A Objetividade e Subjetividade Histórica Na Oposição Entre Positivismo e Historicismo

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A Objetividade e Subjetividade Histrica na Oposio entre Positivismo e Historicismo

A Objetividade e Subjetividade Histrica na Oposio entre Positivismo e Historicismo.

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A historiografia dos sculos XIX ao XXI oferece um arco interessante e diversificado de posies relacionadas questo da oposio e interao entre Objetividade e Subjetividade em Histria. Praticamente o sculo XIX abre-se e encerra-se com este debate, pois alm de ser o sculo da Histria, ser constitudo de dcadas de confronto entre duas posies fundamentais com relao a esta questo: o Positivismo e o Historicismo. Adicionalmente, surge em meados do sculo XIX uma nova Filosofia da Histria, mas sem ainda estar acompanhada por muitas obras historiogrficas propriamente ditas: o Materialismo Histrico, que no sculo XX traria inmeras contribuies historiogrficas j produzidas por historiadores ligados ao Materialismo Histrico. Mas a discusso desta terceira proposta historiogrfica foge ao objeto de anlise do presente artigo.

A oposio fundamental entre Positivismo e Historicismo d-se em torno de trs aspectos fundamentais: a dicotomia Objetividade / Subjetividade no que se refere possibilidade ou no de a Histria chegar a Leis Gerais validas para todas as sociedades humanas; o padro metodolgico mais adequado histria (de acordo com o modelo das Cincias Naturais, ou um padro especfico para as cincias humanas); e a posio do Historiador face ao conhecimento que produz (neutro, imerso na prpria subjetividade, engajado na transformao social).

Com relao aos padres Positivista e Historicista, importante ressaltar que, enquanto o Positivismo, como paradigma, j est praticamente pronto desde o incio do sculo XIX j que herda uma srie de pressupostos do Iluminismo, embora por vezes invertendo a sua aplicao social e vindo a constituir de fato uma viso de mundo tendencialmente conservadora, ao contrrio dos setores mais revolucionrios do pensamento Ilustrado j o Historicismo estar construindo o seu paradigma no decurso do prprio sculo XIX. Influncias mais isoladas lhe chegavam de autores precursores como Herder ou Vico, que j estavam no sculo XVIII atentos relatividade das sociedades humanas contra a tendncia predominante na intelectualidade da poca, o Iluminismo, que tendia a pensar na Natureza Universal do Homem e em uma histria universalizante, e no particularizante. Mas foram poucas as vozes que sintonizariam, neste sculo anterior, com as preocupaes dos historicistas oitocentistas.

Os Positivistas contam de fato com toda uma fortuna crtica que inclui as j clssicas discusses iluministas em torno de questes que lhes seriam caras: a possibilidade de um conhecimento humano inteiramente objetivo; a construo de uma histria universal, comum a toda a humanidade; a possibilidade de amparar um conhecimento cientfico sobre as sociedades humanas com base na idia de imparcialidade do sujeito que produz o conhecimento. Estes princpios, no que apresentam de mais essencial, sustentam-se sobre a noo de que haveria uma natureza imutvel do Homem. So estes fundamentos, que j vinham sendo discutidos h muito pelo pensamento ilustrado, que o Positivismo tomaria para si, emprestando-lhes uma nova colorao. Por isto, podemos dizer que, no essencial das questes que ir colocar a si mesmo, o Positivismo j inicia o sculo XIX com um quadro bastante claro de seus posicionamentos, enquanto que j o Historicismo se apresentar no decurso do sculo XIX como algo que aqui tomaremos a liberdade de chamar de Historicismo em Construo.

Para os primeiros historicistas, nada de fato est propriamente pronto. O Historicismo ainda precisar construir a si mesmo, estendendo contribuies diversas em um arco que ir de Leopold Ranke ainda preocupado em narrar os fatos tal como eles aconteceram at Droysen e Dilthey, historicistas relativistas que j se ocupam em trazer para a historiografia uma reflexo sobre a subjetividade do prprio sujeito que constri a histria, bem como sobre a singularidade do padro metodolgico a ser encaminhado pela Historiografia: um padro compreensivo e no explicativo como nas cincias naturais. Esta mesma discusso estende-se atravs do sculo XX, chegando a nomes como Gadamer, Paul Ricoeur, e outros historicistas modernos como Marrou.

J apontamos alguns traos iniciais do confronto entre Historicismo e Positivismo. Poderemos prosseguir fazendo notar que a distino fundamental entre Positivistas e Historicistas, de um lado, refere-se ao contraste de suas perspectivas sobre o Homem percebido como uma natureza imutvel, pelos positivistas, e como um ser em movimento e em processo de diferenciao, pelos historicistas. De outro lado, os dois paradigmas tambm se opem precisamente no que se refere ao papel da Objetividade e da Subjetividade na produo do conhecimento histrico. Aferrados a um modelo cientificista que procura aproximar ou mesmo fazer coincidir os modelos das Cincias Naturais e das Cincias Sociais e Humanas, os Positivistas tendem a enxergar a subjetividade do mundo humano examinado, mas tambm do historiador como um problema para uma histria que postula ocupar um lugar entre as cincias. J os historicistas, que construiro seus posicionamentos em torno desta questo ao longo das vrias dcadas do sculo XIX, tendero no limite a enxergar a subjetividade no como um problema, mas como uma riqueza, ou mesmo como aquilo o que precisamente permite Histria constituir-se em um conhecimento dotado de uma especificidade prpria. Haver tambm, no arco historicista, os que, reconhecendo-a, buscam controlar a subjetividade, impor-lhe limites; mas os maiores nomes das ltimas dcadas do sculo XIX, que estendem sua contribuio para uma continuidade com os historicistas do sculo XX, chegam a realizar efetivamente a virada relativista, e a lidar com a subjetividade (inclusive a do prprio historiador) como algo que no compromete a cientificidade do trabalho historiogrfico. Em vista disto, ser fundamental para estes historicistas opor o paradigma explicativo das Cincias Naturais (e reivindicado pelos positivistas) ao paradigma da Compreenso, aspecto que operacionalizado de maneiras distintas por alguns historicistas quando contrapostos entre si. Ser oportuno recolocarmos a contextualizao scio-poltica especfica dos dois paradigmas Historicista e Positivista antes de passarmos a um estudo mais especfico de alguns casos que ilustrem as posies descritas.

PositivismoO Positivismo do sculo XIX, conforme j havamos ressaltado, herda os traos centrais do seu paradigma do Iluminismo do sculo XVIII. Contudo, esta passagem de um modelo a outro envolveu uma reapropriao conservadora das idias iluministas, que tinham desempenhado um papel importante no contexto revolucionrio francs. Homens como o matemtico iluminista Condorcet (1743-1794), que viveram intensamente o clima da Frana Revolucionria, postulavam o objetivo cientfico de encontrar leis gerais, necessrias e constantes, que fossem vlidas para a humanidade como um todo, como uma maneira de libert-la tanto dos grilhes de ignorncia como das opresses polticas e sociais impostas pelo Antigo Regime esta amlgama que unia os interesses do Estado Absolutista, da Nobreza com seus privilgios, e dos setores mais conservadores da Igreja da poca, com seu obscurantista apoio ao sistema. Condorcet, que acreditava na possibilidade de que fosse desenvolvida uma matemtica social com vistas aplicao do clculo das probabilidades s cincias sociais, assim se expressava sobre os ganhos sociais que poderiam advir de um empreendimento como este:

[o estudo dos fatos sociais] foi abandonado ao acaso, avidez dos governos, astcia dos charlates, aos preconceitos ou aos interesses de todas as classes poderosas. [A aplicao do novo mtodo] permitir seguir, nas cincias da sociedade, um caminho quase to seguro quanto o das cincias naturais (CONDORCET, 1966, p.211-212)

A ambio de construir uma cincia das sociedades que fosse to neutra como a fsica ou como pareciam ser as cincias naturais vincula-se, em autores ligados ao iluminismo revolucionrio como Condorcet, idia de derrubar aquele antigo regime no qual a parcialidade no conhecimento parecia ligar-se essencialmente aos interesses dos grupos sociais dominantes: a sustentao poltica da Monarquia Absoluta, os privilgios de uma Aristocracia encarada sob o prisma do parasitismo social, e as supersties teolgicas e hierarquizaes sociais difundidas pelo Alto Clero. Assim, por exemplo, os antigos argumentos de autoridade, invocados pela Igreja desde a Escolstica como ndices fundamentais para trazer legitimidade s afirmaes cientficas e filosficas, passavam a ser veementemente contestados pelos iluministas como parcialidade obscurantista, como atitudes no-cientficas que deveriam ser superadas para o estabelecimento de uma humanidade livre guiada pela Razo. A Cincia, para os filsofos iluministas, deveria desenvolver argumentaes no em torno argumentos de autoridade ou de afirmaes baseadas em revelaes de natureza teolgica, mas sim atravs do uso do raciocnio lgico, da demonstrao emprica, da experincia verificvel, do clculo, da incorporao do mtodo cartesiano da dvida, da utilizao sistemtica do mtodo emprico inaugurado por Francis Bacon (1561-1626). Nesta perspectiva, a idia de uma imparcialidade cientfica surge explicitamente como um discurso revolucionrio.

