A Oração do Coração

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    A Orao do Corao

    (Conferncia realizada por Olivier Clment, telogo ortodoxo,aos monges da Abadia de Tamie (Saboya) em 29 de maio de 1970)

    Traduo: Pe. Paulo Augusto Tamanini1. O contexto eclesial e teolgico-sacramental2. Orar sem cessar3. O estado metnico4. A vigilncia e a ternura5. Uma unificao excntrica6. A orao ininterrupta

    1. O contexto eclesial e teolgico-sacramental

    uito importante para compreender esta orao situ-la em seu contexto

    teolgico e eclesial: o hesicasta no est alm da Igreja, ele se centra naIgreja, se faz integralmente um homem da Igreja, capaz de fazer eucaristiaem todas as coisas como pedia o Apstolo (I Tes 5,18). Que o hesicasmo

    constitui a contrapartida crist do yoga que re-situa, numa atitude propriamente dereencontro pessoal e de graa, uma explorao da interioridade que tambm asespiritualidades asiticas praticam, mais que provvel. E isto se deve estruturamesma do homem, criado imagem de Deus.

    Voltaremos a falar sobre isto. Porm, posto que s Cristo pode recapitular todas ascoisas e colocar tudo em seu verdadeiro lugar, o hesicasmo aparece comofundamentalmente crstico, como uma ascese cujo fim a tomada de conscinciaatuante da Igreja, Corpo de Cristo, Templo do Esprito Santo e Casa do Pai...

    a) - necessrio, em primeiro lugar, recordar algumas aproximaes teolgicas.

    Quando, no Ocidente, pensamos na noo de natureza, o fazemos atravs de umasensibilidade filosfica modelada pelo tomismo tardio, logo, pelo dualismo cartesiano,finalmente, pelas cincias contemporneas que reabilitam - contra as cincias humanas -esse "paradigma perdido" a partir dos dados da biologia, da ecologia e da etologa.Assim, cada vez, temos a impresso de que a graa vem juntar-se natureza paracontrari-la ou aperfeio-la... No Oriente cristo, me parece, a graa sentida comopresente em tudo o que existe. A verdadeira natureza dos seres e das coisas justamenteessa transparncia graa, esse dinamismo de unio com as energias divinas. Pois, a

    graa incriada, Deus mesmo que se faz participvel voluntariamente, permanecendo,ao mesmo tempo, o Totalmente Outro, o Inacessvel.

    Seguir a natureza, nesta perspectiva, abrir-se graa e unir-se a Deus: o homem no verdadeiramente homem seno em Deus, no se pode falar do homem em seu prprionvel e, como dizia Berdiaev, empregando smbolos apocalpticos, no h, em geral,outra eleio que a "divino-humanidade" ou a "bestial-humanidade". O mundo cado,ainda que siga sendo criao de Deus, conhece uma modalidade noturna, ou, se se quer,demasiado clara, luciferina, no sentido do "palcio de cristal" de Dostoievsky.

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    Certamente mantido no ser pela Sabedoria divina, e a reflexo cientfica mais recentemostra at que ponto a ordem csmica se recompe sem cessar sobre a desordem, sobreo caos. No obstante, esse mundo de opacidade, de crueldade e de morte, parcialmentecontra-natura: a verdadeira natureza, a descobrimos no corpo "pneumatizado" doRessuscitado, do qual participamos na Eucaristia...

    O homem foi criado imagem de Deus, chamado a se transformar, na graa, imagem esemelhana, no sentido de uma participao. A imagem designa, em primeiro lugar, ohomem enquanto vocacionado a uma existncia pessoal em comunho, a maneira daUni-trindade e por transparncia das energias trinitrias. Porm, designa tambm essanatureza profunda, inseparvel do cosmo, no fruto, seno motor secreto do devircsmico, e esta natureza a aspirao ao infinito, a esperana da deificao, a imensacelebrao da que a ndia diz com profundidade que dorme na pedra, sonha na planta,desperta no animal, faz-se, ou, melhor dizendo, pode se fazer consciente no homem.Todo o problema do homem radica em expressar justamente esse movimento para oinfinito, unir o dinamismo interior do Sopro revelao do Logos, de outro modo, esseimpulso suscita as "paixes" e as idolatrias.

    Se se tem presente o significado da noo de natureza, compreende-se que o serhumano, em sua totalidade, e at em sua estrutura e ritmos corporais, est constitudopara chegar a ser templo do Esprito (a expresso paulina, como se sabe). Temos feitodo cristianismo um assunto da alma, um assunto psicolgico (e finalmente, umaideologia...). Porm, na Tradio da Igreja indivisa se encontra a idia muito forte deque o homem criado para estar unido a Deus em todo o seu ser, esprito, alma e corpo;no se considerando aqui o esprito como uma faculdade particular, mas como o centrodonde todas as faculdades se unem, donde o homem, todo inteiro, se unifica e se supera.Em suma, a inscrio em toda a natureza do homem, de sua vocao em pessoa. Umocidental, marcado por uma espcie de platonismo inconsciente, tem tendncia aaproximar o Esprito ao esprito, depreciando o corpo. Na realidade, o Deus vivente

    transcende tambm radicalmente, tanto o inteligvel como o sensvel, e quando se d,transfigura tanto um como outro. A antropologia do hesicasmo bblica, isto , unitria.Acentua os dois ritmos fundamentais de nossa existncia psicossomtica, o darespirao e o do corao. O ritmo respiratrio o nico que podemos utilizarvoluntariamente, no para domin-lo seno para oferec-lo; ele determina nossatemporalidade vivida, a acelera ou a acalma, fecha-se sobre si mesma ou a abre sobre aPresena. O ritmo do corao ordena o espao-tempo ao redor de um centro do quetodas as tradies espirituais sabem que abismal, que pode abrir-se sobre atranscendncia; a "caverna do corao" das tradies arcaicas e da ndia... Esses doisritmos nos tem sido dados pelo Criador para permitir vida divina apoderar-se daprofundeza de nosso ser e envolv-lo, encher de luz toda nossa existncia. Poderia-sequase dizer, no somente nossa existncia corporal mas, a partir de nossa existncia

    corporal, pois no Corpo de Cristo que somos enxertados pelo batismo; pelo sangue(con-sangneos) e pelo corpo (con-corporais) que somos unidos a Cristo: certamente, oCorpo de Cristo designa sua humanidade inteira, porm a lngua no se equivoca, ocorpo o que constitui a raiz e a expresso ultima da encarnao. necessrio tomar asrio a exortao: "No sabeis que vosso corpo o templo do Esprito Santo que habitaem vs? Glorificai a Deus em vosso corpo" (1Cor 6,19-20).

    Uma certa poesia nos guia aqui, no para o imaginrio, seno para a profundidade, parao simbolismo verdadeiro que se inscreve na natureza das coisas que o Logos ordena e

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    que o Pneuma vivifica.

    O Senhor Deus formou o homem do p da terra, soprou em suas narinas um sopro devida e o homem se converteu em um ser vivente (Gn 2,7).

    Assim se precisa uma correspondncia, uma analogia-participao entre o Esprito,

    enquanto sopro vivificante de Deus, e a respirao enquanto sopro vital do homem. Ohomem chamado a mesclar seu sopro ao Sopro divino, a "respirar o Esprto Santo",como escreveu Gregrio o Sinata. o que ele alcana se consegue "aderir" suarespirao o Nome de Jesus, pois o Esprito, tanto em Deus como no homem, o"anunciador do Verbo".Existe igualmente uma analogia semelhante entre o corao,como centr de integrao do homem, e Cristo, "sol de justia", corao da Igreja e, porseu intermdio, do Universo, posto que a Igreja no outra coisa que o Universo emvias de transfigurao ao redor de seu corao. Este tema de Cristo-corao, corao daIgreja e de cada um de seus membros, fundamental para um espiritual e liturgista leigodo final da Idade Media, Nicols Cabasillas, que escrevia para os leigos e dava tradio hesicasta uma tonalidade diretamente sacramental.

    Com efeito, o tema do corao est ligado ao do sangue. Quando o homem arcaico e,por outro lado, o homem bblico, medita sobre o sangue, o v lquido como a gua mas,vermelho e quente como o fogo. O sangue , de algum modo, a gua "pneumatizada",portadora do mistrio da vida e que s pertence a Deus. As guas simbolizam a vibraooriginal do criado sob o sopro que suscita a vida. Na origem, o Esprito repousa sobre asguas, as incuba, torna-as dceis s exortaes do verbo. E, certamente, em ns e aoredor de ns, o pecado endurece o ser criado, o faz insensvel ao Esprito. S o sangueque brota do lado, do corao do crucificado pode sacramentar de novo a terra. S osangue eucarstico pode ascender novamente o fogo do Esprito em nosso sangue, emnosso corao, desde que a existncia em ns perca sua dureza, que o corao de pedrase dissolva nas guas novamente originais, matriciais, do batismo e das lgrimas.

    Atravs destes smbolos que se correspondem, se pode apreciar como se entrelaam osopro humano e o sopro divino, a graa batismal, o sangue e o corao. Tudo istoconduz idia de uma inteligncia que no somente cerebral, inteligncia da cabea eda racionalidade cada - que ope ou confunde - e tambm idia de um "sentir", deuma sensao que no s do corao orgnico ou das entranhas. Por conseguinte, aidia de uma inteligncia do corao espiritual (que no coincide totalmente com ocorao fsico, mas se encontra um pouco mais alm) e de uma sensao do coraoespiritual. Como se o corao tivesse se unido, metamorfoseado no crisol da graa, acabea e as entranhas, por um conhecimento de f e de amor, por uma "sensao deDeus" donde o homem ntegro se sobrepassa, se equilibra e se abrasa.

    A Bblia fala sem cessar desse "corao-esprito", desse corao inteligente. OEvangelho diz: "Amars a Deus com todo o teu corao"; numa redao mais tardia,adaptada mentalidade helnica, teve tornar mais preciso: "com todo o todo o teucorao e com toda a tua inteligncia". Porm, biblicamente falando, "com todo o teucorao" suficiente pois, dizer "com todo teu corao" dizer "com toda ainteligncia".

    O fundamento destas analogias a criao do homem imagem de Deus, o que explicaque estejam presentes, ao menos de forma parcial, na maioria das tradies espirituais

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    da humanidade. Porm, a Criao no realmente restaurada, ou melhor, realmenteinstaurada, seno em Cristo, e por isto que todas estas analogias encontram nEle suaorigem e seu cumprimento. Ele quem fez da humanidade, o Tempo do Esprito, seusopro o "principio de vida"; sua carne e seu sangue, assumindo no po e no vinho todoo Cosmos e toda a Histria Humana, so o nico alimento de eternidade.

    b) A Orao de Jesus, por outro lado, est ligada ao mistrio do nome

    O tema do nome se re-encontra por todas as partes na histria das religies, como nacelebrao potica ou ritual, das amizades ou dos amores humanos. O nome tem sidosempre sentido como a expresso da Presena. Nas religies arcaicas, das que a magiaest muitas vezes prxima, conhecer o nome de Deus dominar seu poder (porm, Deusno mais que a aparncia de uma divindade impessoal). Na Bblia a mudana surpreendente: no se trata de dominar o poder de Deus, o Deus vivente toma umadistancia fulminante, at mesmo, inacessvel. A invocao do Nome se faz excepcionale terrorfica. O tetragrama era pronunciado s uma vez por ano, no dia de Yom Kippour,quando o grande sacerdote entrava no "santo dos santos". E, inclusive, esta nomeao seperdeu, foi (voluntariamente?) esquecida. Diz-se ADONAI, o Senhor; ou Elohim, oplural que designa o "salto fora de si" do inacessvel. Nas religies da transcendnciapura, Judasmo e Islamismo, no se pretende conhecer o Nome; sabe-se somente queDeus estabeleceu soberanamente certos tipos de relaes com o homem e que, dada umadelas, pode ser evocado por um nome relativo por definio (no h ento o Nome,seno os nomes: no Isl somam 99).

