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Ao decidir fazer o mestrado em Linguagens Visuais, sabia desde o começo que deveria desenvolver uma pesquisa que conseguisse gradativamente envolver uma questão teórica específica abarcando meu trabalho poético e, de certa forma, auxiliar em sua continuidade e fundamentação. Ao longo dos dois anos (concomitante às aulas e leituras), o próprio trabalho começou a desvelar seus conflitos e seus desejos, que passaram por vários momentos e, inevitavelmente, por várias crises. Pude então começar a estabelecer uma série de movimentos que me interessavam consideravelmente, como, por exemplo, o possível diálogo entre imagem e texto, a relação com o outro, o espaço “entre”, a possibilidade de construção poética no espaço da experiência e o ritual. Tudo isso, de certa forma, desaguou numa experiência plástica que chamo de instalativa (instalação ativa entremeada por performances), em que crio uma ambiência plástica com vários elementos (visuais, olfativos, sonoros) e que é ativada junto com uma performance específica que transforma toda a situação anterior. Essas performances podem ocorrer várias vezes, de acordo com o tempo de exposição e com o projeto específico. Por outro lado, fui percebendo que, em virtude das mudanças que tais ações iam provocando no espaço criado, algumas microssituações poéticas surgiam gradativamente e me atraíam bastante. Pequenas imagens efêmeras, pequenos poemas visuais que, apesar da força que provocavam, traziam consigo uma série de elementos outros (carregados por vezes de subjetividade) que faziam com que essas imagens se sustentassem no paradoxo tensionado entre sua superfície e sua profundidade. Tais fragmentos eram parte de um quebra-cabeça muito maior, que talvez escapasse ao meu controle, e que era responsável então pela clareira onde brota o próprio trabalho e que habito com considerável freqüência. Por ter consciência de que dois anos seriam insuficientes para conseguir mergulhar nesse conjunto de forças que erige sua própria poética, optei por tentar observá-lo através daquilo que é seu elemento multiplicador, seu caco, seu resto, seu registro fotográfico. Então, nessa maré de achados e de perdas, encontrei- me diante da fotografia e de suas questões. Logo no começo, percebi que o maior risco que corria, e que certamente queria evitar, era a absoluta proximidade estética (sem nenhum mistério) que a fotografia carrega como fantasmática e sua superficialidade recôndita. Naquele momento, a célebre frase de Paul Valéry “O mais profundo é a pele” era algo que me deixava absolutamente incomodado e que apontava decididamente para o que não queria. Então, a fim de conseguir depurar algumas ARTIGO • ALEXANDRE SÁ 23 A obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística Alexandre Sá Refletindo sobre a herança deixada por Walter Benjamin em seu texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o presente texto tem por objetivo detectar algumas transformações ocorridas no processo de construção da obra, bem como avaliar algumas conseqüências no que diz respeito à produção de imagens num momento de movimento constante entendido como a era da reprodutibilidade turística. Imagem, turismo, poética. O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta. Michel Foucault

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade turística · de sua reprodutibilidade turística Alexandre Sá Refletindo sobre a herança deixada por Walter Benjamin em seu texto

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Ao decidir fazer o mestrado em LinguagensVisuais, sabia desde o começo que deveriadesenvolver uma pesquisa que conseguissegradativamente envolver uma questão teóricaespecífica abarcando meu trabalho poético e, decerta forma, auxiliar em sua continuidade efundamentação. Ao longo dos dois anos(concomitante às aulas e leituras), o própriotrabalho começou a desvelar seus conflitos eseus desejos, que passaram por váriosmomentos e, inevitavelmente, por várias crises.Pude então começar a estabelecer uma série demovimentos que me interessavamconsideravelmente, como, por exemplo, opossível diálogo entre imagem e texto, a relaçãocom o outro, o espaço “entre”, a possibilidadede construção poética no espaço da experiênciae o ritual. Tudo isso, de certa forma, desaguounuma experiência plástica que chamo deinstalativa (instalação ativa entremeada porperformances), em que crio uma ambiênciaplástica com vários elementos (visuais, olfativos,sonoros) e que é ativada junto com umaperformance específica que transforma toda asituação anterior. Essas performances podemocorrer várias vezes, de acordo com o tempode exposição e com o projeto específico.