claro que parte o fato j de si complexo de incluir diversas correntes internas o Iluminismo no s revolucionrio. A seu tempo, em algumas questes mais especficas, o prprio pensamento iluminista tambm revelaria seus limites conservadores. Isto se d porque a burguesia, base social da sustentao do pensamento Ilustrado, pode ser compreendida neste perodo simultaneamente como uma classe revolucionria interessada em libertar a sociedade como um todo das amarras feudais do Antigo Regime e das restries mentais impostas pela Igreja e como tambm uma classe disposta, pelo menos nos seus setores economicamente mais privilegiados, a instituir um novo padro de dominao poltica e social. Estes limites da burguesia revolucionria francesa ficam mais ou menos claros quando, a certa altura do processo revolucionrio iniciado em 1789, comeam a ser reprimidos os setores revolucionrios mais esquerda, que j comeavam a colocar em cheque valores como o da propriedade privada. A prpria Declarao de Direitos do Homem, alis, expressa com clareza a dimenso revolucionria e os limites conservadores da Revoluo.

De todo modo, para a questo que nos interessa, o Iluminismo representou de fato uma revoluo significativa no que concerne s possibilidades de estudo cientfico das sociedades humanas. O contexto que acompanharia a passagem deste discurso iluminista revolucionrio sobre as cincias da sociedade a um discurso conservador que seria o do Positivismo no sculo seguinte ser o do assentamento da Burguesia, aps as posies conquistadas pela Revoluo, e reajustadas depois do perodo da Restaurao ps-napolenica na sociedade industrial europia. Na Frana, ainda haveria reajustes com as Revolues de 1830 e de 1848, e em outros pases da Europa se desenrolariam processos anlogos, envolvendo movimentos sociais ou no, nos quais as sociedades europias como que se reajustam s conquistas burguesas, mas incluindo tambm algumas concesses a persistncias aristocrticas e eventualmente monrquicas.

O Positivismo iria acrescentar, ao ideal iluminista de Progresso, o conceito de Ordem. Seu objetivo ser a conciliao de classes, maneira de acobertar, para utilizar uma expresso marxista, a dominao de classe empreendida pelas classes industriais. O seu fundador e representante maior na Frana oitocentista ser Augusto Comte (1798-1857), que voltar a insistir em antigos postulados iluministas, mas agora j partindo de uma perspectiva claramente conservadora, na equiparao entre os mtodos das cincias naturais e sociais, na afirmao literal da rigorosa neutralidade do cientista social, e na busca de leis gerais e invariveis que regeriam as sociedades humanas. de fato Augusto Comte quem inaugura a utilizao deste sistema positivo, que j vinha sendo proposto por alguns dos ltimos iluministas revolucionrios, agora com vistas defesa da ordem estabelecida. Literalmente, Comte far agora apelos aos conservadores (1855, p.4), e enxergar seus precursores iluministas sob o prisma de que a viso daqueles era obscurecida por preconceitos revolucionrios (LOWY, 1994, p.22). Com isto, surge rigorosamente falando um novo sistema, o Positivismo, que se converter em um dos grandes paradigmas para as cincias da sociedade no sculo XIX.

Conforme assevera George Lichtheim em seu artigo sobre o Conceito de Ideologia, publicado na revista History and Theory (1965), o generoso otimismo do Iluminismo converte-se aqui em uma atitude apreensiva que visa assegurar a conservao da estabilidade social (LICHTEIM, 1965, p.169; LOWI, 1994, p.22). Estes deslocamentos da antiga filosofia iluminista, que antes inclua claras perspectivas de transformaes da sociedade, para uma nova proposta positivista que agora defenderia a conservao das hierarquias sociais de sua poca, foram bem analisados, dentre outros autores, pelos filsofos e cientistas sociais ligados chamada Escola de Frankfurt. Herbert Marcuse (1898-1979), por exemplo, aborda esta passagem em seu ensaio Razo e Revoluo (1960, p.342). J Walter Benjamim (1892-1940), nas suas Teses de Filosofia da Histria, publicadas postumamente, denunciar o grande engodo que, para as classes no-dominantes da sociedade industrial, teria sido trazido com a concepo mecanicista do progresso redimensionada de acordo com uma viso de mundo evolucionista.

Encaminhando uma arguta anlise deste ltimo manuscrito de autoria de Walter Benjamim, Josep Fontana argumenta em A Histria dos Homens (2000, p.473-4) que o conceito de progresso teria tido uma funo crtica at a Revoluo Francesa. Contudo, com o assentamento da burguesia em suas posies conquistadas, esta teria favorecido a idia de que o progresso realiza-se automaticamente, para o que teria ainda concorrido mais tarde a doutrina da seleo natural em suas aplicaes s cincias sociais e humanas. A burguesia, de acordo com Benjamin, teria desnaturalizado o Progresso com sua nova conotao mecanicista, e isto implicara na sua despolitizao, na incitao inao. A reinterpretao do Progresso exclusivamente em funo de avanos da tecnologia seria a chave para explicar esta despolitizao que a burguesia industrial agora buscava impor s classes trabalhadoras. O Positivismo, com seu discurso de ordem e progresso, passaria a constituir um dos discursos mais favorveis aos novos objetivos da burguesia dominante. Pregava-se aqui a conciliao de classes, na verdade a submisso da massa de trabalhadores aos industriais que deveriam ser os responsveis em encaminhar o bem ordenado progresso positivista. A Educao das massas no estado positivista, de acordo com Augusto Comte, deveria preparar os proletrios para respeitarem, e mesmo reforarem, as leis naturais da concentrao do poder e da riqueza nas mos dos industriais. Mais tarde, continuadores mais modernos do positivismo, como mile Durkheim (1858-1917), prosseguiriam afirmando que os fatos sociais so fatos como os outros [os das cincias exatas], submetidos a leis que a vontade humana no pode interromper sua vontade e que, por conseqncia, as revolues no sentido prprio do termo so to impossveis como os milagres (1975, p.485).

Tambm possvel perceber muito claramente a distncia entre o objetivismo iluminista e o objetivismo positivista atravs do contraste entre os usos das metforas orgnicas em um e outro destes paradigmas. Metforas organicistas, emprestadas ao mundo natural, eram empregadas em autores como Condorcet para falar no parasitismo social das classes aristocrticas isto porque, tal como j se disse, boa parte do pensamento ilustrado sintonizava-se com o clima revolucionrio que logo explodiria na Frana, e representava essencialmente um modelo de pensamento produzido, sobretudo, por uma burguesia revolucionria. J no Positivismo do sculo XIX, agora a reboque de uma burguesia que chegara ao poder, as metforas organicistas ou fsicas uma fisiologia social ou uma matemtica social comeam a ser repetidamente utilizadas com objetivos conservadores. A Sociedade um corpo que precisa conservar seus diversos rgos no correto funcionamento: h um lugar para o crebro representado pela classe industrial, e outro para os braos e pernas representados pela massa trabalhadora. Neste modelo de harmonia corporal, ao Progresso dos iluministas juntara-se a Ordem, e os cientistas sociais deveriam se colocar a servio do Estado, da ordem burguesa, e no mais se deixarem sintonizar com atividades revolucionrias. A conciliao de classes seria, para os positivistas, o seu objetivo maior.

