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FACULDADE JOÃO PAULO II - 2015 DEUS E CRIAÇÃO Prof. Ms. Pe. Reginaldo Marcolino ORIGEM DO SER HUMANO Para se refletir sobre a fé na criação ou as premissas de uma doutrina da criação não se pode deixar de (1) considerar o modo como Israel concebia a idéia de Deus. (2) O livro do Gênesis 1 mostra um mundo como um templo construído e embelezado por Deus, onde é colocado sua imagem e semelhança: o homem e a mulher com o projeto de felicidade. Dessa maneira, a criação é obra de sua Palavra, pois Deus diz e as coisas acontecem (Cf. Is 40,8; 55,10-11; Sl 119,3). (3) A história da criação é considerada em duas versões: sacerdotal (P= que significa código sacerdotal) e javista (J= que é a tradição do povo, onde “Javé” designa o Deus de Israel). (4) A narrativa da criação a partir do código sacerdotal, que será adotado como objeto de reflexão 2 , mostra, sobretudo, uma estrutura bem ordenada, onde a criação é chamada por Deus à existência. Tal narrativa gerou e, continua gerando um debate profundo para reflexão teológica e filosófica, sendo objeto de controvérsias entre as ciências naturais, daí, a busca de entendimento para a criação de todas as coisas, mas em especial do ser humano como centro da criação. (5) No relato bíblico da criação no primeiro capítulo de Gênesis, sendo que do capítulo primeiro aos onze narra a 1 A redação do livro do Gênesis aconteceu no século V a.C. na Babilônia no período do exílio. A primeira tradição chamada sacerdotal (P) aconteceu no exílio no séc. V. a.C. (o exílio aconteceu de 587 a 539 a.C.); a segunda tradição chamada javista (J), é uma tradição popular, nasceu nos tempos do rei Salomão, foi levada para o exílio e ali redigida e incorporada à sacerdotal. 2 Segundo MACKENZIE, John L., Dicionário Bíblico, Paulinas: São Paulo, 1983. p. 196-197, temos “dois relatos da criação no início de Gn, embora o termo “criação” não se adapte ao segundo relato. O primeiro relato do livro (Gn 1, 1-2,4a) é geralmente considerado o mais recente [...]. O segundo relato da “criação” (Gn 2,4b-25) não trata rigorosamente da criação, nem chega a descrever a origem do mundo. Ele não concebe o mundo como o abismo primitivo, mas sim como um deserto. E a criação parece se realizar através da irrigação do deserto pela água que Deus manda para a terra. O primeiro objeto de criação efetiva de Deus é o jardim do Éden, onde Deus coloca o homem. O homem é feito de argila, na qual Deus insuflou a sua própria respiração (Gn 2,7)”. 1

A Origem Do Ser Humano1-1

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A Origem do ser Humano

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FACULDADE JOÃO PAULO II - 2015DEUS E CRIAÇÃO

Prof. Ms. Pe. Reginaldo Marcolino

ORIGEM DO SER HUMANO

Para se refletir sobre a fé na criação ou as premissas de uma doutrina da criação não se pode deixar de (1) considerar o modo como Israel concebia a idéia de Deus. (2) O livro do Gênesis1 mostra um mundo como um templo construído e embelezado por Deus, onde é colocado sua imagem e semelhança: o homem e a mulher com o projeto de felicidade. Dessa maneira, a criação é obra de sua Palavra, pois Deus diz e as coisas acontecem (Cf. Is 40,8; 55,10-11; Sl 119,3). (3) A história da criação é considerada em duas versões: sacerdotal (P= que significa código sacerdotal) e javista (J= que é a tradição do povo, onde “Javé” designa o Deus de Israel). (4) A narrativa da criação a partir do código sacerdotal, que será adotado como objeto de reflexão2, mostra, sobretudo, uma estrutura bem ordenada, onde a criação é chamada por Deus à existência. Tal narrativa gerou e, continua gerando um debate profundo para reflexão teológica e filosófica, sendo objeto de controvérsias entre as ciências naturais, daí, a busca de entendimento para a criação de todas as coisas, mas em especial do ser humano como centro da criação.