    Jesus nos revela o Nome prprio de Deus e um Nome expropriado. Deus sai de suatranscendncia inacessvel e se revela a ns sobre a Cruz. nesta "kenosis"inimaginvel, nesta expropriao total, que nos revela seu prprio nome. Jesus, nomeno muito comum no Antigo Israel, significa "Deus Salva", "Deus Liberta". Porm, sdepois do Getsmani e do Glgota, depois da descida de Cristo morte e ao inferno que

    sabemos que somos salvos e libertos.O paradoxo do Inacessvel e do Crucificado, esta grande antinomia, nos permitebalbuciar, muito alm de todo sentimentalismo, a equao de Joo: "Deus amor". Nsno invocamos o Nome como os povos antigos que queriam dominar um poder:oferecemos a uma presena infinitamente participvel, porm simultaneamenteinacessvel .

    J no invocamos o Nome no temor e no tremor, como o fazem o Judasmo e o Islam,para os quais trata-se sobre tudo de um desses nomes que constituem algo assim como o"reverso" misterioso do Transcendente. Deus para ns, voltou ao corao de sua Criaopelo Sim de uma mulher e, consumindo o fogo, vem a ns, "doce e humilde de corao"

    na presena de Jesus, no sopro ligeiro do Esprito, no balbuciar infantil, to familiar econfivel: "Abba" - Pai; no Po e no Vinho compartilhados aa Eucaristia.

    por isso que, contrariamente ao que se pensa, muitas vezes, o Nome prprio de Deus,o Nome expropriado do Amor, no me parece que se limite somente invocao deJesus. Ele se desdobra na frmula ntegra: "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus",tratando-se de uma frmula trinitria.

    A "Orao de Jesus", tal como se estereotipou nos sculos XIII e XIV, "Senhor Jesus

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    Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim", lembra o chamado do publicano e do cegodo Evangelho. Porm, trata-se de uma invocao trinitria. Invocamos a Jesus, ochamamos Cristo e Senhor, por conseguinte, confessamos sua divindade. Entretanto,"ningum pode dizer que Jesus Senhor seno no Esprito Santo" (I Cor 12,3). Dizerque Ele Cristo, recordar que o Esprito repousa sobre Ele, n'Ele, pois o Esprito ,desde a eternidade, a "uno do Filho", como assinalava So Gregrio de Nissa.

    Invoquemos ento, no Esprito, e designemos ao Esprito mesmo designado a uno quefaz de Jesus o Cristo. Finalmente, digamos d'Este que "Filho de Deus". E Deus, nestafrmula, como em todo o cristianismo antigo, o Pai, "Fonte" da divindade e"princpio" do Filho e do Esprito. Dizer "Jesus Cristo Filho de Deus", entrar nomistrio da "patri-filiao", nomear o Pai.

    A "Orao de Jesus"- e este o ultimo elemento de seu contexto, do que me pareceessencial falar - se situa numa perspectiva sacramental. Tem por finalidade uma tomadade conscincia da graa batismal; um reencontro pessoal com Cristo que , ao mesmotempo, uma "Vida em Cristo, uma "respirao do Esprito" (posto que o corposacramental de Cristo um Corpo "pneumtico" , um lugar pentecostal), umaatualizao da energia trinitria que, para um cristo, no jamais impessoal, mas quese realiza no Esprito, por Cristo ao Pai.

    O Batismo, e por conseguinte, a Crisma, que no Oriente cristo inseparvel, acentua oaspecto carismtico; o batismo a grande iniciao crist, submerso nas guas damorte, descida ao inferno com Cristo e subida com Ele e n'Ele; ressurreio em Cristo,possibilidade de metamorfosear a angstia da morte em jbilo no Esprito. De modoque, o batizado leva dali em diante em seu inconsciente, no s os traos de seu destinoindividual ou coletivo, mas o prprio Deus (o que, a sua maneira, descobrem os"psicanalistas da existncia").

    Dali em diante, uma certa exterioridade ou impessoalidade de Deus superada,

    exterioridade das religies da transcendncia fechada, onde a f permanece sendo deordem tica; impessoalidade dos orientes distantes, onde a imerso no divino dissolve ohomem.

    Mediante o Batismo, o Deus Vivente, o Inacessvel, se torna plenamente participvel na"profundidade" do corao.

    So Joo Crisstomo afirma que um adulto, recebendo o Batismo, percebe fugazmenteuma real iluminao; porm, que esta se oculta em seguida no inconsciente. necessrio, ento trabalhar, e este todo o sentido da ascese, para tornar-nos conscientesdesta Presena que ocupa o fundo de nosso ser. Alm disso, existe a santidade em nossaprpria existncia corporal, enxertada pelo batismo no Corpo do "nico Santo"; existe a

    santidade em nosso corpo "com-corporal" ao seu, em nosso sangue penetrado pelaincandescncia eucarstica. nossa alma ou mais precisamente, nossa conscincia a quese adultera e se prostitui ; ela que precisa voltar a estar atenta ao mistrio presente no"corao".

    A "Orao de Jesus" tem por finalidade "circunscrever o incorporal no corporal",reconstruir a unidade esttica do "corao consciente". Tomar conscincia da graa doBatismo no se separa, por conseguinte, da tomada de conscincia da plenitudeeucarstica. Viver em Cristo tornar-se um homem eucarstico, despertar-se para a

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    grande alegria da Eucaristia que tambm uma alegria pentecostal, uma vez cada vezque, cada vez que celebramos a Eucaristia entramos num Pentecostes que no terminarjamais, que antecipa a Parusia, e que sobrevir com toda sua fora no momento daParusia: "Vimos a verdadeira Luz, recebemos o Esprito celeste", cantam os quecomungaram. A finalidade da "Orao de Jesus" nos ajudar a estabilizar, a elucidar, ainteriorizar esta viso da verdadeira Luz, esta recepo do Esprito. A invocao do

    Nome de Jesus deve chegar a ser uma "epclesis" cada vez mais permanente.

    O "corao consciente" , deste modo, um corao eclesial. , por sua vez, a unificaodo homem e a tomada de conscincia da consubstancialidade, em Cristo, de todos oshomens.

    Por isso, os carismas que recebem, as vezes, os espirituais - de cura, de profecia, declarividncia, de discernimento dos espritos, de paternidade espiritual - so ordenadospara a "edificao" da Igreja. Ainda que permanea s e annimo at o fim de sua vida,o espiritual, s pela sua simples presena, uma fonte de bnos para a Igreja, para ahumanidade e para o Universo. Tudo envolvido em sua orao. o sal da terra e a luzdo mundo, ele que, com o apstolo, no busca mais que ser a escria deste mundo.

    A esta tomada de conscincia da graa sacramental se une, de modo inseparvel, umaleitura adoradora e, como sacramental ela tambm, da Palavra de Deus. o que omonaquismo ocidental denomina a "Lectio Divina" - uma incorporao quaseeucarstica do sentido espiritual. Uma leitura semelhante permite, logo, levar em si umafrase ou um palavra, como um grmen de vida, como um perfume que enobrece a almadurante horas.

    Deixa-se levar pela leitura dos Salmos, porm se repentinamente uma frase, umaexpresso, toca o corao, necessrio guardar em si, preciosamente, este toque detranscendncia: "Teu amor me feriu, marcho cantado-te", dizia So Joo Clmaco.

    Entre as histrias do deserto, se encontra aquela do homem que encontrou um abba (paiespiritual) e lhe perguntou como se devia orar. " necessrio recitar os salmos",respondeu o monge. Como no sabia nenhum, o monge lhe ensinou o primeiro versculodo Primeiro Salmo: "Feliz o homem que no marcha segundo o conselho dos mpios". Eacrescentou: "V, medita estas palavras, volte logo te ensinarei a continuao". Ohomem partiu e o monge no o voltou a ver. Durante muitos anos sua meditao sealimentou daquelas palavras e por causa delas se converteu em um santo...

    A Bblia e a Filocalia so inseparveis. O autor dos Relatos de um Peregrino Russo,conta que s levava estes dois livros em seu alforje. "O Evangelho como a orao deJesus", escreveu, "pois, o Nome divino encerra em si todas as verdades evanglicas".

    Quando comecei a compreender melhor a Bblia, graas a Filocalia, encontrei cada vezmenos passagens obscuras. Os Padres tm razo em dizer que a Filocalia a chave quedescobre os mistrios encerrados na Escritura. a hermenutica da orao a que maistemos necessidade nos dias de hoje "Comecei a compreender o sentido oculto daPalavra de Deus", acrescenta o Peregrino, "descobri o que significam expresses como:"o homem interior do corao", "a orao verdadeira", "a adorao em esprito", "oReino em nosso interior" e "a intercesso do Esprito". Compreendi o sentido destaspalavras: "Vs estais em mim", "estar revestidos de Cristo" e muitas outras.

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    Compreende-se que o Oriente cristo chamou "graphai", escrituras, indistintamente, Bblia, aos seus comentrios litrgicos e aos seus comentrios msticos; e que tambmcertos espirituais da Tradio pudessem afirmar que a destruio material da Bblia noteria para eles nenhuma importncia, no s porque j sabiam de memria, mas porquej havia penetrado em seu corao. No limite, o corao virgem do santo "iletrado"(agrammatos) se converte em pgina branca na qual Deus escreve diretamente, com

    caracteres de fogo o seu Verbo.

    Traduo: Pe. Pavlos, HieromongeComunidade Monstica So Joo

    2. Orar sem cessar

    problema que tem atormentado a espiritualidade oriental se resume nestainterrogao: Como orar sem cessar? Como ser, no somente um homem queparticipa cada domingo da Eucaristia, mas ser um homem eucarstico,segundo o preceito paulino citado anteriormente? No somente um homem

    que santifica o tempo orando segundo um smbolo solar, um smbolo do dia e da noite,nas principais "horas" da jornada, seno um "homem litrgico" capaz de santificar cadainstante.

    Os grupos de monges "acmatas" se sucediam no coro para que a salmodia no seinterrompesse jamais. Isto porm, no constitua uma soluo pessoal.