Na historiografia, ser sobretudo a partir de meados do sculo XIX, com as obras de Taine, Renan e Buckle, que o Positivismo se afirmar. A Histria da Civilizao na Inglaterra, publicada por Henry Thomas Buckle (1821-1862) em 1857 est repleta de referncias idia de progresso geralmente relacionada aos avanos tecnolgicos e ao conjunto das explicaes cientficas para os diversos fenmenos naturais e sociais e tambm aparecem as referncias aos estgios da civilizao, estabelecendo-se uma hierarquia entre sociedades que situa a Europa no topo e rebaixa paternalisticamente os povos americanos e africanos. Buckle, na mesma obra, reconhece o avano do ltimo sculo na compilao de informaes diversas, mas queixa-se precisamente da ampla maioria dos historiadores por ainda terem avanado muito pouco em uma histria generalizadora, que traga unidade ao todo:

Mas se, por outro lado, tivermos de descrever o uso que destes elementos tem sido feito, diferente a imagem a apresentar. A peculiaridade inauspiciosa da histria do homem consiste em que, embora cada uma de suas partes tenha sido examinada com bastante eficcia, quase ningum ainda tentou combin-las num todo e verificar de que maneira se relacionam entre si. Em qualquer outro campo de investigao, reconhece-se universalmente a necessidade de generalizao e vo se fazendo j esforos louvveis no sentido de, a partir de fatos particulares, se chegar descoberta dos mtodos [leis] que regem esses mesmos fatos. To longe est, contudo, esta de ser a orientao normal dos historiadores, que entre eles persiste a estranha idia de que o seu trabalho consiste apenas em relatar acontecimentos, a que podem dar de vez em quando alguma vida por meio de uma ou outra reflexo moral ou poltica que parea oportuna (BUCKLE, History of Civilization in England; apud GARDNER, 1995, p.134).

Buckle dirige-se certamente contra os historicistas, quando reclama da ausncia de generalizao na historiografia predominante em seu tempo. De sua parte, o caminho que prope para tornar esta capacidade de generalizao possvel ao historiador o da erudio e do conhecimento de alguns campos de saber essenciais que possam ser interligados para uma adequada compreenso da histria.

Daqui resulta o espetculo estranho de um historiador que ignora a economia poltica; outro, que nada sabe de direito; outro, que tudo desconhece acerca dos problemas eclesisticos e das mudanas de opinio; outro, que despreza a filosofia das estatsticas, ou outro ainda a cincia fsica e, contudo, esses assuntos so todos os mais essenciais, na medida em que abrangem as principais circunstncias que afetam o temperamento e o carter da humanidade e em que eles se manifestam. [...] de resto, no parece haver a inteno de as centralizar na histria, de que em rigor, so afinal os componentes necessrios (BUCKLE, p.135)

Por fim, Buckle espera ele mesmo cumprir as expectativas de se aproximar, com a Histria, das cincias naturais, isto , do seu modelo generalizante:

Realiz-lo completamente, impossvel; espero no entanto conseguir para a histria do homem algo equivalente, ou pelo menos anlogo, ao que outros investigadores vm realizando nos diferentes ramos das cincias naturais (BUCKLE, p.136).

Rigorosamente falando, no se pode dizer que Buckle tenha logrado alcanar as to ambicionadas descobertas das leis gerais que regeriam o desenvolvimento das sociedades humanas. Quando muito, formula o que j era de se esperar em uma historiografia positivista inspirada no modelo comtiano: uma justificao para a pretenso das sociedades europias de se situarem no topo hierrquico das sociedades humanas, que aparecem disfaradas numa especulao sobre aquilo que considera as causas do progresso europeu (op.cit, p.151). Considerando que o grande confronto que move a histria das sociedades humanas a oposio entre os homens e o meio fsico, Buckle ir sustentar que os europeus foram privilegiados por terem de lidar com um meio fsico menos imponente e exuberante, com espaos fsicos menos grandiosos, com circunstncias fsicas menos predisponentes a gerar supersties e distorcer-lhes a imaginao (BUCKLE, p.148-149). Adquire uma importncia fundamental na especulao de Thomas Buckle o meio fsico, como alis tambm em Hippolyte Taine (1828-1893) outro dos mais importantes positivistas dos meados do sculo XIX. Para este, o homem deveria ser compreendido luz de trs fatores essenciais: o meio ambiente, a raa e o momento histrico. Este era o seu sistema de generalizao; a ateno a estes trs fatores, e combinao entre eles, consistia o seu mtodo, a sua tbua de anlise para as sociedades humanas.

Nas ltimas dcadas do sculo XIX, a corrente historiogrfica de positivistas franceses vai influenciar a nascente Escola Metdica da Frana, que a partir de 1876 se afirma com a publicao do primeiro nmero da Revue Historique, uma revista que trar na sua comisso editorial nomes da antiga gerao positivista como Taine e Renan e novos nomes da escola metdica como Monod e Lavisse. Os metdicos acompanham os positivistas no que concerne ao entendimento da Histria como cincia, mas, rigorosamente falando, no estaro empenhados na busca de Leis Gerais e nem professaro determinismos maneira de Taine. Portanto, os metdicos incorporam a influncia positivista, mas esto a meio caminho de algumas posies do historicismo.

J uma reflexo sobre a natureza do conhecimento histrico, bem ao estilo positivista, segue com livros como o de Louis Bourdeau, que publicado em 1888 com o ttulo LHistoire et les historiens: essai critique sur lHistoire considere comme science positive. Todos os pilares fundamentais do Positivismo so reafirmados aqui: a busca de Leis Gerais, a objetividade metodolgica aproximada das Cincias Naturais, a Neutralidade de um historiador que devia se destacar do seu objeto de estudo e observ-lo distanciadamente, e mesmo o uso de uma linguagem to formalizada quanto possvel, avessa narratividade. Enquanto isto, Paul Lacombe tambm sustentaria em 1894 uma discusso sobre a cientificidade da Histria em termos positivistas, sustentando a existncia de leis do desenvolvimento histrico em seu ensaio De lHistoire como science.

Enquanto isto, a escola Metdica e seus herdeiros iro publicar manuais com idias positivistas at meados do sculo XX, como os manuais de Wilhelm Bauer e Louis Halphen, respectivamente publicados em 1921 e 1946, ambos com o nome Introduo Histria. Um destes manuais, alis o de Luis Halphen citado no artigo de Fernando Braudel sobre Histria e Cincias Sociais: a longa durao (1958) como exemplo de historiografia tradicional e retrgrada, precisamente em uma passagem na qual se diz que o historiador apenas precisa esperar de suas fontes que estas deixem falar os fatos por si mesmos. Mas o mais famoso dos manuais, certamente, seria o de Seignobos e Langlois, escrito em 1898 e duramente criticado pela Escola dos Annales na terceira dcada do sculo XX.

Com relao a posteriores desenvolvimentos do Positivismo, iremos encontr-lo fortalecido, se no na historiografia do sculo XX, ao menos na sociologia deste mesmo sculo. O principal articulador da modernizao do Positivismo nas Cincias Sociais, e de sua reconfigurao para um novo tempo, foi mile Durkheim (1858-1917), que reconhece esta herana, particularmente em relao a Augusto Comte (1975, p.115). Na vertente neo-positivista das Cincias Sociais apresentada por Durkheim socilogo francs que declararia a necessidade de considerar os fatos sociais como coisas ficar bem mais claro do que na historiografia positivista este trplice fundamento em que se baseia o paradigma positivista desde Augusto Comte: (1) a crena na possibilidade de encontrar leis naturais e invariantes para as sociedades humanas, (2) a neutralidade do cientista social, e (3) a identidade de mtodos entre as cincias humanas e as cincias naturais (Quadro 1, parte superior). Sob este ltimo ponto, afirmaria Durkheim:

A cincia social no poderia realmente progredir mais se no houvesse estabelecido que as leis das sociedades no so diferentes das leis que regem o resto da natureza e que o mtodo que serve para descobri-las no outro seno o mtodo das outras cincias (DURKHEIM, 1953, p.113)

Esta identidade entre os mtodos e padres epistemolgicos das cincias exatas e das cincias humanas, geram no neo-positivismo durkheimiano a mesma crena na neutralidade do cientista social que j era advogada por Augusto Comte:

Que o socilogo se coloque no estado de esprito no qual esto os fsicos, qumicos, fisilogos, quando eles se debruam sobre uma regio ainda inexplorada do seu domnio cientfico (DURKHEIM, 1953, p.14)

Por fim, tambm nos mostrar o socilogo francs, em diversas passagens, sua crena na invarincia de leis que estariam por trs do desenvolvimento das cincias humanas:

Os economistas foram os primeiros a proclamar que as leis sociais so to necessrias como as leis fsicas. Segundo eles, to impossvel a concorrncia no nivelar pouco a pouco os preos ... como os corpos no carem de forma vertical... Estende este princpio a todos os fatos sociais e a sociologia estar fundada (DURKHEIM, 1970, p.80-81)

Historicismo

Enquanto o Positivismo Francs do sculo XIX pode ser discutido como uma reconfigurao conservadora da herana Iluminista, j o Historicismo alemo, e seus desdobramentos em outros pases europeus e mesmo nas Amricas, dever ser entendido em vista do contexto de afirmao dos Estados-Nacionais do sculo XIX. O Historicismo tambm se presta nos seus primrdios, e no decurso de boa parte do sculo XIX, a um contexto igualmente conservador. Mas os interesses que representa mais diretamente no sero os da burguesia industrial enquanto classe social dominante, e sim os interesses dos grandes estados, da burocracia estatal que financia os seus projetos historiogrficos. Claro est que estes interesses so articulados em algum nvel o dos estados e o das elites que controlam a sociedade industrial. Mas no plano mais direto, apresentam especificidades a considerar.

