura e

os embates teóricos destas disciplinas ao longo de todo o século XX.

Seu desempenho, neste sentido, superou o de outros importantes arquitetos de

sua época, principalmente pela consistência das publicações e projetos de Le

Corbusier, sempre orientados por sedutores e inovadores conceitos teóricos.

Para ele, a arquitetura poderia simplesmente ser entendida como

o “o jogo sábio, correto e magnífico de volumes aglomerados sob a luz”

(CORBUSIER, 1923), formulação que demonstra sua preocupação não só com

a racionalidade projetual, mas também com a forma, com a linguagem e a

estética arquitetônicas.

Sua preocupação constante foi com a apropriação plena dos elementos

tecnológicos pela arquitetura, o que tornou recorrente em suas publicações a

referência ao trabalho de engenheiros. Para ele, a visão e a compreensão desses

profissionais em relação às potencialidades de sua época havia antecedido a

dos arquitetos, fato que Corbusier demonstrava em seus trabalhos, muitas

vezes até de forma provocativa, através de ilustrações de aviões, navios e leis

produzidos eficientemente pelo intermédio dos engenheiros.

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Além disso, como já mencionado anteriormente nesse trabalho, era o

ideal do homem novo que fundamentava as teorias não só da arquitetura, mas

de toda a vanguarda moderna. Nascido das transformações sociais, políticas e

produtivas da revolução industrial, esse homem se viu aglomerado em cidades

e desvinculado do urbanismo e da arquitetura de seu entorno, sobretudo no

que diz respeito à forma de habitar. A esse respeito, Josep Maria Montaner,

importante crítico do Modernismo, discorre:

O Movimento Moderno, impulsionado por uma visão positiva e psicológica ao mesmo tempo, pensa a arquitetura em função de um homem ideal, puro, perfeito, genético, total. Um homem ético e moralmente completo, de costumes puritanos, de uma funcionalidade espartana, capaz de viver em espaços totalmente racionalizados, perfeitos, transparentes, configurados segundo formas simples. O modulor de Le Corbusier (1942) constituiria uma explicação tardia deste usuário idealizado. Segundo Le Corbusier, todos os homens tem o mesmo organismo, as mesmas funções e necessidades. (MONTANER, 2001 p. 18).

A afirmativa de Montaner sobre o significado do Modulor é, contudo,

discutível. Principalmente porque as proposições contidas em sua conceituação,

assim como em todo o ideário de Le Corbusier, não colocaram explicitamente tal

análise simplista e, de certa forma inclusive fascista, sobre a visão de mundo do

ideário moderno. Ao contrário, as propostas Corbusierianas estão muito mais

ligadas a estandardização dos métodos construtivos e à metodologia projetual,

e o próprio Modulor deve ser entendido como uma ferramenta de projeto,

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como destacava Le Corbusier, universal. Esta metodologia, portanto, poderia

ser empregada também por outros arquitetos, de maneira a estabelecer, através

da proporção áurea, certos parâmetros ergonômicos, matemáticos e sobretudo

arquitetônicos para o desenvolvimento do projeto.

Após o término dos estudos no curso de artes e ofícios, em 1913, Le

Corbusier abre seu escritório em La Chaux-de Fonds. A partir de então, em

companhia de seu amigo engenheiro, Max du Bois, começam, entre

outros, os estudos que levariam a conceitos muito interessantes

como a “Maison Dom-Ino”, que de certa forma se tornaria a base

conceitual para seus projetos residenciais posteriores.

Em outubro de 1916, Corbusier muda-se definitivamente

para Paris e conhece, através de Auguste Perret, o pintor Amédée

Ozenfant. Com ele, Corbusier desenvolveria a chamada estética

mecânica do purismo que, baseada na filosofia neoplatônica,

abrangia todas as disciplinas das artes plásticas, da pintura, do

design de produtos, passando inclusive pela arquitetura.

A divulgação plena dessas teorias estéticas ocorreu com

a publicação, em 1920, de seu artigo Le Purisme, junto à quarta edição da

revista de L’Espirit Nouveau. Essa publicação, que atingiu 28 edições, se tornou

o grande instrumento de difusão das idéias de Le Corbusier, já que os artigos

nela publicados tornaram-se a base de suas publicações posteriores, como em

sua primeira obra teórica, Vers une Architecture, publicada em 1923.

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Figura 10 – Maison Dom-ino.Fonte: http://www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em 25 abr. 2005.

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Considerado ainda em nossos dias como uma das mais significativas

referências teóricas sobre a arquitetura moderna, este primeiro livro de Le

Corbusier foi buscar no classicismo antigo a elaboração de paradigmas

arquitetônicos, já que, segundo o autor, a arquitetura antiga teria elaborado,

com sua lógica racional, um modelo estandardizado da arquitetura, cujo

equivalente Corbusier buscava na idade da máquina. Lançado em 1923, Vers

une architecture foi quem trouxe renome internacional a Le Corbusier, e é

também, segundo o importante historiador da arquitetura moderna, Kenneth

Frampton (1997), provavelmente a mais influente obra literária da arquitetura

moderna. Conforme Frampton (1997, p.223):

Esse texto – que, em forma de livro, teve seu crédito apropriado por Le Corbusier – articulava o dualismo conceitual em torno do qual sua obra viria a desenvolver-se: “por um lado, a necessidade imperiosa de atender às exigências funcionais através da forma empírica, e, por outro, o impulso de usar elementos abstratos de modo a atingir os sentidos e nutrir o intelecto.

Reyner Banham (1960, p.333/334) relata em Teoria e Projeto na

Primeira Era da Máquina, as três características importantes dos novos

tempos, sob o ponto de vista dos puristas:

Economia: O passo da presente civilização seu futuro, seu caráter, dependem de descobertas esperadas, de novas fórmulas que provoquem

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 11– Vers Une Architecture.Fonte: www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htm.Acessado em 10 fev. 2005.

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mecanismos cada vez mais econômicos, que nos permitam usar a energia de maneiras mais eficientes, dando assim a nossas potencialidades, e conseqüentemente a nossas mentes, uma liberdade superior e ambições mais elevadas;A separação de técnica e estética: A mecanização desviou de nossas mãos todo trabalho de exatidão e qualidade, e delegou-o à máquina. Nossa situação fica, assim, mais clara: de um lado, o conhecimento do outro, a questão plástica permanece intocada. (...) A mecanização, tendo resolvido os problemas da tecnologia, deixa intacto o problema da arte. Recusar-se a reconhecer o passo que foi dado é impedir o progresso da arte em direção a seus fins mais puros e adequados;A predominância da geometria simples: Se vamos trabalhar internamente... o escritório é quadrado, a escrivaninha é quadrada e cúbica, e tudo sobre ela forma ângulos retos (o papel, os envelopes, as cestas de correspondências com sua tela ondulada geométrica, os arquivos, as pastas, os fichários etc.) ... as horas de nossos dias são gastas em meio a um espetáculo geométrico, nossos olhos sujeitam-se constantemente a formas que são quase só geometria.

Estes conceitos do chamado “purismo”, marcaram definitivamente todo

pensamento de Le Corbusier durante, ao menos, os vinte anos subseqüentes

de sua trajetória profissional. Nos seus primeiros anos em Paris, ele produziu

muitas pinturas e textos, as quais tiveram fundamental contribuição ao

seu amadurecimento como arquiteto e teórico da arquitetura. Além dessas

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atividades, Le Corbusier trabalhou ainda em uma fábrica de tijolos e de

materiais de construção até que seu primo, Pierre Jeanneret, em 1922, o

convidou à sociedade em um escritório, onde ele pode retomar suas idéias

sobre metodologias construtivas da conhecida casa “Dom-Ino”.

Nela, são bem nítidas a concepção e conotação ideológica de Le Corbusier

sobre a casa estandardizada, em que se destaca a defesa da racionalização dos

métodos construtivos. Em suma, a idéia principal era que a estrutura de pilares

e vigas propiciasse a livre conformação de volumes e plantas, tal qual em um

jogo de dominó. Com isso, pode-se dizer que estava lançado o conceito da

máquina de morar.

A concretização de seus conceitos, contudo, ocorreu primeiramente na

Maison Citrohan, apresentada por Le Corbusier em 1922, durante o denominado

Salon d’Automne, em Paris. De fato, esta casa parece antecipar, pela presença dos

pilotis, da cobertura plana e pela racionalização das aberturas e fechamentos, a

idéia dos cinco pontos da nova arquitetura, que viria a ser apresentada apenas

em 1926. O próprio nome Citrohan teria sido uma brincadeira, se não uma

provocação, na medida em que remetia à marca de uma indústria francesa de

automóveis produzidos em série. Assim, a idéia era de uma casa estandardizada,

um bem que pudesse ser fabricado repetidamente.

Neste momento, Le Corbusier (1923) enfatizava: “Quando uma época

possui a planta de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe

um equilíbrio. Não chegamos a esse ponto”. Assim, o conceito da “Casa Dom-

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Figura 12 – Maison Citrohan.Fonte: http://www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htmAcessado em 10 abr. 2005.

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Ino”, e de seu protótipo, a Casa Citrohan, traduziam a explícita e incessante

busca de Le Corbusier pelo equilíbrio entre a sociedade e a habitação, entre

os novos costumes e suas espacializações sociais. Em síntese, segundo Le

Corbusier: “A vida moderna pede, espera uma nova planta, para a casa e para

a cidade. (CORBUSIER, 1923).

A partir do conceito dos cinco pontos essenciais da nova arquitetura -

Les 5 points d ‘une architecture novelle – Le Corbusier desenvolve uma série

de casas entre os anos de 1926 a 1930, entre elas a Maison Cook, a Ville

Meyer, a Ville Garches e a Ville Savoye. Todas estas casas eram baseadas

em uma sintaxe bem definida, obedecendo, portanto, aos tais cinco pontos

arquitetônicos: estrutura principal elevada sobre pilotis; planta livre obtida

pela separação entre os elementos estruturais e as vedações internas; fachada

livre, resultante, no plano vertical, dos conceitos usados em planta; janelas

longas e horizontais que permitiam a inter-relação entre o externo e o interno;

e o conceito da laje jardim, que supostamente compensava o terreno ocupado

pela construção e o reproduzia na cobertura.

Em 1927, Le Cobusier amplia seus horizontes com o projeto que

desenvolveu para o concurso internacional da sede da Liga das Nações, em

Genebra, quando criou seu primeiro projeto para uma grande estrutura pública.

Segundo Frampton (1997), baseando-se na comparação entre a arquitetura e

a pintura produzida por Le Corbusier neste período, o projeto representa o

clímax e o momento de crise da primeira fase da carreira do suíço, e, assim, o

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apogeu e o início do declínio de seu período purista.

Para Frampton (1997), o projeto para a Liga das Nações denotou uma certa

inflexão na obra de Le Corbusier, não só do ponto de vista plástico mas também

ideológico, principalmente pela introdução da idéia de monumentalidade, que

irá questionar todo o engajamento socialista presente em sua arquitetura

até então. Esta mudança pode ser observada também ao compararmos seus

projetos urbanos para a cidade da era da máquina. Assim, confrontando suas

idéias para a Ville Contemporaine, de 1922, e a Ville Radieuse, de 1930, notam-

se mudanças significativas, sobretudo em relação ao abandono da idéia de

um modelo urbano centralizado e a conseqüente concepção linear de cidade,

dividida em usos, em zonas específicas.

Ao longo da década de 30, a idéia de monumentalidade foi marcante

na obra de Corbusier, embora ele não tivesse abandonado a intenção de “re-

inventar” as formas de habitar da sociedade da máquina, sempre tendo como

elemento referencial a comparação entre a estética do engenheiro e a do

arquiteto. Nesse sentido, Corbusier pregava que o arquiteto deveria refletir

sobre os contornos da forma, de maneira a diferenciar-se pela ergonomia em

relação à estética do engenheiro. Assim, Le Corbusier continuou a pregar que

a indústria deveria, com sua elevada capacidade de produção em série, alterar

definitivamente as técnicas e as metodologias das construções.

Neste período é possível identificar a coesão entre a prática e seu discurso

teórico, sobretudo através do exame dos apartamentos do edifício Clarté, em

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Figura 13 – Le Corbusier e a Ville Radieuse. Fonte: http://www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em 20 abr. 2005.

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Genebra, do Pavillon Suisse na Cité Universitaire, do Edifício do Exército da

Salvação e de seus apartamentos da Porte Molitor. Nesses trabalhos, identifica-

se a fachada modular do tipo panverre, em vidro e aço, que correspondia à

busca pela estética estandardizada da era da máquina.

Contudo, sobre o período da década de 1930, Frampton (1997) afirma que

Le Corbusier começava a perder a fé no inevitável triunfo da era da máquina:

Pouco depois de 1933, começou a reagir contra a produção racionalizada da machine à habiter, embora não se saiba ao certo se o terá feito por desilusão com a técnica moderna enquanto tal ou por desespero diante de um mundo arrebentado pela depressão econômica e pela reação política. (FRAMPTON, 1997, p.221).

A partir de então, sua obra parece ter-se deslocado definitivamente para

uma arquitetura mais solta, mais distante das doutrinas de sua primeira fase

purista. Começam-se a esboçar em suas criações expressões formais mais

livres, e técnicas primitivas, outrora completamente abandonadas, voltam à

pauta de seus projetos. Tal inflexão é delineada primeiramente na Casa Errazuriz

(1930), em que foram empregados materiais como a madeira, a pedra e o

telhado, e posteriormente também no Pavillon dês Temps (1937).

Nestas obras, contudo, apesar das alusões ao vernáculo e da sensibilidade

em relação ao contexto paisagístico e local, pode-se ainda identificar claramente

a preocupação com a exploração das tecnologias avançadas, como o uso do

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Figura 14 – Pavillon Suisse na Cité Universitaire. Fonte: http://www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em 20 abr. 2005.

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concreto armado, dos painéis de vidro e dos cabos de aço como elementos

estruturais.

Esta nova junção entre os elementos técnicos avançados e o vernáculo, se

estenderia, então, a toda a trajetória de Le Corbusier. Seus exemplos clássicos

são a Capela Ronchamp (1950) e o mosteiro dominicano de La Tourette

(1960), em que Corbusier recorre à uma espécie de bricolage, de justaposição

entre materiais aparentemente contrastantes, o que se tornaria característica

fundamental de seu estilo a partir de então.

Apesar da consistência projetual, desde esse momento em diante a

obra de Corbusier perderia a unidade, o amparo dos preceitos da vanguarda

moderna, e seguiria, então, caminhos diversificados, por vezes incongruentes.

Vale, portanto, comparar as criações de Ronchamp e de Chandigarh, em que

Corbusier deixa de lado as doutrinas teóricas da década de 1920, e a arquitetura

brutalista, baseada na extrema funcionalidade, racionalidade e nas implicações

do Modulor, a exemplo da Unite d’ Habitation em Marselha de 1947-1952.

Tal dualismo estético e conceitual na obra de Le Corbusier culmina com

a criação de Chandigarh, na Índia, onde os elementos plásticos se apresentam

de forma exuberante, icônica, formalmente comprometidos com a estética do

lugar, não universal. A idéia era afirmar, explicitar através da arquitetura, a

apropriação das tecnologias emergentes de modo a transmitir a imagem de

modernidade e prosperidade, um formalismo que se contrapunha ao brutalismo,

ao uso do concreto armado enquanto estrutura e acabamento.

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Figura 15 – Chapelle Notre Dame du Haut. Fonte: http://www.fondationlecorbusier.asso.fr/fondationlc.htm. Acessado em 10 mar. 2005.

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Esta aparente incongruência presente na obra de Le Corbusier após

a década de 1930, é o que efetivamente demonstra sua preocupação com

a dinâmica das questões políticas, sociais e culturais, que precisam ser

repensadas constantemente, tendo-se, contudo certas bases projetuais de que

um idealizador jamais deve se desvencilhar.

É na primeira fase de seu ideário, contudo, que este trabalho pretende

fundamentar-se para refletir sobre a moradia ideal para sociedade da máquina,

já que nele é que floresceram as idéias de Le Corbusier sobre o que denominou

de a máquina de morar. O objetivo, portanto, é contrapor o presente, a era

informacional, às concepções teóricas iniciais de Le Corbusier.

5.4 - A importância do legado Corbusieriano

Da mesma forma que o cubismo transformou os conceitos de arte ao

tornar a pintura um objeto artístico não só por sua carga simbólica, mas também

por sua própria condição material, Le Corbusier também procurou transformar

a arquitetura em um modo de expressão social, deslocando-a de seu caráter

puramente figurativo. Assim, ao afirmar a casa como uma “máquina de morar”,

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a intenção de Corbusier não era equiparar a arquitetura à ciência ou à indústria,

mas, ao contrário, adotá-las como modelo para uma arquitetura que deveria

emocionar pela eficácia, pelos condicionantes inerentes à sua realização.

“Porém, a analogia feita por Le Corbusier entre um edifício e uma máquina

era mais do que uma metáfora poética; era fundamentada na suposição de uma

identidade ontológica entre ciência e arte”. (COLQUHOUN, 2004, p.161/162).

Como se a arquitetura e a ciência de certa forma tivessem a mesma natureza,

e por isso, deveriam dialogar incessantemente, de modo que a técnica deveria

sempre servir de base às suposições artísticas e intelectuais. Arquitetura,

tecnologia, o real e a representação deveriam, portanto, corresponder à mesma

finalidade.A arquitetura, como uma arte, não mais possuía a tarefa de criar significados por meio de signos incorporados às superfícies dos edifícios. O significado da arquitetura agora era imanente às puras formas que a nova tecnologia possibilitava. (COLQUHOUN, 2004, p.161/162).

Com esta afirmação de Colquhoun, pode-se entender a arquitetura,

segundo o discurso de Le Corbusier, como disciplina inerente à ciência e à

tecnologia emergentes da revolução industrial, onde a idéia do adorno não

mais fazia sentido para um mundo de base epistemológica completamente

diferente do mundo vitoriano ou clássico. A arquitetura deveria, então, retratar

a nova sociedade de sua época.