(5) No relato bíblico da criação no primeiro capítulo de Gênesis, sendo que do capítulo primeiro aos onze narra a história das origens, encontra-se: “Deus cria o homem como sua imagem, semelhante a ele” (Cf. Gn 1,26s). (6) Esta afirmação está ligada à ordem divina de “reinar” (radah) na criação; este sentido de reinar seria uma forma de exercer um governo ou um pastoril eliminando inimigos perigosos. (7) Os seres humanos cumprem sua destinação de serem “imagem de Deus”3 pelo seu domínio sobre a criação e na geração de descendência. (8) Mas, em primeiro lugar, Deus reina sobre tudo, pois é o Deus do céu. Essa idéia “do céu” remete a um espaço sagrado e também um ponto de partida para uma ação eficaz sobre a terra (Cf. Gn 28,12-13; Sl 2,4; Sl 18,10-11.14-15). Será lá “do céu” que irá “descer” para irromper a história humana. Esse caráter celeste confere a Deus uma potestade tão fundamental que não precisa se manifestar de maneira espetacular, seja num furação ou tremor, mas pode perfeitamente se manifestar numa brisa suave (Cf. 1 Rs 19,11-13).

(9) Se Deus é capaz de reinar sobre tudo, como bem apresenta algumas narrativas bíblicas, então, como não pensar que Ele mesmo tudo fez? Pode-se, assim dizer que existe de maneira implícita, um estado embrionário da fé na criação. A

1 A redação do livro do Gênesis aconteceu no século V a.C. na Babilônia no período do exílio. A primeira tradição chamada sacerdotal (P) aconteceu no exílio no séc. V. a.C. (o exílio aconteceu de 587 a 539 a.C.); a segunda tradição chamada javista (J), é uma tradição popular, nasceu nos tempos do rei Salomão, foi levada para o exílio e ali redigida e incorporada à sacerdotal.2 Segundo MACKENZIE, John L., Dicionário Bíblico, Paulinas: São Paulo, 1983. p. 196-197, temos “dois relatos da criação no início de Gn, embora o termo “criação” não se adapte ao segundo relato. O primeiro relato do livro (Gn 1, 1-2,4a) é geralmente considerado o mais recente [...]. O segundo relato da “criação” (Gn 2,4b-25) não trata rigorosamente da criação, nem chega a descrever a origem do mundo. Ele não concebe o mundo como o abismo primitivo, mas sim como um deserto. E a criação parece se realizar através da irrigação do deserto pela água que Deus manda para a terra. O primeiro objeto de criação efetiva de Deus é o jardim do Éden, onde Deus coloca o homem. O homem é feito de argila, na qual Deus insuflou a sua própria respiração (Gn 2,7)”.3 Segundo BAUER, J. B. Dicionário de Teologia Bíblica. Trad. Helmuth Alfredo Simon. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1979. v. 1. (Abraão-Jesus Cristo). p. 506, sobre o relato da criação, “o autor para exprimir a realidade da imagem de Deus no homem se serve de dois termos: “imagem” (tselem) e semelhança (demût)”. Acréscimo nosso: à sua imagem (besalmenû) e semelhança (kidemutenû).

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Sagrada Escritura, em especial, nos primeiros capítulos do Gênesis e também em alguns Salmos, Deus é colocado como criador de tudo o que existe, ou seja, (10) tudo é criado segundo a determinação e do livre dom de Deus. (11) Em todas as coisas criadas o homem aparece como meta da criação, sendo um dom específico do Criador, pois o criou à sua imagem4.

(12) Ladaria, a partir dessa reflexão sobre a criação, propõe uma teologia da criação tendo como pressuposto o aspecto da aliança que Deus faz com o povo de Israel. (13) A criação é um dos princípios necessários para a fé na aliança , pois este Deus que tudo criou quer estabelecer sua aliança de amor de modo único e definitivo com o seu povo. (14) Deus confirma sua aliança de amor para com seu povo, em especial, pela libertação no Egito, indicando o caminho a seguir rumo à Terra Prometida, tendo como princípio norteador deste caminho e seguimento, as leis dadas a Moises no Sinai.