De todo modo, as duas grandes questes que se colocam para os historicistas alemes so a vontade de realizar a unificao alem uma vez que todo o vasto territrio de fala germnica estava ento partilhado em inmeras realidades polticas menores e tambm o projeto de encaminhar a modernizao sem maiores riscos revolucionrios. Para alm disto, particularmente com a Escola Histrica Alem, os historicistas de primeira hora eram muito habitualmente sustentculos das estruturas monrquicas sendo particularmente forte a Monarquia Prussiana como financiadora do projeto nacional historicista sob sua jurisdio e ainda havia uma boa parte de historicistas que buscavam justificar no Passado as permanncias e instituies feudais ainda persistentes no seu Presente. De modo geral, no contexto da Restaurao e em virtude das viscerais oposies entre alemes e franceses, os historiadores da Escola Histrica Alem eram crticos da Revoluo Francesa, e ao lado disto no desprezavam as pocas anteriores inclusive a Idade Mdia como haviam feito os iluministas do sculo XVIII. Qualquer poca, para um historicista alemo, tinha a sua prpria importncia e deveria ser examinada consoante critrios a ela adequados, bem como de acordo com seus prprios valores. O mesmo raciocnio valia para as diversas espacialidades, e cada nao deveria ser compreendida em sua singularidade. O projeto inicial do Historicismo Alemo, conforme se pode ver, por um lado to conservador quanto o do Positivismo francs, mas j apresenta um elemento novo, que o de elaborar uma histria especificamente nacional, portanto no universalista.

Para alm disto, oportuno lembrar que, do ponto de vista do estado prussiano, havia a tendncia j herdada da poca dos dspotas esclarecidos de fazer reformas de alcance limitado com o objetivo de se prevenir contra revolues. Enquanto os monarcas absolutistas franceses haviam se conservado inflexveis diante das presses populares e por isso tiveram de enfrentar o acirramento e radicalismo da Revoluo Francesa, os dspotas esclarecidos responsveis pelo antigo Imprio Austro-Hngaro aprenderam a acompanhar o movimento de sua poca de modo a se conservar no poder. Alguns destes monarcas, sua poca, haviam se tornado iluministas moderados, benfeitores das artes e das cincias. No sculo XVIII, haviam oferecido um discurso de modernidade e uma prtica de pequenas reformas; agora, ofereciam ao Povo a Histria.

No fundo, tanto o Positivismo como o Historicismo foram, partida, frutos de uma mesma necessidade de poca, representada pelo paradoxo de encaminhar uma modernizao poltica que viabilizasse aquele desenvolvimento industrial que atenderia s exigncias da burguesia triunfante, e ao mesmo tempo conservar alguns privilgios sociais da nobreza (FONTANA, 2004, p.222). Contudo, a esta necessidade em comum de realizar o consenso entre nobreza e burguesia, o Positivismo e o Historicismo ofereceram respostas diferenciadas: o Positivismo Francs oferecia o consenso com base na idia de universalismo; o Historicismo Alemo buscava proporcionar o consenso social ancorado na idia de nacionalismo. Para tanto, era necessrio realizar uma nova forma de Histria, cujos dois principais pilares foram a recuperao de uma documentao alem que remontava aos tempos medievais, e o desenvolvimento de um novo mtodo de crtica destas fontes com inspirao filolgica.

As motivaes polticas das elites francesas e germnicas no diferiam muito, conforme se pode ver, no que se refere necessidade de estabelecer consenso e de desmobilizar posturas revolucionrias, mas as suas respostas marcaram caminhos muito distintos, e o Particularismo Histrico proposto pelo Historicismo Alemo logo se opor menos ou mais radicalmente ao Universalismo Positivista. De igual maneira, ao homem universal que um dia fora objeto de estudo dos iluministas, e que agora era reivindicado como conceito central pelos positivistas do sculo XIX, o Historicismo opunha o indivduo concreto, particular, histrico e sujeito finitude. Ao menos em uma das pontas da operao historiogrfica a que se referia s fontes histricas e s sociedades examinadas (isto , ao objeto historiogrfico) o Historicismo era j relativista. Nisto se conformava o seu avano, a sua novidade com relao aos esquemas universalistas que o Positivismo herdara do Iluminismo, mas j despojados de seu carter revolucionrio.

ainda preciso lembrar que o Historicismo teve precursores entre alguns dos filsofos e historiadores romnticos do final do sculo XVIII, como Herder (1744-1803), que consideravam a necessidade de escrever uma histria particularizante, capaz de apreender a especificidade de cada povo. Antes deles, seria importante ressaltar tambm as antecipaes de Vico (1668-1744), que em Cincia Nova (1725; 1744) j desenvolvia uma perspectiva voltada para a apreenso da singularidade de cada povo, ainda na primeira metade do sculo XVIII. De igual maneira, frequentemente se fala tambm em uma historiografia romntica, tanto com referncia aos poucos precursores historicistas do sculo XVIII, como em referncia aos romnticos do sculo XIX. Eles no diferem muito, rigorosamente falando, dos historicistas propriamente ditos. Um dos poucos pontos de contraste o fato de que a historiografia romntica preconizava um mtodo intuitivo para a construo do conhecimento histrico, ao contrrio do rigoroso mtodo de crtica documental que j ia sendo encaminhado pelos historicistas de inspirao alem. Tambm os literatos romnticos, e os artistas romnticos de modo geral, apresentavam muitas afinidades com o Historicismo, particularmente no que se refere sua nostalgia do passado gtico, sua revalorizao da Idade Mdia, e rejeio das abstraes racionalistas que haviam sido encaminhadas pelos iluministas do sculo XVIII. Isto posto, consideraremos aqui uma corrente nica, sem discutir as especificidades da variao romntica do historicismo, e falaremos apenas do Historicismo de maneira geral, por oposio ao Positivismo de sua prpria poca.

Voltando ao sculo XIX, pode-se dizer que o paradigma Historicista, desde a contribuio de um Ranke que ainda parece afirmar possibilidade de contar os fatos tais como eles se sucederam, foi abrindo cada vez mais espao para o relativismo histrico, para a conscincia da radical historicidade de todas as coisas, mergulhadas que esto no interminvel devir histrico. O Historicismo, em diversos de seus setores, foi apurando a percepo de que o historiador no pode se destacar da sociedade como pressupunha o modelo das cincias naturais preconizado pelo Positivismo e outras vertentes cientificistas das cincias humanas. Ao contrrio disto, foi se afirmando cada vez mais no universo historicista a idia de que o historiador fala de um lugar e a partir de um ponto de vista, e que, portanto, no pode almejar nem a neutralidade nem a objetividade absolutas, e menos ainda falar em uma verdade em termos absolutos. A Hermenutica campo de saber dedicado interpretao de textos e objetos culturais foi se afirmando como importante espao de reflexo a partir de filsofos e historiadores que realavam a relatividade dos objetos, sujeitos, e mtodos histricos.

Para que o historicismo, de modo geral, atingisse esta virada relativista em todos os seus aspectos, seria preciso percorrer um longo caminho. De fato, ao se examinar a obra de diversos dos historicistas oitocentistas, podemos neles identificar em alguns deles traos que de alguma maneira parecem lembrar os ideais positivistas de neutralidade. Para se compreender isto, preciso ter sempre em conta que ao contrrio do Positivismo, que praticamente j estava formado na primeira dcada do sculo XIX em virtude de ter herdado do Iluminismo os seus principais paradigmas (embora os aplicando para um uso conservador) j o Historicismo ir construir passo a passo o seu paradigma no decurso do sculo XIX. Isto explica que, partida, o Historicismo Alemo ainda apresente claramente posies conservadoras, sempre a servio dos grandes estados-nacionais, e neste novo contexto bastante interessante notar que Ranke ainda declara ser capaz de contar os fatos tais como eles se deram (se bem que haja bastante polmica em torno do verdadeiro sentido deste dito). De todo modo, Ranke j no acredita em uma Histria Universal humana, e sim em histrias nacionais particulares, de maneira que j se v aqui um primeiro princpio de aceitao da relatividade historiogrfica neste caso ao nvel do objeto de estudo.