Por outro lado, fui percebendo que, em virtudedas mudanças que tais ações iam provocandono espaço criado, algumas microssituações

poéticas surgiam gradativamente e me atraíambastante. Pequenas imagens efêmeras, pequenospoemas visuais que, apesar da força queprovocavam, traziam consigo uma série deelementos outros (carregados por vezes desubjetividade) que faziam com que essasimagens se sustentassem no paradoxotensionado entre sua superfície e suaprofundidade. Tais fragmentos eram parte de umquebra-cabeça muito maior, que talvezescapasse ao meu controle, e que eraresponsável então pela clareira onde brota opróprio trabalho e que habito com considerávelfreqüência. Por ter consciência de que dois anosseriam insuficientes para conseguir mergulharnesse conjunto de forças que erige sua própriapoética, optei por tentar observá-lo atravésdaquilo que é seu elemento multiplicador, seucaco, seu resto, seu registro fotográfico. Então,nessa maré de achados e de perdas, encontrei-me diante da fotografia e de suas questões.Logo no começo, percebi que o maior riscoque corria, e que certamente queria evitar, era aabsoluta proximidade estética (sem nenhummistério) que a fotografia carrega comofantasmática e sua superficialidade recôndita.Naquele momento, a célebre frase de PaulValéry “O mais profundo é a pele” era algo queme deixava absolutamente incomodado e queapontava decididamente para o que não queria.Então, a fim de conseguir depurar algumas

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A obra de arte na erade sua reprodutibilidade turística

A l e x a n d r e S á

Refletindo sobre a herança deixada por Walter Benjamin em seu texto A obra dearte na era de sua reprodutibilidade técnica, o presente texto tem por objetivo

detectar algumas transformações ocorridas no processo de construção da obra, bemcomo avaliar algumas conseqüências no que diz respeito à produção de imagens

num momento de movimento constante entendido como a era da reprodutibilidadeturística.

Imagem, tur i smo, poét ica .

OO nnoovvoo nnããoo eessttáá nnoo qquuee éé ddiittoo,, mmaass nnoo aaccoonntteecciimmeennttoo ddee ssuuaa vvoollttaa..

MMiicchheell FFoouuccaauulltt

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questões, observar aquilo que é oposto aotrabalho e enfrentar o que me intrigava naimagem fotográfica, fui inevitavelmenteconduzido a Walter Benjamin.

AAllgguummaass ddiiffeerreennççaass

Fui detectando uma série de questões quetraziam mudanças consideráveis no legadobenjaminiano, como, por exemplo, aequiparação do valor de culto ao valor deexposição, a diluição da aura (tida comosinônimo de distância religiosa e existênciaúnica), o surgimento de uma aura outra (queparadoxalmente se mantinha amparada nacapacidade de exposição de uma determinadaimagem), a potencialização do desejo utópico deeternidade, a diminuição considerável do ritual(que, ainda assim, consegue sobreviver emalguns momentos muito específicos) e apresença incontestável de uma sensação deesvaziamento estético que é fruto de umaonipresença entrópica. Tais diferenças tambémenglobam um aumento na velocidade e naquantidade de produção das imagens, além deum desejo de captura de realidades que sejamexóticas e distantes o suficiente para queprovoquem um efeito potente no observador.Essas imagens, consideravelmente distantes, têmpor objetivo a produção de um tipo de prazerao ser observadas, ao se deixar invadir peloolhar atento e não menos curioso do público,ávido por mais e mais imagens; num movimentocíclico e obviamente sem fim.