O discurso Corbusieriano do período entre guerras, publicado nos artigos

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de L´Espirit Nouveau, oscilou constantemente entre dois pólos aparentemente

dicotômicos: o pensamento clássico do século XVII e o ideário, em certa medida

Marxista, que amparava os preceitos da vanguarda moderna. Assim, acreditava-

se que a tecnologia representava ao mesmo tempo um meio construtivo e uma

forma de expressividade artística.

Foi, assim, através da analogia entre o engenheiro e o arquiteto, que

Le Corbusier delineou seu ideário nas publicações da época. As diferenças

entre eles, acreditava Corbusier, restringiam-se à metodologia projetual,

o que o incentivou a adotar o discurso comparativo para defender a união

entre a arquitetura e a tecnologia, e o arquiteto enquanto profissional apto a

transformar técnica em arte.

Pode-se dizer até que a relação entre a expressão criativa e o mundo

tecnocrático, objetivo e racional, permaneceu constante em toda a obra de

Corbusier. Assim, para ele a tecnologia desempenhava papel determinante

enquanto condição de liberdade artística, mas, ao mesmo tempo, cada vez

mais distante das utopias sociais por se colocar à disposição de políticas

autoritárias.

Com relação às influências classicistas, Le Corbusier as expõe

sistematicamente na obra Vers une Architecture (1923) através dos três

parâmetros projetuais: volume, superfície e planta. Segundo ele: é o volume

que estabelece a experiência dos sólidos sobre a luz; a superfície que limita o

volume; e a representação das plantas que constitui a disposição das funções

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na arquitetura.

Podemos dizer que as casas da década de 1920 de Le Corbusier são

coerentes com seu discurso teórico. Nelas, e nos artigos de L´Espirit Nouveau,

Corbusier estabelece os fundamentos de sua estética arquitetônica, o que

transforma as residências que concebeu para a classe média intelectual em

laboratório experimental de seu ideário. Foi através delas que se desenvolveram

os conceitos das casas em série, da arquitetura modular, com custos reduzidos,

e os subsídios às posteriores Unidades de Habitação multifamiliares e

multifuncionais.

É importante salientar, contudo, que Le Corbusier não defendia a

padronização integral da habitação à exemplo dos alemães do movimento

moderno e da Bauhaus. Em sua análise, ela deveria restringir-se a elementos

específicos, estandardizados, restritos ao domínio da arquitetura.

Ainda assim, o elo entre a arquitetura e as técnicas industriais perde força,

para Le Corbusier, quando ele parece perceber o desinteresse dos governos ou

dos industriais pela produção de conjuntos habitacionais. Aos poucos, portanto,

sua obra parece abandonar o racionalismo platônico, presente até meados da

década de 30, e a retomar os ideais vitalistas e regionalistas de seu começo

profissional na cidade natal La Chaux-de-Fonds.

Este movimento de inflexão pode ser exemplificado com as casas que

criou no Chile, em 1930 (Residência Errazuriz), e com a Ville Le Sexttant,

em Mathes, 1935, onde parece se aproximar das influências vernáculas e se

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distanciar dos dogmas modernistas.

Há uma tentativa – em Cap. Martin, Ronchamp, La Tourette, e nos edifícios em Chandigarh e Ahmedabad, na Índia – de desenvolver idéias a partir de uma tradição “mediterrânea” generalizada, de tipologias antigas ou mitológicas, ou simplesmente do genius loci. (COLQUHOUN, 2004, p.175).

Com os artigos de L´Espirit Nouveau e as experiências das casas da

década de 1920, Le Corbusier tomava como referência estilística e conceitual os

sistemas proporcionais e de superfícies reguladoras, mas, a partir da publicação

de O Modulor, sua obra adquiriu a regularidade matemática subjacente às

formas. Este, que margeou toda obra de Le Corbusier, parece ter sido também

sua maior experiência teórica.

Assim, o que se depreende de seu ideário é a intenção de adotar na

arquitetura o pensamento lógico, racional e disciplinador, enfim, de estabelecer,

seja através da proporção áurea, da dicotomia entre moderno e clássico, um

controle projetual tão rígido quanto os empregados por Alberti ou Palladio.

Desta forma, acreditava ele, é que se poderia criar uma arquitetura singular,

integrada à nova sociedade no contexto das tecnologias mecânicas do século

XX.A matemática é o magistral edifício imaginado pelo homem para compreender o Universo. Nela encontra-se o absoluto e o infinito, o apreensível e o não apreensível, e está rodeada de altos muros

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diante dos quais pode-se passar e de novo passar sem proveito nenhum. Neles às vezes abres-se uma porta, entra-se e aí se está no lugar onde se encontram os deuses e as chaves dos grandes sistemas. Estas portas são as portas dos milagres, e franqueada uma delas, já não é o homem que atua, porém o Universo que se manifesta e diante dele desenrolam-se os prodigiosos tecidos das combinações sem limites. Estais no país dos números. Deixai-vos permanecer nele, maravilhados diante de tanta luz intensamente espalhada. (CORBUSIER, 1953, p. 69).

Segundo Jonh Summerson (1994, p. 116):

[...] nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial Le Corbusier criou o sistema que se chamou “Modulor”. Modulor é uma palavra composta a partir de module, ou seja, unidade de medida, e section d´or ou secção de ouro: a divisão de uma reta de tal modo que o segmento menor está para o maior assim como o segmento maior está para o todo. O Modulor é um sistema de proporcionamento do espaço arquitetônico baseado neste critério geométrico, e oferece toda uma gama de dimensões. As dimensões medianas relacionadas com o corpo humano; as dimensões extremas aplicam-se, por um lado, aos detalhes diminutos dos instrumentos de precisão e, por outro lado, à escala dos grandes projetos de planejamento.

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O Modulor tinha como subtítulo “Ensaios sobre uma medida harmônica

à escala humana e aplicável universalmente à Arquitetura e à Mecânica”. Le

Corbusier pretendia, assim, e de forma extremamente ambiciosa, estabelecer

parâmetros universais para a prática da arquitetura através de ensaios

geométricos, de exemplos matemáticos.

No entanto, Summerson questiona se realmente O Modulor seria um

dogma a ser aplicado por outros arquitetos ou, ao contrário, uma metodologia

de caráter pessoal: Na minha opinião, a verdadeira razão de ser desses sistemas é que aqueles que os utilizam (e que são, em geral, os próprios autores) necessitam deles: existem mentes muito férteis e criativas que necessitam da disciplina dura e inexorável de tais sistemas para corrigir e, ao mesmo tempo, estimular sua inventividade. O destino desses sistemas parece confirmar isto - em geral, não sobrevivem a seus usuários e o próximo indivíduo de gênio inventa seu próprio sistema. (SUMMERSON, 1994, p.116).

O fato é que o Modulor colocou em discussão um conceito bastante debatido

e universal: a questão da padronização de medidas e de proporções. A esse

respeito, Corbusier identificava na Revolução Francesa o início do processo de

modernização dos até então complicados cálculos de pés e polegadas. Naquela

época, portanto, a criação de uma unidade de medida despersonalizada e

abstrata, o metro, que é em definição a décima milionésima parte do quadrante

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do meridiano terrestre, correspondia ao triunfo da crença laica em poder

conquistar o mundo através da ciência e do cálculo.

Ainda assim, Le Corbusier identificava certa carência de medida, ou de

sistema proporcional, que correspondesse aos anseios mundiais por racionalidade,

simplicidade na ordenação do cálculo e por adequação à escala humana. Por

outro lado, desde o início do século XX observava nas obras de arquitetura o

que viria a denominar de “o ângulo reto dirigindo a composição”.

Posteriormente, durante os anos da ocupação da França durante a

Segunda Guerra Mundial, Corbusier foi convidado a integrar o AFNOR, órgão

encarregado de auxiliar a reconstrução do país, juntamente com industriais,

engenheiros e arquitetos. Sobre os anseios daquele grupo, ele proferiu:

O AFNOR propõe normatizar os objetos das construções e seu método é simplista: simples aritmética aplicada aos usos e utensílios dos arquitetos, engenheiros e industriais. Parece-me arbitrário e pobre. As árvores, por exemplo, com seu tronco, seus ramos, suas folhas e nervuras, me afirmam que as leis de crescimento e combinação podem e devem ser mais ricas e sutis. Um laço geométrico tem de intervir nestas coisas e sonho instalar nas obras que mais tarde cobrirão o país, um enredado de proporções traçado sobre o muro ou apoiado nele, feito com ferros laminados e soldados, que será a regra da obra, o modelo que inicia a série ilimitada das combinações e das proporções. O pedreiro, o carpinteiro e o serralheiro irão ai escolher as medidas para seus trabalhos, os

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quais, diversos e diferenciados, serão testemunhos da harmonia. Tal é o meu sonho. (CORBUSIER, 1953, p.34).

Em 1943, Le Corbusier propõe a seu assistente Hanning a seguinte

tarefa:

[...] tome um homem com o braço levantado com 2,20 metros de altura, inscreva-o em dois quadrados superpostos de 1,10 metros, coloque-o a cavalo sobre os dois quadrados e um terceiro quadrado resultante lhe dará uma solução. O lugar do ângulo reto deve poder ajudá-lo a colocar o terceiro quadrado. Com este entedado, regido por um homem instalado no seu interior, estou seguro que chegará a uma série de medidas que poderão colocar de acordo a estatura humana (o braço levantado) e a Matemática. (CORBUSIER, 1953, p.35).

Estas poucas linhas continham o cerne do que se transformaria no

Modulor, embora naquele momento correspondessem ainda a simples intuição.

Em sua primeira versão, o estudo teve como base a estatura média do homem

francês, 1,75 metros, de onde Corbusier definiu:

[...] o Modulor é um aparato de medida fundamentado na estatura humana e na matemática. Um homem com o braço levantado dá os pontos determinantes de ocupação do espaço: o pé, o plexo solar, a

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cabeça e a ponta dos dedos com o braço levantado – três intervalos que definem uma série de secções áureas de Fibonacci: e ainda por outra parte, a matemática, que oferece a variação mais imediata e significativa de um valor: o simples, o dobro e as duas secções áureas. (CORBUSIER, 1953, p. 52).

Essa regra de proporções2 combina-se, assim, através do ponto das duas

séries de segmentos áureos, que ele chamou de “vermelha” e “azul”, com

a estatura humana nos seus principais pontos de ocupação do espaço. Num

momento posterior, a altura padrão do homem foi retificada para seis pés, ou

cerca de 1,83 metros, a estatura média do homem inglês.

O que Le Corbusier almejava era contribuir para a normatização e a

posterior estandardização da arquitetura seriada, racional e eficiente, enfim,

a arquitetura dos elementos pré-fabricados. Mas, por outro lado, objetivava

também evitar o empobrecimento formal derivado da estandardização.

Quando Le Corbusier elege a proporção áurea como estruturadora das

relações entre medidas na arquitetura, sua preocupação é a de acoplar a

referência humana ao traçado de suas próprias obras, em muito guiadas pela

geometria. Neste sentido, Summerson escreve que Le Corbusier defendia

o Modulor como um sistema que, se amplamente adotado, equacionaria

a tentativa da padronização na indústria, embora, em sua visão, o Modulor

tivesse contribuído especialmente para os projetos do próprio Corbusier.

Estou inclinado a pensar que, como em outras

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Figura 16 - Modulor Ilustração. Fonte: http://falcon.jmu.eduAcessado em 26 mar. 2005.

2Esse assunto começou há cerca de 2.500 anos, com a busca do modo mais harmonioso e simétrico de dividir um segmento em duas partes. Seria pelo seu ponto médio? A questão preocupou Euclides (330-275 a.C.), o matemático grego autor de Os Elementos, obra fundamental da geometria. O resultado dessa misteriosa divisão, simbolizado pela letra grega f (lê-se “fi”) é sempre 1,618034...,que ficou conhecido como razão áurea. A proporção associada a ela foi também estudada pelo monge Luca Pacioli, de Veneza, no livro De Divina Proportione (Sobre a proporção divina), de 1509. Durante séculos, a secção áurea foi usada por pintores e arquitetos. Hoje sabemos que f regula também a espiral que aparece na natureza, como na margarida, no girassol, na concha do molusco náutilo. A espiral fornece

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situações semelhantes, a importância real do Modulor está em que ele é parte da aparelhagem mental de seu autor e lhe permite realizar projetos tão originais como a capela Ronchamp – um edifício de forma tão livre que chega a ser quase uma escultura abstrata – seguro de seu completo domínio dos procedimentos racionais. (SUMMERSON, 1994, p.117).

Assim, destaca-se a extrema simplicidade operacional do Modulor, em que

quadrado, duplo quadrado e secções áureas, se fundem no sistema de razões

geométricas e numéricas. Neste sentido, Albert Einstein teria comentado que

o sistema de Corbusier se tratava da “escala de proporções que torna o mau

difícil e o bom fácil”. (CORBUSIER,1953, p. 55), receptividade favorável também

compartilhada por matemáticos, engenheiros e arquitetos de sua época, tanto

pertencentes do universo acadêmico quanto profissional.

Com o passar dos anos, contudo, o interesse em torno do Modulor

perdeu força, e até o próprio Corbusier parece ter colocado em segundo plano

sua obsessão pelo uso sistemático dos conceitos estabelecidos pelo princípio

matemático e geométrico que criou.

Por outro lado, a questão da moradia era também apontada por Corbusier

como essencial ao equilíbrio de sua época. A sociedade, segundo ele, clamava

pela habitação que traduzisse os novos costumes sociais através da arquitetura,

ou seja, em suas palavras, “[...] quando uma época possui a planta de uma

habitação é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio. Não

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o padrão matemático para o princípio biológico que regula o crescimento da concha: o tamanho aumenta, mas o formato não se altera. A seqüência 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, ..., correspondente aos lados dos quadrados que montam esssa espiral, é a mesma que o matemático italiano Fibonacci (1180-1250), em seu livro Liber Abbaci, de 1202, calculou para o crescimento das populações de coelhos a partir de um casal. Em 1753, o escocês Robert Simson descobriu que dividindo-se esses números pelos seus antecessores obtém-se uma seqüência de frações que se aproxima de f. Já está demonstrado que f é o mais mal-aproximado por frações dos números irracionais. O incrível é que a natur 13/eureca.htm)

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chegamos a esse ponto”. (CORBUSIER, 2002, p. XXV).

Tal ponto de equilíbrio parecia a ele não se referenciar apenas à tradução

espacial e estética da morada ideal, mas também à coerência com que tais

edificações deveriam ser construídas. Em Por Uma Arquitetura, Corbusier

observou: “[...] a arquitetura tem como primeiro dever em uma época de

renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos

da casa” (CORBUSIER, 2002, p.159).

A casa em série almejada por Le Corbusier integrava a idéia da máquina

de morar, por sua intensamente análoga à produção dos bens industrializados,

como um automóvel, um avião ou um navio. Uma casa que pudesse atender

não só os anseios da família moderna, mas também os implacáveis interesses

da indústria e do mercado de capital.

A série está baseada sobre a análise e a experimentação.A grande indústria deve se ocupar da construção e estabelecer em série os elementos da casa.É preciso criar o estado de espírito da série.O estado de espírito para construir em série.O estado de espírito de residir em casas em série.O estado de espírito de conceber casas em série. (CORBUSIER, 2002, p.159).

Porém, Corbusier alerta que a casa em série deva ser como uma casa instrumento, bela pela estética dos instrumentos de trabalho da era industrial mecânica. O arquiteto deveria se apropriar das possibilidades da construção

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em série com toda a expressão que o sentido artístico pode conferir, ou seja, a estandardização deveria estar nos elementos de composição construtiva e não na padronização por completo, criando modelos idênticos para serem vendidos conforme o terreno e o tamanho da família. A possibilidade de casas pré-fabricadas combinadas com o arranjo idealizado por Le Corbusier das casas “Dom-Ino” poderiam estabelecer uma emoção tectônica inusitada. Os conceitos da Casa “Dom-Ino” extraída, tal qual o modulor da matemática com a definição dos “MINÒS, tal qual fez posteriormente Solomon W. Golomb, com a teoria dos

poliminós”3.

Assim, vale destacar a extrema coerência e entrelaçamento entre os

elementos do ideário Cobusieriano. O Modulor pretendia estabelecer critérios

que facilitassem a racionalização da Casa em Série, que funcionava como uma

das premissas para a concretização da Máquina de Morar, que tem a Maison

Dom-Ino como possibilidade compositiva arquitetônica. Ou seja, embora

freqüentemente estudados de maneira isolada, esses conceitos só se tornam

plenos se entendidos como parte de um conjunto de conceitos extremamente

coerentes entre si.

Tal observação é válida sobretudo quando estudamos a obra de Le Corbusier

até meados dos anos trinta, quando ele ainda acreditava, ou pelo menos queria

fazer acreditar, que a arquitetura era fundamental para a efetivação de uma

nova sociedade.

Assim, a casa em série se inseria nas buscas do pós-guerra por uma

construção barata, rápida, capaz de reconstruir a Europa.

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3 No ano de 1954 (posterior ao conceito idealizado por Corbusier da Maison Domino) Solomon W. Golomb, um jovem estudante de engenharia, de 22 anos, publicou na prestigiosa revista American Mathematical Monthy um artigo intitulado “Tabuleiro de Xadrez e Poliminós”. Este poderia ter sido mis um daqueles intricados e enfadonhos artigos de matemática que mofariam nas páginas de revistas sem despertar maior interesse para as gerações futuras, Entretanto quando em 1957 Martin Gardner dedicou um artigo sobre a invenção de Golomb, os poliminós tornaram-se tão populares que os aficionados em desvendar seus desafios formaram grupos internacionais, gerando congressos, publicações

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Num piscar de olhos, se nascesse o estado de espírito da série, tudo seria preparado rapidamente, com efeito, em todos os ramos da construção, a indústria, potente como uma força natural, exuberante como um rio que rola para seu destino, tende cada vez mais a transformar os materiais brutos naturais e a produzir o que se chama materiais novos. (CORBUSIER, 2002, p.161).