    Uma boa resposta fazer tudo no sentimento da presena de Deus, sob seu olhar, comgratido para com ele e ateno para com prximo. "Em todo pensamento e ao pelaqual a alma rende culto a Deus, ela est com Deus", disse Macrio, o Grande. A Oraoincessante, segundo So Mximo, o Confessor, " ter o esprito aplicado em Deus, numagrande reverncia e num grande num amor... contar com Deus em todas as nossas aes

    e em tudo o que nos sucede."

    Um dos interlocutores do Peregrino Russo explica-lhe, que a orao interior acelebrao mesma do universo e da vida, o impulso que leva todas as coisas plenitudee beleza, e que corresponde ao homem desvelar esse universal gemido do esprito.Tenho escutado o Padre Dimitrius Staniloa responder mesma pergunta, que necessrio receber o mundo como um dom de Deus, e que ns em unssono,restitumos-lhe imprimindo nele o sinal de nosso amor criador.

    Tudo isto verdade, tudo importante. Porm, se no se quer permanecer nas boasintenes, nas profundas, porm passageiras intuies, necessrio um instrumento quepermita pr tudo isto em prtica. Tal instrumento a "orao de Jesus".

    "No Vigsimo Domingo depois da Trindade", escreve o Peregrino, "entrei na Igrejapara orar. Lia-se a passagem da Epstola aos Tessalonicenses onde se diz: 'orai semcessar'. Essas palavras penetraram profundamente em meu esprito, e me perguntei,como possvel orar sem cessar, quando cada um tem que ocupar-se de determinadostrabalhos para subsistir." Ento se ps a caminho, comeou sua peregrinao.

    Todo destino cristo uma peregrinao para "o lugar da orao" - de onde o Senhornos espera e para onde nos atrai . Os caminhos seguidos no espao no fazem mais que

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    expressar, que facilitar, por meio dos encontros e irradiaes, as intercesses queencontremos ali este caminho interior. Busca-se ao homem, aos homens, que nos daroas "palavras de vida". que nos despertaro ao que nos mais interior, to prximo e, noobstante, to distante. O Peregrino russo busca incansavelmente, recebe respostasparciais, encontra muitas pessoas que o fazem avanar em si mesmo, at o "coraoconsciente "mas no recebe uma resposta decisiva at que descobre um "starets", isto ,

    um "ancio", no sentido espiritual da palavra.

    No Oriente cristo - e no Oriente em geral - ama-se a morte, transparente outra luz.Uma civilizao na qual j no se ora uma civilizao que, s vezes, carece de sentido.Marcha-se aos empurres para a morte, imita-se a juventude, um espetculodesgarrante porque - ainda que se oferece uma possibilidade prodigiosa atravs doltimo desapego - mesmo assim, no se aproveita. Temos necessidade de ancios queorem, que sorriem, que amem com amor desinteressado, que se maravilhem; s elespodem mostrar aos jovens que vale a pena viver; que o nada no tem a ltima palavra.Todo monge no qual a "ascesis" deu fruto, chamado no Oriente, qualquer que seja suaidade, um "belo Ancio". belo com a beleza que sobe do corao. As etapas da vida seharmonizam, se sintonizam, poderia-se dizer. E, sobretudo, o original re-encontrado:branco com uma brancura transfigurada, o "belo ancio" tem olhos de criana.

    O Peregrino encontrou um desses ancios. "Entramos em sua cela e me dirigiu asseguintes palavras: 'A orao de Jesus, interior e constante, a invocao contnua eininterrupta do Nome de Jesus, por meio dos lbios, do corao e da inteligncia, nosentimento de sua presena em todo lugar e em todo tempo, inclusive durante o sono.Ela expressada por estas palavras: 'Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim'. Aqueleque se habitua a esta invocao recebe um grande consolo e recebe tambm anecessidade de dize-la sempre. Ao final de algum tempo, j no poder viver sem ela e,por si mesma, ela brotar nele, no importa onde, no importa quando.

    O "Senhor Jesus Cristo", ou "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus" - diz-se sobre ainspirao. O "Tem piedade de mim" ou, as vezes "Tem Piedade de mim, pecador" - dito sobre a expirao. Isto se faz com abandono, por amor.

    Na tradio beneditina antiga empregava-se, da mesma maneira, as palavras de umsalmo: "Senhor, vem em minha ajuda, apressa-te em me socorrer". A Igreja antigautilizou muito, para orar, o "Senhor, tem piedade", "Kyrie Eleison" (o sentido maisrico que o da piedade; implica tambm doura, ternura, misericrdia...)

    Hoje mesmo, no ofcio monstico e paroquial ortodoxo, recita-se quarenta vezesseguidas o "Kyrie Eleison". Esta ltima frmula convm melhor para os iniciantes, ospenitentes. necessria j uma certa familiaridade com a orao para introduzir nela o

    nome de Jesus. No existe, porm, regras. A penitncia, como veremos, dura at amorte. E o mistrio da Cruz e a descida de Cristo aos infernos permite, desde o comeo,a audcia do amor.

    Traduo: Pe. Pavlos, HieromongeComunidade Monstica So Joo

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    3. O Estado Metnico

    caminho para o "lugar do corao" implica trs grandes etapas que, mais quese reunir, sucedem uma outra. A primeira a metania, o arrependimento.A segunda a unificao exttica do homem no crisol da Graa. A terceira

    a participao na luz "tabrica", nas energias divinas, graas ao encontropessoal com Cristo, diante do Pai, no Reino do Esprito. Esta luz j a da NovaJerusalm. Cada vez que um homem se abre a esta luz, termina para ele este mundo e jtem incio o mundo novo. Os monges esto chamados a saturar a Criao de Parusia e aacender a fogueira na madeira morta das coisas.

    Tudo o que ns, os leigos, podemos fazer de verdadeiro, de bom e de belo na sociedadee na cultura, tomar lugar no reino, graas a esta brecha escatolgica que eles abrem,que eles constituem.

    A primeira etapa - e base das outras duas - , por conseguinte, a etapa doarrependimento, a prxis, a ao asctica. Para o Oriente cristo que no gosta da

    oposio e que permanece pudico e quase secreto, nos confins da vida espiritual noexiste oposio entre a ao e a contemplao. A Ao suprema a obra da orao.Quem se dedica prxis asctica o nico verdadeiramente ativo. As obras, "aes"humanas, so muitas, freqentemente, o resultado gesticulante de uma grandepassividade interior, de uma submisso inconsciente s paixes individuais ou coletivas.

    "O arrependimento" -disse Santo Isaac, o Srio - "convm sempre e a todos, ao pecadorcomo ao justo." E acrescenta: "At o momento da morte, o arrependimento no terterminado em sua durao nem em suas obras." Os maiores ascetas, como Sisoes, oGrande, afirmam em seu leito de morte: "No tenho conscincia de ter comeado a mearrepender". Os monges, sabendo que Sisoes estava gravemente doente, reuniram-se emtorno de sua cabeceira para obter dele uma ltima mensagem. No obtiveram outra,

    esta, porm, era a decisiva.

    Nesta atitude de arrependimento, a orao de Jesus essencialmente a do publicano doEvangelho: "Senhor, tem piedade de mim, pecador". Diz-se-lhe freqentemente -quando se possvel, longe de todo olhar - com grandes ou pequenas prostraes, quese chamam de "metnias " ( a mesma palavra que significa arrependimento).

    Esse arrependimento tem um sentido profundamente pessoal e ontolgico, antes quemoral. Metania vem de "Meta" que sinaliza uma mudana e de "noeo" que significanossa apreenso, individual ou coletiva, do real. A conscincia, quando separada docorao, est abandonada aos impulsos da natureza e s hipnoses da cultura. No cessade projetar sobre a criao de Deus, ontologicamente boa (como diz o Gnesis: "E Deusviu que tudo era bom"), o que os espirituais chamam de "uma teia de aranha" um"sonho", uma quimera, fazendo-se assim cmplice dos artifcios do "pai do engano".Aqui, inclusive, necessrio entender "engano" no sentido pessoal e ontolgico, oumelhor, "anontolgico"; a liberdade sublevada, descarrilada assegurando ao nada umaespcie de existncia paradoxal: "Sereis iguais a deuses", sem Deus, o homem chegar aser pequeno deus de si mesmo e do mundo, ser rei sem ter necessidade de ser sacerdotee de oferecer o mundo em eucaristia. a si mesmo que oferecer ao mundo! Em nossacivilizao que se precipita para o domnio do mundo, porm, que segundo a expresso

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    de Michel Serres, ignora "o domnio do domnio". Quanta necessidade temos de homensque aceitem ser humildemente os sacerdotes do mundo, humilde e realmente como osmonges.

    Por outro lado, em nossa poca, a asfixia espiritual do homem se inscreve maciamentena Histria. seguramente na histria poltica, onde se coloca a sede do absoluto de

    tantos seres cuja vida no tem outro sentido em meio a desintegrao da matria e adestruio do que os cerca.

    Fiz Santo Isaac, o Srio: "Este mundo, no o mundo de Deus, seno a iluso doshomens. este mundo uma expresso que engloba aquilo que chamamos de as paixes".As "paixes" no sentido asctico, so a desnaturalizao desse impulso de adorao queconstitui a natureza profunda do homem. Se esse impulso no encontrar em Deus seucumprimento, ir devastar as realidades contingentes, idolatrando-as e odiando-assimultaneamente, pois espera a revelao do Absoluto que elas no poderiam aportar(de forma duradoura ao menos, pois tudo tem sabor de absoluto, porm para ser salvo,no para salvar.)

    O homem quer esperar tudo de uma nao, de uma ideologia, da arte, do amor humano.Quer esquecer o nada que atualmente o submerge por inteiro, ampliando sua priso pelavontade de poder, por uma ternura desesperada, as drogas, as tcnicas de xtases. Sedesloca furiosamente na imanncia, mudando de terra prometida, terminando por gritar:viva a morte! Desdobrando-se, desagregando-se, num um jogo fatal de espelhos, at quesurja, como nas novelas de Dostoievsky, o "alter ego diablico", o "duplo luciferino". Ohomem se converte em idlatra de si mesmo, diz Santo Andr de Creta em seu CnonPenitencial: e no fundo desta idolatria, est o dio de si, a nostalgia do aniquilamento, avertigem "gelada" do suicida . o que Mximo, o Confessor, chama de a "Philautia","Princpio e Me" de todas as paixes. Que , traduz Vladimir Lossky, "ipseit"luciferina, [...] curvatura do mundo ao seu redor, dilatao da prpria finitude na

    imanncia, at que o dio e a morte tenham a ltima palavra, ciclos sem fim de desejo,ou "Eros" ligado em parte com"Thanatos". Impulso de ser que faz surgir o nada. Ttulobanal da crnica judiciria: "Amava-a tanto e a assassinei".