Em nossa perspectiva, este de fato o trao fundamental que perpassa toda a atitude historicista, a cor geral que o atravessa e ilumina tudo o mais, produzindo outros desdobramentos. O Historicismo pioneiro ao apresentar uma nova perspectiva sobre o Homem, bem distinta da perspectiva que era no sculo anterior apresentada pela tendncia dominante pelo pensamento ilustrado, e que em seu prprio sculo continuaria a ser sustentada pelo Positivismo. Naquele Homem que os iluministas e os positivistas procuravam enxergar como universal e caracterizado por uma natureza imutvel, os historicistas j comeam a enxergar a diferena, o movimento. Em uma palavra: a historicidade. O Homem (ou os homens) e as sociedades humanas so realidades em movimento, e assim devem ser percebidos. Ao invs de buscar o universal, a atitude historicista busca perceber a diferena, a singularidade, o especfico, o singular, o particular. Ao invs de estar obcecada pela descoberta da natureza imutvel do homem, a concepo historicista deleita-se, e mesmo embriaga-se, com a percepo do movimento. Em uma palavra, trata-se de apreender com radical historicidade toda e qualquer realidade, de modo que nada no universo estaria esttico e imobilizado, ao mesmo tempo em que nenhuma coisa seria igual a outra neste interminvel devir histrico.

Esta cor geral, que constitui no Historicismo um olhar atento diversidade e mutabilidade, produz os seus imediatos desdobramentos. Um sculo, no entanto, apenas um breve momento na construo de um novo paradigma historiogrfico, e por isso no devemos estranhar que este modelo no tenha se apresentado pronto desde o primeiro momento. Foram precisas dcadas de histria e de historiografia para que os historicistas, no seu conjunto, explorassem radicalmente todas as implicaes de sua nova atitude em favor da diferena e do movimento. De modo geral, poderemos resumir trs princpios fundamentais que essencialmente sustentam este paradigma Historicista em construo (Quadro 1, hemisfrio inferior).

O paradigma historicista completo, este o ponto, principia enfaticamente com (1) o reconhecimento da Relatividade do objeto Histrico. De acordo com este princpio, inexistem leis de carter geral que sejam vlidas para todas as sociedades, e qualquer fenmeno social, cultural ou poltico s pode ser rigorosamente compreendido dentro da Histria. A historicidade do objeto examinado (uma sociedade humana, por exemplo, mas tambm uma vida humana individual, ou qualquer evento ou processo j ocorrido ou em curso) deve ser o ponto de partida da investigao e no, como propunha o Positivismo, a universalidade das sociedades humanas ou a unidade fundamental do comportamento humano. Apreender com radical historicidade toda e qualquer realidade, seja esta uma realidade social ou natural (ou as duas coisas) ser aqui a palavra de ordem historicista: o ponto cego do qual tudo se origina.

Em segundo lugar (2), a Histria, bem como as demais cincias humanas, deveria requerer uma postura metodolgica especfica, radicalmente distinta do padro metodolgico tpico das Cincias Naturais ou das Cincias Exatas. Formulava-se aqui a distino entre dois tipos de cincias ou, em outras palavras, o direito de que um outro tipo de conhecimento postulasse cientificidade sem que necessariamente o seu modelo coincidisse literalmente com o das cincias da natureza. Logo surgiria, a partir desta formulao, a clebre oposio entre a Compreenso, atitude que deveria reger o posicionamento metodolgico nas cincias humanas, e a Explicao, que seria tpica das cincias naturais e exatas. Na base desta distino, seria possvel falar em uma diferena fundamental entre fatos histricos e fatos naturais.

Por fim (3), o Historicismo estaria pronto a reconhecer a Subjetividade do Historiador, assumindo todas as implicaes da idia de que tambm o historiador ou o cientista social encontra-se mergulhado na Histria, o que faria da ambio positivista de alcanar a total neutralidade do cientista social no mais do que uma quimera.

Os trs traos acima indicados como essenciais do pensamento historicista mais completo so, ainda, beneficiados por uma perspectiva particularizante que se torna bastante tpica do Historicismo, por oposio perspectiva generalizante que era caracterstica tanto da maior parte do Iluminismo do sculo XVIII como do Positivismo oitocentista. Se estas correntes buscavam frequentemente encontrar leis gerais para a explicao dos comportamentos e desenvolvimentos das sociedades humanas, j o Historicismo, de modo geral, abre mo desta busca, e procura se concentrar no particular, naquilo que torna cada sociedade singular em si mesma, nos aspectos que fazem de cada processo histrico algo especfico.

Eis, portanto, a trade do pensamento historicista: (1) Relatividade do Objeto Histrico, (2) Especificidade Metodolgica da Histria, e (3) Subjetividade do Historiador. Trata-se, esta a questo, de uma trade conquistada aos poucos, pois o paradigma historicista foi se construindo no decurso do sculo XIX. Assim, desligando-se partida das antigas propostas iluministas, e confrontando-se com o Positivismo de sua prpria poca, cada vez mais o pensamento historicista iria investir na idia de que as cincias humanas deveriam buscar mtodos prprios, e no procedimentos emprestados s cincias da natureza. Logo surgiria a Hermenutica para opor a explicao, prpria das cincias naturais, compreenso, postura metodolgica especfica das cincias humanas. E, por fim, nas ltimas dcadas do sculo XIX, alguns setores historicistas completam a sua virada relativista: j acreditam que tambm o historiador, e no apenas as sociedades examinadas, est visceralmente implicado em toda a sua singularidade. Quando se chega a este ponto, Positivismo e Historicismo j se espelham perfeitamente com relao aos principais aspectos que se referem relao entre Objetividade e Subjetividade Historiogrfica (Quadro 1).

Vejamos como se vai instalando o paradigma historicista na Europa do sculo XIX, desde os seus primrdios, como uma alternativa que comea a se colocar frontalmente contra o Positivismo. O ponto de partida contextual do Historicismo, conforme j ressaltamos, no deixava de ser to conservador quanto o do Positivismo. Tambm os historicistas foram convocados para elaborar um novo modelo historiogrfico que renunciasse crtica social que um dia havia sido a tnica do discurso dos filsofos da Ilustrao. No caso do historicismo de inspirao alem, os seus financiadores so os Estados-Nacionais (FONTANA, 2000, p.223).

Diga-se de passagem, importante notar que h leituras diferenciadas sobre a formao e natureza do Historicismo. Se atrs indicamos o Iluminismo como origem do Positivismo, esta corrente que d um destino conservador a certos pressupostos que haviam sido colocados pela primeira vez pelo pensamento Ilustrado, h tambm leituras que procuram vincular o Historicismo ao passado ilustrado. o caso, por exemplo, da anlise de Meinecke (1862-1954), ele mesmo um historicista, e que em seu ensaio de 1936 sobre O Historicismo e sua Gnesis considera o Historicismo como se estivesse em linha de continuidade em relao Ilustrao, sendo que na passagem da Ilustrao ao Historicismo teria ocorrido uma substituio da tendncia generalizao por um processo de observao individualizadora (MEINECKE, 1983, p.12). Trata-se de uma interpretao problemtica, uma vez que a generalizao e a perspectiva universalizante eram traos muito fortes do Iluminismo, de modo que a sua supresso por uma viso particularizante j certamente uma ruptura.

Outro ponto de complexidade a migrao intelectual de um campo a outro. Jorge Navarro Perez, em seu ensaio sobre A Filosofia da Histria de Wilhelm Von Humboldt (1996), procura mostrar como o lingista e fundador da Universidade de Berlim Wilhelm Von Humboldt (1767-1835) teria passado da busca ilustrada s leis do Progresso para uma perspectiva que sustentava que era preciso avaliar cada poca conforme a sua individualidade. Esta migrao de idias tambm pode ser percebida nos Escritos de Filosofia da Histria de Wilhelm Von Humboldt (1997).

Tambm oportuno lembrar que o Historicismo, com seu novo paradigma particularizante, influenciou j na sua poca outros campos do saber, para alm da Histria, como foi o caso do Direito e da Economia. No primeiro caso, surgiria uma Escola de Direito Alem que, atravs de nomes como o de K. Von Savigny, rejeitava o universalismo implcito na teoria do Jusnaturalismo, em favor da busca da singularidade histrica do conjunto de leis de cada povo. No caso da Economia, a influncia historicista iria contribuir para a formao, na segunda metade do sculo XIX, de uma Escola Alem de Histria Econmica que passaria a empreender o estudo comparado de casos especficos e que teria em Schmoller (1838-1917) um de seus principais nomes.