Mas, se estamos então num momento deultrapassagem dessa reprodutibilidade técnica,em que a própria imagem se descobre dentrode um novo processo, como denominá-la?Como definir um momento no qual o que defato ocorre é um giro, uma mudança de grau naprópria estética veiculada por essa imagemtécnica? Como denominar um momento detrânsito incansável em que o deslocamento éregra e em que o prazer parece surgir como amais forte justificativa? Como fundamentar umaexperiência estética que parece ser estabelecidanuma relação oblíqua de distância, aproximaçãoe estranhamento? Escolhi então o termoturístico. E optei por chamar esse momento dereprodutibilidade turística. Nela, mesmo sendo atécnica o eixo primeiro e fundamental, o que sepresentifica é a efemeridade do registro, aperecibilidade da experiência provocada e aligeira certeza de que todas as coisas parecemsatisfeitas quando banhadas em sua maisrecôndita superficialidade. E se o turismo se

baseia fundamentalmente na visita dodesconhecido (ou daquilo que ainda lhe resta),no mergulho em elementos “pictográficos” queabarquem um determinado local, optei então poriniciar essa “viagem” pela hipótese de que hoje opúblico se situa no mesmo eixo que o estrangeiro(pois, quando não especializado, desconhecegrande parte dos códigos inerentes), e a obra,compreendida como metáfora do universo dacidade desconhecida a ser visitada / desvendada.

PPoorrqquuêêss ttuurrííssttiiccooss

Mas por que falar aqui em turismo? Porquesabemos que estamos vivendo numa época emque o hedonismo se torna cada vez maispresente, e o turismo é um dos elementos quesatisfaz tal hedonismo. Além disso, podemosconsiderar a experiência turística como umaexperiência também estética, pois se refere àsensibilidade, à recepção e à busca de umaexperiência artística. O turista está à procura desensações que estejam fora de todo o interesseutilitário e realiza suas experiências por prazer,para “ter” tais experiências, possuí-las eaproveitá-las da melhor maneira possível.1

OO qquuee éé pprrooccuurraaddoo nnoo ttuurriissmmoo éé aaddiissttrraaççããoo,, aa eevvaassããoo,, aa ddiivveerrssããoo,, aa sseennssaaççããoo,,oo pprraazzeerr:: ttooddaass aass ccooiissaass qquuee ssee aarrrruummaammssoobb aa rruubbrriiccaa pprrááttiiccaa ddoo eexxoottiissmmoo.. OOeexxoottiissmmoo ppeerrmmiittee aa ffuuggaa ddoo ccoottiiddiiaannoo ee ddeessuuaass vviioollêênncciiaass,, ddee ssee ddeessoorriieennttaarr.. EEllee ddeevveeppeerrmmiittiirr ttaammbbéémm aa rreeaalliizzaaççããoo ddee eennccoonnttrrooss::eennccoonnttrroo ccoomm oouuttrrooss hhoommeennss,, ccoomm oouuttrroosshháábbiittooss,, ccoomm oouuttrraass mmaanneeiirraass ddee ppeennssaarr eesseennttiirr.. CCoomm ddeetteerrmmiinnaaddaass pprreeccaauuççõõeess eeddeennttrroo ddaass ccoonnddiiççõõeess qquuee pprrooppoorrcciioonnaamm ooeennccoonnttrroo sseemm ppeerriiggoo,, qquuee aammoorrtteecceemm oocchhooqquuee ccoomm oo eessttrraannhhoo.. PPeelloo eexxoottiissmmoo,, oottuurriissttaa pprrooccuurraa oo oouuttrroo qquuee nnããoo eellee mmeessmmoo,,ddee iiddeennttiiddaaddeess ddiiffeerreenntteess ddaa ssuuaa,, ccuujjooeennccoonnttrroo llhhee ccoonnffeerree oo sseennttiimmeennttoo ddee ssaaiirrddee ssii,, ddeeiixxaannddoo--oo aassssiimm ccrreerr qquuee eellee ssaabbeemmeellhhoorr aaqquuiilloo qquuee eellee éé..2