Segundo ele, a indústria, o concreto e o ferro, o cálculo e a inteligência

criativa do arquiteto, tinham efetivamente transformado as organizações

construtivas. A arquitetura estava livre das tradições superficiais do passado, os

métodos de construção tinham sido revolucionados, e “[...] a sociedade deseja

fortemente uma coisa que ela obterá ou não. Tudo está aí, tudo depende do

esforço que se fará e da atenção que se concederá a esses sintomas alarmantes.

Arquitetura ou revolução. Podemos evitar a revolução.” (CORBUSIER, 2002,

p.205).

Nestes termos, podemos notar na obra de Corbusier a indignação com

a postura conservadora ainda vigente na arquitetura de sua época. Ele foi

um dos primeiros a notar que a sociedade se encontrava em processo de

transformação e que, portanto, necessitava-se de um novo abrigo, compatível

não mais aos costumes campesinos, mas ao emergente estilo de vida urbano

mecanicista. Ou seja, Le Corbusier estava engajado com a construção de um

mundo novo, socialista, igualitário, moderno, conduzido pelo pensamento

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e produzindo millhares de problemas e soluções curiosíssimas. Poliminós são objetos geométricos formados por quadrados de mesmo tamanho, unidos lado a lado. Os poliminós dividem-se em calsses de acordo com o número de quadrados que se usa na configuração: monominó, dominó, triminós, tetraminós, pentaminós, hexaminós e assim por diante. Um poliminó diferencia-se de outro apenas pela forma, não importa a posição que ocupam no plano. Assim as quatro figuras representam o mesmo triminó L”. www.revistagalileu.com

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mecânico e racional, tal qual o seu modelo analógico originário da máquina e

da revolução industrial.

Ainda que, com o passar do tempo, o “[...] conteúdo ideológico da

arquitetura de Le Corbusier foi ele mesmo subvertido pelo desenvolvimento

“natural” do capitalismo e sua “recuperação” de vanguarda. Portanto, temos

de ver a arquitetura de Le Corbusier como um fenômeno histórico e desobrigá-

la de seu contexto ideológico original. Seu caráter subversivo faz parte de

sua estética auto-suficiente e continua sendo uma experiência constantemente

renovável, depois de termos visto retroceder a visão de uma sociedade

totalmente renovada da qual ela originalmente fazia parte. A arquitetura de

Le Corbusier pertence a uma “tradição do novo” que agora assumiu seu lugar

em nosso cânone crítico. [...] Le Corbusier ocupou um desses raros momentos

na história em que parecia que a opinião do artista e a do homem de paixões

convergiam para um mito coletivo”. (COLQUHOUN, 2004, p. 181/182).

5.5 - Le Corbusier e a máquina de morar

Embora na contra-corrente da Carta de Atenas (1933), que afirmava o

equipamento multifuncional enquanto mecanismo ideal para a casa moderna,

porém como vimos, os experimentos Corbusierianos sobre a habitação

tiveram início com a Maison Dom-Ino. Assim, entre 1926 a 1930, suas casas

unifamiliares basearam-se na sintaxe do que se convencionou denominar os

cinco pontos essenciais da arquitetura: a estrutura principal elevada sobre

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pilotis; a planta livre obtida pela separação entre os elementos estruturais e as

vedações internas de divisão entre espaços; a fachada livre; as janelas longas

e horizontais, que produziam a liberdade e a inter-relação entre o externo e o

interno; e o conceito da laje jardim.

Por outro lado, ainda que não exista uma publicação específica de

Corbusier sobre a Máquina de Morar, a casa ideal à era da máquina, em toda

sua obra podem ser encontradas citações sobre esse conceito. Assim, em Vers

une architecture (1923), provavelmente a mais importante obra do movimento

moderno na arquitetura, Le Corbusier questiona as formas de habitar da

sociedade industrial, ainda em pleno processo de desenvolvimento, tentando

“reencontrar as bases humanas, a escala humana, a necessidade-tipo, a função

tipo, a emoção tipo”. (CORBUSIER, 1923).

Em clima de efervescência social, pautado por transformações tecnológicas,

sociais e científicas, Le Corbusier clamava, assim, por uma nova planta na

habitação de seu tempo. Comparando de forma provocativa os engenheiros

e os arquitetos, anunciava os primeiros como já engajados na construção

de uma sociedade moderna, altamente tecnológica e “maquinicista”, como

comprovavam os automóveis, navios e aviões que haviam criado.

Em certo momento, Corbusier chega a questionar: “A arte, segundo

Larousse, é a aplicação dos conhecimentos para a realização de uma concepção.

Ora, hoje são os engenheiros que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer,

de ventilar, de iluminar. Não é verdade?” (CORBUSIER, 1923, p.7).

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Nestes termos é que Le Corbusier reflete sobre o significado da habitação

e da ação do arquiteto, tomando como base, portanto, a maneira como o

engenheiro encara o desenvolvimento dos aviões por exemplo. Para tanto,

propõe a Máquina de Morar, que tem como característica fundamental a

possibilidade da construção seriada.

Uma grande época começa. Um espírito novo existe. A indústria, exuberante como um rio que rola para seu destino, nos traz os novos instrumentos adaptados a esta época nova animada de espírito novo.A lei de economia administra imperativamente nossos atos e nossos pensamentos. O problema da casa é um problema de época. O equilíbrio das sociedades hoje depende dele. A arquitetura tem como primeiro dever, em uma época de renovação, operar a revisão dos valores, a revisão dos elementos constitutivos da casa.A série está baseada sobre a análise e a experimentação. A grande indústria deve se ocupar da construção e estabelecer em série os elementos da casa.É preciso criar o estado de espírito da série. O estado de espírito de residir em casas em série. O estado de espírito de conceber casas em série. (CORBUSIER, 1923, p. 32).

A idéia era sintonizar a arquitetura, e as formas de construção, aos

anseios da sociedade industrial. E, sobre a moradia, Corbusier acreditava que

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tanto o operário quanto o intelectual não mais possuíam o abrigo conveniente

ao seu modo de vida, ainda que de fato esse equipamento correspondesse

à necessidade primordial humana. “A casa foi o indispensável e o primeiro

instrumento que se forjou.” (CORBUSIER, 1923, p.34).

Em Vers une architecture (1923), Le Corbusier enfatiza três aspectos

fundamentais à concepção da arquitetura:

O volume que é o elemento pelo qual nossos sentidos percebem e medem, sendo plenamente afetados. A superfície que é o envelope do volume e que pode anular ou ampliar a sua sensação. A planta que é a geradora do volume e da superfície e que é aquilo pelo qual tudo é determinado irrevogável. (CORBUSIER, 1923, p.9).

Segundo Le Corbusier, o mecanicismo era familiar e positivo ao homem de

sua época. Por isso, ele deveria habitar em uma máquina também, com banhos

quentes, água fria, temperatura personalizada, boas condições de conservação

dos alimentos, de higiene, bela pela proporção, etc.

Proporções estas depreendidas de seus Traçados Reguladores, que

afirmavam a geometria enquanto linguagem humana. Para tanto, Corbusier

evoca e se fundamenta nos modelos clássicos, afirmando que: “o grego, o

egípcio, Michelangelo ou Blondel empregavam os traçados reguladores para

a correção de suas obras e a satisfação de seu sentido artístico e de seu

pensamento matemático.” (CORBUSIER, 1923, p.47).

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Vicent Scully Júnior, importante crítico da arquitetura moderna, escreve

que:

Le Corbusier foi, portanto, capaz de compreender a arquitetura grega e de evitar uma imitação não grega dela, precisamente porque percebeu intuitivamente o que ela pretendia ser e porque reconheceu que a intenção não era a de abrigar seres humanos, e sim instigá-los ao reconhecimento dos fatos em relação aos quais eles próprios deviam agir. (SCULLY, 1961, p.89).

O que Corbusier pregava era, assim, o emprego das formas puras da

geometria plana, sóbria, sem os adornos e excessos do barroquismo tardio

que, de certa forma, ainda estavam em voga à sua época. Em suma, a casa

ideal para a sociedade da máquina deveria obedecer as seguintes premissas

básicas: planta livre, fachada livre, estrutura independente, panos de vidro ou

aberturas corridas, estar sobre pilotis e teto jardim.

Estas premissas eram, por sua vez, alicerçadas nos quatro conceitos

básicos de habitabilidade presentes em todo o ideário Corbusiano: morar,

trabalhar, cultuar o corpo e o espírito, e circular. Estão aí, a grosso modo, os

conceitos em voga nas teorias sobre a Cidade Moderna, embora Corbusier

enfatizasse a célula habitacional como organismo não constituinte, mas

análogo à cidade, por se tratar da condição mais primitiva e essencial à vida

em sociedade.

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Assim, a Ville Savoye seja talvez a mais paradigmática das casas de

Le Corbusier já que nela encontramos todos os conceitos “corbusierianos’’ de

moradia ideal. Situada em terreno plano, com esplêndida vista sobre o Vale do

rio Sena, no subúrbio de Paris, a Ville Savoye é uma das quatro ville blanches,

as moradias unifamiliares que coroam a investigação de novos meios produtivos

na arquitetura enunciados na Maison Dom-Ino.

Trata-se de um volume prismático, originário de planta quadrada, e elevado

sobre pilotis de forma a possibilitar a mútua visibilidade e circulação entre o

jardim e o espaço edificado. Em seu primeiro piso, concentram-se os espaços

de circulação e as áreas de serviços, que foram recolhidas atrás de uma parede

curva envidraçada que determina o eixo principal da casa. Uma rampa externa

dá acesso ao primeiro e principal andar da moradia, onde estão localizados os

quartos, a sala de estar e um jardim interior parcialmente coberto. O acesso

ao andar seguinte ocorre novamente pela rampa, que continua subindo até o

segundo andar – o terraço – para aí se fechar com uma nova parede curva.

A inclinação da rampa é favorável à subida, o que torna o terraço um espaço

semelhante aos pátios mediterrânicos tradicionais.

Em 1919, Le Corbusier fez uma série de conferências na Argentina,

quando descreveu a Ville Savoye, ainda em construção, da seguinte maneira:

Os visitantes até aqui, voltam-se e tornam a voltar-se para o interior, perguntando-se como tudo isto acontece e dificilmente compreendem os motivos daquilo que vêem

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e sentem. Já não encontram mais nada daquilo que se convencionou denominar uma “casa”. Sentem-se em outra coisa inteiramente nova. E... creio que não se entediam!O local: um gramado vasto e encurvado. A vista principal dá para o Norte e, portanto, opõe-se ao sol. A frente normal estaria portanto do lado contrário.A casa é uma caixa na ar, perfurada em toda a volta, sem interrupção, por uma janela corrida. Não se hesita mais em realizar jogos arquitetônicos com cheios e vazios. A caixa se eleva no meio dos prados, dominando o pomar.Sob a caixa, passando por entre os pilotis, há um caminho para os automóveis, fazendo ida e volta em forma de forquilha, cujo gancho fecha exatamente sob os pilotis, a entrada da casa, o vestíbulo, a garagem, os serviços (lavanderia, rouparia, quartos dos empregados). Os automóveis rodam debaixo da casa, estacionam ou vão embora.Do interior do vestíbulo uma rampa suave conduz, sem que quase se perceba, ao primeiro andar, onde transcorre a vida do morador: recepção, quartos etc. Recebendo vista e luz do contorno regular da caixa, os diferentes cômodos reúnem-se radialmente sobre um jardim suspenso, que ali está como distribuidor de luz e sol.É o jardim suspenso sobre o qual se abrem, com total liberdade, as paredes corrediças de vidro do salão e de vários outros cômodos: assim, o sol penetra em todos os lugares, no próprio coração da casa.Do jardim suspenso, a rampa, que agora é externa, conduz ao teto, ao solário.Este, aliás, liga-se, por meio de três lances de escada de caracol, à adega escavada na terra sob os pilotis. Esta escada de caracol, órgão vertical puro insere-se livremente na composição horizontal.Para terminar, observem o corte: o ar circula por todos os lugares, a luz está em cada ponto, penetra em tudo. A

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Figura 17 - Plantas Ville SavoyeFonte: http://falcon.jmu.eduAcessado em 26 mar. 2005.

Figura 18 - Ville SavoyeFonte: http://falcon.jmu.eduAcessado em 26 mar. 2005.

Figura 19 - Cortes Ville SavoyeFonte: http://falcon.jmu.eduAcessado em 26 mar. 2005.

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circulação proporciona impressões arquitetônicas de uma diversidade que desconcerta todo visitante estrangeiro, diante das liberdades arquitetônicas propiciadas pelas técnicas modernas. As simples pilastras do andar térreo, mediante uma disposição correta, recortam a paisagem com uma regularidade que tem pó efeito suprimir toda noção de “frente” ou “fundo” da casa, de “lateral” da casa.A planta é pura e atende as necessidades mais precisas. Sua disposição é a mais correta possível, na paisagem agreste de Poissy. (CORBUSIER, 2004, p.138/139).

Em suma, são nas chamadas casas brancas, e não nos conjuntos

multifuncionais preconizados pela Carta de Atenas, que Le Corbusier concentra

seus esforços a favor da moradia ideal à sua época. Tais experimentos iniciais são

mesmo fundamentais ao desenvolvimento posterior de sua obra arquitetônica

e teórica, cenário que explica a extrema importância da Ville Savoye. Ela pode,

assim, ser compreendida como a própria materialização da chamada máquina

de morar, já que nela Corbusier sintetizara todos os conceitos anteriores, os

da Maison Dom-Ino, dos cinco pontos estruturadores, enfim, a edificação

representa a materialização, em concreto, aço e vidro, do ideário corbusieriano.

Nota-se, ainda, o extremo cuidado com a iluminação natural por toda a casa,

com a interação entre as formas, a cor, e o movimento do sol.

Na Ville Savoye, portanto, parece materializar-se a velha máxima de que

a forma segue a função. A própria forma se torna também função, ainda que

simbólica do contexto técnico e artístico da geração de vanguarda moderna.

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6. Parte 2 - Novas possibilidades na produção arquitetônica residencial

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6.1 - Introdução: As novas possibilidades e condições na prática da arquitetura

O argumento da arquitetura moderna, e mais especificamente de um de

seus mais atuantes partidários, o arquiteto franco-suíço Le Corbusier, baseou-

se em grande parte na correspondência entre arquitetura e cidade, entre

cidade e sociedade, entre sociedade e tecnologia. Assim, no contexto de tais

encadeamentos, a questão central da vanguarda moderna foi determinar um

vocabulário arquitetônico originário, e ao mesmo tempo representativo, de um

novo conceito de cidade, que naquele momento esteve assinalado por questões

quantitativas e ideológicas, como a explosão urbana, a enorme demanda

habitacional e o planejamento em macro-escala.

Racionalidade, funcionalidade e universalismo constituíram, portanto,

simultaneamente suas metas e respostas frente a uma nova compreensão de

mundo.

E, embora intrinsecamente ligada aos desdobramentos culturais da

denominada era da máquina, tal concepção da arquitetura levando-se em

consideração suas dimensões individual, coletiva e social, não foi um projeto

exclusivamente moderno.

Ao contrário, há mais de cinco séculos, o arquiteto, matemático, pintor

e filósofo italiano, Leon Battista Alberti, já anunciara tal ligação embrionária

entre arquitetura e cidade, atendo-se, sobretudo, a uma das questões centrais

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do meio urbano, ou seja, a da moradia.

Na análise desse importante personagem renascentista, a cidade

poderia, então, ser pensada em termos de uma grande casa, assim como, em

contraponto, a casa nada mais seria do que uma pequena cidade.

Concentrando-se na instigante correspondência entre tais termos, as

proposições iniciais da arquitetura e do urbanismo modernos assumiram, então,

caráter extremamente radical, já que, ao definir a sociedade enquanto sociedade

de massa, hierarquizada, estamental, os arquitetos do período nomearam

a hipótese do universal, tanto em termos estilísticos, quanto construtivos e

comportamentais, como resposta à nova cidade e ao novo homem moderno

que surgia.

Podia-se, portanto, pensar a cidade através de planos-macros, de

sistemas de transportes, de lazer programado, de edifícios e zonas de trabalho

pré-definidas, além de áreas e formas de morar independentes da história, das

características do lugar. E assim, também na via contrária, cada um desses

elementos adquiria simultaneamente funções e papéis previamente definidos,

e supostamente definitivos, em prol da viabilidade e do bem-estar coletivos.

Necessitava-se, em suma, identificar e até mesmo nomear traços

homogêneos, sintéticos, inclusive porque era o poder governamental quem em

boa parte executaria os projetos concebidos pelos arquitetos modernos.

As discussões em torno dos primeiros CIAM desencadearam, portanto,

a crença de que novas cidades, funcionais, deveriam substituir, com todo o

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radicalismo do termo, as chamadas cidades históricas, consideradas à época

antiquadas e obsoletas. Isso porque se tinha a precisa sensação de que vivia-

se uma nova era, a chamada era industrial.

Os arquitetos do período moderno presumiram então, e através de

profundo otimismo, que a eficácia do sistema urbano seria capaz de homogeneizar

as demandas dos diversos atores da vida social, incidindo sobretudo em seus

chamados estabelecimentos humanos, conforme abordamos na primeira parte

desse trabalho.

Eficiência, quer de planejamento, de construção, de economia ou

programática, assim como universalismo, sociedade de massa e industrialização,

constituíram, portanto, os argumentos de seus raciocínios e discursos

projetuais.

A abrangência e alcances das proposições arquitetônicas modernas

são ainda presentes em nossas cidades, embora novas questões tenham se

apresentado ao contexto tecnológico, cultural e social que sucederia a era

industrial, ou seja, a era informacional em que vivemos.

Caracterizada pelo potencial comunicativo e criativo das tecnologias

telemáticas, ou seja, aquelas resultantes da crescente conexão mundial entre

computadores pessoais, a chamada era informacional corresponde a uma nova

forma de compreensão e de percepção de mundo. Nela, o que está em jogo

são as infinitas possibilidades tecnológicas [telemáticas e informacionais] do

chamado “ciberespaço”, de forma a, na arquitetura, alterar a relação entre o

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clássico binômio espaço/tempo.

Em lugar da percepção mecânica, cronológica, objetiva e seqüencial da

era da máquina, a era informacional passaria a cotejar a sobreposição entre

tempos diversos, entre os efeitos de fenômenos subjetivos, simbólicos, virtuais,

que conectam as pessoas através de seus computadores.