Retornando aos aspectos paradigmticos do historicismo, oportuno destacar a sua ligao estreita com uma Histria (da) Poltica (isto , uma Histria da Poltica ainda no sentido estreito, exclusivamente referente ao mbito do Estado e do confronto entre Estados). De fato, os livros de Ranke principal representante do historicismo alemo tm sempre como tema central as relaes que se estabelecem entre os estados, seja atravs da guerra ou da diplomacia. As naes, em Ranke, so sempre compreendidas no interior dos estados; este ser um tema particularmente importante para os historicistas, conforme mostrou Wolfgang Mommsen em seu estudo sobre a transformao da idia de nao na historiografia alem (1996, p.5-28). Para alm disto, trata-se de uma histria das elites, ou dos povos conduzidos pelas elites, e h certamente numerosas passagens rankeanas em torno daquilo que se convencionou chamar de Histria dos Grandes Homens. A Histria (da) Poltica elaborada pelo historicismo alemo de inspirao rankeana tambm uma Histria (dos) Polticos. No faltam retratos pessoais dos reis, descries da corte e menes aos ministros e demais polticos.

Deve-se notar, neste quadro tendencial, que o Historicismo no tardaria a se partir em dois ramos bem diferenciados: um historicismo mais conservador tanto politicamente como epistemologicamente e um historicismo mais avanado no que concerne assimilao do relativismo. Na primeira metade do sculo XX, o setor mais conservador do historicismo sofreria rigoroso ataque de escolas histricas mais modernas, como a Escola dos Annales na Frana ou a escola presentista norte-americana. Este setor mais conservador do historicismo aquele que praticamente se imobiliza na contribuio de Ranke, no chegando a completar a virada relativista e a trazer ao historiador a conscincia de sua prpria historicidade. este historicismo mais retrgrado, que conserva traos difusos de positivismo, que se tornar um alvo fcil para os clebres artigos de Lucien Febvre em Combates pela Histria (1953), na fase de ascenso do movimento dos Annales ao espao institucional francs.

Quanto ao setor do historicismo que fora tocado pelo sopro da renovao, e que completara a virada relativista atravs de nomes como o de Wilhelm Dilthey, este seguiria adiante atravs da vigorosa e criativa contribuio de filsofos e historiadores que vo de Hans-Georg Gadamer a Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck. Mas antes de se chegar a estas notveis contribuies, uma peculiar histria precisou ser percorrida. mesmo bastante curioso o fato de que, enquanto o Iluminismo revolucionrio se desenvolveria at atingir seu ponto de inflexo e se transformar no Positivismo conservador, j o Historicismo nasce demarcado por interesses conservadores e mesmo reacionrios, mas termina por se desenvolver inexoravelmente rumo s mais avanadas propostas do historicismo relativista.

O extraordinrio sucesso do historicismo j desde meados do sculo XIX deve ser reputado aos inegveis progressos implementados por historiadores como Ranke e Niebuhr nos aspectos relacionados crtica das fontes. Uma rpida viso panormica pode nos dar conta de como a concepo historicista da Histria, principalmente em funo deste eficiente mtodo de crtica documental que os historiadores da Escola Alem estabeleceram, difundiu-se rapidamente por outros pases. Em geral, os historicistas dos primeiros dois teros do sculo XIX, tambm fora da Alemanha, assumiram posies particularmente conservadoras que visavam legitimar os estados-nacionais. Na Inglaterra, por exemplo, teremos a obra de Thomas Babbington Macaulay (1800-1859), que pretende reconstituir o passado histrico com vistas a mostrar uma progressiva ascenso em direo s formas da liberdade constitucional inglesa (FONTANA, 2004, p.233), o que implica, para o caso do historiador whig Macaulay, em redesenhar a Histria da Inglaterra (1949) em termos de graduais vitrias dos reformistas whigs contra os tories, que aparecem como defensores do status quo e como freios progressiva evoluo poltica liderada pelos whigs. Posteriormente, o historicismo alemo ganharia ainda mais fora na Inglaterra, sobretudo a partir da divulgao de seu mtodo por lorde Acton (1834-1902). Mas j reaparece aqui uma perspectiva de Imparcialidade do historiador que faz lembrar os positivistas de sempre ou os historicistas dos primeiros anos do sculo XIX. Enquanto isto, no outro lado do Atlntico, o historiador norte-americano Frederick Jakson Turner (1861-1932) reforava enfaticamente a natureza relativista da histria em um texto de 1891 que discorria sobre O Significado da Histria, antecipando o dito de Benedetto Croce de que toda histria contempornea ao reafirmar que cada poca reescreve necessariamente a histria mais uma vez. A querela entre Imparcialidade e Relativismo do prprio sujeito produtor de conhecimento, deste modo, reeditava-se.

parte os retornos e recuos ocasionais nesta complexa histria da tomada de conscincia histrica, o conservadorismo historicista dos primeiros tempos no impediu que deste paradigma surgissem novos caminhos historiogrficos. O relativismo historiogrfico certamente a sua principal contribuio. Se nos detivermos nas implicaes que j estavam presentes desde o primeiro princpio historicista o da historicidade e relativismo de todas as sociedades humanas e objetos histricos no difcil perceber que seria s uma questo de tempo para que um dia viesse a ser atingida pelo Historicismo a aceitao do relativismo e historicidade do prprio historiador. Afinal, se o objeto histrico relativo, tambm o prprio historiador ele mesmo passvel de se tornar objeto histrico em um futuro distante no pode ser mais do que igualmente relativo, imerso na historicidade, inevitavelmente ligado a pontos de vista particulares e sua subjetividade intrnseca.

A conscincia da historicidade era, por assim dizer, inevitvel, e no poderia deixar de ser aperfeioada pelo arco historicista cada vez mais, medida que o Historicismo se firmasse no decurso do sculo XIX. Foi assim que o setor mais relativista do Historicismo conseguiu adquirir especial vigor a partir da obra de historiadores e filsofos da histria como Gustav Droysen (1808-1884) e Whilhelm Dilthey (1833-1911). Enquanto Ranke no era muito atormentado por dvidas em relao objetividade histrica nos primrdios do desenvolvimento do Historicismo (IGGERS, 1968, p.80), j Gustav Droysen, um historicista alemo que escreve nas ltimas dcadas do sculo XIX, j passa a sustentar mais ou menos claramente a relatividade e a historicidade do prprio historiador, tal como em um texto de 1881 denominado A objetividade do Eunuco, este bastante explcito (apud LWI, 1994):

Eu no aspiro a atingir seno, nem mais nem menos, a verdade relativa ao meu ponto de vista, tal como minha ptria, minhas convices polticas e religiosas, meu estudo sistemtico me permitem ter acesso [...] preciso ter a coragem de reconhecer esta limitao, e se consolar com o fato de que o limitado e o particular so mais ricos que o comum e o geral. Com isso, a questo da objetividade, de atitude no-tendenciosa do to louvado ponto de vista de fora e acima das coisas, para mim relativizada (DROYSEN, Historik, 1881)

Se Droysen j comea a reconhecer a historicidade do prprio historiador, e a necessidade de levar isto em considerao, deve ser atribuda a Wilhelm Dilthey a mais sofisticada defesa de uma postura metodolgica especfica para a Histria e as demais cincias do esprito, por oposio ao padro das cincias da natureza. Para Dilthey, a oposio entre cincias do esprito (Geisteswissenschaften) e cincias da natureza (Naturwissenschaften) estaria relacionada oposio fundamental entre duas posturas metodolgicas: a Compreenso e a Explicao, respectivamente relacionveis s cincias do esprito e s cincias da natureza. Enquanto estas ltimas poderiam se ater a uma explicao exterior dos fatos, j a Histria ou qualquer outra das hoje chamadas cincias humanas estaria vinculada necessidade de compreender (Verstehen) os fenmenos humanos, de entend-los no apenas em sua forma externa, mas tambm por dentro, perscrutando seus sentidos, suas implicaes simblicas, ideolgicas, vivenciais, ou, em uma palavra, seus significados. Esta oposio entre a Compreenso tpica das cincias humanas, e a Explicao tpica das cincias naturais, tornar-se-ia clssica, uma referncia no apenas para o historicismo como para, de modo geral, boa parte da historiografia do sculo XX em diante.

parte a idia de que tudo histrico o que inclui todas as formas de pensamento e tudo o que produzido pelo homem a historicidade encontra-se particularmente acentuada nos campos de saber que Dilthey chamou de cincias do esprito, a um ponto tal em que a estes campos tambm se torna possvel a referncia como cincias histricas, abrangendo no apenas a Histria como tambm a antropologia, a sociologia, a geografia humana, ou quaisquer outras das cincias do esprito. Para o Historicismo da vertente que abarca a contribuio de Dilthey, os objetos de todas estas cincias do esprito seriam especialmente histricos. A historicidade, desta forma, adentra o mtodo em cada uma delas, como j adentrara o objeto e o sujeito que produz o conhecimento. Dilthey toca aqui na contradio fundamental da produo do conhecimento cientfico, em especial aquele que se refere s cincias humanas: a multiplicidade dos sistemas filosficos contrasta, de modo incontornvel, com a pretenso de cada um destes sistemas filosficos validade geral. Variedade e Historicidade ou Diferena e Mudana irmanam-se na anlise de Dilthey sobre o conhecimento. Para alm disto, cada viso de mundo , ao seu modo, verdadeira, no sentido de que expressa uma certa dimenso do universo, uma determinada parcela da verdade, sendo vedada ao sujeito que conhece a verdade total.

