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A P R E N D E R Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação

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A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Campus Universitário – Caixa Postal 95Estrada do Bem Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA

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REITOR

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COMITÊ EDITORIAL

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Prof. Jovino Moreira da SilvaProf. Marcello Moreira

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Prof. Paulo Sérgio Cavalcante Costa

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Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano II, n. 3, jul./dez. 2004. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004

Semestral.ISSN 1678-78461. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título.

Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb

Indicações de permutaAceitamos permutas por periódicos de áreas afins, em especial de Educação, Filosofia e Psicologia. Os contatospara essa finalidade podem ser feitos através dos endereços eletrônicos: [email protected] [email protected]

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

A P R E N D E RCaderno de Filosofia

e Psicologia da Educação

ISSN 1678-7846APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 3-108 2004

Copyright ©2004 by Edições Uesb

APRENDERCaderno de Filosofia e Psicologia da Educação

Caderno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia

Ano II – n. 3, jul./dez. 2004

Editores ResponsáveisProf. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado – UesbProf. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento – Uesb

Editoria CientíficaProfª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo – UesbProfª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro – Uesb

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Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos – Uesb/Uesc

Conselho EditorialProfª Dr.ª Ana Elisabeth Santos Alves – Uesb

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Prof. Dr. Silvio Gallo – Unicamp

APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da EducaçãoUNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB)

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45083-900 – Vitória da Conquista – BAFone: 77 3424-8652

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SUMÁRIO

Filosofia e educação em Paulo Freire: pensando com práticas de formação de professoresAvelino da Rosa Silveira e Gomercindo Ghiggi .................................................................................................................9-18

Aproximações sobre hermenêutica e educaçãoJosé Bolzan ..................................................................................................................................................................... 19-32

Nietzsche educador: notas para a redefinição da filosofiaGislene Almeida ............................................................................................................................................................ 33-38

Considerações introdutórias sobre a presença da indústria cultural na sociedade pós-moderna:em favor da teoria estética na educaçãoClédson L. Miranda dos Santos .................................................................................................................................... 39-47

Os diários reflexivos e os processos metacognitivos na práxis educacionalJussara Midlej ................................................................................................................................................................ 49-61

A escritura e o papel na era digitalEstrella Bohadana e Marcio Mori Marques .................................................................................................................. 63-78

Posição sociométrica do aluno com dificuldades de aprendizagem: contribuições da teoriade Moreno para a educaçãoEliane Giachetto Saravali ............................................................................................................................................. 79-87

Notas sobre a constituição do proletariado em classeJussara Marques de Macedo .........................................................................................................................................89-103

Normas para apresentação de trabalhos ............................................................................................................. 105-106

APRESENTAÇÃO

Ao longo da história, a educação sempre fez parte da trajetória humana. Com suas inúmerasformas de realização, o processo educacional sempre envolveu um importante aspecto: o conhecimento.

O conhecimento fundamentado no assombro do desconhecido temido e dominado magica-mente; na observação dos fatos ou nas idéias sobre a realidade; no método científico de pensar arealidade; nas formas de socialização do saber; nos símbolos e códigos que desenham o pensamento;nos instrumentos e na cultura multiforme; na complexidade. Na produção do conhecimento, a cons-trução de um mundo percebido e compartilhado.

O homem, quando conhece, não apenas descobre, mas também recria. Descobrindo e recri-ando o mundo, somos seus artífices, na medida em que sobre ele nos debruçamos e o interpretamos.

Nesse encontro entre sujeito que conhece e o mundo que é conhecido, em diferentes propó-sitos educacionais, a Filosofia e a Psicologia formam um campo vasto e interligado de perguntas ecompreensões sobre essa relação sujeito-mundo.

Com o propósito de estudar o processo educacional por meio de contribuições da Filosofia eda Psicologia da Educação, foi criado o APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educa-ção, uma publicação semestral que pretende reunir e divulgar artigos, ensaios, monografias, relatosde pesquisas e resenhas que tratem do processo educacional em suas variáveis filosóficas e psicoló-gicas, ou contribuições de outras áreas do conhecimento que discutam o processo educacional, deacordo com a linha editorial do APRENDER.