    A metania a revoluo "copernicana" que faz que o mundo gire, no j ao redor demim e do nada, seno de Deus Amor, de Deus feito homem, que me pede, que mepermite "amar ao prximo como a mim mesmo". A metania me faz tomar conscinciadas ramificaes da rvore do nada, em minha prpria vida, como na histria tortal doshomens. No se trata de uma "culpabilizao " mrbida em torno de uma concepofarisaica do pecado, seno de uma tomada de conscincia desse estado de separao devida "morta", de exacerbao do nada, estado no qual somos realmente "culpveis portudo e por todos". Compreendo ento o que tem sido, em todo o seu alcance, por longo

    tempo insuspeitados, meus verdadeiros pecados. Ento tambm, como vemos no destinodos grandes monges, o arrependimento precede o pecado, um pecado que,provavelmente, no ser cometido materialmente, jamais. Pensai nas palavras de Cristoquando se lhe leva a mulher surpreendida em flagrante delito de adultrio, a quem a leiordena apedrejar: "Que aqueles que jamais pecaram atirem a primeira pedra". E todos seafastaram.

    Cristo recordou simplesmente a universalidade desse estado de separao que seencontrava de algum modo concentrado no destino dessa mulher. O verdadeiro monge

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    aquele que toma a conscincia desse estado no que "todos so culpveis por todos".Desaloja as potncias "defugas", o "duplo demonaco": dali, as vises demonacas queencontramos nos antigos relatos. O espiritual obriga aos demnios a objetivar-se, afazer-se exteriores (o que eles so realmente desde que a graa do batismo os tirou doabismo do corao) os esmaga pela fora de Cristo vencedor de seu "prncipe", de seuprincipio, triunfador sobre o inferno e a morte.

    No se tem sublinhado suficientemente que a aproximao apoftica do mistrio, noOriente cristo, uma aproximao "metnica". Se tomais os maiores textos daTeologia apoftica, por exemplo, as Homilias sobre a incompreensibilidade de Deus, deSo Joo Crisstomo ou os captulos gnsticos de So Maximo, o Confessor, vereis quea exigncia de adorar ao Deus vivente, sempre mais alm, "Hyperthes", mais alm dasimagens, dos conceitos, dos nomes, mais alm inclusive da Palavra Deus, tal exignciase acompanha infalivelmente com um chamado ao arrependimento. Somente o temor, otremor, a morte ante si mesmo, [...] podem permitir voltar nossa inteligncia para oInacessvel.

    Esse "estado metanico" se converte necessariamente em "recordao da morte", noforte sentido de uma "anamnsia". "Salvemo-nos sem cessar, tanto quanto possvel, damorte", escreve Hesiquio de Batos que comenta: "Tal recordao entranha, a exclusode toda v preocupao. O cuidado do esprito e a orao constante, o despreendimentodo corpo, o dio ao pecado; em verdade, toda virtude ativa nasce dele. Pratiquemo-la,tanto quanto possvel, tal como respiramos.

    A lembrana da morte no a da morte biolgica em si (pois esta tambm umamisericrdia de Deus), seno o estado espiritual que a morte biolgica simboliza e sela(e a qual tambm pe fim). Essa recordao da morte descobrir que se est, desdeagora, na morte; que nossa existncia uma "vida morta" (a expresso de SoGregrio de Nissa) com uma dimenso infernal. O grande "duelo" dos monges no

    Oriente cristo, est ligado a uma Teologia experimental da queda. O starets Silvanoescreveu admirveis "lamentaes de Ado", ante o inacessvel Paraso. Se examinamosa arte e a literatura de nossa poca, temos a impresso de uma anloga lamentao queno se quer reconhecer, lamento desgarrante do niilismo, atravessado por um riso dezombaria e por vs fugas.

    A investigao de nossa poca sonda o nada desde a perspectiva do nada, enquanto que,a recordao asctica da morte, no somente faz lugar a Deus seno que se converte emrecordao da ressurreio.

    A Teologia apoftica no exige somente um estado metnico. Culmina na grandeantinomia apoftica, e esta se inscreve numa prxis de ressurreio. Deus, mais alm de

    Deus, se revela como o Crucificado; e o Crucificado triunfa sobre a morte e o inferno. Aseparao entre Deus e o homem se identifica misteriosamente com a ferida do ladoaberto pela lana, donde brotaram gua e sangue, o batismo, a Eucaristia, a Igreja. AIgreja a noite que se faz luminosa.

    O abismo infernal entre o criado e o incriado se converte, em Cristo, em unio bemaventurada do criado e do incriado, a divino-humanidade. Do lado traspassado de DeusCrucificado se levanta a aurora do Esprito. Doravante, em Cristo, o espao da morte seconverte em espao do esprito, a densidade da angstia em densidade da f; e, pela f, a

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    luz divina invade o homem.

    Assim , a memria da morte se transforma em "memria de Deus", em memria doDeus que se deixa apreender pela morte para consumi-la e oferecer-nos a ressurreio.Se os monges do Oriente insistem tanto sobre o duelo e a conscincia do estado demorte, no pra fechar-se nela, seno para encontrar nela Cristo, para ressuscitar com

    ele.

    Seria necessrio aqui todo um tratado dos vcios e das virtudes, no no sentido moral,seno no sentido asctico, que procura atravs da livre f do homem as modalidades desua participao nas energias divinas. Toda "virtude", com efeito, a manifestaohumana de um atributo divino e constitui, analogicamente, diz So Maximo, oConfessor, um aspecto de desvelamento escatolgico do Verbo encarnado. Fico feliz emrecordar e comentar brevemente a orao de Santo Efrn, o Srio, muitas vezes recitadadurante os ofcios da Quaresma:

    Senhor e Mestre de minha vida

    Esta orao, essencialmente penitencial (e que se diz em trs grandes metanias) comeapela afirmao da transcendncia do Deus pessoal, de Deus Vivente, em uma atitude def. A f o ponto de partida da escada das virtudes, da que a esperana designa omovimento ascensional, que culmina no amor. Deus Deus, eu s existo por suavontade; Ele a fonte de minha vida:

    ... afasta de mim o esprito de preguia,de batimento, de domnio, de vs palavras

    Este pedido enumera os "vcios" maiores, cuja raiz e princpio justamente a"preguia". A palavra significa o esquecimento levado at um verdadeiro

    sonambulismo, a opacidade, a insensibilidade ante o mistrio, o que a Filocalia, com oEvangelho, denomina a "dureza do corao" (e, muitas vezes seu "peso"). Esse estadode insensibilidade espiritual engendra o "abatimento"; no limite o desgosto de viver, adesesperana, o abandono ao vazio, todas manifestaes de um niilismo que alcana emnossa poca a importncia de um fenmeno histrico: poca, de crianas mimadas quequerem tudo imediatamente e que, rapidamente, se desencantam e se abandonam vertigem do nada.

    As "vs palavras" designam, no s na vida cotidiana, as palavras que "coisificam" ooutro e o fazem infinitamente distante, - definitivamente tarefa de assassino - senomais largamente, todo exerccio do pensamento e da imaginao que se subtrai dasforas do corao e que se converte em um jogo autnomo da vontade de poder ou dos

    fantasmas.

    ... concede a mim , teu servo, um esprito de integridade,de humildade, de pacincia e de amor.

    Eis aqui o movimento das virtudes; a f, fundamento, recordada em primeiro lugar: ohomem um "servidor". A "integridade" sintetiza o conjunto: ela evoca a unificao daexistncia no re-encontro com o Deus vivente e o prximo, a subida na f, a esperana eo amor, tanto da inteligncia como de toda outra fora vital.

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    A humildade a inscrio concreta da f no cotidiano, a expresso da revoluocopernicana que nos arranca "philautia" para devolver a Deus sua distncia e suaproximidade. Para os Padres npticos, a virtude fundamental, propriamenteevanglica, a atitude que distingue o publicano (cujas palavras so retomadas na "oraode Jesus") do fariseu, infinitamente virtuoso, porm to pouco sensvel Graa, gratuidade da salvao.

    So Joo Clmaco recorda vigorosamente esta fora paradoxal da debilidade: "Nojejuei, no velei, no tenho orado, no tenho descansado sobre o solo, porm mehumilhei e o Senhor me salvou".

    Da f e da humildade nascem a pacincia. A pacincia a humildade em ato.

    Tal como esta expressa a f, da mesma forma, a pacincia est animada pela esperana. o contrrio do abatimento, que provm do desejo de ter tudo imediatamente. agratido pelas migalhas que caem da mesa do festim messinico. , sobretudo, umaconfiana total quando Deus se retira, quando seus caminhos parecemincompreensveis. Os Padres invocaram muitas vezes "a pacincia de J". J retira,recusa, os arrazoamentos teolgicos, porm, uma vez tendo contestado Deus, no onega, permanece com Ele, sabe que algum o busca atravs da experincia mesma domal radical.

    Aquele que ama, "d sua vida por seus amigos". No busca o domnio, seno o servio.Esvaziando-se de si mesmo para deixar lugar para Deus, abre-se ao outro, recebe semjulgar, discerne a pessoa mais alm de seus "personagens" que ele exorciza em silncio.Faz brilhar a verdadeira vida.

    ... Sim, Senhor e Rei,concede ver meus pecados e no julgar meus irmos,

    pois Tu es bendito, pelos sculos dos sculos. Amm.O ltimo pedido que fecha a orao sobre uma bno, recorda as condies do amor:"ver seus pecados" e "no julgar". "Ver seus pecados", faz entrar na exortao primeirado Evangelho: "Arrependei-vos, pois o reino de Deus est prximo". O homem toma amedida de sua separao e de seu orgulho. Abre-se alegria do Reino. Doravante, jno tem outro espao para existir, seno na misericrdia de Deus. " mais difcil verseus pecados que ressuscitar mortos", dizem os Padres nepticos. Em verdade, ver seuspecados, entrar na ressurreio dos mortos. Por ali se chega a ser aquele que capazde receber o outro como a um irmo, sem julgar-lhe. Devo tudo a Deus - paraparafrasear uma petio do Pai-Nosso - e o outro nada me deve, tudo graa; elemesmo graa, ele meu irmo, eu no o julgo; sou julgado e a Cruz o Juiz do Juiz e

    o "Senhor bendito pelos sculos dos sculos".

    A Orao de Santo Efrm resume o jejum: que no s de alimento para o corpo, mastambm das imagens (e isto no fcil em nossa "civilizao de espetculo), daspaixes, do desejo de dominar e de julgar os outros.

    Atravs desta sobriedade de todo o ser, pela qual o homem aprende a viver, no dosalimentos da imanncia (fsicos, porm, tambm psquicos seno de "toda a palavra quebrote da boca de Deus", no um masoquismo mrbido o que se instaura, seno uma

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    real liberdade: "S rei em teu corao; reina com altura, porm com humildade [...]

    Traduo: Pe. Pavlos, HieromongeComunidade Monstica So Joo

    4. A vigilncia e a ternura

    esquecimento o "gigante do pecado", dizem freqentemente, os Padresnpticos. Esquecimento: endurecimento de corao, como acabamos de ver,dureza de corao. O homem muitas vezes, vive como um autmato, natemporalidade sem presente, donde o porvir no cessa de fazer sombra sobre

    o passado. O homem no sabe que Deus existe, que vem para ele e o ama. No sabeque, no perdo e na luz de Deus, tudo existe para sempre.