Essa nova máquina inaugurou a era atual e criou para a arquitetura,

através de uma nova pré-disposição a códigos virtuais, a possibilidade de, por

exemplo, manejar formas complexas através da modelagem tridimensional,

como exemplifica a trajetória do arquiteto canadense Frank O. Gehry.

O cenário é o da globalização, do irrestrito incremento da comunicação

e conectividade virtual entre os membros da sociedade de massa, que fora

conformada no período anterior, da era industrial. Trata-se, em suma, do

desenvolvimento de uma nova ferramenta na história evolutiva da humanidade

e, portanto, de uma nova possibilidade de interação do homem com o meio que

ele habita e transforma continuamente.

Assim, qual a nossa relação com aquele período? O que mudou ao longo

de quase um século desde as formulações iniciais da arquitetura moderna?

A sociedade de que tratava desapareceu ou especializou-se? Seu argumento

tecnológico foi substituído ou atingiu a plenitude? Em que momento, e de que

forma, teriam mudado as regras do jogo? Quais novos horizontes foram abertos

à atuação do arquiteto?

Essas e outras questões constituem a base da segunda parte do presente

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trabalho. O que se pretende é traçar um paralelo entre a arquitetura, sociedade

e ciências da vida moderna, e a arquitetura, sociedade e ciências da era da

informação, em que vivemos.

O que se procura é, portanto, identificar os pontos de contato, ou quem

sabe de afastamento, entre a concepção arquitetônica de nossos dias e aquela

de nosso passado mais recente, o moderno.

6.2 Alternativas ao moderno

O primeiro momento em que se testou veementemente o projeto

moderno foi aquele posterior à II Guerra Mundial4.Frente ao cenário de cidades

em parte, ou totalmente arrasadas pela destruição, o que se delineava era um

campo aberto à experimentação, à implantação irrestrita da hipótese funcional

do raciocínio moderno. Além disso, a II Guerra originaria também a completa

reordenação política e econômica internacionais.

Conforme observa o arquiteto e filósofo catalão, Ignasi de Solà-Morales,

“[...] nem sequer o chamado urbanismo Stalinista, de caráter historicista e

classicista, seria então capaz de deter um processo que estava ditado pela

racionalidade técnica e pela eficiência produtiva, sem qualquer contraponto no

gosto dos usuários ou das leis de mercado”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.39).

Ao mesmo tempo em que testemunharam a eficácia e a força do traçado

arquitetônico moderno, esses experimentos, contudo, abriram campo ao

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4 O movimento expressionista pode ainda ser indicado como a primeira alternativa ao estilo internacional do movimento moderno mas, na qualidade de ser a ele contemporâneo, não se pode afirmar que o expressionismo tivesse colocado em xeque o modernismo. De qualquer forma, os arquitetos expressionistas reuniram-se em torno da denominada Escola de Amsterdã, na segunda década do século XX, e tiveram forte influência do Manifesto Técnico da Escultura Futurista, publicado em 1912 por Boccione. Em síntese, fala-se do “estilo do movimento” em opção ao racionalismo que se instalara, o que faz com que o expressionismo originasse experimentos arquitetônicos resultantes do binômio função e dinâmica.

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questionamento dos resultados e dos desdobramentos do que até então se

mostrava apenas enquanto uma hipótese otimista de ordenação do mundo

industrial. E, nesse sentido, tais experiências do pós-guerra evidenciariam a

dimensão fortemente esquemática do projeto arquitetônico moderno.

Ou seja, percebeu-se à época que a supremacia do radicalismo moderno

não era tão abrangente e promissora quanto se podia imaginar, o que fez com

que, no próprio contexto dos CIAM, ainda que em seus encontros tardios, o

moderno passasse a ser colocado sob julgamento.

Surge, assim, em 1959, e com a denominação de Team X, um grupo

de arquitetos mais atentos à individualidades e variantes do comportamento

humano do que à leis universais, defensores, portanto, da maior diversidade

de modelos culturais na arquitetura, através do emprego de geometrias mais

complexas e de tipologias mais sofisticadas. Entre eles, se destacam Aldo van

Eyck, Louis Kahn, José Antonio Coderch e George Candilis.

Também em outros locais, como no norte da Europa, o chamado empirismo

nórdico de Alvar Aalto e Arne Jacobsen, entre outros, impôs certas objeções à

crença no coletivo em favor do indivíduo. Neste sentido, observa Solà-Morales:

“[...] atento às condições do lugar, receptivo às tradições locais e da pequena

escala, o desenvolvimento empirista teve a virtude de desativar a agressividade

da planificação, ainda que implicasse às vezes certo caráter pitoresco”. (SOLÀ-

MORALES, 2002, p. 39).

E, assim que transpostos os traumas da grande guerra, potências

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econômicas ascendentes, como os Estados Unidos, o Japão e certas regiões

da Europa, se encaminhavam ao chamado período expansionista. A década

de sessenta é, portanto, o período de gênese das tecnologias de ponta que

se especializariam absurdamente anos posteriores, como a eletrônica, assim

como da transferência das atividades produtivas primárias e secundárias aos

países de terceiro mundo. É também a época inaugural da grande euforia e

consumismo que viriam caracterizar as sociedades avançadas, e até mesmo

aquelas em fase de desenvolvimento, ao longo da segunda metade do século

XX. Em síntese, o que se delineava eram os contornos de uma nova sociedade

de massa.

Conceitos como distinção entre o individual e o coletivo, mobilidade,

fugacidade, poder de decisão do usuário, personalização, mega-estrutura

e cápsulas, dentre outros, passaram, então, a integrar novas propostas

arquitetônicas, como as concebidas pelos chamados metabolistas japoneses,

grupo constituído pelos arquitetos Kenzo Tange, Kisho Kurokawa, Fumihiko Maki

e Kiyonori Kikutake; pelo grupo inglês Archigram, nome da revista editada entre

1961 e 1970 por Peter Cook, Dennis Crompton, Warrem Chalk, David Greene,

Ron Herron e Michael Webb; além de propostas alternativas, direcionadas à

cidades do terceiro mundo. Segundo Solà-Morales, “esses grupos têm em

comum a confiança e a exigência de que é possível e necessário mudar tudo”.

(SOLÀ-MORALES, 2002, p.43).

Embora igualmente partidários da plena confiança nas possibilidades

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Figura 20 - Projeto Living Pod - Archigram Fonte: http://www.archigram.net/projects_pages/living_pod.html. Acessado em 26 mar. 2005.

Figura 21 - Projeto Cuihicle - Archigram Fonte: http://www.archigram.net/projects_pages/cuishicle_4.html. Acessado em 26 mar. 2005.

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oferecidas pelos avanços tecnológicos, característica que motivara os

arquitetos modernos, o que diferencia esses grupos das hipóteses radicais

do modernismo é a proposição de um modo produtivo sintonizado com as

particularidades da economia e da sociedade de consumo, de forma a criar

cidades, e conseqüentemente arquiteturas, mais livres, mais personalizadas,

mais atentas à mudanças.

Em via oposta, delineavam-se ainda propostas urbanas e arquitetônicas

denominadas alternativas. No terceiro mundo, na Ásia, na África e na

América Latina, a industrialização tardia e os anos subseqüentes à grande

guerra desencadearam processos de urbanização de proporções até então

inimagináveis, em que as políticas de moradia, próprias da tradição moderna,

se revelaram absolutamente ineficazes.

Não havia nem recursos e nem tempo suficiente para oferecer moradia

convencional ao enorme contingente de novos cidadãos que desembarcavam

nas grandes cidades, desprovidos tanto de ofício quanto de benefícios sociais.

A autoconstrução apresentava-se, assim, como alternativa desejável e

promissora.

Além disso, os movimentos de contestação do modernismo passaram

ainda pela suavização dos limites entre histórico e moderno, tal qual proposto

pelo arquiteto italiano Aldo Rossi, e, mais recentemente, pelas novas formas

de requalificação urbana de que são exemplares as transformações ocorridas

na cidade de Barcelona, desde a década de 1990.

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Vale destacar que, no urbanismo da Barcelona contemporânea, foi

introduzido um importante conceito descrito como metástase urbana, em que

operações pontuais, como a requalificação do desenho urbano de determinadas

praças, de pontos de encontro ou comerciais, assim como a edificação

de arquiteturas simbólicas do poder da metrópole, teriam a capacidade de

desencadear mudanças seqüenciais e qualitativas em seu entorno e, em

conseqüência, em toda a cidade.

Não eram traços estilísticos o que estava em jogo em tais concepções

urbanas e arquitetônicas contestatórias do movimento moderno, mas, ao

contrário, o que se questionava era o equilíbrio entre os domínios público e

privado, entre áreas livres e edificadas, entre as diversas escalas e significados

metropolitanos, como a do pedestre e a do automóvel. Neste sentido, suas

linguagens foram caracterizadas pela extrema variedade, desde o conciso

minimalismo até o mais barroco interesse pelo ornamento.

Em suma, a assimilação do fenômeno metropolitano, ou seja, das

enormes concentrações urbanas, foi a condicionante que orientaria cada uma

dessas novas concepções de cidades e de arquitetura. Não está mais em jogo,

portanto, a cidade tradicional considerada pelo movimento moderno e, assim,

também a arquitetura sofreria mudanças radicais.

Neste sentido, Solà-Morales observa:

As metrópoles contemporâneas sãodescentralizadas, ou seja, carecem de um ponto

Figura 22 - Vila Olímpica - Barcelona Fonte: Foto do Autor.

Figura 23 - Porto Olímpico e Barceloneta Fonte: Foto do Autor.

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central, histórico, político, e tendem a multiplicar os coágulos nos que se densificam as atividades e, assim, as edificações.Mais do que de arquiteturas, se deveria falar de conglomerados, nos quais cada peça pensada com critérios convencionais de desenho não é senão um elemento de um sistema de prestação de serviços para o tratamento do qual, contudo, não existe nem experiência nem métodos adequados à sua diversidade e mudança contínua.Aeroportos, áreas comerciais, áreas esportivas, parques temáticos, nós de trocas de transportes, áreas industriais, centros de negócio, entre outros, são hoje os novos geradores de atividade urbana em torno dos quais a forma das cidades parece se fazer plástica e maleável.As metáforas orgânicas para descrever essas situações se multiplicam, e estamos assistindo nos últimos anos ao verdadeiro retorno da terminologia e da iconologia organicista para visualizar tais fenômenos.Sentimos a acumulação de acontecimentos sobre nós, mas advertimos uma limitada capacidade de assumi-los e dar-lhes respostas. Nos encontramos diante de feitos que colocam em juízo, para a arquitetura, sua capacidade de fazer uma cidade permanentemente ativa, expansiva e cega em seu desprendimento.A metrópole, cidade do tempo presente, se apresenta como novo obscuro objeto de desejo para a arquitetura e os arquitetos. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.51).

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Ou, como explica em contraposição Fábio Duarte:

Distintamente do mundo industrial, a cidade contemporânea tem o os processos de geração de conhecimento, de produtividade econômica e de ordens políticas e militares transformados pelo paradigma informacional. O produto da tecnologia informacional é a própria informação, potencialmente sendo trabalhada em escala global e em tempo real. São primordialmente os fluxos financeiros voláteis, negociados através das redes informacionais, e não o tráfego de produtos, que dinamizam a economia global. O trânsito de mercadorias, idéias e pessoas no mundo percorria os trilhos férreos, as auto-estradas, as linhas telegráficas; fazia-se a partir de um projeto político internacional que se fortalecia, com o enrijecimento das fronteiras econômicas nacionais, através da criação de taxas aduaneiras e regulamentação de circulação de valores, para a proteção de uma possível propagação de crises econômicas. Se há figuras simbólicas do espaço moderno na passagem para o século XX são os trilhos, as estradas, as alfândegas. A sociedade de fluxos contemporânea dispensa os trilhos assentados no terreno, rompe as barreiras aduaneiras: uma idéia não viaja de um ponto a outro, ela age em todos ao mesmo tempo. Se há uma figura, ela é a rede. (DUARTE, 2002, p.175).

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6.3 O espaço coletivo e individual na era das tecnologias telemáticas

Diversidade, fluidez, fugacidade e individualidade foram, como vimos

no capítulo anterior, conceitos incorporados à visões arquitetônicas que se

estabeleceram contemporânea ou posteriormente à tradição moderna. Se,

em princípio, tais termos corresponderam a uma nova escala e magnitude

dos aglomerados urbanos, o advento da chamada era informacional, a

que nos deteremos no presente capítulo, transformaria por completo seus

desdobramentos tanto nas formas de criação quanto de representação

arquitetônicas.

Existem alguns conceitos chaves para o entendimento desta nova era

globalizada5 , dentre os quais destacam-se os de interatividade e ciberespaço.

Segundo Pierre Lèvy, “o termo interatividade em geral ressalta a participação

ativa do beneficiário de uma transação de informação. De fato, seria trivial

mostrar que um receptor de informação, a menos que esteja morto, nunca é

passivo” (LÈVY, 2000, p.79). Já ciberespaço seria melhor compreendido pela

sintética definição de “turbulenta zona de trânsito para signos vetorizados”

(LÈVY, 1995, p. 49).

Ou seja, no contexto da completa mediação das atividades humanas

através de tecnologias computacionais6, em suma, dos softwares e da web,

tais conceitos não mais se resumiriam à criação tradicional de edifícios e

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5 Se não espacialmente, ao menos economicamente.6 Trata-se da utilização de computadores pessoais associados ao que se denomina logiciárias, ou seja, “parte de um sistema eletrônico, de um instrumento, de um microcomputador, constituída de informações, algoritmos e procedimentos contidos em seu sistema de memória e armazenamento secundário. É a logicionária que determina todas as operações dos subsistemas do computador, determinando seu modo de operação e o caráter das operações realizadas. Em inglês, software”. (ZUFFO, 1997). O avanço de tais sistemas, assim como dos próprios

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arquiteturas. A introdução da idéia de redes, de fluxos interconectados e

sobrepostos, e dos lugares de sua manifestação, transformaria por completo a

arquitetura da passagem para o século XXI.

A cidade teorizada e planejada pelos modernos no início do século XX,

quando se objetivava a racionalização do ambiente urbano enquanto unidade

produtiva, não mais existia. Em seu lugar, a cidade informacional passou a se

basear em hierarquias bem mais complexas do que as derivadas de processos

tradicionais de produção e distribuição de mercadorias.

No momento em que esses bens passam a ser também imateriais, como

entretenimento, conectividade, qualidade de vida e forças de poder flexíveis, as

cidades se tornam aglomerados descentralizados, sem a clara distinção de um

núcleo principal, central, não ao menos em todos os níveis e representatividades

da vida urbana.

Descentralizados, contudo, não implica em isolados. Ao contrário, a maciça

conectividade entre pessoas, objetos, serviços e informação, independentemente

do grau de desenvolvimento do país, é justamente o traço fundador da era

atual. Seja na Paris contemporânea, descrita pelo geógrafo e historiador Marcel

Roncayolo, na Los Angeles de que fala o geógrafo norte-americano Edward Soja

(apud Solà-Morales, 2002), ou nos países subdesenvolvidos abordados pela

holandesa Saskia Sassen (apud Solà-Morales, 2002), as cidades informacionais

não podem mais ser pensadas nos mesmos termos e métodos instaurados

pelos arquitetos e planejadores modernos. Não se trata mais, portanto, da

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componentes, são apenas uma das alterações que os novos avanços nas tecnologias ditas telemáticas, ou seja, “a ciência que trata da manipulação e utilização da informação através do uso combinado de computador e meios de telecomunicação” (FERREIRA, 1999), possibilitam à sociedade contemporânea, também denominada de sociedade da informação, infosociedade, sociedade pós-industrial.

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cidade haussmanniana do século XIX.

O que equivale a dizer que a contribuição arquitetônica neste novo contexto

deve ser completamente redefinida, inovada, tanto em relação aos parâmetros

arquitetônicos clássicos, ou seja, à arquitetura enquanto formas de criação de

materiais, quanto aos termos de correspondência entre arquitetura e cidade. É

necessário entender, como afirma Solà-Morales, “a gravidade da esquizofrenia

produzida entre a cultura arquitetônica e a realidade urbana contemporânea”.

(SOLÀ-MORALES, 2002, p.82).

Assim, torna-se urgente indagar o lugar, os instrumentos e capacidades

de intervenção da arquitetura na trama da cidade informacional, questão a

que, segundo proposto por Solà-Morales, podemos nos aproximar pela análise

de certas constantes observadas na arquitetura e cidades atuais.

A primeira delas refere-se à idéia de mutação, que já no início do século

XX motivara o modelo orgânico-evolucionista do norte-americano Frank

Lloyd, assim como do inglês Raymond Unwin, que atuou no Brasil através das

chamadas cidades-jardim. Por esse modelo, a relação entre as transformações

nas cidades e na arquitetura era pensada de forma similar aos movimentos de

crescimento e transformação dos seres vivos.

Porém, com os desdobramentos do conceito de mutação na área da

biologia, ainda no século XIX, passou-se a considerar as mudanças ocasionais,

aleatórias, enquanto mecanismos de ruptura e de alteração brusca de processos

hereditários. O paralelo em diversas áreas de conhecimento foi, então, a

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introdução de noções como imprevisibilidade, caos e turbulência, através dos

quais as cidades se transformariam não por processos evolutivos, mas, ao

contrário, por processos de mutações súbitas, autônomas. Não se chegaria,

portanto, do planejamento à edificação, como acreditaram os modernos.

Solà-Morales explica:Desenhar a mutação, introduzir-se em sua energia centrífuga, deveria comportar a um tempo, o desenho do espaço público e privado, da mobilidade e dos lugares especializados, do organismo global e dos indivíduos. Tudo aponta para a necessidade de morfologias abertas, interativas, nas quais alguns mínimos critérios sejam as únicas leis que organizem o rápido processo pelo qual se passe de um estágio urbano para outro. Mas, esses critérios não podem incidir unicamente no desenho urbano, à margem da edificação, porque essa distinção perde sentido em um processo mutacional. Somente projetos com mecanismos de auto-regulação, de interação e de reajuste durante o próprio processo de realização podem ter sentido em situações dificilmente imagináveis em outros momentos do passado. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.86).