Os editores.

1 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel).2 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel).

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 9-18 2004

FILOSOFIA E EDUCAÇÃO EM PAULO FREIRE:PENSANDO COM PRÁTICAS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Avelino da Rosa Oliveira1

Gomercindo Ghiggi2

RESUMOO presente texto nasce da motivação de compreender um espaço de sala de aula emprocesso de formação-investigação com professores em serviço, num programa deformação inicial. Seu objetivo é desvelar os fundamentos filosóficos de tal discussão,tomando como base o pensamento de Paulo Freire. Inicialmente, os autores discutem olugar da filosofia nos cursos de formação de professores, destacando que sua tarefa épensar o presente, em busca da verdade. Sobre este pano de fundo são projetadas, ainda,reflexões sobre Estado, ética, história, liberdade, autoridade, diálogo e autonomia. Numsegundo passo, é discutida a concepção freiriana de liberdade humana, a qual vem sendohistoricamente negada para a maioria. Aí, tem especial interesse o problema do inacabamentohumano e da conseqüente necessidade de interferir na história para a conquista da liberdade.Finalmente, abordando a questão da autonomia e da intencionalidade educativa, o artigoconclui que Freire busca dar consistência argumentativa à tese a favor da relação entreautoridade, liberdade e autonomia. A autoridade legítima possibilita a instalação de condiçõespara a construção da autonomia séria, competente e comprometida. A autoridade, nestesentido, tem indispensável presença na formação dos educandos para a autonomia.PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da educação. Paulo Freire. Autonomia. Liberdade.Autoridade.

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Este texto foi produzido a partir de umprojeto de investigação sobre a origem do conceitode autoridade, em sua relação com a liberdade,procurando, assim, entender a presença dessadiscussão na biobibliografia de Paulo Freire.Naquele contexto investigativo mais amplo,confirmamos a tese da coexistência da liberdadee da autoridade. Agora, no recorte que representao presente escrito, queremos apresentar umadiscussão que busca desvelar os fundamentosfilosóficos de tal discussão; dito de outro modo,temos como objetivo a discussão das “basesfilosóficas” do pensamento pedagógico de PauloFreire. Nosso texto, portanto, quer ser, eletambém, um exercício filosófico. Mas umexercício de reflexão que nasce profundamenteencarnado, ávido de compreender um espaço desala de aula em processo de formação-investigação com professores em serviço, numprograma de formação inicial. Em síntese,tomamos como ponto de partida nossas própriaspráticas de investigação e formação comprofessores em processos de formação inicial, na

perspectiva de explicitar e discutir a boaargumentação de Freire a favor da formação paraa construção da autonomia e da liberdade; ou, sepreferirmos, é uma “reflexão filosófica” que partede uma experiência singular de “formação deprofessores” e que propõe fundamento para a“formação de professores”, em geral.

Nossa reflexão arranca de duas premissasque tomamos como pontos de referência. Primeiro,com Oliveira (1996) e Rosas (2003), afirmamosque a base filosófica que Freire leva para o mundoda educação e da formação em geral,vigorosamente instala-se com o diálogo em salade aula, sob uma configuração tal que garantecentralidade à intersubjetividade. Ou seja,falamos de quatro momentos: 1) a leitura darealidade mais imediata, objetiva e subjetiva, 2)a exposição do processo e do entendimento demundo das pessoas, em suas compreensões maisíntimas e em suas reflexões mais singulares, 3) asinterações intersubjetivas que se organizam e quedão sentido ao mundo que as pessoas vivem 4) e,por fim, as problematizações que decorrem do