O turista vive sob a égide do movimentoincessante, sob o prazer (na maioria esmagadorados casos, amparado por descompassoseconômicos) do descompromisso diantedaquele que visita, para que assim possa, ao fimde sua viagem, descobrir melhor o que vem aser ele mesmo e o outro. Uma das diferençasfundamentais entre o turista e o flâneur (produtodireto da modernidade e de Baudelaire) é que oprimeiro joga muito menos com o acaso, com aobservação dos movimentos de passagem,

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embora ele possa obviamente experimentaracontecimentos casuais ao longo de sua viagem.O flâneur atravessa os vestígios, tentando “decifraro que a paisagem labiríntica e impenetrável tempara lhe oferecer”.3 O flâneur perde-se na massa,é o que está no centro do mundo – na multidão– e o que está, ao mesmo tempo, protegido,dissimulando-se, ao abrigo dos olhares. Seudesejo é dialético. Seu objetivo é aproximar-sedaquilo que lhe escapa continuamente, fazendo-operseguir o alvo sem cessar. Seu alvo são aspequenas relíquias que a paisagem pode lheoferecer para que ele, de alguma maneira,consiga anestesiar sua solidão inerente. “O flâneurprocura um refúgio na multidão. A multidão é ovéu, através do qual a vida familiar se move parao flâneur, em fantasmagoria.”4

O turista, por sua vez, tem objetivos mais clarose alvos mais diretos. Seu objetivo não é sumirna multidão, mas simplesmente conseguirobservá-la de fora, como se através de umavitrina. O turista sabe que jamais fará parte dasociedade que visita (embora em alguns casosseja movido por esse desejo utópico). Taldistância é desejada para que assim consigadiscernir melhor o que define os dois pólos(visitante e visitado). Seu repertório é ausênciade um comprometimento diante do futuro. Oturista de massa esbarra, tropeça em novas

paisagens, em outras personagensexóticas e inimagináveis. Por outrolado, seu “outro” e seu “outro-lugar”estão sempre a serviço dele próprio. Éimportante que ele “se sinta em casa”para que possa mais tarde, casodeseje, retornar ao local visitado eassim auxiliar na movimentação decapital, mesmo que para isso a cidadetenha que usar os mais diversosrecursos para então propiciar as maisestranhas ilusões. Há no turismo algode construção involuntária que ébastante interessante, pois dentro deuma época de consumo de massas,tudo de uma cidade deve estarpreparado para servir de base a esseencontro com o estrangeiro. E,obviamente, a ficção pode tambémfazer parte desse jogo.

AA oobbrraa ccoommoo cciiddaaddee

O movimento turístico se sustenta pelaseparação semântica intransponível epela distância absoluta entre aqueleque visita e aquele que é visitado.

Que, pelo exotismo do ambiente e de seuconteúdo, projeta uma imagem‘monumentalizada’ do outro (sempre do outro),mantendo-se o mesmo, em eterno processo dereverberação. Se pensarmos que a cidade é aconstrução de uma realidade não natural, emvirtude dos seus desejos de comunicação, frutoda produção humana, e composta por umatrama inesgotável de signos e variações estéticas,poderemos então aproximar a imagem dacidade da própria imagem da obra de arte. Aobra como cidade, em imagem de construção edesconstrução.