A arquitetura da era informacional tem a ver também com a idéia de

fluxos, e, mais uma vez, vale aqui destacarmos a mudança de enfoque ocorrida

em relação à concepção moderna.

Durante os CIAM, o movimento era circunscrito a uma das quatro grandes

funções urbanas, ao lado da moradia, do trabalho e do lazer. Mas, na passagem

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para a era informacional, começaram a ser considerados também outros tipos

de deslocamentos, ou seja, os fluxos imateriais.

Fluxos estes não como os da autopista ou do telefone, mas enquanto

justaposição e encadeamento de movimentos informacionais, pelos quais as

cidades e arquitetura passam a ser locais nodais, que dão suporte à variados

níveis de conexão entre pessoas, serviços e objetos. Ou seja, parece improvável

que a arquitetura, neste contexto diversificado, seja pensada como algo estável,

estático e contínuo, mas, ao contrário, que ela seja entendida a partir da

urgência de mobilidade por dar suporte ao intercâmbio entre redes distintas.

Ligada à idéia de fluxos, a cidade contemporânea é também caracterizada

por novas formas de trocas, de mercado. Os bens e serviços passam de

necessários à desejáveis, e, assim, fundamentam a chamada sociedade de

consumo e da informação.

Neste sentido, o filósofo alemão Walter Benjamin (apud Solà-Morales,

2002) antevira os espaços comerciais da era informacional como os novos

espaços rituais e fetichistas da nossa sociedade. Ou seja, em todo o mundo,

os mecanismos de intercâmbio passam a ser carregados de simbolismo, o que

entrará em choque com a objetividade, com o racionalismo e funcionalismo

defendidos pelo movimento moderno.

Ainda segundo Solà-Morales:

O princípio funcionalista se torna inconsistente no momento em que as necessidades humanas

Figuras 24 e 25 - H2O Pavilion – Grupo NOX.

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se convertem em absolutamente relativas. [...] É necessário ir ao cinema, ter um jardim próprio em que cultivar as flores de que se gosta, dispor de automóveis e deslocar-se com eles para ter comodidade, ver de perto a Gioconda, a Capela Sistina [...]?(SOLÀ-MORALES, 2002, p.98).

São perguntas difíceis de responder, supostamente muito mais no mundo

ocidental, mas em vias de sê-lo também, embora com matizes distintas, inclusive

nos países em desenvolvimento. Em outras palavras, o funcionalismo parte de

hipóteses fixas quando, na realidade, as necessidades a que deve responder

são e devem ser tais que dinamizem a produção do mercado, fazendo-o fluido,

mutante, efêmero.

Quais as propostas contemporâneas para esses locais, esses cenários do

ritual de consumo, seja ele de bens, de serviços ou de informação? O que Solà-

Morales denomina de contenedor, pode ser uma loja comercial, um museu,

um estádio, um edifício histórico ou locais de entretenimento, é definido

espacialmente pela idéia de independência em relação à realidade.

Ou seja, são espaços de representação, artificiais, contrários à explícita

transparência, separados fisicamente do entorno de forma a negar-lhe

permeabilidade, transitividade, conexão imediata. Por isso os tratamentos

de superfícies passaram a ser tão importantes para os arquitetos da era

informacional, como veremos em outra parte do presente trabalho.

Os contenedores são os cenários de distribuição e consumo da era

Figura 26 - London City Hall, Foster and Partners. Fonte: http://www.answers.com/topic/foster-and-partners. Acessado em 1 abr. 2005.

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informacional, os locais da multiplicação das ofertas culturais. Seu princípio é

o da representação cultural que deve intermediar os sofisticados mecanismos

de distribuição e consumo de nossa sociedade.

Outra constante que podemos observar para entender a arquitetura da

era informacional refere-se ao surgimento da noção de ambiente enquanto

transcendência dos valores físicos, imediatos dos edifícios e de seu entorno.

Tal idéia deriva em boa parte da tradição paisagística, pela qual a percepção

de valores formais está intrinsecamente associada a valores evocativos,

carregados de significados simbólicos e históricos. É o que Solà-Morales define

como “forma da ausência”.

De forma similar ao que ocorre com os contenedores, tal aproximação

se define a partir do isolamento em relação à cidade existente para conferir-

lhe um outro significado, um espaço de representação. Ou seja, trata-se em

boa parte de um movimento cultural de desencanto com a cidade originária do

período moderno, o que explica o traço ambíguo, de amor e ódio, de grande

parte de grupos artísticos contemporâneos em relação a ela.

Referindo-se à expressão francesa terrain-vague, sendo vague tanto

no sentido de vazio, livre de atividade, quanto no de vago, sem limites e

significados determinados, Solà-Morales escreve: “[...] da mesma forma em

que a cultura urbana do século XX desenvolveu os espaços dos parques urbanos

como resposta e antídoto à nova cidade industrial, nossa cultura pós-industrial

reclama espaços de liberdade, de indefinição e de improdutividade. São eles os

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espaços residuais da cidade”. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.104).

Mas, e quanto às habitações? O que mudou na forma de pensar e edificar

a moradia dos novos aglomerados urbanos? Existem elementos constantes

e característicos da era informacional, identificáveis nas manifestações

arquitetônicas atuais desse importante programa humano?

Em termos gerais, pode-se dizer que, embora não se compare à

magnitude, prioridade e intensidade das formulações modernas sobre o

assunto, o tema da habitação humana nas grandes cidades continua sendo, ao

menos quantitativamente, o mais importante relacionado à arquitetura e aos

arquitetos.

Diferentemente do período moderno, em que as formulações teóricas sobre

a moradia, como as de Le Corbusier que tratamos na primeira parte do presente

trabalho, se baseavam, especialmente no pós-guerra, na responsabilidade

direta dos poderes públicos, atualmente houve a diversificação dos eixos que

organizam a atividade produtiva das habitações.

Por um lado, figura o chamado mercado imobiliário, ou seja, o acesso

à casa através da compra, aluguel, leasing ou de qualquer outro mecanismo

econômico. Tal procedimento é regulado pelas leis de oferta e da procura, e

é caracterizado por uma falsa imagem de possibilidades irrestritas. Ou seja,

embora anuncie a opção de escolha frente à incontáveis localizações, tipologias,

entre outros, as habitações privadas do mercado imobiliário contemporâneo,

seja ela um apartamento, uma casa unifamiliar ou uma unidade condominial,

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apresentam de fato poucas variações essenciais.

Por outra parte, embora se verifique certo desinteresse cultural da

arquitetura em relação a essa imensa área de produção edificada, fator

normalmente anunciado como reação à massiva especulação imobiliária,

o desenho da casa persiste como terreno fértil para a experimentação

arquitetônica, para a inovação.

E, nesse sentido, se destacam quatro programas essenciais: as habitações

coletivas especiais, ou seja, casas para situações transitórias, como as criadas

para os atletas em competições olímpicas, ou casas para imigrantes, para

desabrigados, para quem vive sozinho, entre outros; as habitações com elevada

liberdade de criação, ou seja, criadas para o próprio arquiteto, para o artista,

para a experimentação neo-vanguardista; a construção alternativa, também

tangencial à grande massa da arquitetura residencial comercial, e exemplificável

através das iniciativas de auto-construção em contextos sociais e econômicos

menos favorecidos; e, por fim, aquele programa vinculado a uma linha de

pensamento mais diretamente ligada ao mercado, ou seja, a casa definida a

partir da idéia de componentes (móveis, eletrodomésticos, bricolagem, etc.).

Sobre esse programa especificamente, Solà-Morales observa:

[...] estas novas ofertas surgem como partes decisivas para valores tão importantes como a distribuição dos espaços, a disposição de máquinas que auxiliam o trabalho doméstico ou a definição do caráter simbólico que o usuário quer atribuir a

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sua própria casa como resposta às necessidades de identidade e satisfação estética. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.96).

6.4 Panorama da arquitetura contemporânea

Vimos, no capítulo anterior, os principais indícios da transformação das

cidades ao longo do século XX através da análise de concepções urbanas

que surgiram simultânea e posteriormente ao momento moderno, da cidade

industrial. O objetivo foi pesquisar as origens de conceitos, tais como fluxos,

mutações, representação, mediação, fluidez e individuação, que se tornariam

essenciais à arquitetura da era informacional.

Da cidade passaremos, então, à arquitetura propriamente dita, de

forma a pesquisarmos as principais mudanças em seus métodos de criação e

representação em virtude dos conceitos anteriormente citados.

Ou seja, se para as cidades a introdução das idéias de mutação e fluidez

originou a descrença em sistemas absolutos de planificação, tais como pregados

pela vanguarda moderna, para a arquitetura o que mudou foi a compreensão

e definição de seus elementos constitutivos.

Neste sentido, é sintomático citarmos o tema e textos de apresentação da

mais recente mostra de arquitetura da Bienal de Veneza, ocorrida em meados de

setembro de 2004. O argumento do curador, Kurt Foster, era de que a arquitetura

atravessa momento de profundas transformações, o que o motivou a selecionar

Figura 27 - 9o Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza - Metamorph - Exposição Topografia. Fonte: www.vitruvius.com.br. Acessado em: 20 abr. 2005.

Figura 28 - 9o Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza - Metamorph - Exposição Transformazione. Fonte: www.vitruvius.com.br. Acessado em: 20 abr. 2005.

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centenas de projetos e obras concluídas em todos o mundo, representativos de

um novo vocabulário projetual. Assim, a mostra denominada Metamorph, era

constituída pelas sugestivas seções Transformações, Topografia, Superfícies e

Atmosferas.

Em síntese, a arquitetura contemporânea deixaria de priorizar a

conformação de espaços materiais, conceito que lhe definira desde as

formulações vitruvianas de comodidade, firmeza e beleza, elaboradas há vinte

e cinco séculos, e passaria, então, a ter que considerar a permanência da fruição

desses espaços, além dos eventos a eles vinculados. Ou seja, sob o ponto de

vista da tradicional relação espaço/tempo, a arquitetura da era informacional

mudaria o foco do primeiro para o segundo domínio.

Em outras palavras, o que vivenciamos desde finais do século XX é a

passagem da arquitetura firme, estável, sólida, imutável, para uma arquitetura

que poderia ser denominada como fluida, líquida.

Neste sentido, Solà-Morales assinala:O habitual na arquitetura é, portanto, que sua determinação se faça através de materiais sólidos, o que explica as repetidas considerações materiais e construtivas contidas nos tratados arquitetônicos ocidentais. Arquitetura tem a ver, tradicionalmente, com a idéia de permanência. Mas, o que acontece se tentarmos pensar desde outros extremos desses conceitos tradicionais? É possível pensar uma arquitetura cujo objetivo seja não o de ordenar a dimensão exata, mas o movimento e a duração? (SOLÀ-MORALES, 2002, p.125).

Figura 29 - Projeto vencedor do concurso para Plano Urbanístico de Astana, Casaquistão. 1998. Kisho Kurokawa. Fonte: http://home.t-online.de/home/anamande/astana01.jpg. Acessado em 02 out. 2004.

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No início do século XX, o pensador francês Henry Bergson (apud Solà-

Morales, 2002) tecera considerações sobre os domínios do espaço e do tempo

tal qual proposto pela física moderna, ou seja, embora totalmente relacionados,

enquanto pólos extremos de uma mesma realidade. Frente à corrente crença de

que o espaço constituía o verdadeiro suporte da arquitetura, e que, portanto,

o tempo representava a forma de experiência desse espaço, Bergson propôs

pioneiramente a necessidade de se considerar como prioritária a experiência

da duração, da continuidade e, assim, da diversidade e multiplicidade.

Em outros termos, a compreensão da arquitetura não se daria de antemão

através da visualização dos limites espaciais constituídos por seu suporte,

ou seja, pelos materiais que a conformam. Ao contrário, o que Bergson, e

posteriormente o também filósofo francês Gilles Deleuze (apud Solà-Morales,

2002), irão propor é que a arquitetura, enquanto manifestação da realidade,

ou das realidades em que vivemos, seja constituída pelos acontecimentos que

se fixam em nossa consciência, abrindo a experiência do espaço e do tempo à

acumulação, à multiplicidade e à intuição.

Em resumo, deixaria de existir na arquitetura a relação hierárquica entre

espaço e tempo, de forma que não só seus suportes materiais determinariam

a percepção dos espaços que ela cria, mas também outros fenômenos ligados

ao tempo e à idéia de fugacidade.

Para exemplificar a questão, vale comparar as diferenças de linguagens

Figura 30 - A TransArquitetura de Marcos NOvak.

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observadas entre duas manifestações arquitetônicas em voga nos anos

sessenta e setenta. São elas o minimalismo e as criações do grupo Fluxus7.

Enquanto que para a primeira, fundamentada na filosofia zen, é a busca pela

redução e pela essência formal o que está em jogo na arquitetura, para a

segunda, um movimento artístico que propôs a interação entre várias formas de

manifestação cultural, é, ao contrário, a busca pela acumulação, pela sucessão,

pela casualidade o que definiria a finalidade da criação arquitetônica. Para o

Fluxus, assim, é o tempo o fio condutor da arquitetura, sendo desnecessários,

conseqüentemente, as reduções ou os esquematismos formais.

Portanto, a arquitetura líquida poderia ser pensada enquanto a criação

de meios e estratégias para manipular os fluxos, a circulação de indivíduos,

bens ou de informação, o que se torna mais compreensível ao pensarmos em

áreas de troca, como aeroportos, estações marítimas ou ferroviárias.

Mas também em outros programas, o que definiria os procedimentos, a

essência da arquitetura fluida da era informacional? Embora se trate de uma

linguagem ainda em fase de conformação, portanto de difícil definição, algumas

chaves se abrem para o entendimento e proposição de seus mecanismos

criativos.

Uma delas é pensarmos na radical mudança ocorrida nos últimos dez

anos em relação à forma de representação arquitetônica. Em vez da tradicional

visualização perspectiva, em princípio definida como a tomada de ângulos, de

pontos de vista parciais, a experiência da arquitetura, ou seja, do lugar dos

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7 Denominação inspirada no pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito. Grupo fundado em 1961, principalmente por George Maciunas, tem como participantes arquitetos como Robert Morris, Sol Le Witt, Walter de Maria, etc. (SÒLA-MORALES, 2002, p.130/132)

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fluxos, é necessariamente sinestésica, tem a ver com a interação e a somatória

de estímulos.

Por isso, como veremos nos próximos capítulos, o extraordinário

desenvolvimento das ferramentas de criação e representação arquitetônica

através de tecnologias computacionais, adquiriu papel fundamental na

constituição do que se denomina arquitetura fluida da era informacional.

6.5 Fundamentação para as novas ferramentas arquitetônicas

Priorizar a base material da arquitetura, tal qual as noções vitruvianas

que predominaram na cultura ocidental até o século XX, implica pensarmos

que suas linguagens, estilos e tipologias derivam essencialmente de formas

de manipulação de materiais e técnicas construtivas. Por isso, desde Alberti

até Le Corbusier, a prioridade dos arquitetos foi refletir sobre os alcances e

possibilidades de aplicação de determinados recursos técnicos, construtivos,

pensamento que constitui a própria definição da tão discutida relação entre

arquitetura e tecnologia.

Porém, é fato que, embora a noção de material seja uma das bases

incontestáveis da arquitetura de todos os tempos, essa mesma noção mudou

muito desde meados do século XIX, principalmente a partir da busca dos

arquitetos modernos em ampliar a transparência das edificações.

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Seja através da conexão visual entre o interior e o exterior, do

estreitamento de paredes e da eliminação de divisórias internas através da

idéia da planta livre, ou seja, da separação ente elementos estruturais e de

vedação no sentido de favorecer a fluidez espacial, esses arquitetos modernos

teriam, em certo sentido, dado o pontapé inicial no que se pode denominar

processo de desmaterialização da arquitetura.

Ainda segundo Solà-Morales, nos pressupostos dos arquitetos

modernos: [...] estava a semente de uma ambição mais radical: fazer uma arquitetura em que o desenvolvimento tecnológico permitisse passar de espaços fechados por muros, mais ou menos transparentes, ao controle do ambiente através do controle energético. Ou seja, uma arquitetura sem muros necessários para o controle da luz, do clima, do ruído e de toda sorte de radiações. Assim, o projeto moderno deveria consumar sua vontade desmaterializadora. Com adequada iluminação e eletroacústica, um estádio se convertia em uma sala de concertos, um hangar industrial em um teatro. Com circuito interno de televisão poderiam desaparecer os obstáculos, as portas. Com um anúncio luminoso poderiam desaparecer as fachadas dos edifícios. A arquitetura do controle ambiental dissolvia toda materialidade, substituindo-a por efeitos instantaneamente modificáveis. A arquitetura estava nas intenções e nas infra-estruturas tecnológicas necessárias à sua produção. (SOLÀ-MORALES, 2002, p.40).

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Tal noção de imaterialidade, ou seja, da arquitetura que não tem como

prioritário o tratamento, a visualização e a ênfase em materiais com suportes

físicos no seu sentido tradicional, se desdobraria no entendimento da arquitetura

enquanto série de lugares e fenômenos instantâneos. Ou seja, as tecnologias

necessárias à sua constituição não mais seriam exclusivamente construtivas,

mas, ao contrário, tecnologias informacionais que acondicionam objetos, efeitos

e mensagens efêmeras.

Assim, podemos introduzir a questão ferramental da arquitetura da

era informacional, ou seja, a análise dos desdobramentos dos novos meios

computacionais em suas formas de criação e representação, através de alguns

elementos básicos por ela manipulados. Embora diversos, tais elementos têm

em comum a busca pela desmaterialização de que falamos anteriormente.