    A lembrana da morte desloca esta zona aparentemente clara, bem balizada, que ohomem recorta da superfcie da existncia. A troca da lembrana da morte pelalembrana de Deus desencadeia o despertar, como o de Jac visitado pelo sonho (e parans, Cristo nossa escala, para sempre). "Certamente o Senhor est nesse lugar e eu nosabia. Tive medo e disse: "Que temvel este lugar! Aqui a casa de Deus, aqui aporta dos cus" (Gen 28,16-17).

    O despertar escatolgico: Cristo a escala, o ltimo instante, o juzo e o "Juzo dojuzo", a transfigurao universal. O despertar a viglia das virgens prudentes. No que elas sejam mais virtuosas que as outras, nota So Serafim de Sarov, pois as outrastambm souberam conservar sua integridade. Porm, sua lamparina est provida deazeite, e o azeite a graa estremecedora do Esprito respondendo f e humildade.

    Niicols Cabasillas, que escreveu para os leigos dedicados s ocupaes do sculo,pede-lhes somente que recordem, em todo o tempo, que Deus nos ama com um amor

    exagerado - "manikis ros" - "Quer vs, quer venhas, quer trabalhes, quer fales, que estepensamento esteja a vos despertar muitas vezes: Deus vos ama. Ele vos ama de talmodo que por vs saiu de sua impassibilidade at morrer de amor por vs. Ele quis, porvs, chegar a ser Aquele que d sua vida pelos seus amigos, Ele o inacessvel. Eledesce, busca o servo a quem ama; Ele, o rico, inclina-se at a nossa pobreza. Apresenta-se a si mesmo, declara seu amor e roga que lhe seja retribudo... Rechaado, no seofende; espera pacientemente como um verdadeiro amante. Mendigo de amor, ladro deamor que vem na noite, que vem em minha noite. O "Fiat" da Virgem, permitiu-lheretomar, pelo interior, sua Criao; espera-nos no abismo do corao, bate porta denossa conscincia a partir desse corao, a partir do mais profundo de ns mesmos, poisse converteu em nosso "alter ego", disse Cabasillas. Ele no nos pede, em primeirolugar, que O amemos, mas que compreendamos o quanto Ele nos ama. Ento, nos

    despertaremos. "Nepsis": o despertar, a viglia, a vigilncia.

    No sentido mais amplo, pois nossa existncia toda inteira entorpecente, pormtambm, no sentido mais preciso, que nos recorda o simbolismo litrgico do dia e danoite, da luz e das trevas, da luz que brilha, doravante, nas trevas. O "neptico" pratica a"guarda do corao": mantm aberto o caminho entre a conscincia e o santuriointerior, o sol secreto que as nuvens das "paixes" intentam cobrir sem cessar. Atravessao "oceano ftido que nos separa de nosso paraso interior".

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    A conscincia, armada com o Nome de Jesus, deve perscrutar atentamente os"logismoi" - a palavra vem do Evangelho - quer dizer, os pensamentos como impulsosgerminativos que enternecem o corao. Ou o pensamento bom, criador - e necessrio fortalec-lo, revestindo-o com a bno do Nome - ou o pensamento ogrmen de uma obsesso, de uma paixo - e ento, ser necessrio jog-lo contra openhasco, como aos filhos da Babilnia; e o penhasco o Nome.

    Tendo o cuidado de desacomodar a fora vital que ela mobilizava, para pacific-la etransform-la, durante a luta contra a obsesso nascente, a invocao deve acelerar-se,at que chegue a paz.

    A noite particularmente propcia para este exerccio de discernimento e demetamorfosis, aspecto fundamental da "nepsis": porque ela silncio e recolhimento;mas, tambm, porque ela trevas. O monge entra na noite como entra no deserto, paraenfrentar as potncias "defugas", para fazer brilhar no infra-consciente, no sindividual, seno pan-humano e csmico, a luz do supra-consciente. O que importa penetrar este bloco de noite e de deserto que trazemos em ns. O sono deve sermoderado, s vezes, transpassado pelo ofcio da meia-noite, suprimido frequentementepor uma longa viglia. necessrio tentar dormir invocando o Nome divino-humanopara que a orao penetre no sono mesmo. "Orar numa s palavra. Tu deves estarpresente, do deitar ao despertar".

    Para os leigos, como para aqueles que so dbeis, Cabasillas recomenda confiar aguarda do corao ao Sangue Eucarstico. Enquanto que, um grande monge poderia(como fez Santa Maria do Egito) comungar no mais que uma s vez depois de todauma vida de preparao, recebendo ento em plena conscincia a comunho como umafonte deificante, os dbeis, diz Cabasillas, devem comungar freqentemente. , ento, oSangue Eucarstico que guarda o seu corao; e Cabasillas no recomenda nada maisque breves meditaes nas quais tomamos conscincia do "amor extremado" de Deus

    por ns.Aqui, nesta recordao da morte, que chega a ser recordao de Deus, instala-se omistrio das lgrimas, o carisma das lgrimas. A civilizao ocidental converteu-senuma civilizao que no chora. por isto que nos dedicamos, tanto na arte como nasruas, a gritar cegamente. Como se os jovens quisessem libertar neles o gemido doEsprito e no soubessem como faz-lo. Pois bem, "quando o homem recebe o dom daslgrimas, o Esprito quem chora docemente nele", diz Simeo Metafraste, comentandoS. Macrio, o Grande. As lgrimas espirituais so a gua batismal na qual se dissolve adureza do corao. Quando chora, o espiritual volta a ser como as guas originaisoferecidas ao sopro do Esprito.

    As lgrimas so, em primeiro lugar, lgrimas de penitncia; nascem "de uma muitaprofunda humildade". So as lgrimas da recordao da morte, do pecado,compreendido em toda sua profundidade, em suas ramificaes e seus encadeamentosinsuspeitos. Porm, pouco a pouco, pela recordao de Deus, as lgrimas dearrependimento se transformam em lgrimas de gratido, de admirao e de alegria. "Afonte das lgrimas, depois do Batismo, algo maior que o Batismo", dizia So JooClmaco. Aquele que se revestiu de lgrimas como o de um traje de bodas, esteconheceu o bem aventurado sorriso da alma, pois sorrir atravs das lgrimas smbolode ressurreio. E as lgrimas carismticas que correm docemente, sem contrao do

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    rosto, tem j algo de uma materialidade transfigurada.

    O canto das lgrimas uma das chaves da arte litrgica ortodoxa; j sensvel nomonaquismo bizantino, manifesta-se muito particularmente na ortodoxia de lnguarabe, cujo canto, um pouco nasal, a voz das lgrimas.

    Igualmente, esta "dolorosa alegria", esta "bem-aventurada aflio", provavelmenteuma das chaves da iconografia ortodoxa - cuja obra mestra , talvez, a "Virgem daTernura".

    Ternura, "katanyxis, oumileni", outra palavra decisiva no vocabulrio 'hesicasta'. Aslgrimas so "lgrimas de doura". O contrrio da "sklero-cardia" a "ternura divina docorao". Toda a fora de paixo do asceta, crucificada pela "recordao da morte",purificada e iluminada pelas lgrimas carismticas, converte-se numa imensa ternurapaterno-maternal, numa capacidade de receber sem julgar, percebendo sempre maisalm do pecado, o mistrio irredutvel da pessoa. Carisma da "simpatia", que envolve ooutro com uma alegria de ressurreio e lhe faz compreender que amado. Carisma defeminilidade espiritual, segundo a imagem da Me, "capacidade de sentir a presena deDeus at mesmo nas almas devastadas", como dizia Paul Evdokimov.

    Traduo: Pe. Pavlos, HieromongeComunidade Monstica So Joo

    5. Uma unificao excntrica

    o justo separar as duas etapas seguintes - das que a metnica constitui abase indispensvel - a da unificao da conscincia e do corao e a datransfigurao na luz divina. A unificao, com efeito, no exttica por si

    mesma. porque o homem sai de si mesmo, de sua natureza, para unir-se a Deus, que

    ele pode pacificar e reunificar esta natureza. O Aprofundamento na existncia, odespertar progressivo do "corao consciente" de onde se transfiguram (...) ainteligncia e a fora vital do homem, a experincia simultnea da consubstancialidadede todos os homens, "membros uns dos outros" em Cristo, tudo contribui, no dinamismoque vai da f ao amor por meio da esperana, para realizar pouco a pouco a unificaoexcntrica.

    Ex-cntrica, porque o homem se recolhe em seu corao, que em si mesmo no maisque o lugar de transparncia a uma luz incriada, isto , cuja fonte est sempre maisalm.

    Ex-cntrica, pois o homem assume a natureza humana reunificada em Cristo na medida

    em que, por auto-transcendncia pessoal, adere com toda sua f pessoa de Cristo. Estatranscendncia do homem no desconhecimento responde misteriosamente trans-conscincia de Deus vivo, na "kenosis". As energias divinas unificadoras so ocontedo de um re-encontro.

    A "Orao de Jesus" pode se revestir de formas "tcnicas", psicossomticas, parafavorecer esta unificao do esprito e do corao. Indicaes bastante precisas seencontram nos textos dos sculos XIII e XIV, quando se produziu, no mundo bizantino,um forte renascimento do hesycasmo. O recurso palavra escrita prova que os mestres

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    haviam desaparecido e tambm que o hesycasmo no um esoterismo com suas linhasininterruptas de mestres a discpulos, como no sufismo, seno a realizao conscientedo mistrio cristo, sempre susceptvel de renascer da vida sacramental e da penetraoespiritual das escrituras. Nil Sorsky, no sculo XVI, o starets Silvano no sculo XX, re-enviam o aprendiz, se no encontra o mestre, meditao da Bblia e dos Padres a umaprofunda vida sacramental, ao respeito aos "mandamentos de Cristo", em fim, aos

    conselhos de todo confessor de boa vontade, ainda que no entenda nada do "mtodo":se se remete a ele na confiana e na humildade, Deus mesmo nos guiar por suaintermediao.

    Ao final do sculo XIII e durante o XIV, num perodo muito turbulento, muitas coisasforam confiadas palavra escrita: trata-se dos textos de Nicforo, o Solitrio, (queconstituem uma pequena Filocalia dentro da grande), do autor annimo do "Mtodo" deSo Gregrio Palams, de So Gregrio, o Sinata, de Calisto e Igncio Xanthopoulos.O conjunto de extratos concernentes s tcnicas da orao foi estabelecido por JooGouillard, que o completou utilizando certas indicaes de So Nicodemos, o Hagiorita.

    sada e, sobretudo, luz do sol, dizem esses textos, necessrio, para orar, fechar-se"em uma cela tranqila e escura, em um lugar afastado, um rinco". Enquanto que, paraos principiantes, a orao de Jesus se faz de p, com ou sem prostraes, recomenda-sesentar-se em assento baixo ou inclinar-se apertando o peito ,seja simplesmente apoiandoo maxilar sobre ele ou curvando-se extremamente, num movimento "circular" do corpo,inclinando a cabea at os joelhos, no sem uma "dor no peito, das costas e da nuca." Sese contenta com inclinar-se apoiando o maxilar ou queixo sobre o peito, o olhar o quefechar o crculo, fixando-se sobre o mesmo peito ou "sobre o centro do ventre, isto ,sobre o umbigo.