Ou como aponta G.C. Argan:

NNããoo éé ddiiffíícciill ccoommpprreeeennddeerr ccoommoo,, ppaarraa ttooddaassaass ccoorrrreenntteess aarrttííssttiiccaass ddee vvaanngguuaarrddaa,, aapprroobblleemmááttiiccaa ddoo oobbjjeettoo ddee aarrttee,, aalliiááss ddoooobbjjeettoo ssiimmpplleessmmeennttee,, ssee tteennhhaa eesstteennddiiddoo ààcciiddaaddee:: aa cciiddaaddee eessttáá ppaarraa aa ssoocciieeddaaddeeaassssiimm ccoommoo oo oobbjjeettoo eessttáá ppaarraa oo iinnddiivvíídduuoo..AA ssoocciieeddaaddee ssee rreeccoonnhheeccee nnaa cciiddaaddee ccoommoooo iinnddiivvíídduuoo nnoo oobbjjeettoo;; aa cciiddaaddee ppoorrttaannttoo ééuumm oobbjjeettoo ddee uussoo ccoolleettiivvoo.. NNããoo ssóó iissssoo,, aacciiddaaddee ttaammbbéémm éé iiddeennttiiffiiccáávveell ccoomm aa aarrtteeppoorrqquuaannttoo rreessuullttaa oobbjjeettiivvaammeennttee ddaaccoonnvveerrggêênncciiaa ddee ttooddaass aass ttééccnniiccaass aarrttííssttiiccaassnnaa ffoorrmmaaççããoo ddee uumm aammbbiieennttee ttaannttoo mmaaiissvviittaall qquuaannttoo mmaaiiss rriiccoo eemm vvaalloorreess eessttééttiiccooss..

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QQuuaannddoo ssee ffaallaa eemm ccrriissee ddaa aarrttee,, ffaallaa--ssee nnaarreeaalliiddaaddee,, eemm ccrriissee ddaa cciiddaaddee;; ee aa ccrriissee ddaacciiddaaddee éé uumm ddooss ffeennôômmeennooss mmaaiiss ggrraavveess eeppeerriiggoossooss ddoo mmuunnddoo mmooddeerrnnoo..5

Podemos também pensar que o quemonumentaliza a obra é a visita/viagemesporádica daquele que é estrangeiro a suapoética, ou seja, o público. Seria então essefluxo transitório de “forasteiros” que tornariapossível um refluxo diante do esvaziamento dacondição da obra, do próprio artista e dahistória? Seriam a velocidade e a quantidade daexposição desse trânsito entre público e obra osresponsáveis pela instauração de uma novasensação de obra e de presença?

Será que, em tempos de marketing inevitável,de grandes exposições midiáticas, de museus-armazéns, um dos fatores responsáveis pelaconsolidação da obra como tal é (além deoutros elementos sistêmicos) o olhar daqueleque a desconhece de fato (exatamente porser estrangeiro a sua poética) e que, emcertas ocasiões, visita-a por curiosidade? Ouseja, o público (a audiência) como turista, emafã de pesquisa de campo direcionado àexperiência estética?

AA rreepprroodduuttiibbiilliiddaaddee ttuurrííssttiiccaa.. TTeennttaattiivvaass iinnggêênnuuaassddee ccaappttuurráá--llaa

EEssttaammooss aaqquuii ddeessllooccaaddooss ddaa mmeessmmaammaanneeiirraa qquuee ffoottóóggrraaffooss,, ttuurriissttaassvvooyyeeuurrííssttiiccooss eemm mmuunnddooss rreepprreesseennttaaddooss ssoobbooss nnoossssooss ppééss..6

O que chamo de era da reprodutibilidadeturística é um momento em que a imagem(mesmo que saibamos que seja esta sua sina)utiliza os mais diversos recursos para a produçãode uma força visual arrebatadora e não menosviolenta. Em que por vezes o caminho escolhidoé o da explicitação representativa de suasuperfície esquelética e nada além disso. O alvodessa imagem é o estranhamento, o fetiche doexótico e do distante através de um método depseudo-aproximação que satisfaça aoespectador. A superficialidade dessa era é acomunicação imediata, direta, sedutora, semnenhum mistério e sem nenhuma reflexão.Sagaz, veloz e certeira – são esses seusadjetivos. Arrebatamento é seu método decatequização, dissipar, seu verbo, e cobiçar maise mais mercadorias é sua linha de ação.

