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A obra de Gustav Meyrink - Adriano Colangelo A literatura esotérica não produziu apenas tratados filosóficos, mas também romances de grande valor. Entre eles avultam, pela clareza com que reproduzem ensinamentos iniciáticos de alta complexidade, os do austríaco Gustav Meyrink. No entanto, o mais notável na obra de Meyrink é que, se por um lado ela expõe doutrinas de conhecimento corrente entre os esoteristas, de outro baseia-se numa tradição hermética tão desconhecida e singular, que nem mesmo as mais sofisticadas enciclopédias a registram. Trata-se das teorias chamadas “tavistas”, que constituem o pano-de-fundo da melhor obra de Meyrink, Der Weisse Domenikaner (O Dominicano Branco) e a respeito das quais as únicas referências erudita de que se dispõe são algumas “lendas alquímicas tavistas” publicadas em 1870 pelo pesquisador Pftzmaier, nas atas da Academia de Viena. A evidência com que as idéias tavistas são expostas no romance mostra que Meyrink, de algum modo, teve acesso às mais sagradas e ocultas ordens espirituais do Oriente. Duas dessas idéias também aparecem no taoísmo chinês: o shi-kiai (“solução do cadáver”) e o kieu-kiai (“a solução da espada”). A primeira explica como, pela técnica tavista; o indivíduo pode dissolver seu corpo físico, tornando-se invisível, conseguindo a imortalidade e rompendo a cadeia das encarnações sucessivas. Pelo kieu-kiai, o iniciado, já na tumba, pode-se transformar numa espada – o que é um modo de dizer que o corpo sutil do homem pode-se transformar numa arma ou instrumento de poder. Meyrink mostra ainda, em seus romances, como: O Golem, O Anjo da janela do Ocidente, O Rosto Verde, possuir um extenso conhecimento do esoterismo ocidental. No mesmo O Dominicano Branco ele afirma, por exemplo, que em todas as civilizações tradicionais as artes tiveram uma contraparte esotérica, apontando como exemplos, no Ocidente, as corporações medievais de artistas e os Cenáculos do Renascimento. Uma constante em sua obra é a referência a uma Ordem mais secreta ainda, que não seria propriamente qualquer organização específica, mas “uma cadeia invisível que subsiste além do tempo e do espaço” – Paralelamente com uma corrente de “contra-iniciação” devidamente organizada para tentar impedir a abertura espiritual do homem. Tais mecanismos são também mencionados em O Rei do Mundo, de René Guénon, e em Máscara e Face do Espiritualismo Contemporâneo, de Julius Evola. Outra doutrina esotérica constante presente nos livros de Meyrink é a do andrógino espiritual – o Yang-Ying chinês, o shiva-shakti tântrico, cuja contrapartida ocidental é o Bafomet dos templários, o Rébis dos alquimistas. Inúmeras vezes refere-se às “núpcias alquímicas” do “jovem rei” com a “rainha”, que teria como resultado a aquisição de “dupla coroa e duplo poder”. No romance O Anjo da janela do Ocidente, o personagem John Dee comete o erro de assumir a responsabilidade matrimonial apenas no aspecto terreno, porém acaba percebendo que as verdadeiras núpcias só se tornam possíveis após o que os alquimista chamam de mortificação. Conhecer e possuir em si mesmo a própria contraparte feminina oculta – afirma Meyrink – é a Chave da Grande Obra, a reunião das duas partes da Espada Quebrada. Neste trecho do O Dominicano Branco, ele explica a importância do princípio feminino: O Instinto sexual pode ser a raiz da vida como também da morte. “ Em vão, meu filho, todas os ascetas se esforçam para extirpá-lo. Eles querem conquistar a “fria qualidade mágica” sem a qual não é possível tornar-se super-homem, e por isso fogem da mulher, não entendendo, infelizmente, que somente a fêmea poderia ser de ajuda para eles. De fato filho, o princípio feminino, que aqui na terra é separado do masculino, deve penetrar em você e fundir-se com você: somente então celebrar-se-ão as núpcias mágicas e o anel será fechado, e nesse estado você alcançará o “frio mágico” que quebra as leis da terra, que não é mais o oposto do calor e que está além do gelo e da brasa e do qual surge tudo aquilo que a força de um espírito de fé tem o poder de criar.” Meyrink aponta porem, um perigo que procura impedir as “núpcias mágicas”: a ilusão gerada pela embriagues da união material de homem e mulher como seres terrenos “distintos”. O adepto tem de ser capaz de conservar e fixar a força dos dois princípios, impedindo, a todo custo a dissipação e degradação da vida erótica comum. Mediante essa e muitas outras doutrinas, Meyrink procura fixar, em seus romances, uma síntese – tão altamente desejável hoje em dia – entre as doutrinas do Oriente e do Ocidente, levando o homem de volta a seu princípio e sua unidade.