Ou, conforme os termos do texto de abertura da seção Atmosfera, na

mais recente Bienal de Veneza:[...] coisas evasivas e instáveis, fluidas e persuasivas, são de natureza difícil de ser descrita e ainda mais dificilmente de ser definida. Atmosfera é talvez o mais propício termo para ausência de superfícies, para um fenômeno insubstancial e em constante transformação. Como a respiração, a nuvem ou o crepúsculo, a atmosfera está em todos os lugares, embora jamais possa ser compreendida, tocada. As sensibilidades modernas respondem rápida e intuitivamente ao conjunto de mudanças na aparência e caráter das coisas. Há mais considerações para a vida dos edifícios do que mudanças cíclicas do dia e da noite, estações

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do ano ou temperaturas. Iluminação interna e externa; controle da temperatura interna, seu nível de ruídos e sua constante flutuação de atmosfera. Todos os indícios sugerem a vida inconsciente. (KURT FOSTER, 2004).

Ou seja, o que está por trás dos intrincados programas computacionais,

e de todos os esforços em torno de sua criação, é a necessidade de dar ao

arquiteto suportes ferramentais para criar e representar uma arquitetura que

seja definida como: espaço informacional, ou seja, aquele capaz de transmitir

não exclusivamente dados objetivos mas também ficcionais, simulados; espaço

definido e construído pelos efeitos da luz, seja ela natural ou artificial, tal

qual as experiências de Toyo Ito ou Jean Nouvel; e espaço da representação,

ornamental, em que se destacam os tratamentos de superfície pesquisados

pelos arquitetos Herzog & de Meuron.

Todas essas noções espaciais têm em comum um novo enfoque de

compreensão e de percepção do suporte físico, material, que constitui a

arquitetura, de forma a ele incorporar a percepção difusa, entre o visível e o

invisível, que caracteriza a sociedade e a cultura contemporâneas.

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Figura 31 - Estádio para as Olimpíadas de 2008, em Pequim. Herzog & Meuron.Fonte: http://www.ethlife.ethz.ch/images/stadionpeking-l.jpg. Acessado em 30 mar. 2005.

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6.6 A aplicação da ferramenta computacional na Arquitetura

Embora as formulações conceituais da arquitetura da era informacional

não tenham se delineado repentinamente mas, ao contrário, através de várias

manifestações culturais e arquitetônicas que surgiram desde o período áureo

do movimento moderno no início do século XX, existe um momento instaurador

do que viria configurar uma completa revolução na forma de pensar e criar o

espaço arquitetônico.

Trata-se, em síntese, do momento em que as tecnologias computacionais

se tornam a ferramenta necessária ao arquiteto da era informacional para que

ele aplique, e explicite, todos aqueles conceitos de que falamos anteriormente,

ou seja, a desmaterialização, a somatória de experiências, de informações, de

estímulos sensoriais, a autonomia entre as partes, enfim, a individuação da

experiência arquitetônica.

Antes de esmiuçarmos as características e propriedades de tais

tecnologias, propomos a reflexão sobre um dos elementos centrais à atividade

do arquiteto, ou seja, a criação e a discussão em torno de imagens. E imagens,

aqui, enquanto uma representação do real, ou seja, imagens de representação

visual, assim como ditas imagéticas, ou seja, frutos de nossa mente, sem

qualquer origem material.

Em síntese, tanto para a arquitetura quanto para qualquer outra área

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de criação, é através das imagens que se representam os objetos da criação,

ou seja, aquilo que se deseja concretizar. Claro, portanto, que a forma de

tal representação, ou seja, que a natureza e magnitude dos processos de

formulação de imagens, tem a capacidade de influenciar o entendimento do

objeto criado, tanto pelo autor quanto por terceiros.

Em outras palavras, no momento mesmo da criação, a visualização do

objeto criado pode alterar suas características iniciais, em um processo dinâmico

em que interagem a criação, a representação, a compreensão e a intenção. Ou,

como explica Ivan Piccoli dos Santos: O arquiteto interage com os elementos que deveriam estruturar o espaço não somente através das representações destes, como é o caso da projetação convencional, mas também através da ação da percepção que o espaço proporciona ao ser moldado e vivenciado.Assim, ao se encontrar dentro do espaço ao mesmo tempo que está sendo projetado, o arquiteto imergindo no espaço, torna-se o agente que correlaciona as sensações às ações necessárias para a modificação de um espaço indicial até obter as condicionantes formais e que antes só apresentava como um todo, dentro do espaço imagético, ou seja, no espaço imaterial do pensamento. (SANTOS, 2000, p.180).

Falamos aqui da realidade virtual, ou seja, da simulação do espaço

arquitetônico e dos fenômenos a ele ligados, através de um suporte lógico, de

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um programa denominado genericamente de software, que, em síntese, faz

interagir a máquina e o usuário. O que procuramos descobrir é porque, embora

os computadores já fossem utilizados em escritórios de arquitetura há mais

tempo, houve um determinado momento, na virada do século XXI, em que ele

provocou uma verdadeira revolução na forma de se projetar e compreender a

arquitetura.

Assim, seria interessante nos retermos por um instante na questão da

linguagem e das hierarquias computacionais. Ou seja, qualquer que seja a

finalidade do uso do computador, qualquer que seja a natureza de seu usuário,

é necessário o desenvolvimento de uma plataforma de comunicação entre o

usuário e a máquina, o software de que falamos há pouco, que é constituído

por estruturas sintática e semântica.

O software pode interagir com determinadas partes ou com todo o

hardware, que são as unidades físicas dos computadores, e as formas de

relacionamento entre o usuário e o software podem ainda ser hierarquizadas

ou arbitrárias. Em síntese, relacionamento hierarquizado é o que propõem os

softwares denominados algorítmicos, ou seja, aqueles baseados em seqüência

de ações para se resolver determinado problema, enquanto que relacionamento

arbitrário é a base do que viria a se denominar software heurístico ou software

paramétrico. A definição de paramétrico deriva da palavra parâmetro, que por

sua vez denota todo elemento cuja variação de valor altera a solução de um

problema sem alterar-lhe a natureza.

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Esta definição transformou completamente a forma de interação entre

o arquiteto e o computador, na medida em que opera com a denominada

linguagem de objeto orientado. Ou seja, as variáveis, os parâmetros

associadas pelo usuário, relacionam-se a determinado objeto que, por sua

vez, está relacionado a outros objetos, em infinitas possibilidades de interação

imediata entre as partes e o todo. Em síntese, os mais sofisticados softwares

paramétricos, de que são exemplos potenciais os sistemas CAD (computer

aided design) e CAM (computer aided manufacturing), são capazes de realizar

desenhos completamente em terceira dimensão, da qual pode-se extrair as

plantas, seções, detalhes ou seleção de materiais e, através da conectividade

com outras máquinas, enviá-los diretamente para outros agentes envolvidos

na execução do projeto arquitetônico.

O arquiteto norte-americano Frank O. Gehry foi um dos pioneiros nesse

assunto. Em 1989, o projeto de sua monumental escultura em forma de peixe

para as Olimpíadas de Barcelona de 1992, contou com a assistência de um

software denominado Catia (Computer AssistedTthree-dimensionalIinteractive

Aplication), originalmente desenvolvido para a indústria aeroespacial francesa.

Mas, foi o papel decisivo que teve tal software para o projeto não executado

do Auditório Disney de Los Angeles, o que revelou a enorme potencialidade do

uso do computador para as criações arquitetônicas.

Gehry projetara curvas para a sala de concertos através de maquete

física e, com o escasso tempo de que dispunha para construir uma maquete

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em escala e revestimento reais e apresentá-la na Bienal de Veneza, na Itália,

o arquiteto lançou mão de todas as possibilidades do Catia enquanto software

que, ao mesmo tempo em que simula formas tridimensionais, cria também

construções geométricas e determina especificações construtivas. Assim, como

assinala Fabio Duarte:No projeto do Disney Concert Hall, os computadores do escritório estavam conectados com a indústria de cortes de pedra na Itália. Assim, diretamente dos modelos digitais 3D desenvolvidos no escritório de Gehry, as informações migravam à Itália, sem necessitar sua transposição para pranchas de duas dimensões; os computadores decidiam o melhor modo de cortar as pedras, economizando material” (DUARTE, 1999, p.158).

O próprio arquiteto é testemunho da passagem da posição cética para a

profunda crença no computador enquanto promissora ferramenta de desenho

arquitetônico, seja em virtude dos potenciais de simulação e sistematização

construtiva de seus softwares, ou então de sua irrestrita potencialidade de

interconexão a outros computadores. Gehry, que no início, ainda na fase

de concepção do peixe de Barcelona, anunciava sua completa descrença

nos computadores enquanto elemento de desenho arquitetônico, passou do

escaneamento 3D de maquetes físicas à completa adoção do sistema Catia no

projeto que se tornaria um de seus mais importantes, o museu Guggenheim de

Bilbao, na Espanha.

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Figura 32 - Disney Concert Hall, Frank Gehry. Fonte: http://www.arcspace.com/architects/gehry/disney2/Acessado em 01 mar. 2005.

Figura 33 - Disney Concert Hall, Frank Gehry. Fonte: http://www.arcspace.com/architects/gehry/disney2/Acessado em 01 mar. 2005.

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Segundo James Steele: A aproximação de Gehry, tal como se manifesta em Bilbao, está muito distante de considerar o moderno como um estilo mas, contudo, nos mostra a essência material do que significa ser moderno. Resultado de aplicar uma tecnologia especializada, da qual o arquiteto é o responsável por introduzir na profissão, (...), o Guggenheim de Bilbao está adiante de seu tempo, como o estava em finais dos anos cinqüenta a espetacular espiral de concreto de Frank Lloyd Wright no Guggenheim nova-iorquino. (STEELE, 2001, p.133).

E, continua Steele:A importância da maioridade da aplicação Catia por parte de Gehry e sua equipe de projetos e produção em Bilbao, vai muito além da possibilidade de manipular e documentar as formas complexas dos primeiros desenhos e maquetes da proposta, e habilitar finalmente sua construção. O diretor do escritório de Gehry, Jim Glymph, [...] sustenta que o que difere o Catia de outros sistemas é que ele utiliza equações polinômicas, de modo que, em lugar de definir só a situação dos pontos no espaço, como fazem a maior parte dos sistemas, a aplicação Catia é também capaz de definir com uma equação qualquer superfície, o que implica que se consulta um ponto concreto dessa superfície, com Catia o pode conhecer. (STEELE, 2001, p.129).

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Figura 34 -Aplicação do CATIA no projeto do Guggenheim de Bilbao. Frank Gehry. Fonte: STEELE, J. Architecture y Revoución Digital. p.132.

Figura 35 - Guggenheim, Bilbao. Frank Gehry. Fonte:http://www.digischool.nl/ckv1/architectuur/gehri1.htmAcessado em 01 mar. 2005.

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Neste sentido, é patente a inflexão ocorrida na obra de Frank Gehry após a

apropriação dos meios computacionais em seu método projetual. Assim, quando

se comparam seus trabalhos e ensaios anteriores ao uso de tais ferramentas

com os atuais, nota-se com clareza um salto qualitativo impressionante,

pelo menos no que diz respeito aos aspectos formais que caracterizam a sua

produção arquitetônica.

Ainda que a experiência de Gehry se relacione a um software específico,

a que nem todos os arquitetos ou escritórios de arquitetura têm acesso, a

realidade virtual propriamente dita tornou-se, desde finais do século XX, um

instrumento de desenho bem familiar à profissão.

Uma das hipóteses para checarmos os possíveis caminhos da arquitetura

contemporânea é, portanto, compreendermos como se estruturam os

mecanismos da realidade virtual, analisarmos seu vocabulário. E, neste

sentido, pode-se dizer que existem duas técnicas principais de projetação, que

se denominam topologias operativas e proto-arquitetura.

Foi o arquiteto catalão Alejandro Zaera, sócio da iraniana Farshid Moussavi

no escritório londrino FOA (Foreign Office Architects), quem primeiro sugeriu a

denominação topologia operativa. Dentro de um esquema de representação de

superfícies através de malha de pontos conhecidos [tanto em termos de suas

propriedades materiais quanto de sua localização no espaço], denominada

wireframe, o que Zaera propõe é que a obtenção de resultados espaciais

deriva da manipulação de tais nós. Portanto, ao se manusear cada um dos nós

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Figura 36 - Perspectiva Projeto Metz Pompidou Merkezi - FOA. 1992. Fonte:http://www.arkitera.com/proje/pompidou/foa.htm. Acessado em 25 fev. 2005

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do wireframe, à exemplo de um escultor, determina-se o volume, as formas

arquitetônicas. Neste cenário, a geometria euclidiana dá lugar a uma geometria

flexível para a constituição da linguagem arquitetônica.

Já proto-arquitetura, ou seja, arquitetura de protótipos, é o nome do

procedimento que possibilita a experimentação de espaços virtuais através da

imersão, através de imagens em escala e resoluções reais, além de permitir

alterações no projeto durante o próprio processo de experimentação.

Neste sentido, conclui Piccoli dos Santos:

Podemos concluir que as ações programáticas, ou seja, as relações que determinam a produção dos espaços arquitetônicos a partir da utilização da Realidade Virtual, refletem uma retomada de uma ideologia que não se desenvolveu até meados da década de noventa, em decorrência da ausência de tecnologias de construção e de representação capazes de traduzir ao mundo das percepções humanas, todas as variáveis contidas nos processos de projetação sugeridos por Gaudi, por Boccione e por Kiesler.[...] Assim, se na arquitetura moderna a forma segue a função, podemos dizer que na Arquitetura por Simulação, quer seja o suporte fios e saquinhos, a malha de ferro das estruturas de concreto, a tela de arame das maquetes de Kiesler, ou a utilização de aparatos digitais, quer se voltem à materialização concreta ou à materialidade experimental da mídia digital, a ação é que acaba por gerar a forma destes novos espaços arquitetônicos. (SANTOS, 2000, p.191).

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Em qualquer dos casos, pode-se dizer que da realidade virtual, que

transformou a forma de experiência espacial do homem, é o traço distintivo da

nova era, telemática, informacional.

Ela decorre de um novo estágio evolutivo na história da humanidade,

ou seja, através da criação e aperfeiçoamento de uma nova tecnologia, a

computacional, o homem tornou possível o convívio e a apreensão dos espaços

denominados virtuais. Eles derivam da aplicação de algumas ferramentas

tecnológicas principais, que estão agrupadas principalmente no âmbito da

computação gráfica, da multimídia8 e hipermídia9.

Trata-se de uma nova interface de comunicação, assim como fora,

em menor escala e alcances, a criação do telefone e da televisão. Enquanto

ferramenta de comunicação, pode-se dizer que a realidade virtual é multi-

disciplinar, ou seja, diz respeito a diversas áreas, embora seu foco sejam as

novas possibilidades de desenvolvimento de ambientes virtuais.

A conjugação entre realidade virtual e comunicação deriva de diversos

fatores, entre os quais do denominado design de interfaces, que conecta

diversos meios de comunicação, da criação de novos canais sensoriais para a

circulação da informação, assim como da própria midiatização da comunicação,

seja ela entre pessoas ou entre pessoas e máquinas.

Se o sistema de comunicação é definido através de funções combinadas

em uma interface dominante, assim como por seus canais de transmissão e

infra-estrutura organizacional, os elementos de design de mundos virtuais são

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

8 Multimídia: Combinação de diversos formatos de apresentação de informações, como textos, imagens, sons, vídeos, animações, etc., em um único sistema. (FERREIRA, 1999).9 Hipermídia: Conjunto de informações apresentadas na forma de textos, gráficos, sons, vídeos e outros tipos de dados, e organizadas segundo o modelo associativo e de remissões, próprio do hipertexto. (FERREIRA, 1999).

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por outro lado a plataforma, os dispositivos interativos, as ferramentas de

sistemas logicionários e, fundamentalmente, o próprio usuário.

Experiências com realidade virtual parecem dominadas por informações

arquitetônicas, embora sejam essencialmente imateriais. Portanto, qual seria

a natureza da utilização desse novo meio de comunicação pelos arquitetos?

A produção de espaços, simultaneamente habitados e transformáveis,

poderia revelar uma nova espacialidade? Por sua vez, a transmissão dessa

nova espacialidade configuraria uma forma inédita, particular à nossa era, de

intercâmbio de informações? E de que forma esses novos fatores transformariam

significativamente nosso modo de habitar?

Para boa parcela dos pesquisadores ligados ao estudo da informática, o

uso da expressão Realidade Virtual tem se limitado a designações de natureza

tecnológica, restringindo o conceito à combinação entre a noção de ambientes

eletronicamente simulados e a necessidade de dispositivos auxiliares que lhes

tornem acessíveis.

Assim, a realidade virtual pode ser definida enquanto simulações

eletrônicas de ambientes imateriais, experimentadas através de acessórios

especiais, como capacetes e roupas “plugadas”, que permitem ao usuário final

interagir em situações tridimensionais realísticas. Trata-se, portanto, de um

mundo alternativo, preenchido com imagens geradas por computador que

respondem aos movimentos humanos.

Melhor seria, talvez, definir a realidade virtual a partir de conceitos

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filosóficos, de forma a estabelecer como foco a experiência humana desses

espaços, em detrimento das particularidades tecnológicas do hardware que a

origina.

Assim, um breve olhar sobre os pioneiros da pesquisa de Realidade

Virtual aponta tendências diversas de desenvolvimento. Mas derivam de Jaron

Lanier (HEIM,1993, p.116), os cinco conceitos que têm guiado boa parte das

pesquisas sobre o assunto.

O primeiro deles é o da simulação, que indica a vontade de criar o mundo

virtual formalmente semelhante à realidade concreta. A simulação, obviamente,

demanda profundo conhecimento dos gráficos de computação e dos sistemas

de som tridimensionais, cada vez mais evoluídos, por parte do designer.

O segundo conceito é o da interação, que se refere ao grau em que os

usuários podem influenciar a forma ou o conteúdo do ambiente midiatizado.

Alguns vêem realidade virtual em qualquer representação eletrônica que lhes

permita certo grau de interação, como, por exemplo, limpar a lixeira de um

computador pessoal. Porém a interação, como a entendemos, pressupõe

obrigatoriamente a intervenção, a troca, e o envolvimento ativo do usuário. Isto

inclui, por exemplo, a relação possível entre pessoas desconhecidas através do

contato pelo telefone ou pela Internet.