Por outro lado, é um momento de absolutavelocidade na comunicação, na transmissão dedados, nos contatos entre pessoas e entre

países. Derizomas ehipertextos. Ummomento emque, pelaquantidadeenorme dedados emtrânsito,geralmente nossentimosperdidos. Trata-se de uma eradeacessibilidade,de diluição defronteiras e deexpansão deterritórios –momento de intenso deslocamento e de poucoestabelecimento; de destruição de tabus, detransformação de valores estéticos e morais. Aimagem é o eixo norteador da reprodutibilidadeturística, pois é precisa em sua superfície, fácil deimprimir-se na memória e repleta de vontadede potência. “Agora as imagens, que são opassado da realidade, começam a revelar-se emdireção à duração, ao tempo presente daexperiência espacial imediata.”7

Além disso, podemos detectar também umaumento inevitável da perda de naturalidade, uminelutável hábito de imitação de si mesmo queparecem comuns. Basta pensarmos na fotografiadigital (e na quantidade cada vez maissurpreendente de máquinas desse tipo, presentesaté em telefones celulares) e na Internet, em queo papel é eliminado, e a imagem se estabelecepor meios virtuais, ou melhor, em que a imagemse aproxima mais daquilo que deseja: virtualidade.A fotografia digital termina diminuindo os custos,possibilitando o aumento da produção dessasimagens. E, se tais imagens aumentam, oprocesso de captura de tais fotos tambémaumenta. Aumentam também uma carga deinautenticidade e o desejo constante de tornar-setodo-imagem, bem como a experiência da morte(afinal toda fotografia implica um ato de objetivarseu sujeito) e da desertificação de si próprio.

Se pensarmos ainda que vivemos numa época àqual Deleuze se refere como sociedade decontrole, que seria um desdobramento dasociedade disciplinar bastante discutida porMichel Foucault, fundamentaremos ainda a

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importância dessa imagem na reprodutibilidadeturística, já que a sociedade de controle é umasociedade de vigilância intermitente que utiliza,como um de seus vários métodos, o elementoimagético como meio de policiamento e deindução de significância. Esse tipo de sociedadetem como estratégia fundamental oesvaziamento da imagem como poética e opreenchimento da imagem como fonte deinformação, deslocando-a de sua função,fazendo com que a compreendamos como aprópria expressão dos acontecimentos. A erada reprodutibilidade turística vale-se disso, ea imagem, antes mesmo de detectar umainformação a ser veiculada, quer auto-afirmar-se como um olhar onipresente devigilância incansável.

RReefflluuxxooss

Contudo, é necessário esclarecer que não háaqui nenhum desejo de negação absoluta daimagem. Muito pelo contrário. Nosso desejo éo de detectar problemáticas que auxiliem nadescoberta de outros fluxos. Temos consciênciade que as imagens são fundamentais para oprocesso de autoconhecimento de uma culturanuma determinada época, e os artistas, hoje,procuram fazer com que ela seja uminstrumento a ser utilizado a favor de suasrespectivas práticas artísticas.8

Relembrando ainda Walter Benjamin, “a obra dearte reproduzida é cada vez mais a reproduçãode uma obra de arte criada para serreproduzida”.9 O emblema (ao avesso, comoantídoto) da reprodutibilidade turística então serevela: reproduzir-se, copiar-se, descobrir-sepassível de investimento, gerar capital, aprimorareternamente a imagem e aprofundar aquilo quea constitui, ser efêmero sem ser volátil,reinventar (quando necessário) todo o ritualpossível, aproveitar, fazer uso de recursos,movimentar-se sem intermitência, desbravarnovos habitantes que carreguem ainda algo deoriginal, experimentar novas situações plásticas,obter prazer, não se deixar pasteurizar, procuraras exceções, satisfazer-se.