A fé na criação e em Deus libertador se afirma como pano de fundo da experiência da fé em Deus libertador do povo, que retirou o povo de Israel da servidão no Egito e o conduziu, mediante o êxodo, para uma terra de liberdade. Portanto, o eixo central da criação, para o Antigo Testamento, está no êxodo, na experiência histórica de libertação5.

(15) Esta noção é aperfeiçoada e elevada a termo em Jesus Cristo como bem evidencia o Concílio Vaticano II, colocando-o como centro. Cristo é colocado como centro, justamente porque n’Ele Deus mesmo manifesta e redime o ser humano em seu amor: “a questão do ponto de vista da aliança não é qualquer coisa de contraditório, mas aperfeiçoa a relação de Deus com o mundo estabelecida na criação6”.

(16) Portanto, toda a idéia de paraíso apresentada na narrativa do Gênesis e, como conseqüência, todas as narrativas que apontam, em igual forma, para o amor especial e predileto de Deus para com seu povo é corrompida e deturpada quando o ser humano se afasta desse amor não reconhecendo em Deus a única fonte e princípio, assim, pois, (17) pelo mau uso da liberdade, o ser humano rompe todo esse projeto benevolente. (18) Tudo é resgatado e reconciliado em Cristo, a imagem outrora perdida pelo pecado, é agora regenerada pela Encarnação do Verbo que atinge seu ponto máximo de doação à humanidade, numa perspectiva soteriológica, quando se entrega livremente numa cruz assumindo nossos pecados7. (19) Assim, pode-se pensar que com a Encarnação iniciou-se uma nova época ou uma nova criação, por isso, (20) a criação é recapitulada para o novo, ou seja, orientada para Cristo que é o Homem-novo, ou seja, orientada para o próprio ser humano.

ARGUMENTOS PARA DESCRIÇÃO ACIMA:Os livros sagrados não são históricos ao tratar o aspecto da criação. Mas pela fé

sabemos que o homem foi criado por Deus. A criação do homem é referida tanto no relato sacerdotal (P) como no relato javista (J).

A visão apresentada pelo relato sacerdotal (P) mostra a criação desde o caos, atingindo a perfeição até o repouso. O relato javista (J) parte da perfeição e vai até o caos pelo pecado (isso para ilustrar as perturbações da vida presente). Em P o homem é

4 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Bíblia e Moral: raízes bíblicas do agir cristão. São Paulo: Paulinas, 2009. p.21.5 VON RAD, G. Teologia do Antigo Testamento. v. 1. São Paulo: Aste, 1973.6 Ladaria, L.F. Antropologia Teológica. Roma-Madrid: Università Gregoriana, 1983. p.18.7 A Teologia paulina apresenta essa imagem de reconciliação com Deus através de Jesus Cristo: cf. Rm 5,10; 2Cor 5,18-20.

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o ápice de uma pirâmide; em J o homem é o centro do círculo; em P o homem é criado, mas a referencia está a todo gênero humano; em J Adão e Eva são indivíduos psicologicamente bem caracterizados; enfim, em P o homem é criado à imagem de Deus, não da terra, mas pela Palavra de Deus e este homem é criado para procriar, dominar a terra, participar do trabalho e do repouso de seu Criador, sendo que em J a criação se refere aos seres e homem pertence à terra e Deus o cria, não com a Palavra, mas como um oleiro, com seu sopro, mostrando porque o homem tem medo, dor, vergonha, morre, se desentende, trabalha sem resultado, enfrenta o casamento e a procriação, apesar das tribulações inerentes.

O relato sacerdotal (P) considera a igualdade entre varão e mulher; o relato javista (J) considera a complementaridade e tensões entre o homem e a mulher. A descrição de J não é histórica nem científica, mas também não é meramente fantástica ou literária, para atrair ou entender. Através de um revestimento literário simbólico, exprime sua visão sobre a natureza, o comportamento, o sentido do ser humano e entra em polêmica com outras religiões e filosofias que desviaram o povo da fidelidade ao Senhor.