O terceiro conceito, denominado imersão, permite a ilusão de habitar

mundos virtuais, e está relacionado à invenção de dispositivos específicos, como

capacetes, sistema de acústica tridimensional e luvas. A imersão completa,

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Figuras 37, 38, 39 - Imagens imersivas da CAVERNA Digital do Núcleo de Realidade Virtual do LSI (Laboratório de Sistemas Integráveis), vinculado à Escola Politécnica da USP.Desenvolvido por pesquisadores do LSI-EPUSP, esse sistema é conhecido nos Estados Unidos como Cave (Cave Automatic Virtual Environment) e na Europa como Cube.

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conhecida como imersão de corpo inteiro, demanda procedimentos mais

complexos, como a criação de um espaço em torno do corpo, uma cápsula, e

sensores capazes de reproduzir sensações de toque, peso, calor etc.

A chamada “Telepresença”, o quarto conceito, pressupõe que estar

presente em um lugar, de forma remota, significa também estar nele

virtualmente. O atendimento médico à distância e a teleconferência são bons

exemplos de aplicação deste conceito.

E o quinto conceito refere-se à possibilidade de comunicações em redes,

através da conectividade entre diferentes mundos virtuais, em que pressupõe-

se, portanto, a presença de ao menos duas pessoas. Auxiliada pelas técnicas

de realidade virtual, tal forma comunicação permite também aos usuários

compartilharem eventos e abstrações, que não necessariamente utilizam como

suporte palavras ou referências reais.

Mas afinal, o que podemos considerar como virtual? Pierre Lévy, importante

pesquisador das alterações sociais causadas pelo impacto das novas tecnologias,

lembra que a palavra virtual vem o latim vitualis, de virtus, que significa força,

poder. O que reforça a idéia de que o virtual não se contrapõe ao real, como o

falso ou imaginário, mas, como acredita Lévy, “é, ao contrário, uma maneira

de ser fecundo e poderoso, que enriquece os processos de criação, abre novos

futuros, cava poços de sentidos sob a planura da presença física imediata”

(LEVY, 1995).

O processo que visa efetivar a presença à distância, ou telepresença,

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que é o conceito mais transcende dos referidos anteriormente, sob o ponto

de vista perceptivo, inicia-se com a ligação de órgãos sensoriais do usuário

aos dispositivos de saída do computador. Estes dispositivos são controlados e

guiados para um ou mais computadores com o fim de gerar uma simulação

convincente à visão, ao tato e à audição, de um outro ambiente, o virtual.

Neste sentido, efetivar a presença à distancia é mais uma destinação que um

objetivo. Uma destinação a um lugar psicológico, a uma locação virtual.

Já segundo Anja Pratschke (2002), os sistemas de realidade virtual podem

ser classificados em quatro tipos, dependendo dos níveis de telepresença que

eles viabilizem:Sistema de janela; a tela do computador provê uma janela ou um portal para um mundo virtual tridimensional e interativo. Computadores pessoais são freqüentemente usados, e os usuários equipam-se, às vezes, de óculos 3D para obter efeitos estereoscópios.Sistema de Espelho; os usuários olham para uma tela de projeção e vêem uma imagem deles mesmos movendo-se em um mundo virtual. Usa-se um equipamento de vídeo para gravar as imagens do corpo do usuário. Um computador sobrepõe esta imagem em um fundo gráfico. A imagem deles mesmos espelha, na tela, seus movimentos concretos, fato que explica o nome Sistema de Espelho.Sistema auxiliado por Veículo; os usuários entram no que viria a ser um veículo (por exemplo, tanque, avião, cápsula espacial, etc) e opera controles que simulam movimento no mundo virtual. O mundo

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é freqüentemente projetado em telas. Os veículos podem incluir plataformas móveis que ajudam a simular movimento físico.Sistema de “Caverna”; os usuários entram em uma sala ou cômodo onde encontram-se rodeados por grandes telas nas quais projeta-se uma cena virtual quase contínua. Óculos 3D são usados, às vezes, para potencializar o sentido de espaços. Classificando-se os sistemas em função da relação que mantêm com a realidade concreta, podemos citar:Sistemas Virtuais Imersivos; Os usuários equipam-se com dispositivos que imergem completamente um certo número de sentidos em estímulos gerados por computador. Os capacetes estereoscópios constituem um elemento central deste sistema.Sistemas de realidade Aumentada; os usuários equipam-se de capacetes que sobrepõe objetos virtuais tridimensionais a cenas do mundo concreto. (PRATSCHKE, 2002, p.62).

Do ponto de vista técnico, o desenvolvimento de um sistema de realidade

virtual é uma tarefa complexa que envolve, basicamente, um suporte de

comunicação em rede, a criação de ambientes virtuais, a consideração da possível

atuação dos usuários e a criação de personagens gerados por computador.

Seus elementos essenciais são os dispositivos de entrada, tais como

visuais, auriculares, táteis, nasais e orais, que, através da cinemática, traduzem

os movimentos corpóreos para a linguagem computacional, e, por outro lado,

o software de realidade virtual que cria ou recria o ambiente virtual.

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A aplicação final do conceito de realidade virtual pode servir a um meio

de comunicação de múltiplos interesses, como uma combinação de televisão

e telefone, por exemplo, envolvendo suavemente nossos sentidos. Em livros

técnicos encontra-se a descrição de realidade virtual como a etapa seguinte

e lógica dentro da história dos meios de comunicação. Com isso, parece que

todas as aplicações no campo da realidade virtual podem ser consideradas

como eventos comunicativos, já que envolvem a comunicação entre usuário e

computador, assim como entre os próprios usuários.

Enfim, nota-se que a contribuição da arquitetura é fundamental à criação

dos mundos virtuais, sobretudo porque se faz necessária a criação de um

simulacro dos ambientes tangíveis.

Por outra análise, é possível também que a realidade virtual amplie a

compreensão tradicional da arquitetura, configurando novas formas de diálogo

entre a atividade profissional e o mundo concreto. Conseqüentemente, é provável

que se estabeleçam novos paradigmas referentes aos modos de se habitar com

o auxilio da realidade virtual, tais quais já propõem alguns arquitetos, como

Marcos Novak e o grupo NOX.

Figura 40 - A TransArquitetura de Marcos NOvak.

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6.7 O programa habitacional contemporâneo sob a perspectiva das novas ferramentas arquitetônicas digitais

Vimos, nos capítulos anteriores, que os enormes avanços das ferramentas

computacionais arquitetônicas criaram a completa transformação das

referências espaciais em voga há vinte e cinco séculos na arquitetura, ou seja,

desencadearam o questionamento ou relativização de parâmetros como a ação

da gravidade e a linha do horizonte, em detrimento de uma nova linguagem

espacial. Assim, a realidade virtual, que viria substituir a experiência real do

espaço edificado, seria estruturada por referências exclusivamente matemáticas,

imagéticas e simbólicas.

Neste cenário, as formas de interação entre usuário e máquina adquiriram

papel fundamental, e até transformador, das demandas humanas e profissionais

pela configuração de novos espaços e, em função do aumento irrestrito da

quantidade e diversidade de informações disponíveis, inclusive visuais, tornou-

se urgente pensar na qualidade de tais interfaces10.

Retomando, por outro lado, a especialização do programa habitacional

contemporâneo tal qual proposta por Ignasi de Solà-Morales, análise citada

anteriormente neste trabalho, definem-se dois grupos programáticos principais.

O primeiro deles pertence ao chamado mercado imobiliário, de que não

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

10 Conforme Pierre Lèvy, “em termos de interfaces há duas linhas paralelas de pesquisas e desenvolvimento em andamento. Uma delas visa a imersão através dos cinco sentidos em mundos virtuais cada vez mais realistas (...). Nesta abordagem das interfaces, o humano é convidado a passar para o outro plano da tela e a interagir de forma sensório-motora com modelos digitais. Em outra direção de pesquisa, chamada de realidade ampliada, nosso ambiente físico natural é coalhado de sensores, câmeras, projetores de vídeo, módulos inteligentes, que se comunicam e estão conectados a nosso serviço. Não estamos mais nos relacionando com um computador por meio de uma interface, e sim executamos diversas tarefas em um ambi , 2000: 38)

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trataremos aqui, que, embora responsável por boa parte dos projetos atuais

no Brasil e exterior, se caracteriza pela grande homogeneidade das soluções

arquitetônicas.

Em outro extremo, definem-se programas em que há maior grau

de interação entre a arquitetura e o usuário final, como as moradias para

grupos específicos, tais como terceira idade, temporários e imigrantes; assim

como as habitações de conotação artística, a exemplo das tão divulgadas

casas de arquiteto; ou ainda as moradias em que os componentes, tais como

equipamentos e peças de mobiliário, se tornam elementos articuladores do

programa e determinantes das características espaciais.

É importante salientar que, ao analisarmos a produção arquitetônica

residencial de Le Corbusier, especialmente as de sua primeira fase, como as

chamadas casas brancas, percebe-se que seu público alvo se restringia, neste

caso, a uma elite intelectual ou a uma burguesia emergente que se tentava se

afirmar como classe de um estamento velado no início do século XX.

Abordaremos esse segundo grupo programático, tal qual abordamos

na primeira parte do presente trabalho, quando tratamos do ideário moderno

representado pela produção de Le Corbusier, sobretudo porque ele é definido por

um aspecto central na arquitetura e na própria sociedade da era informacional,

ou seja, pela possibilidade de customização, de individualização. Assim, com

exceção aos edifícios ditos tecnológicos ou inteligentes, é nesse grupo que se

pode testar ao extremo as possibilidades de simulação virtual, conexão pela

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web e interatividade do computador com o usuário.

Também ele corresponde à nova atmosfera tecnológica e social que

emergiu com a era informacional. Ou seja, passaram a integrar os projetos

arquitetônicos, tanto pelos arquitetos quanto por seus interlocutores, a

sensibilidade em relação a novos materiais, a diferentes padrões e organizações

sociais, processos relacionados por sua vez à irrestrita conectividade através

de computadores.

Assim, pode-se dizer que a característica principal da sociedade

contemporânea é sua enorme habilidade em manipular informações, o que

diferencia a relação entre os diversos agentes do espaço arquitetônico. Ou

seja, assim como os programas paramétricos de criação tridimensional e de

visualização virtual se tornaram poderosas ferramentas de trabalho para os

arquitetos, representaram também a ampliação da capacidade de compreensão e

de interação dos arquitetos e seus interlocutores com os espaços projetados.

Complementarmente a este fato, também as estruturas sociais e

familiares sofreram enormes transformações, tornaram-se mais complexas na

passagem para a era atual. De forma genérica, os casamentos são mais tardios

do que há alguns anos atrás, as famílias são menores, com menos filhos, sem

contar na grande parcela de habitações voltadas a solteiros, situações que

demandam soluções diversas de habitação. Assim, solicitações mais complexas

e diversificadas de moradia exigem, conseqüentemente, um novo tipo de ação,

de atitude e projeto arquitetônicos.

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ERNANI MAIA - A NOVA MÁQUINA DE MORAR: UM HARDWARE DE MORAR?

Figura 41- Torre BATC - HAMZAH y YEANG. Fonte: STEELE, J. Architectura y Revolución digital. pág. 41.

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Em sua tese de mestrado no Massachusetts Institute of Technology, em

2000, Gregory Demchak afirma que:

[...] a casa pós-industrial será um sistema de partes que existem dentro de um sistema de relacionamentos e de um complexo arranjo de variáveis que são conectados através de dados matriciais. A casa será o produto de uma linguagem coerente: a expressão de relações arquitetônicas e de variáveis definidas pelo usuário [...]. O desafio, então é propor um vocabulário arquitetônico para a construção de casas e, a partir desse vocabulário, discernir um grupo de variáveis que possibilitem ao cliente rapidamente customizar o seu meio-ambiente. (DEMCHAK, 2000, p.72).

Vale se ater por um instante à definição de dados matriciais acima citada.

Segundo Fábio Duarte, as matrizes são:

[...] entendidas como a organização de paradigmas de várias disciplinas que formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo. Elas não são o seu modelo, a sua fôrma: são suas matrizes, que o constituem e por ele são constituídos. (DUARTE, 2002, p.14).

Assim, o que Demchak aborda é a natureza e a diversidade dos elementos

integrantes da habitação virtual, ou seja aquela construída hipoteticamente

através dos softwares computacionais, de forma a questionar-se acerca de

seus elementos constitutivos e características de interação com o usuário. E

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vale lembrar que, o meio-ambiente virtual, modelado pelo computador, passou

a ser organizado por um cenário de regras lógicas que definem os limites dos

ajustes possíveis.

Neste sentido, existem três elementos-chaves envolvidos no projeto de

residências com assistência virtual. São eles: a plataforma de comunicação com

o usuário; os modelos paramétricos, que podem ser editados; e um sistema

pré-fabricado de construção que comporte alterações customizadas ainda na

linha de montagem.

O primeiro deles é o terreno em que são lançadas as solicitações, os

desejos e as preferências do usuário, através de uma interface computacional

que priorize a interação intuitiva. Ou seja, embora os softwares de modelagem

3D e de realidade virtual derivem de um complexo sistema de conhecimento

matemático e arquitetônico, a única informação que o cliente deverá dominar

é o procedimento e a possibilidade de adicionar dados, de ajustar rápida e

facilmente as variáveis dos projetos ainda na fase de concepção.

Neste sentido, o que Demchak enfatiza é que:

[...] a interface corresponderá ao lado do cliente no processo de desenho e o lugar aonde as variáveis serão ajustadas e opções exploradas. O programa de recepção usará essas definições do cliente para definir vocabulários espaciais e estéticos que, então, irão gerar modelos paramétricos [...]. Da definição das alturas e larguras de um ambiente, à especificação dos equipamentos do escritório, as ferramentas de desenho atuarão como o mediador

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primário de informações relativas ao desenho e à construção de novas casas [...]. A classe emergente de consumidores instruídos tem mais controle sobre as formas como a tecnologia é manipulada e desenhada. (DEMCHAK, 2000, p.72).

Assim, inserida em uma sociedade em que tudo é passível de consumo,

também a casa, poderá ser, à exemplo de um carro ou da alta-costura,

comercializada como um símbolo de estilo de vida e, portanto, deverá ter

a habilidade de ser receptiva à várias conotações pessoais e estilísticas. Ou

seja, em substituição ao raciocínio extremamente funcionalista, a sociedade

informacional enfatiza o estilo pessoal, a imagem e a qualidade de vida.

Ou seja, as possibilidades da nova era demandariam ferramentas

de desenho baseadas na interatividade, na web, o que ampliaria o foco da

atividade do arquiteto à exponenciação do conceito de prestação de serviços

de arquitetura, no caso, à procura por uma nova casa.

No que diz respeito ao sistema construtivo e, portanto, às categorias ou

gramáticas formais que constituem os softwares de desenho arquitetônico,

Demchak identifica dois grupos principais. Ou seja, de um lado figuram os

elementos classificáveis entre internos ou externos e, de outro, aqueles que

podem ser considerados suportes [a estrutura ou o envoltório] ou elementos

destacáveis, periféricos [aqueles que podem ser modificados].

Em qualquer dos casos, o desafio imposto ao projeto da casa contemporânea

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Figura 43 - Maison T, Jakob + Macfarlane, La Garenne-Colombes, França. Fonte: KRAUEL, J. Casas Inovação e Design. pág.167.

Figura 42 - Maison T, Jakob + Macfarlane, La Garenne-Colombes, França. Fonte: KRAUEL, J. Casas Inovação e Design. pág. 167.

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é tornar os elementos industriais, fabricados em série, receptivos à solicitações

customizadas, individuais. A diferença estaria na conexão entre setores

da indústria, como acabamentos e tipos de cortes de peças, por exemplo,

diretamente ao software de desenho através da web.

Ou seja, a interação do arquiteto e do usuário dos serviços de arquitetura

com esses elementos materiais, industrializados, se daria ainda na etapa de

desenho, durante o processo de modelagem 3D. Através do que se denomina

gramática da forma, em síntese de um sistema de elementos que a definem e que

é baseado em parâmetros arquitetônicos, ambientais, tecnológicos, funcionais,

estéticos e econômicos, a arquitetura poderia influenciar e determinar variações

no próprio processo de fabricação de elementos construtivos.

Em síntese, o desafio produtivo da arquitetura residencial da era

informacional seria explorar ao máximo as potencialidades da pré-fabricação

customizada, o que corresponde não somente a uma nova forma de construção,

mas também da própria utilização dessas moradias. Embora a customização

não seja um atributo inerente ao processo industrial, deve sê-lo em um sistema

integrado ao contexto pós-industrial, no qual se delinearia, portanto, o que

podemos denominar de customização em massa.

Com isso, podemos traçar uma analogia, mesmo que superficial, entre

as idéias Corbusierianas de casas em série, construídas com elementos

estandardizados, tal qual a concepção produtiva da era da máquina, e a

discussão proposta por Demchak. Com ele, configuram-se novos condicionantes

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que complementam os anseios do velho mestre.

Através de softwares, de sistemas integrados e interconectados, ou seja,

de suportes tecnológicos, seria otimizada, portanto, a relação entre arquiteto,

cliente e produção, sem, contudo, ocasionar a pasteurização produtiva da

arquitetura.

Trata-se da demanda por flexibilidade que, conforme vimos em capítulos

anteriores, identifica a passagem da sociedade e arquitetura modernas para as

atividades da era informacional. Ou seja, as novas casas teriam o desafio de

favorecer contínuas transformações, quer pela ação dos seus moradores atuais

ou pelas demandas de futuros habitantes.

A hipótese apontada por Demchak em sua tese refere-se aos já citados

conceitos de suporte e elementos periféricos enquanto sistemas materiais,

concretos, das habitações. Em sua análise:

Toda casa será dotada de um envelope estrutural dentro do qual módulos internos conectáveis serão organizados para criar quartos, depósitos, divisões, escritórios e passagens de serviço. Todas as paredes internas serão ao mesmo tempo adaptáveis e flexíveis; aonde adaptabilidade implica a habilidade de transformação espacial em conjunto com mudanças fundamentais no modo de vida, e flexibilidade implica a habilidade dos objetos de serem movidos ou acomodados a novas demandas. Um exemplo de uso flexível pode ser a conversão de um local de trabalho em um ambiente de entretenimento, através da rotação de uma

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unidade modular [...]. Ao distinguirmos a casa entre suportes e unidades destacáveis nós estamos radicalmente nos afastando das práticas convencionais de construção de moradias. (DEMCHAK, 2000. p.89).