Numa era de imagens, o que talvez reste aosartistas seja exatamente a produção incansávelde muito mais imagens, que consigam por suavez ser contrapostas à quantidade inesgotável deimagens públicas diariamente veiculadas –projetar novas imagens sobre o mundo que seapresenta, já que na reprodutibilidade turística a

possibilidade de invenção de novos mundos (emdiversas camadas de significância) é uma denossas novas linhas de fuga que se anuncia.Então, a figura do artista ressurge hoje bempróxima daquilo que Hans Belting nos diz sobrea condição de Sísifo:

PPaarraa CCaammuuss eellee éé aa ffiigguurraa--ssíímmbboolloo ddee uummaarreevvoollttaa qquuee eexxpprreessssaa nnaa ccrriiaaççããoo aarrttííssttiiccaa aaeexxppeerriiêênncciiaa ddee uumm mmuunnddoo aabbssuurrddoo.. SSííssiiffoossaabbee ssoobbrree aa iinnuuttiilliiddaaddee ddee ssuuaa rreevvoollttaa,, ee ssóóeessssee ssaabbeerr llhhee rreessttiittuuii aa aauuttoonnoommiiaa ppeessssooaallqquuee,, ddoo ccoonnttrráárriioo,, eellee ppeerrddeerriiaa oouu tteerriiaappeerrddiiddoo.. OOss aarrttiissttaass ffaazzeemm uumm ggeessttoo ddeeaauuttoo--aaffiirrmmaaççããoo,, eemmbboorraa ssaaiibbaamm qquuee eelleessnnaaddaa aalltteerraarrããoo nnoo mmuunnddoo,, mmaass eelleess ppooddeemmssee ccoonnsscciieennttiizzaarr ddee sseeuu eessttaaddoo.. NNiissssooccoonnssiissttee aa aalleeggrriiaa sseeccrreettaa ddee SSííssiiffoo.. SSeeuuddeessttiinnoo ppeerrtteennccee aaggoorraa aa eellee ssóó.. AA lluuttaaccoonnttrraa oo ccuummee ppooddee pprreeeenncchheerr uumm ccoorraaççããoohhuummaannoo.. TTeemmooss ddee iimmaaggiinnaarr SSííssiiffoo ccoommoo uummhhoommeemm ffeelliizz..10

Alexandre Sá é artista visual, poeta e mestre em Linguagens Visuais, peloPPGAV/EBA/UFRJ. O presente texto é um pequeno extrato de sua tesede mestrado, sob a orientação da professora doutora Glória Ferreira,defendida em março de 2006.

NNoottaass

1Michaud, Yves. L’art à l’état gazeux. Essai sur le triompheesthétique. Paris: Hachette Littératures, 2003: 188.

2 Id., ibid.: 191.

3 Cantinho, Maria João. Modernidade e alegoria em WalterBejamin. In: http://www.ucm.es/info/especulo/numero24/ben-jamin.html

4 Benjamin, Walter. Écrits Français, “Paris, Capitale du XIXe

siècle”: 301, apud Cantinho, op. cit.

5 Argan, Giulio C. História da arte como história da cidade. SãoPaulo: Martins Fontes, 1998: 255.

6 Morris, Robert. The present tense of the space. In Art inAmerica, jan-fev 1978: 80.

7 Id., ibid.: 70

8 Infelizmente, aqui, não podemos explicitar todo o raciocínioque compôs a tese e que eliminava essa ligeira presençaiconoclasta.

9 Benjamin, Walter. A obra de arte na era de suareprodutibilidade técnica. In Obras escolhidas, vol. 1. SãoPaulo: Editora Brasiliense, 1996: 171.

10 Belting, Hans. Sísifo ou Prometeu? Sobre arte e tecnologiahoje. In XXVI Bienal Internacional de São Paulo (catálogo). SãoPaulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2004.

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