Em Gn 2 a imagem do Deus oleiro indica a total liberdade de Deus e a dependência radical do homem, ligação deste com Deus, mas também com a terra. Aponta para o ser transitório e frágil do homem (Cf. Jr 18,1-6; Is 29,15ss; Eclo 33,13; Rm 9,21). O sopro ressalta a intenção de que o homem deve a vida a Deus, não ao mundo visível, que Deus é fonte da vida; em P a dignidade do homem, o equivalente do sopro, aparece na categoria “imagem”. O homem dá nome às criaturas: é uma imagem para indicar que ele é o senhor delas (= “dominai”).

Temos ainda a descrição da mulher em Gn 2, 18-24, deixando explícito que não é bom que “esteja só”, apesar da intimidade com Deus e do paraíso. Deus não resolve a solidão de Adão criando outros homens, mas dando uma criatura complementar (algo correspondente); o sono de Adão é algo profundo, pois o homem não pode ver o ato da criação, as grandes ações de Deus (mistério da criação)8. Assim, pois, criar ao lado de Adão significa que Deus cria a mulher para que a viva ao lado do homem (indicar a natureza da complementaridade) e a “costela” quer dizer também “vida” e Eva se torna a mãe dos viventes; Deus não divide “ao meio” Adão, mas oferece algo que estava faltando, apesar de tudo o que tinha.

VOCÁBULOS DO ANTIGO TESTAMENTO

Distinguimos 4 momentos:1º Criação por Ação: esta concepção é sem dúvida mais antiga do que as três seguintes. Existem três maneiras de se entender essa ação:- Formar: “ainda não” (Gn 2,5; Prov 8);

ordenar o caos, organizar (Gn 1,2 – algo implícito);separar: Gn 1, 4.7 (como Deus tira Israel do Egito, assim separa a luz das

trevas...)lutar; contra os monstros, contra o poder das águas primordiais, contra o

caos (Sl 74,13ss; 89,9-11; 104,26; Is 27,1; 51,9ss; Jó 3,8; 26,10-13);- Gerar: nascer (Sl 90,2; Jó 38,28ss);- Produzir: fazer, não gerar (Gn 2,4; Gn 1,26);

plasmar, modelar (como oleiro): Gn 2,8; Am 4,3; Is 45,18;tecer (Sl 138, 13.15)

8 Importante que a Sagrada Escritura não usa o mito andrógeno (2 sexos na mesma pessoa) – referência ao homossexualismo;

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fundar, estabelecer (Sl 23,2; 89,12; Is 48,13; Jó 38,4-6);construir, firmar (Sl 24,2; Sl 104,5; 119,73; Am 9,6; 45,18);

2º Criação pelo Espírito: Gn 1,2 (pairar= chocar, exercer fecundação);Sl 104,29ss; 33,6 (associação entre Palavra e Sopro);

3º Criação pela Palavra: Gn 1; Sl 33,6- a Palavra anuncia, efetua, revela e aprova a criação;- a Palavra Cria diretamente: Gn 1 (obras da criação);- não se trata de uma palavra mágica ou de expressão de um poder mágico, mas mostra a transcendência do Criador (diferença entre Criador e criatura);- criar pela Palavra é o mesmo que chamar, criar chamando, dizendo o nome (exemplo: vocação de Abraão);- o chamar criativo pressupõe que Deus envia sua Palavra (Br 3,33);- a criação pela Palavra evolui como criação (estruturada, pensada com categoria, elaborada) pela Sabedoria (Pr 8,30);

4º Criar (verbo “bará” / “barah”): Gn 1, 1.27; Sl 104,30; Jr 31,22; Is 43,1.7.15O verbo criar não traduz bem o hebraico “barah” porque este tem várias

conotações, que não estão presentes nas línguas modernas. Indica Ação que tem por sujeito somente Deus, ação da forma verbal é impessoal (“haja a luz” e não surja a luz de”); portanto, a criação “ex nihilo” (“criar do nada”) significa “fazer algo que ninguém nunca fez”, ou seja, algo dependente de Deus.

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