    Tais posturas tm um sentido no que se expressa a realidade simblica, sacramental docorpo. Manifestam e, por conseguinte ,favorecem a concentrao de todo o composto

    humano sobre o corao, num movimento que, porque incmodo (ao contrrio dafacilidade soberana buscada pelo Yoga), no de domnio mas de oferenda. "Assim", -diz Nicodemo, o Hagiorita, - "o homem oferece a Deus toda a natureza sensvel eintelectual, da que o vnculo e a sntese.

    Os hesycastas se referem, a este respeito, ao "movimento circular da alma", do qual falaDionisio, o Aeropagita nos Nomes Divinos: "O movimento circular da alma, suaentrada nela mesma pelo desligamento dos objetos exteriores e o "envolvimento"unificador e suas potncias. Igualmente, a fixao do olhar sobre o umbigo, isto , sobreo centro vital do homem (todo um estudo se imporia aqui para saber se se pode adiantaruma comparao com o Hara japons), no uma simples comodidade de concentrao,mas significa que toda a fora vital do homem, "metamorfoseando-se no corao

    consciente", deve tambm chegar a ser oferenda. "Deus pode assim fazer sua", diz SoGregrio Palams, "a parte concupiscvel da alma. Ele pode devolver o desejo a suaorigem", isto , o Eros por Deus, do que falam to profundamente So Joo Clmaco e oApocalipse, que lana seu chamado ao "Homem de desejo".

    Deste modo, tambm o corpo se "une" a Deus "pela fora mesma desse desejo".Aqueles que se ligam aos prazeres sensveis da corrupo esgotam na carne toda apotncia de desejo de sua alma e chegam a ser integralmente carne. O Esprito nopoderia habitar neles. Pelo contrrio, naqueles que elevam seu esprito at Deus e

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    estabelecem sua alma no amor de Deus, sua carne transformada compartilha o impulsodo esprito e se une a Ele na comunho divina. Chega a ser, ela tambm, o domnio e ahabitao de Deus. Esta transfigurao do Eros no gape uma constante nestatradio: "Que o Eros fsico seja para ti um modelo em teu desejo de Deus", escreviaSo Joo Clmaco. E dizia inclusive: "Felizes aqueles que no tm uma paixo menosviolenta por Deus que a do amante por sua bem-amada."

    Em tal postura, necessrio "recolher o esprito e "faz-lo descer", "impulsion-lo" parao corao, utilizando o movimento da inspirao. A curvatura do corpo permite"comprimir" a respirao. Se "retm o sopro", o maior tempo possvel, pronunciando aspalavras da orao. Logo, se expulsa o ar, "com os lbios fechados". Isto de p. Oesprito, atrado pela posio incmoda do corpo " se recolhe assim mais facilmente". Ocorao desconfortvel pela reteno respiratria, mais fcil de "encontrar". Nacontinuao "o vai-vm do sopro se faz mais e mais lento. A invocao no sepronuncia j por meio dos lbios, inclusive, quase em silncio, se realiza de umamaneira interior. "Chega um dia em que o esprito, treinado, ter feito progressos erecebe o poder do Esprito para orar total e intensamente: ento, j no ter necessidadede palavras".

    Uma vez que o esprito "desceu" ao corao, no deve ter outra ocupao que o grito de"Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim". A frmula empregada ser -sem que a mudana seja muito freqente "pois as plantas muitas vezes transplantadasno prosperam" - tanto: "Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim", como "Filho deDeus, tem piedade de mim". Quando o espiritual "tenha progredido no amor por meioda experincia" e tenha obtido, por meio da graa, a evidncia da misericrdia divina,abandonar o "tem piedade de mim" para concentrar-se nas palavras "Senhor JesusCristo, Filho de Deus", que dirigem o esprito imaterialmente para aquele que elasnomeiam. Os mais "avanados" e os "perfeitos" se contentaro com a invocao nicado Nome de Jesus.

    A orao deve ser dita "com todo seu amor" e com toda sua inteligncia, aplicando-seao sentido das palavras. Ela limpa o p das imagens mentais, que embaa o "espelho",do corao. O corao, assim purificado, v-se a si mesmo inteiramente luminoso"eleva-se no amor e no desejo de Deus", descobre-se pleno da "luz tabrica" que brilhano Cristo transfigurado, chega a ser aprazvel "espelho de Deus" onde se imprime a"imagem" de Cristo e nela, a verdade dos seres e das coisas.

    necessrio ter em conta sempre, o fato de que o ocidental de hoje difere muito do tipode homem para quem foram escritos estes textos. O homem das antigas civilizaesdispunha de um slido ser vital. Estava arraigado no silncio e na calma. Conhecia ocansao profundo que, a sua maneira, purifica e renova. Estava prximo aos seres e s

    coisas. O homem de hoje, o da civilizao urbana e industrial, vive muito mais nasuperfcie de si mesmo. Est habitado por rudos e imagens apressadas. Estnervosamente esgotado, porm conhece raramente a grande e boa fadiga do corpo. Ests na multido, perdeu o contato com as coisas, com a verdadeira matria. Farta-se comalimento e impresses. Para romper a carcaa do artificial e do mecnico, s lhe resta oerotismo. Porm este tambm se torna artificial e mecnico.

    por isso que se faz necessrio transcrever aqui algumas linhas pertinentes de PaulEvdokimov: "Nas condies da vida moderna, sob o peso excessivo do trabalho e da

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    busca desenfreada do lucro, a sensibilidade muda. A medicina protege a prolonga avida, porm, ao mesmo tempo, diminui a resistncia ao sofrimento e s privaes. A"ascese" crist, que no mais que mtodo servio da vida, buscar ento adaptar-ses novas necessidades. A Thebaida herica impunha jejuns extremos e auto-flagelao:o combate se desloca atualmente.

    O homem no necessita de uma dor suplementar que produziria o risco quebr-loinutilmente.m A mortificao consistir na libertao de toda necessidade de "doping",velocidade, rudos excitantes, lcool de todo o tipo. A ascese ser, ento, o repousoimposto, a disciplina de calma e de silncio, peridica e regular, na que o homem re-encontra a faculdade de recolher-se para a orao e contemplao, inclusive no meio detodos os rudos do mundo. O jejum ser a renncia ao suprfluo , o compartilhar com ospobres, um equilbrio risonho.

    Neste contexto, alguns dos espirituais ortodoxos mais experimentados, desaconselhamatualmente "fazer descer" a orao ao corao de uma maneira voluntarista. Corre-se orisco, assim, de falsear o equilbrio nervoso, e de perder irremediavelmente apossibilidade de "encontrar seu corao". necessrio, por conseguinte, contentar-seem utilizar o ritmo da respirao e orar, quando for possvel, "com todo o corao", nosentido popular desta expresso. Um dia, talvez, Deus, por sua graa, far descer aorao ao corao: porm, necessrio remeter-se inteiramente a Ele, no contrair, noquerer. O homem do Ocidente, disse Heidegger, " caracteriza-se pela vontade-de-vontade". necessrio aprender primeiro a abandonar-se e, esse realmente o sentidoprofundo da "orao de Jesus".

    Nicols Cabasillas, que escrevia para os leigos, para os habitantes de uma grandecidade, presta-nos aqui uma enorme ajuda. No necessrio querer guardar seu corao,seno confi-lo ao sangue Eucarstico. necessrio partir do centro e o centro Cristo,corao da Igreja, "alter ego" de cada fiel. O amor responde ao amor, as foras do

    corao iluminado pela presena do Senhor se libertam. Trata-se menos de romper com"casca" da existncia para encontrar o lugar do corao, que de deixar brilhar o sol docorao, cujo resplendor modificar, pouco a pouco, desde o interior, a "casca" daexistncia.

    Bem sabemos, atualmente, que um defeito, um vicio combatido na superfcie da"psique" oculta-se, porm no se cura. Chega-se a ser moderado, porm se preferem osalimentos aucarados e se tem suscetibilidades da antiga criana. Triunfa-se sobre ovicio aparente, porm se "vampiriza" as almas sob o pretexto de gui-las.

    Cristo, no Evangelho, parte sempre do centro, dirige-se diretamente pessoa, provoca ainverso do corao. A metania, no amplo sentido do termo, isto: voltar ao corao,

    deixar que o Senhor o encha de luz. A ascese, da por diante, consistir em separar,pouco-a-pouco, os obstculos que impedem o passo desta luz.

    Quando aquele que seria, no futuro, So Doroteo ingressou no monastrio, quis praticarimediatamente as virtudes mais abruptas e a orao perptua. Seu padre espiritual, oAncio Barsanufio, lhe pediu pelo contrrio, que construsse um pequeno hospital e quese dedicasse aos enfermos. Mais tarde, Doroteo se queixava de obsesses carnais .Barsanufio, em um "contrato" famoso na histria da paternidade espiritual, pedia-lheque no se preocupasse com isto, que ele tomava tudo sobre si. Pelo contrrio, Doroteo

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    se comprometia, sobre pontos precisos, a uma atitude de confiana, de humildade, decaridade. Partia do centro, deixava brilhar o sol interior, pouco a pouco, suas tentaesdesapareceram por si mesmas.

    A "orao de Jesus" pode nos ajudar muito nesta reconstituio de um eixo vital sob osol do corao.

    Os velhos monges dizem que no necessrio temer os momentos de "plerophoria", deplenitude experimentada no mesmo corpo. Ensinam, na perspectiva da ressurreio, umuso no passional da alegria se ser. Pedem que se "circunscreva o incorporal nocorporal", at viver com gratido uma humilde e grave sensao. Marchar, respirar,alimentar-se, tocar a casca de uma rvore, tudo pode chegar a ser celebrao. "O Nomede Jesus chega a ser uma espcie de chave que abre o mundo, um instrumento deoferenda secreta, um colocar o selo divino sobre tudo o que existe. A invocao donome de Jesus um mtodo de transfigurao do Universo."

    Convm que um exerccio de relaxamento de tomada de conscincia do corpo, notermine por uma euforia imanente ou pelo sonho seno pela invocao. Quanto mais ohomem se pacifica e se interioriza, mas deve orar na humildade e a confiana, em"esprito de criana", como um re-encontro em Cristo com Deus Pai, "abba, Pai", comose se orasse pela primeira vez. Esta atitude, somente, pode permitir utilizardiscretamente certas tcnicas asiticas de concentrao, to na moda atualmente.

    Convm que a invocao esteja presente na amizade e no amor. Enquanto a seuesplendor, necessrio nas relaes sociais e os ritmos de trabalho, esta poderia ser amedida, o critrio de uma ao perseverante e criadora dos cristos na sociedade.

    Simultaneamente, porm pouco a pouco, intervm a terceira etapa, a da participao naluz incriada na comunho com o Senhor Jesus, comunho trinitria, o temos dito, pois,

    na interioridade do Esprito, ela nos conduz para "o seio do Pai".Gregrio, o Sinaita, diz que a orao comea a brotar no corao como as fascas de umfogo alegre: a luz incriada se manifesta primeiro pelos toques do fogo de uma indizveldoura. Logo, diz o mesmo Gregrio, no corao feito consciente, a orao "opera comouma luz de bom odor".