O relativismo historiogrfico, seja de acordo com a proposta de Dilthey ou de outros, gera naturalmente os seus problemas na ltima ponta do processo cognitivo: aquela que corresponde subjetividade do historiador que produz o conhecimento. Se se pretende alcanar uma espcie de verdade histrica, como administrar a subjetividade reconhecida pelos historicistas na produo do conhecimento histrico, e portanto no resultado de um trabalho historiogrfico especfico?

Dilthey no ofereceu uma soluo muito bem definida, e quase que parece se imobilizar diante do carter aparentemente irreconcilivel das vrias vises de mundo. Simmel proporia uma espcie de ecletismo do meio-termo, tentando atingir uma mdia ponderada entre as vrias posies antagnicas. Enquanto isto, outros historicistas esboaram suas solues, que podiam ir desde uma soluo ecltica como a proposta por Ernst Troeltsch (1865-1923) a de esboar uma grande sntese cultural da Civilizao Ocidental at a sofisticada multiplicao de perspectivas proposta pela sociologia do conhecimento de Karl Mannheim (1893-1947), um socilogo hngaro de tendncia historicista que recolhe algumas de suas influncias no Materialismo Histrico de Georg Lukcs (1885-1971). Mannheim acreditava que a multiplicao de perspectivas favoreceria no limite uma viso mais completa de um determinado objeto de estudo, e em vista disto prope, como soluo original para as limitaes geradas pelo relativismo assumido pelo historicismo, uma sntese dinmica das vrias perspectivas unilaterais sntese esta que deveria ser encaminhada por uma intelligentsia ecltica, capaz de superar os pontos de vista parciais de cada classe social. Max Weber, conforme j vimos, reconhece como socilogo historicista a multiplicidade de pontos de vista, mas termina por fazer concesses a uma soluo positivista que acredita que a neutralidade final poderia ser alcanada atravs de um rigor metodolgico capaz de separar fatos e valores (constataes e julgamentos).

As elaboraes historicistas no mbito do reconhecimento da relatividade histrica e da Hermenutica no constituram o nico reduto relativista na histria do pensamento ocidental. Em 1874, por exemplo, F. H. Bradley, em seu ensaio Pressuposies da Crtica Histrica, chamava ateno para o relativismo que cerca a prpria posio do historiador, antecipando as posies presentistas que mais tarde iriam aparecer com maior freqncia em seu pas: o passado muda portanto com o presente, e no pode nunca ser de outra maneira, porque sempre baseado no Presente (1935, p.20). Esta posio no cessaria de ser reafirmada, conforme veremos no prximo item, em momentos diversos e por escolas historiogrficas variadas do sculo XX. Benedetto Croce, historicista italiano, imortalizar a frase que mais tarde seria retomada por Lucien Febvre: Toda Histria Contempornea. A escola presentista norte-americana, com historiadores que vo de Charles Beard a J. H. Randall, transformaria em sua palavra de ordem o princpio de que cada Presente constri o seu prprio Passado. Logo viriam os historiadores dos Annales, com a sua Histria-Problema. O sculo XX, de fato, ser o sculo da relatividade.

preciso lembrar, de passagem, que no vem apenas do paradigma historicista este Relativismo que passaria a predominar francamente no sculo XX, embora sem cancelar as posturas alternativas e favorveis a um objetivismo absoluto, que seguiro sendo encaminhadas por neo-positivistas. Se o Historicismo desempenhou um papel importante para a difuso do relativismo das cincias humanas, outros campos do saber tambm trouxeram a sua contribuio, como ocorreu com o desenvolvimento da Antropologia Histrica. De igual maneira, tambm as antigas crticas nietzschinianas s verdades racionalistas, aliadas s diversas crises do conhecimento cientfico e posteriormente crise das meta-narrativas, favoreceriam cada vez mais a que se fosse aguando nos historiadores contemporneos a plena conscincia da historicidade de cada ponto de vista.

Hans-Georg Gadamer (1900-2002), historiando uma contribuio hermenutica que comea a adquirir impulso no sculo XIX a partir da abordagem ainda romntica do telogo Schleiermacher (1768-1834), e que avana pela hermenutica historicista de Dilthey at chegar a O Ser e o Tempo de Heidegger (1927), indica em sua obra mxima Verdade e Mtodo (1960) mas tambm na srie de conferncias que foi publicada sob o ttulo A Conscincia Histrica (1996), a singularidade maior que seria a do homem contemporneo: a sua conscincia histrica. A conscincia histrica, apresentada no apenas como um privilgio, mas talvez mesmo como um fardo, uma especificidade que diferencia o homem contemporneo entendido como o homem do sculo XX de todas as geraes anteriores. Gadamer define a conscincia histrica como o privilgio do homem moderno de ter plena conscincia da historicidade de todo o presente e da relatividade de toda a opinio (1998, p.17).

Eis aqui na intensificao da conscincia histrica tal como formulada por Gadamer a partir da tradio hermenutica, na tendncia crescente do historicismo relativista a vencer cada vez mais o sempre aberto debate contra o cientificismo e o positivismo nas cincias humanas, e na reintensificao das idias de Nietzsche atravs de autores como o Michel Foucault de A Verdade e as Formas Jurdicas (1973) o ambiente intelectual que favorece uma implacvel crtica idia de reconstituir em termos absolutos a Verdade da Histria, tal como a havia vislumbrado a maior parte dos historiadores do sculo XIX, sobretudo os ligados de um modo ou de outro ao paradigma positivista. Outros aspectos, ainda mais, poderiam ser citados como reforadores do ambiente que favorece a crtica ou a relativizao historiogrfica da Verdade e que consequentemente trazem implicaes para a necessidade de repensar o papel da objetividade e subjetividade na prtica historiogrfica aspectos entre os quais pode ser tambm mencionada a emergncia das pesquisas freudianas sobre o inconsciente, noo tambm incorporada muitos historiadores, ou mesmo a prpria emergncia de novos paradigmas alternativos que surgem entre as cincias exatas, antes unificadas pelo modelo newtoniano da Fsica e agora abertas a novas propostas como a da teoria da relatividade ou a fsica quntica.

Toda esta vasta complexidade constitui um fundo que termina por favorecer o paradigma historicista (mas tambm o paradigma do materialismo histrico) por oposio ao paradigma positivista, particularmente no que se refere aos estudos histricos. Para concluir o paralelo entre estes dois grandes paradigmas das cincias das sociedades no sculo XIX o Historicismo e o Positivismo seria oportuno registrar que no h nenhuma necessidade de que um historiador ou cientista da sociedade, naquele sculo ou em outro, se localize inteiramente dentro de um modelo. A dicotomia entre Positivismo e Historicismo til para a compreenso dos modelos essenciais que se colocam como geradores de alternativas no quadro das cincias humanas (outro modelo ser o do Materialismo Histrico). Mas na prtica e na sua singularidade, os historiadores e cientistas sociais podem combinar aspectos de um modelo e outro, colocar-se entre eles situar-se, em relao a determinada questo, a meio caminho entre Historicismo e Positivismo.

J trouxemos o exemplo da Escola Metdica da historiografia francesa do final do sculo XIX constituda por historiadores que rendem homenagem ao Positivismo mas no chegam a realiz-lo na prtica, uma vez que seus principais expoentes no esto nem um pouco preocupados em encontrar leis gerais para a Histria, mas sim, em sua maioria, em apenas descrever factualmente as singularidades dos processos histricos: narrar os fatos, em alguns casos to somente isto. Estes historiadores metdicos combinam uma certa reverncia positivista com a factualidade do historicismo mais retrgrado. No so nem uma coisa nem outra, rigorosamente: nem positivistas, nem historicistas.