Assim, as unidades destacáveis de que trata Demchak referem-se à

unidades modulares independentes, plantas-tipo de pequenas dimensões que

são intercambiáveis e interconectáveis no interior da residência.

Em outro sentido, a flexibilidade pode incidir também na aparência das

superfícies que envolvem, interna e externamente as construções, o que nos

leva novamente à questão da interação entre os programas paramétricos de

desenho e a produção industrial customizada. Está idéia coloca em cheque

fundamentalmente um dos marcos do ideário Corbusieriano, preconizado na

célebre frase “A forma segue a função”.

Ou seja, com os conceitos de fluidez e flexibilidade aliados aos mecanismos

de realidade virtual, pode-se chegar a conclusão de que, através do domínio de

tais elementos e conceitos, “ A forma segue o momento” e “A função segue o

instante ou a necessidade”.

De qualquer forma, ainda que tais possibilidades e processos dependam

de um nível de desenvolvimento e aparato tecnológico compatíveis com sua

realização, o que se propõe aqui não é discutirmos as polaridades, distribuição

ou exemplos específicos de países ou de cidades, ou ainda de setores delas,

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habilitados a adotarem integralmente as novas possibilidades tecnológicas da

arquitetura da era informacional.

O objetivo, ao contrário, é identificar nas hipóteses da moradia

contemporânea, elementos relacionados às mudanças tecnológicas, sociais e

culturais de que tratamos nas páginas anteriores do presente trabalho. Ou

seja, identificar em conceitos atuais de habitação, os lugares e elementos

da individuação, das atmosferas recriadas, da interação e superposição de

fenômenos informacionais, sejam eles de entretenimento, funcionais ou de

conforto ambiental.

Em suma, a intenção é traçarmos o paralelo entre as novas possibilidades

arquitetônicas para o programa habitacional e a nova sensibilidade do homem

da era informacional.

E, neste sentido, vale ressaltarmos que, tanto na visão do norte-americano

Gregory Demchak, quanto na classificação programática do catalão Ignasi de

Solà-Morales, assim como em manifestações esparsas de outros arquitetos em

todo o mundo, é a potencial capacidade de customização, de flexibilidade, de

individuação da moradia, o traço distintivo da era atual.

Ainda que as formas de efetivação de tal programa sejam ainda, em boa

parte, apenas possibilidades almejadas por todos os agentes envolvidos no

processo de criação e execução arquitetônicas.

Não podemos deixar de lado também, as possibilidades de automação do

ambiente habitacional, sobretudo se imaginarmos que segundo muitos

Figura 44 - Eric Owen Moss: Umbrella, Los Angeles. Fonte: STEELE, J. Arquitectura y Revolución Digital, p. 184.

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o teletrabalho substituirá os escritórios e pode se tornar a saída para os

congestionamentos das grandes cidades contemporâneas. A renomada e quase

totalizadora dos mercados de softwares no mundo a Microsoft trabalha com um

projeto chamado Microsoft Home, também conhecida como Casa Bill Gates, o

que nada mais é do que um laboratório ou um protótipo de uma casa digital.

Segundo o jornalista Ethevaldo Siqueira que visitou o protótipo idealizado

pela Microsoft podemos ter um panorama das possibilidades já factíveis para

o emprego da telemática no cotidiano residencial e muito possivelmente

influenciando na concepção do projeto pelo arquiteto que deverá atentar para

tais possibilidades:Logo à entrada, um painel com os meios de identificação biométrica do visitante, que utilizaremos na próxima década: leitor de íris, monitor sensível ao toque dos dedos, decodificador de impressões digitais e o mais sofisticado desses recursos, o sistema de reconhecimento de fisionomia. Um sistema de TV, embutido na parede, quase invisível, com câmera e microfones, possibilita o diálogo e a identificação, mostrando a imagem do visitante.(...) Tudo na casa se conecta e tem seu comando central numa plataforma Windows, com rede híbrida, isto é, associando uma infra-estrutura de cabo com redes sem fio (Wi-Fi e Bluetooth). Essa plataforma é, na realidade, um exemplo perfeito de tecnologia de computação embutida. Com ela, os equipamentos passam a ter capacidade de processamento, armazenamento de dados e comunicação. E tudo funciona como se fosse uma

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rede de computadores, com software distribuído por todos os cômodos e equipamentos.Além da computação embutida que controla as principais funções gerais da casa – como comunicação, segurança e monitoramento de energia e temperatura – há computadores espalhados em toda a residência, com destaque para os Tablet PCs, ou seja, notebooks com comunicação sem fio, iguais aos que nossos senadores acabam de ganhar. Em cada cômodo há câmeras e microfones, embora a privacidade possa ser sempre garantida por que está no aposento. Para acionar ou controlar cada equipamento ou sistema, basta falar, dando-lhe a ordem. Por ser mais fácil de usar, o comando de voz é o sistema de controle mais adotado, embora não seja o único na casa da Microsoft.A comunicação integra todos os meios da forma mais completa possível, interconectando telefone, computador, Internet e televisão. Assim, a família pode atender a chamadas telefônicas – internas, externas ou celulares – em qualquer terminal, esteja onde estiver, no quarto na sala, na cozinha, no banheiro, na sala de lazer ou no escritório. E cada morador pode fazer consultas a sistemas de controle interno ou comunicar-se com o mundo em busca da informação de que precisa, via internet de banda larga.A sala de lazer é uma festa. Nas paredes, as maiores telas de cristal líquido e plasma. Tudo que está nos computadores pode ser acessado e projetado em qualquer dessas telas. Se o dono gosta de artes plásticas ou quer enriquecer ainda mais o visual, pode transformar qualquer sala numa

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galeria virtual de esculturas e quadros favoritos. E, com a holografia, terá estátuas virtuais em cada canto da sala. Num grande servidor, especial para o entretenimento, estão armazenadas todas as músicas, filmes, shows vídeos, fotos e programas de televisão da família, que podem igualmente ser acessado e exibidos em qualquer dos telões e displays da casa. (SIQUEIRA, 2004, p.47/48).

Através desta descrição simplista e sem grandes especificações técnicas

tanto do ponto de vista informacional como arquitetural, pode-se imaginar as

incríveis possibilidades que se abrirão nos próximos anos para o emprego das

tecnologias telemáticas nos projetos arquitetônicos residenciais. No entanto

através das ilustrações e registros fotográficos deste ambicioso projeto da

Microsoft notamos que não há um rompimento brutal com o programa ou a

decoração da chamada Microsoft Home, segundo Siqueira “... há uma transição

suave entre o tradicional e o futurista”. (SIQUEIRA, 2004, p.50). Talvez por uma

resistência aos costumes antigos absorvidos dos períodos Renascentistas pelos

projetos de vanguarda moderna e que só mesmo as próximas gerações poderão

responder se conseguirão se desvencilhar de muitos hábitos antigos contidos no

cerne das sociedades ao longo do tempo. Na era medieval o homem se abrigou

para se proteger das intempéries e dos ataque de animais, hoje continuamos

usando a casa como abrigo e proteção das intempéries e da violência que

assola, especialmente as grandes cidades, com o chamado teletrabalho, e com

os problemas explícitos no ambiente externo e hostil das metrópoles, o homem

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parece se voltar cada vez mais para talvez sua primeira invenção: a casa. Com

isso, devemos cada vez mais discutir as novas possibilidades para o programa

habitacional contemporâneo, de modo tal qual os modernos, traduzir através

do primeiro estabelecimento humano, a mudança social que ocorre em nossos

dias de forma implacável e voraz, onde o tempo parece ter se despregado

do espaço e parafraseando o mestre Le Corbusier parece que a sociedade

se encontra como em sua época de inquietação: “Ébria de velocidade e de

movimento, dir-se-ia que a sociedade toda se pôs, inconscientemente, a girar

em torno de si própria; tal qual avião em parafuso dentro de uma bruma cada

vez mais opaca”. (CORBUSIER, 1946, p.10). Figura 45 - Ilustração Liquid Architecture. Fonte: http://www.liquidarchitecture.info/. Acessado em 18 set. 2004.

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7. Conclusão: (A nova máquina de morar, um hardware de morar?)

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O presente trabalho é estruturado em duas partes distintas. Na primeira

delas, abordam-se as cidades, a sociedade, a cultura, e a tecnologia da era

industrial, de modo a entender em quais bases se estruturou a arquitetura

para o novo homem que emergia das conquistas tecnológicas nos campos da

mecânica e, posteriormente, da eletromecânica, exemplificada especialmente

pelas obras residenciais da primeira fase do provavelmente mais transcendente

dos arquitetos do século XX: Le Corbusier.

Na segunda, através dos mesmos elementos, o cenário delineado foi o

da chamada era informacional, ou pós-industrial, de que as tão alardeadas

habilidades de computadores e seus programas de desenho tornaram-se

elementos simbólicos na produção arquitetônica e nas demais áreas da vida

humana.

A questão que se propôs enfrentar foi investigar a herança do projeto

arquitetônico modernista na atuação profissional de nossos dias, ou seja, através

de um programa específico, no caso o habitacional, indagar se o estilo e as

conquistas modernas estariam fadados à superação ou ao completo triunfo.

Isso porque, como vimos na primeira parte, o argumento da vanguarda

moderna foi basicamente de natureza tecnológica. Ou seja, através da

manipulação criativa das novas possibilidades de construção industrial, propôs-

se um desenho universal para ordenar e projetar as edificações, assim como a

cidade e seus elementos constitutivos.

Por tal razão, para exemplificar tais argumentas de uma geração,

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discorreu-se sobre o arquiteto franco-suíço Le Corbusier como objeto da

primeira etapa do trabalho, ou seja, ateve-se a seus projetos e proposições

teóricas, especialmente do chamado momento purista de seu ideário, por ser

ele e, sobretudo nesta fase, um dos mais atuantes e partidários arquitetos do

estilo internacional moderno.

E o recorte habitacional, ou seja, a análise do que Le Corbusier viria a

denominar como a Máquina de Morar, foi estabelecido mediante os termos do

recorte que se teceria e na segunda etapa do trabalho.

Assim, na medida em que se compara universalismo e individuação, esta

última enquanto qualidade fundamental da era informacional em que vivemos,

nada mais apropriado do que testar um programa extremo, ou seja, o da

habitação. Isso porque, em última análise, ainda que em moradias coletivas,

multifamiliares, a casa é, em princípio, o lugar do indivíduo.

E o que se percebe, e que se pode concluir, é que embora aparentemente

divergentes, a relação entre os dois momentos estudados é paradoxal, pois a

arquitetura das eras industrial e pós-industrial guardam semelhanças conceituais

e lingüísticas de extrema relevância.

Ou seja, embora seus discursos sejam antagônicos, conforme exemplificam

as dicotomias universal versus individual, estável versus fugas, material versus

desmaterialização, entre outros, a arquitetura contemporânea se apoderou de

determinadas conquistas e conceitos originários do modernismo, dando a elas

novas possibilidades através das inéditas conquistas ferramentais nos processos

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criativos arquitetônicos.

Abordou-se aqui, portanto, o quão relevante são as idéias de transparência,

desmaterialização, continuidade visual, entre outras, para a linguagem

tecnológica da arquitetura contemporânea.

Neste sentido, Demchak observa ainda que:

[...] muitas das intenções da arquitetura moderna ainda estão na ordem do dia, embora tenha emergido uma nova atmosfera social e tecnológica. Sensibilidade a novos materiais, a padrões sociais diversificados, e à nova tecnologia foram fundamentais à linguagem modernista, e também o serão para este novo contexto de conectividade através dos computadores e do novo papel que a residência pós-industrial deverá desempenhar. (DEMCHAK, 2000, p.90).

Em certo sentido, portanto, as principais mudanças da era informacional

para a arquitetura referem-se à evolução e desdobramentos das tecnologias, no

caso computacionais, mas, seja na habitação ou em qualquer outro programa,

o que prevalece é a idéia de liberdade projetual instaurada pelo movimento

moderno.

Liberdade esta que, para os modernos, significou independência entre

estrutura e fechamentos, de dimensionamento dos espaços, através do

Modulor de Le Corbusier, de luminosidade e interação visual entre as partes da

edificação, assim como conectividade entre o interior e o exterior do ambiente

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construído. Os modernos reconheceram a liberdade inerente ao projeto tirando

vantagem de novos sistemas estruturais.

Para os pós-industriais ou informacionais, persiste a demanda

por liberdade, embora o conceito tenha se estendido para binômios que

extrapolam a nossa realidade imediata. Ou seja, o conceito de liberdade da era

informacional arquitetônica tem a ver com os domínios da realidade virtual e

do ciberespaço.

Portanto, as relações entre o moderno e a arquitetura hodierna são ao

mesmo tempo de ruptura e continuidade, de especialização, dependendo do

ponto de vista que se adote.

Com relação às casas propriamente ditas, consideramos que seja

relevante transcrever a seguinte observação de Gregory Demchak, que reforça

nossa conclusão do presente trabalho:A casa pós-industrial irá incorporar conceitos de arquitetura aberta tal qual pregados pelos modernistas, mas entenderão essa idéia através do desenvolvimento de sistemas adaptáveis e flexíveis de componentes internos. Em contraste com o Estilo Internacional, que favoreceu as delgadas divisões entre espaços, suas propostas pedem por unidades densas, ou seja, dos módulos conectáveis, ainda que em princípio elas sejam contrárias à arquitetura aberta. A extensão dos princípios modernos é também estabelecida em comparação ao sistema produtivo adotado, ou seja, o uso do processo industrial não é só considerado adequado, mas também essencial tanto ao projeto

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moderno quanto ao pós-industrial. (DEMCHAK, 2000, p.90).

O movimento moderno, e especialmente Le Corbusier, só são

reconhecidamente revolucionários pela aproximação das disciplinas

arquitetônica, sociológica e artística com a técnica e as ciências exatas, através

da apropriação e do domínio das técnicas construtivas e das possibilidades

tecnológicas oriundas do desenvolvimento industrial.

Assim, aliando os fatores econômicos e sociais, a vanguarda moderna de

certa forma reinventou as formas de construir, de habitar e de se compreender

o espaço, o que correspondeu à nova postura epistemológica do homem

novo, emergente da era da máquina. No entanto, principalmente Corbusier

não se desvinculou do legado clássico, na medida em que “transcodificou” o

vocabulário formal e sintático das proporções e formas dos espaços tradicionais

através, basicamente, da apropriação dos conceitos da geometria euclidiana e

dos ensinamentos clássicos.

Com isso, a associação da ruptura social transformada em estilo com a

apropriação e o resgate do legado clássico e renascentista, fez da arquitetura

de vanguarda moderna uma revolução que ao mesmo tempo rompeu com

conceitos pré-estabelecidos e enraizados, como os excessos formais do barroco

e outros estilos vigentes à época, mas também resgatou os conceitos clássicos

da arquitetura, de forma a estabelecer, no caso de Le Corbusier, os chamados

traçados regularizadores e posteriormente o conceito do Modulor, baseados na

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proporção áurea e na geometria euclidiana.

O mesmo pode-se dizer da arquitetura contemporânea, que enfrenta uma

mudança na sociedade em seus diversos modos de expressão e inter-relação

cultural, social e econômica, especialmente pelos avanços nos campos da

telemática, eletrônica e de outros disciplinas. A arquitetura de nossa época vive

em momento de reflexão, sobretudo acerca de sua condição epistemológica.

Há perguntas éticas, científicas, teológicas sendo formuladas e, na

medida em que a ciência avança com a ajuda dos computadores e demais

possibilidades telemáticas, novas questões se estabelecem, como no campo da

reprodução humana, da genética e da biotecnologia.

O homem parece estar em um momento de reflexão, principalmente por

haver uma dissociação no novo panorama mundial com o tradicional binômio

espaço-tempo, sobretudo em virtude dos novos meios de comunicação. Como

visto anteriormente no presente trabalho, abrem-se, no campo da arquitetura,

novas perspectivas através dos avanços tecnológicos, da realidade virtual e

dos novos programas computacionais, cada vez mais potentes e de simples

interface.

O horizonte da arquitetura hodierna é, portanto, marcado pela possibilidade

de criação de formas inusitadas, pela conectividade através da rede mundial de

computadores, assim como pelas possíveis interações da criação com os novos

meios de execução e de interface com o cliente.

Porém, alguns conceitos do ideário moderno devem ser tratados como

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um legado importante, de modo a tentar transformá-los para uma nova

realidade. Quando Le Corbusier afirmava que a casa deveria ser uma “Máquina

de Morar”, ele estava clamando por um aprimoramento das noções de se

conceber a arquitetura residencial, de modo a se apropriar das novas tecnologias

construtivas, das novas possibilidades representacionais, e principalmente

integrada aos novos costumes da sociedade que florescia da máquina.

A arquitetura moderna só atingiu seu estado revolucionário na medida

em que soube se apropriar das novas tecnologias de sua época, aproximando-

se, assim, das ciências exatas ao mesmo tempo em que impunha um estilo

novo, representativo por sua vez de uma nova sociedade, de uma nova forma

de ver o mundo.

O que houve, contudo, principalmente após a década de 70, é que

ao mesmo tempo em que se configurava uma nova forma de concepção

arquitetônica, os projetos permaneciam baseados em métodos construtivos

arcaicos, dispendiosos, ou seja, defasados em relação às tecnologias imateriais

que lhes possibilitariam o arrojo formal e construtivo através de conceitos como

geometria topológica dentre outros aqui apresentados..

Contudo, será que devemos procurar uma nova arquitetura para nossa

sociedade, já que, conforme Le Corbusier: “Quando uma época possui a planta

de uma habitação, é sua evolução social que se fixou e existe um equilíbrio”

(CORBUSIER, 1923). Ou seja, os conceitos do ideário moderno não conquistariam

sua plenitude a partir dos vorazes progressos tecnológicos hodiernos? Em

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conseqüência, a casa contemporânea, parafraseando a célebre afirmação do

velho mestre, não deveria apenas se transformar em um “HARDWARE DE

MORAR”?

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