    No se trata de "xtase" nem de vises. As exaltaes msticas dos principiantes devemser rapidamente sobrepassadas, pois elas poderiam ser fonte de complacncia e deorgulho. O Senhor, ento se retira para que o homem conhea o ltimo despojamento, apartir do qual ser "deificado", porm por pura graa.

    Os grandes espirituais pedem desconfiar das vises, pois Satans pode disfarar-se emanjo de luz. A liturgia, a salmodia e, sobretudo os cones, esto ali para fazer entrar oasceta, mais alm de todo o fantasma, numa sbria e muito real comunho. Os critriosdo encaminhamento justo so a paz, a doura, a humildade e no a exaltao que deixa aalma turbada e, sobretudo, a capacidade de amar a seus inimigos, segundo a exortaoevanglica.

    Sem dvida, os maiores - os mais humildes - aqueles que alcanaram o estado da oraoininterrupta que eu invocarei a seguir, tem por acrscimo, atravessado os mundos

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    anglicos, penetrando at o trono de Deus, (o corao inflamado se identifica aqui como carro de Elias, como no mito judeu), percebido os fundamentos do mundo criado e osconfins da histria, recebido a visita da Me de Deus e dos Santos.

    O final normal, porm, desta "ascese" do corao, a transfigurao de todo o ser(compreendendo tambm o corpo), a transfigurao do cotidiano por uma luz que um

    fogo, que no uma emanao annima seno o resplendor mesmo do Ressuscitado, apresena secreta do Esprito, a transformao da transcendncia inacessvel empaternidade amante. A viso, a audio, a inteligncia, o amor, tudo se rene numanica "sensao de Deus", tudo luz, porm, esta luz incriada, isto , re-envia a umafonte por sua vez inacessvel por essncia e participvel por graa. Tudo luz, pormesta luz o contedo de um encontro, de uma comunho.O homem entra ento em um ritmo inesgotvel de xtase. So Gregrio de Nissa, apartir de um particpio paulino, ("tendido para") formou aqui o termo de "epectasis",onde "epi" designa o "en-stasis", a infinita proximidade de Deus, que se voltainteiramente participvel, enquanto que que "ek" desina "ektasis", a tenso amante paraeste Deus cuja distancia no abolida, "aquele que se busca sempre", nodesconhecimento da f, pois permanece inteiramente inacessvel.

    Esta distncia, sem cessar, plena em Cristo, sem cessar re-aberta para o abismo do Pai,esta distancia-participao, constitui o lugar mesmo do Esprito; ela se inscreve e nosinscreve no mistrio da Trindade; a alma, em vias de deificao, o corao conscienteque se inflama e se eleva com as asas da pomba chegam a ser, para retomar umaexpresso de Jean Danilou, universo espiritual em expanso. E o que verdade narelao com Deus se faz verdade na relao com o prximo e, tambm, admirao antea coisa mais humilde.

    A "ascese neptica" nos faz compreender definitivamente que o cristianismo no umaideologia que no um saber absoluto, mas o desconhecimento amante da f e da

    diaconia. Quanto mais conheo a Deus, mais se me faz maravilhosamentedesconhecido. Quanto mais conheo ao prximo, mais o re-encontro com a surpresa daprimeira vez. Quanto mais conheo a Criao de Deus, mas perplexo fico por seumistrio (haveria aqui, creio eu, o grmen de uma nova lgica cientfica, mostrando que a irredutibilidade do mistrio o que suscita o dinamismo da investigao.)

    A vida eterna comea, assim, daqui de baixo. Se vai "de comeo em comeo, porcomeos que no tem jamais fim", como diz Gregrio de Nissa. No se trata de "sair dotempo" como a mstica da ndia ou de abolir o tempo como na nirvana bdico, seno deascender a uma temporalidade propriamente eclesial, calcednica, na que o tempo e aeternidade se uniram "sem separao e sem confuso". O ritmo desta temporalidade aquele da morte-ressurreio, da cruz pascal. Introduz nas situaes de morte de nossa

    existncia - at a ltima agonia - a experincia que se concentra na do mrtir. Osmrtires, na histria da Igreja, foram os primeiros a ser venerados como santos. Ummrtir no simplesmente, como se cr muitas vezes, algum que d sua vida por suasidias. Um mrtir aquele que, no horror da tortura e da morte, abandona-sehumildemente ao Crucificado-Ressuscitado, e por este meio se encontra pleno da alegriada Ressurreio. "Destroado pelos dentes das feras", converte-se em "po eucarstico",como dizia Igncio o Teforo. Igualmente o monge, na tradio antiga, por sua vez o"stauroforo" e o "pneumatforo", portador da Cruz e portador do Esprito, aquele que"d o seu sangue e recebe o Esprito; e, por isto mesmo, um ressuscitado" capaz de

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    conhecer at em seu corpo, uma plenitude inefvel.

    Esta temporalidade faz aflorar grandes estratos de paz e de luz na densidade dos seres edas coisas, na monotonia das tarefas cotidianas. O "enstaisis-extasis", no re-encontro dooutro se faz assim servio, amor ativo e criativo.

    Esta temporalidade, finalmente, tem sabor de silncio. No o mal silncio do vazio, osilncio gelado dos abandonados, seno o silncio pleno, o silncio divino, essa"linguagem do mundo por vir", como dizia Isaac, o Srio. A invocao deve ento abrir-se sobre o silncio. Primeiro, por breves momentos de silncio intercalados entre oschamados. Logo, por uma espcie de plano interior no azul do corao consciente,segundo uma penetrao da interioridade "pneumtica" do Nome de Jesus. Pois osilncio repousa no Nome como o Esprito, desde toda a eternidade, repousa no Verbo,posto que constitui a unio messinica, crtica, do Verbo encarnado. E quando oEsprito est presente no necessrio orar, somente calar n'Ele, para retomar, porexemplo, o ensinamento de So Serafim de Sarov.

    Diz-se sempre que a msica litrgica, na Igreja Ortodoxa, est a servio da Palavra. Ela,porm, est tambm a servio do silncio , abre a palavra sobre um interior de silncio.O mesmo sucede com o canto gregoriano.

    A "orao de Jesus" faz do corao de cada um uma cela monstica onde se est "scom o nico" no silncio. A "ascese" neptica ensina a calar. O silncio cristo, porm, de uma palavra renovada. Num momento dado, o inseparvel silencioso, o hesycasta,recebe o carisma da palavra de vida, que vai do corao ao corao, palavra-semente.

    Um dos afrescos mais notveis do Monte Athos representa um monge crucificado doqual brotam chamas. Aqueles que so como ele, so "homens apostlicos", que falamdo que experimentam. E sua palavra poderosa com todo o poder do Esprito.

    Os outros, e isto o que eu intento aqui, se contentam desfigurando-se, em apresentarseu testemunho. Tentam ser, com a palavra ou com a pena, o que , com o pincel, umpintor de cones.

    Traduo: Pe. Pavlos, HieromongeComunidade Monstica So Joo

    6. A Orao Ininterrupta

    Em alguns grandes espirituais (pouco numerosos, porm no excepcionais), a "oraode Jesus" faz-se "espontnea", "ininterrupta". A invocao se identifica com as batidas

    do corao. o ritmo mesmo da vida, a respirao, a pulsao do corao, o que oraneles, ou melhor, o que, na perspectiva do original e do ltimo, se reconhece orao.Isto, repito, e sobretudo atualmente, necessrio descobri-lo em um humilde abandono,em uma inteira confiana, por meio da graa.

    "Quando o Esprito estabelece sua morada em algum, este no pode deixar de orar,pois o Esprito no cessa de orar nele. Mesmo que durma ou que vele, a orao no sesepara de sua alma. Enquanto bebe, come, est deitado ou se dedica ao trabalho, operfume da orao brota de sua alma. Dali por diante, no s em momentos

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    determinados, mas em todo o tempo, os movimentos da inteligncia purificada sovozes mudas que cantam, no segredo, uma salmodia ao Invisvel" (So Isaac, o Srio). Eo Peregrino russo nos confia: "Habituei-me tanto orao do corao que a praticavasem cessar e, finalmente, senti que ela se fazia por si mesma, sem nenhuma atividade deminha parte; ela brotava em meu esprito e em meu corao, no somente em estado deviglia mas durante o sono e no se interrompia um segundo."

    De fato, os progressos para a orao ininterrupta se inscrevem claramente em nossarelao com o sono. O sono profundo uma espcie de estado mstico, porminconsciente. por isso que necessrio dormir, colocando-se nas mos de Deus comconfiana.

    A primeira etapa consiste em evitar toda a avidez de sonho e em praticar, de umamaneira ou outra (o ofcio da meia-noite dos monges) uma viglia real porm breveinterrompida pelo ofcio em seu alcance simblico.

    A segunda etapa consiste em fazer penetrar a invocao no sono dizendo a "orao deJesus" no momento do adormecimento. "Orao de uma s palavra, tu deves estarpresente tanto ao dormirmos como em nosso despertar". Simultaneamente, importantetomar nota dos sonhos, no para deter-se neles, seno para comunic-los ao padreespiritual.

    Assim, pouco a pouco, se protege o sono de fantasmas diablicos que atravessam osubconsciente. Na terceira etapa, o sono, abreviado, porm todavia durvel, se fazporoso e supra-consciente. "Eu durmo, trata-se de uma necessidade da natureza. Pormmeu corao vela por amor excessivo." O homem se comunica com Deus por meio dasvises do sonho, que no o liberam do imaginrio individual ou coletivo, mas do"imaginal", no sentido que d a esta palavra Henri Corbin. A Bblia est cheia de sonhosque os Setenta denominam de "xtase". Nos antigos pases ortodoxos, tais sonhos que

    compartilham um elemento de revelao e de profecia, so relativamente correntes. OPatriarca Anthengoras dizia que havia tomado todas as suas grandes decises depois detais sonhos. Assim, antes de sua proposio de encontrar-se com Paulo VI, emJerusalm, ele havia visto um clice sobre uma montanha: ele e o Papa escalavam amontanha por lados opostos.

    Na ltima etapa, a da orao ininterrupta, o espiritual no dorme quase nada: o estadomstico inconsciente de sonho profundo se faz consciente nele. No tem j necessidadede vises do "modus imaginalis": chegou a ser visionrio do real. por isto que recebeo carisma de simpatia e de discernimento dos espritos, podendo receber visitantes efazer-se todo para todos durante dez ou doze horas contnuas, como o faz atualmente emLondres, o Metropolita Antnio.

    Ao ato de orao sucede um estado de orao. E o estado de orao a verdadeiranatureza do homem, a verdadeira natureza dos seres e das coisas. O mundo orao,celebrao, regozijo, como o expressam admiravelmente os salmos e o livro de J.