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A obra de Gustav Meyrink - Adriano Colangelo

A literatura esotérica não produziu apenas tratados filosóficos, mas também romances de grande valor. Entre eles avultam, pela clareza com que reproduzem ensinamentos iniciáticos de alta complexidade, os do austríaco Gustav Meyrink. No entanto, o mais notável na obra de Meyrink é que, se por um lado ela expõe doutrinas de conhecimento corrente entre os esoteristas, de outro baseia-se numa tradição hermética tão desconhecida e singular, que nem mesmo as mais sofisticadas enciclopédias a registram. Trata-se das teorias chamadas “tavistas”, que constituem o pano-de-fundo da melhor obra de Meyrink, Der Weisse Domenikaner (O Dominicano Branco) e a respeito das quais as únicas referências erudita de que se dispõe são algumas “lendas alquímicas tavistas” publicadas em 1870 pelo pesquisador Pftzmaier, nas atas da Academia de Viena. A evidência com que as idéias tavistas são expostas no romance mostra que Meyrink, de algum modo, teve acesso às mais sagradas e ocultas ordens espirituais do Oriente. Duas dessas idéias também aparecem no taoísmo chinês: o shi-kiai (“solução do cadáver”) e o kieu-kiai (“a solução da espada”). A primeira explica como, pela técnica tavista; o indivíduo pode dissolver seu corpo físico, tornando-se invisível, conseguindo a imortalidade e rompendo a cadeia das encarnações sucessivas. Pelo kieu-kiai, o iniciado, já na tumba, pode-se transformar numa espada – o que é um modo de dizer que o corpo sutil do homem pode-se transformar numa arma ou instrumento de poder. Meyrink mostra ainda, em seus romances, como: O Golem, O Anjo da janela do Ocidente, O Rosto Verde, possuir um extenso conhecimento do esoterismo ocidental. No mesmo O Dominicano Branco ele afirma, por exemplo, que em todas as civilizações tradicionais as artes tiveram uma contraparte esotérica, apontando como exemplos, no Ocidente, as corporações medievais de artistas e os Cenáculos do Renascimento. Uma constante em sua obra é a referência a uma Ordem mais secreta ainda, que não seria propriamente qualquer organização específica, mas “uma cadeia invisível que subsiste além do tempo e do espaço” – Paralelamente com uma corrente de “contra-iniciação” devidamente organizada para tentar impedir a abertura espiritual do homem. Tais mecanismos são também mencionados em O Rei do Mundo, de René Guénon, e em Máscara e Face do Espiritualismo Contemporâneo, de Julius Evola. Outra doutrina esotérica constante presente nos livros de Meyrink é a do andrógino espiritual – o Yang-Ying chinês, o shiva-shakti tântrico, cuja contrapartida ocidental é o Bafomet dos templários, o Rébis dos alquimistas. Inúmeras vezes refere-se às “núpcias alquímicas” do “jovem rei” com a “rainha”, que teria como resultado a aquisição de “dupla coroa e duplo poder”. No romance O Anjo da janela do Ocidente, o personagem John Dee comete o erro de assumir a responsabilidade matrimonial apenas no aspecto terreno, porém acaba percebendo que as verdadeiras núpcias só se tornam possíveis após o que os alquimista chamam de mortificação. Conhecer e possuir em si mesmo a própria contraparte feminina oculta – afirma Meyrink – é a Chave da Grande Obra, a reunião das duas partes da Espada Quebrada. Neste trecho do O Dominicano Branco, ele explica a importância do princípio feminino: O Instinto sexual pode ser a raiz da vida como também da morte. “ Em vão, meu filho, todas os ascetas se esforçam para extirpá-lo. Eles querem conquistar a “fria qualidade mágica” sem a qual não é possível tornar-se super-homem, e por isso fogem da mulher, não entendendo, infelizmente, que somente a fêmea poderia ser de ajuda para eles. De fato filho, o princípio feminino, que aqui na terra é separado do masculino, deve penetrar em você e fundir-se com você: somente então celebrar-se-ão as núpcias mágicas e o anel será fechado, e nesse estado você alcançará o “frio mágico” que quebra as leis da terra, que não é mais o oposto do calor e que está além do gelo e da brasa e do qual surge tudo aquilo que a força de um espírito de fé tem o poder de criar.” Meyrink aponta porem, um perigo que procura impedir as “núpcias mágicas”: a ilusão gerada pela embriagues da união material de homem e mulher como seres terrenos “distintos”. O adepto tem de ser capaz de conservar e fixar a força dos dois princípios, impedindo, a todo custo a dissipação e degradação da vida erótica comum. Mediante essa e muitas outras doutrinas, Meyrink procura fixar, em seus romances, uma síntese – tão altamente desejável hoje em dia – entre as doutrinas do Oriente e do Ocidente, levando o homem de volta a seu princípio e sua unidade.

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