Heinrich Rickert (1863-1936), um filsofo da histria de orientao historicista e neo-kantiana, nos oferece um outro exemplo. De modo geral, ele acompanha a virada relativista do setor mais avanado do historicismo em termos de reconhecimento da subjetividade do historiador no processo de produo do conhecimento histrico. Ele reconhece, por exemplo, que o historiador ou cientista social traz consigo valores que o direciona escolha de tal ou qual objeto de estudo. Contudo, acredita que ainda assim possvel atingir uma objetividade cientfica (bem prxima do que desejaria um positivista) porque existiriam certos valores universais como a verdade, a liberdade que seriam aceitos por todos e que por isso fundamentam a universalidade e por isso a possibilidade de alcanar objetividade cientfica na produo do conhecimento sobre as sociedades humanas (LWI, 1994, p.35). Nele baseado, Max Weber sustentaria uma ambio anloga de alcanar objetividade cientfica, e por isso h autores que o classificam como um historicista positivista, ou ao menos como um historicista que apresenta uma pretenso em comum com o pensamento positivista. De nossa parte, resolveremos esta complexidade do pensamento de Max Weber atravs de outro recurso: a apreenso deste pensamento autoral atravs da metfora do "acorde terico" (ver Volume IV de 'Teoria da Histria').

Objetividade e Subjetividade Histrica no sculo XX: A reedio da oposio entre Positivismo e Historicismo

As crticas ao modelo positivista de objetividade histrica particularmente as crticas proposta de equiparao entre os modelos das cincias humanas e das cincias naturais seguem pelo sculo XX. Autores como Collingwood (1889-1943), em A Idia de Histria (1946), e diversos outros, contestaram a proposta de equiparao entre os modelos das Cincias Humanas e das Cincias Exatas com vistas a alcanar o mesmo padro de objetividade. Para Collingwood, o passado no diretamente observvel mesmo a partir de uma criteriosa e sistemtica anlise das fontes, sendo necessrio que o historiador reviva o Passado em sua mente atravs de uma operao na qual assume destacada importncia a imaginao histrica. Neste sentido, a Histria no pode postular alcanar um tipo de objetividade anlogo das cincias naturais, e a operao historiogrfica acha-se imersa na subjetividade do historiador. Rigorosamente falando, acrescenta Collingwood, a histria no tem por objeto as coisas pensadas (os acontecimentos em si mesmos), mas sim os pensamentos (o prprio ato de pensar).

tambm uma posio de crtica verdade histrica objetiva a que ser apresentada pela Escola Presentista Norte-Americana, atravs de autores da primeira metade do sculo XX como Charles Beard (1874-1948) e Carl Becker (1873-1945). Beard polemizar contra o Positivismo, mas tambm contra o setor do historicismo que considerava mais retrgrado, e que procurar concentrar simbolicamente na figura de Leopold Von Ranke. O debate polarizado em torno da figura de Ranke havia retornado ao cenrio central das discusses historiogrficas norte-americanas atravs de um artigo escrito em 1909 por George Burton Adams (1851-1925) para a American Historical Review. Burton Adams evocara a figura de Ranke, com vistas a empreender uma apologia da objetividade e neutralidade em Histria (1909, p.221-236), e Charles Beard escolhera precisamente o dolo retomado para iniciar uma polmica. Th. Smith contra-atacaria com proposies pro-rankeanas em um artigo produzido em 1943 para a mesma American Historical Review (1943, p.439-449), e Beard replicaria mais uma vez com o artigo That Noble Dream (1943, p.74-87). A argumentao de Charles Beard em seus artigos muito interessante, pois ele chama ateno precisamente para as contradies de Ranke: um historicista (por ele visto como positivista) que ainda advogava a imparcialidade do historiador com vistas a narrar objetivamente os fatos, mas que assumia claramente posies subjetivas, como uma determinada crena religiosa e uma nacionalidade ligada ao mundo germnico. Ou seja, Ranke estava claramente mergulhado no esprito de partido. Como pretender, ento, a imparcialidade?

O fato de que Leopold von Ranke afirmara a sua pretenso de contar os fatos tal como eles aconteceram, o que ocorre na introduo de sua obra sobre Os Povos Romnicos e Teutnicos (1824), faz com que muitos estudiosos o classifiquem at mesmo como positivista (SCHAFF, 1978, p.101). Rigorosamente falando, isto no nem um pouco adequado, pois o que Ranke faz dar os primeiros passos concretos para a construo de um paradigma novo o Historicismo mesmo que frequentemente preso a uma maneira de pensar ainda ancorada na idia de se conduzir atravs de uma certa neutralidade. H na verdade uma grande controvrsia em torno do verdadeiro sentido do dito de Ranke sobre a possibilidade de narrar os fatos tal como eles aconteceram. De igual maneira, a categorizao de Ranke como positivista ou como fundador de uma concepo histrica objetiva, positiva e imparcial foi aventada por autores como Charles Beard, o presentista norte-americano da primeira metade do sculo XX que havia polemizado contra Burton Adams e Th. C. Smith, neo-rankeanos do sculo XX. Mas categorizar Ranke como positivista fere a compreenso de que ele trouxe na verdade uma das primeiras contribuies a um Historicismo em Construo.

De fato, j fizemos notar que o Historicismo foi construindo seus pressupostos fundamentais isto , estabelecendo o seu paradigma ao longo do sculo XIX. Esta corrente historiogrfica no se encontrava essencialmente pronta no incio do sculo XIX, tal como ocorria com o Positivismo, que apenas precisara reverter pressupostos que j haviam sido elaborados pelo pensamento Iluminista, de modo a atender agora aos objetivos conservadores da Europa ps-napolenica. Assim, muito da confuso que se estabelece com alguns autores que preferem denominar Ranke como positivista, quando na verdade ele era, ao contrrio, o pai do historicismo, remete no percepo de que Ranke era pioneiro de um historicismo em construo. No prximo item, teremos oportunidade de examinar mais de perto a perspectiva de Ranke, e deste modo a sua especificidade historiogrfica poder ficar bem mais clara.

Outro presentista que radicaliza no sculo XX a posio do historicismo relativista Carl Becker. Tambm inserido na escola presentista norte-americana, Becker ir radicalizar ainda mais a afirmao de que o Presente reconstri o Passado. Para ele, o relativismo atinge tal ponto que cada indivduo transforma-se, ele mesmo, em historiador, recriando uma histria diferente (BECKER, 1932, p.222). muito interessante percebermos aqui, dcadas antes, a base de um pensamento que levaria nos anos a uma reavaliao do papel recriador do leitor de histria por Paul Ricoeur (1985). Isto que mais tarde seria tratado por Ricoeur como um retorno da Histria ao vivido, parece ser pensado de alguma maneira por Carl Becker, ao fazer notar que o indivduo no pode lembrar dos acontecimentos passados sem os ligar, de um modo sutil, s suas necessidades ou ao que desejaria fazer (BECKER, 1932, p.227). Deste modo, a histria torna-se, de acordo com Becker uma propriedade privada que cada um de ns molda em funo da sua experincia pessoal, adapta s suas necessidades prticas ou afetivas, e ornamenta segundo o seu gosto esttico (p.227-228). Isto posto, reconhece Becker, a presena de outros indivduos em interaes impede que cada indivduo-historiador construa uma histria inteiramente pessoal, totalmente derivada de sua prpria imaginao. A rede de indivduos em interao permite tambm um fundo comum, um Presente-Passado com certas caractersticas no interior do qual surgem as variaes individuais. alis impressionante poder perceber nestas palavras de Carl Becker algo da futura discusso sobre o campo da experincia e o horizonte de expectativas (o passado e o futuro) que, dcadas depois, Koselleck desenvolveria em Futuro Passado contribuio semntica dos tempos histricos (1979). Em Carl Becker, j encontraremos esta notvel antecipao de uma discusso que retornaria em fins do sculo XX:

Quando os tempos so calmos, [os historiadores] esto normalmente satisfeitos com o passado ... Mas nos perodos tempestuosos, quando a vida parece sair dos seus quadros habituais, aqueles que o presente descontenta esto igualmente descontentes com o passado. Em tais perodos, os historiadores esto dispostos a submeter o passado a um severo exame ... a proferir veredictos ... aprovando ou desaprovando o passado luz de seu descontentamento atual. O passado uma espcie de cran sobre o qual cada gerao projeta a sua viso do futuro, e, por tanto tempo quanto a esperana viva no corao dos homens, as histrias novas se sucedero (BECKER, 1935, p.168-170)