    Esta orao muda, porm, necessita da boca do homem pra ressoar. o que algunspadres gregos chamam "a contemplao da natureza"; o homem recolhe os "logoi" dascoisas, suas essncias espirituais, no para apropriar-se delas, mas para entreg-las aDeus como uma oferenda por parte da Criao. Ele v as coisas estruturadas pelo

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    Verbo, animadas pelo Esprito de vida e de beleza, tender para a Origem paternal, queas acolhe em sua diferena: "Pois, a unio, deixando de lado a separao, no destruiu adiferena", diz Maximo, o Confessor.

    A tenso para a Parusia resume aqui o paraso primordial. O santo vive na familiaridadecom as bestas selvagens. Elas sentem emanando dele um perfume igual ao de Ado

    antes da queda, disse So Isaac, o Srio. Ao redor dele, o temor e a violncia noexistem. Um eremita de Patmos, morto h alguns anos, dava de beber s vboraspequenos copos de leite e impedia que os meninos de seu pas as matassem: "Socriaturas de Deus". So Serafim de Sarov se deixava devorar pelos mosquitos, dizendosomente com o Salmo a um amigo que queria ca-los: "Que todo o sopro louve oSenhor".

    Prximo aos animais - dos que toma a sabedoria, diz So Mximo -, o espiritual esttambm prximo das crianas pequenas que reconhecem nele um dos seus. "Sua carne como a nossa", disse uma pequena referindo-se a So Serafim de Sarov.

    "Tudo o que me rodeava se me aparecia sob um aspecto de beleza", escreveu oPeregrino russo. "Tudo orava, tudo cantava a glria de Deus. Eu compreendia assim oque a Filocalia chama a linguagem da Criao. Via como possvel conversar com ascriaturas de Deus".

    O homem chega a ser ento o sacerdote do mundo. "A alma se refugia como numaIgreja ou num asilo de paz, na contemplao espiritual do Universo". O homem entra alicom o Verbo, e com ele, e sob sua conduo, "oferece o Universo a Deus, em suainteligncia, como sobre um altar". Esta atitude pode aplicar-se investigaocientifica. O investigador que pratica a "orao de Jesus", "busca um princpio deexplicao que no dissolve o mistrio das coisas, que respeita e revela a existncia e oser em lugar de desintegr-los". Sua tarefa no desintegrao seno a reintegrao

    espiritual.A Orao de Jesus provoca no corao uma caridade sem limites: "Que o coraocaritativo?" Pergunta Isaac, o Srio. Eis aqui sua resposta: " um corao que arde deamor pela Criao inteira, pelos homens, os pssaros, os animais, os demnios, portodas as criaturas... por isto que um homem semelhante no cessa de orar... inclusivepelos inimigos da verdade e por aqueles que lhe fazem mal. Ora inclusive pelasserpentes, movido pela piedade infinita que se desperta no corao daqueles que seunem a Deus". E tambm: "Que o conhecimento?" - O sentido da vida imortal - "Que a vida imortal?" - Sentir tudo em Deus. Pois o amor vem do re-encontro. Oconhecimento relacionado com Deus unifica todos os desejos. E para o corao que orecebe, integralmente doura transbordante sobre a terra. Pois no h nada semelhante

    doura do conhecimento de Deus."

    Talvez o hino que mais se impe a esta unificao diversa do mundo na luz tabrica, seencontre ao final da Filocalia grega, no Tratado Sobre a Unio Divina e a VidaContemplativa, de Calixtos Catafigiota. Citemos pelo menos algumas linhas: ""No huma s coisa no Universo que no testemunhe o esplendor (da glria) e que no levecomo um perfume desse Uno Criador. Posto que o Uno chamado em toda coisa, quetoda coisa tende para o Uno e que o Uno mais alto que o mundo se revela intelignciaatravs de todos os seres, necessrio que a inteligncia seja conduzida, guiada e levada

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    para o Uno mais alto que o mundo. Ela forada a isto pela persuaso de tantos seres...Da busca vem a viso e da viso vem a vida, para que a inteligncia exulte, se ilumine ese regozije, como disse David: 'Em TI est a morada de todos aqueles que se regozijam'e 'Em tua luz, veremos a luz'. Se no... 'Como haveria ele semeado em todos os seresaquilo que est n'Ele e por meio do qual, como atravs de janelas, revelando-se inteligncia, Ele a chama para ele, cheio de luz?"'

    Tudo culmina no amor verdadeiro do prximo. Penso neste belo texto de um russo"Louco em Cristo", do comeo de nosso sculo: "Sem a orao, todas as virtudes socomo rvores sem terra; a orao a terra que permite crescer todas as virtudes". Odiscpulo de Cristo deve viver unicamente por Cristo. Quando ele ama a Cristo at esteponto, amar forosamente tambm a todas as criaturas de Deus.

    Os homens crem que necessrio primeiro amar aos homens e logo a amar a Deus. Eutambm acho isto, porm no serve de nada. Quando, pelo contrrio, comecei a amar aDeus, nesse amor de Deus encontrei meu prximo. E nesse amor de Deus, meusinimigos tambm se tornaram meus amigos, criaturas divinas.

    Evgrio escrevia: "Feliz o monge que considera a todo homem como deus depois deDeus. Feliz o monge que v como seus prprios, o progresso e a salvao de todos. Esse o monge que, ainda afastado de todos, est unido a todos."

    E Santo Isaac, o Srio: "Deixa-te perseguir, porm, tu no persigas. Deixa-te ofender,porm, tu no ofendas. Deixa-te caluniar, porm, tu no calunies. Alegra-te com aquelesque se alegram, chora com aqueles que choram; esse o sinal da pureza... S amigo detodos, porm, em teu esprito, permanece s". S com o nico, que o Amor e nos d afora de amar. E, Santo Isaac, precisa: "Eis aqui meu irmo, um mandamento que tedou: que a misericrdia prevalea sempre em tua balana, at o momento em quesentirs em ti a misericrdia mesma que Deus experimenta para com o mundo."

    "No intentes distinguir aquele que digno daquele que no o ; que todos os homenssejam iguais a teus olhos, para am-los e servi-los. Assim, poders conduzir ao bem osindignos... O Senhor compartilhou a mesa dos publicanos e das mulheres de m vida,sem afastar dele os indignos. Assim, tu conceders os mesmos benefcios, as mesmashonras, ao infiel, ao assassino; ele tambm um irmo para ti, posto que participa nanica natureza humana."

    "Quando reconhece o homem que seu corao alcanou a pureza? Quando considera atodos os homens como bons, sem que nenhum lhe parea impuro ou maculado. Ento,em verdade, ele puro de corao."

    A Madre Maria (Skobtzoff), uma monja ortodoxa que vivia na Frana entre as duasguerras, intentou precisar a 'ascese' do amor ativo. Esta antiga revolucionria, de vidaviolenta e apaixonada, havia se convertido em um ser de luz. Lia a Filocalia naperspectiva dos filsofos religiosos russos, em primeiro lugar Nicols Berdiaev:dedicava-se aos excludos, aos mais desprovidos, percorrendo a Frana em bondes,escrevia poemas ou pintava cones. Durante a guerra salvou muitas vidas de judeus.Enviada Ravensbruck, resplandecendo de maneira inesquecvel entre suascompanheiras, morreu tomando lugar de outra na cmara de gs. Ela gostava derecordar a histria de um monge do antigo Egito que, para alimentar a um faminto, no

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    havia duvidado de vender seu evangelho, seu nico bem.

    Em seu estudo sobre o Segundo Mandamento do Evangelho, esboa as grandes linhasde uma ascese de encontro e de amor. necessrio evitar - diz - projetar o prpriopsiquismo sobre o demais. necessrio compreender o outro em um extremodespojamento de si, at descobrir nele a imagem de Deus. Ento se descobre de que

    modo essa imagem pode estar apagada, deformada pelos poderes do mal. V-se ocorao do homem como o lugar donde o bem e o mal, Deus e o diabo, travam uma lutaincessante. E se deve intervir nesse combate, no pela fora exterior, que no poderiachegar mais que a este "pesadelo do mal- bem", do bem imposto, denunciado porBerdiaev, seno pela orao:" pode-se intervir, se se coloca toda confiana em Deus, sese despoja de todo o desejo interessado, se, tal como David, se joga fora suas armas eentra no combate sem outra arma que no seja o Nome do Senhor. Ento o Nome,chegando a ser Presena, inspira-nos as palavras, o silncio, os gestos indispensveis.

    A todos os que alcanam este "estado de orao", tudo lhes rende o "cntuplo".Conhecem essa transfigurao do eros que buscaram to desesperadamente durante osltimos anos, os defensores do "freud-marxismo". Percebem com uma extraordinria"plenitude" o mistrio dos seres e das coisas, a face oculta da terra. Recebem carismasde paternidade espiritual, de cura e de profecia. Esta paternidade, como aquela de Deusque ela manifesta, sobre-passa, integrando-a, a dualidade sexual: So Serafim,renovando uma antiga indicao monstica, dizia ao Superior de Sarov: "Sois uma mepara teus monges."

    O Esprito, unido ao corao, acede a uma forma renovada de inteleco, a umpensamento inseparvel da paz e do amor sustentado pela orao (pois, doravante, estano se interrompe durante o exerccio do pensamento). A prtica da invocao do Nomede Jesus no tem nada, como se cr habitualmente, de um anti-intelectualismo: elacrucifica e ressuscita a inteligncia. "O corao liberto de imaginaes termina por

    produzir em si mesmo santos e misteriosos pensamentos, como se v sobre um marcalmo saltar os peixes e brincar os golfinhos."

    As vezes se revelam aos "espirituais" os mistrios da origem e do fim da humanidade edo Universo, participam na passagem da Histria para o Reino, a iluminao da NovaJerusalm. Tomam lugar na comunho dos "pecadores conscientes", aqueles que orampara que todos sejam salvos.

    A "orao de Jesus", pronunciada: "tem piedade de ns", nos recorda que ningum sesalva sozinho, mas somente na medida em que se chega a ser uma pessoa emcomunho, que no j est separada de nada. Aquele que invoca o Nome chega a ser oamigo do Esposo, que ora para que todos estejam unidos ao Esposo: " necessrio que

    ele cresa e que eu diminua". No fala de inferno seno para si mesmo, por uma infinitahumildade: a histria do cordoeiro de Alexandria, dando uma lio a Santo Antonio aorevelar-lhe que orava para que todos fossem salvos, sendo ele o nico que merecia sercastigado. Simeo, o Novo Telogo, dizendo que necessrio olhar a todos seuscompanheiros como santos e ter-se a si mesmo como o nico pecador, "dizendo-se que,no dia do Juzo, todos sero salvos, s eu serei rechaado". Ento o Senhor disse aostarets Silvano: "Mantm teu esprito em inferno e no desespere".

    A esperana aumenta por meio da orao: esperana do ltimo Dia, sem ocaso, quando

  • 8/7/2019 A Orao do Corao

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    o sopro do Esprito dissipar as cinzas e manifestar ao mundo, como uma "saraardente", em Cristo. A dissoluo da iluso e da morte no se produziro sem provasmaiores. "Ento, todo o que invocar o Nome do Senhor, ser salvo".

    http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/espiritualidade/a_oracao_do_coracao_olivier_clement

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