PHILOSOPHY OF EDUCATION IN PAULO FREIRE: SOMETHINKING ON THE PRACTICES OF TEACHERS’ EDUCATION

ABSTRACTThis paper derives from the motivation to understand the classroom processes developedin a special undergraduate course for teachers. The objective of the paper is to show thephilosophical foundations grounded on Paulo Freire’s thought. First, the authors discussthe place of Philosophy in teacher’s education, pinpointing that its task is to think thepresent in search for the truth. In this frame of reference, reflections over ethics, State,history, freedom, authority, dialogue, and autonomy are also advanced. In a second step,Freire’s concept of human freedom, which has been historically denied to the majority ofpeople, is discussed. At this point, the issue of human incompleteness and its consequentnecessity of interfering over history to achieve freedom is the point of most interest.Finally, at the time that the paper deals with problems of autonomy and educationalintentionality, it concludes that Freire seeks to give argumentative consistency to the thesis infavor of the relationship among authority, freedom and autonomy. Genuine authoritygives room to the constitution of the necessary conditions of competent and seriousautonomy, pledged to truth. In this case, the presence of authority is indispensable ineducation for autonomy.KEYWORDS: Philosophy of education. Paulo Freire. Autonomy. Freedom. Authority.

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confronto com o conhecimento elaborado, quandohá sistematização explicitada. Em segundo lugar,é central afirmar que o acordo inicial com o qualtrabalhamos inclui a tarefa de transitar daconsciência mágico-ingênua para a consciênciacrítica, com o propósito central de “lercriticamente a realidade sócio-política-econômicae cultural” (OLIVEIRA, 1996, p. 7) que nos cerca,educadores e educandas/educandos, tomando,para tal tarefa, uma concepção política eepistemológica: “um método ativo, dialogal,crítico e criticizador” (FREIRE, 1978, p. 107).Partindo das reflexões de Buber, Jaspers, Deweye outros, Freire coloca toda a sua filosofia dodiálogo “no contexto dialético de uma teoria doconhecimento. Isto traz à tona os elementos ativosdo conhecimento na construção de modelosmentais, cuja função é aprender os diferentesaspectos da realidade”. Ou seja, algo sempretodos aprendemos com os outros, embora a partirde “hipóteses” diferentes. Assim, o diálogo emFreire é, “um método de investigação pedagógica”(OLIVEIRA, 1996, p. 9). Está na base doimperativo de mudança ou da denominada “teoriada mudança” que encontra-se instalada nafilosofia da educação de Freire.

O LUGAR DA FILOSOFIA EM PROGRAMASDE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Partindo da experiência de reflexão e daconcepção acima anunciada, temos tentadoinstalar, com professores e professoras doPrograma de Formação em Serviço (FaE/UFPel– Pedagogia Séries Iniciais), a reflexão filosófica(CALDERA, 1996, p. 72) como “uma forma deentender e [...] transformar a realidade, a partirda própria exigência vital, do próprio mundo edo próprio tempo”. Este modo de compreendera filosofia coloca a educadores e educadoras umaexigência, “particularmente premente ante aosproblemas da época e às demandas da realidade

que nos exigem [...] ser, mais do que exegetas eglosadores, protagonistas da aventura teórica denosso tempo”. Tal exigência bem capturada foipor Marx (1986, p. 128), ao explicitar ocompromisso revolucionário: “os filósofos selimitaram a interpretar o mundo [...]; o que importaé transformá-lo”.

Nas discussões acerca de práticas peda-gógicas desenvolvidas por educadores emformação inicial, a filosofia ganha a tarefa deimprimir o ritmo da passagem do que há e épensado para o vir-a-ser, advogado por Heráclito(540-470 a.C.), por exemplo, e não para aestabilidade, a favor da qual tanto advogouParmênides (530-460 a.C.). Por isso a filosofia,com Marzá (1993, p. 9), recordando Habermas,tem o encargo de manter desperto “umdeterminado sentido de humanidade”, o quedesautoriza conceitos (quando absolutos) comoo da tradição da “Coruja de Minerva”, da “mãedas ciências” ou de “uma ciência tal que sem aqual o mundo fica tal e qual”. A aludidaconcepção, pois, torna a filosofia tarefadistintamente humana.

Assim, ante a complexidade da naturezahumana e a luta pelo conhecimento do mundo,Freire nos ajuda a não aceitar a tarefa do filósofoatada às convenções conceituais ocidentalizadas,não raro com status de voz da verdade, que pairasobre mortais e demais ciências. Freire quer, tão-só, pensar a educação, produzir ferramentas(fontes dialógicas) e trabalhar para que as leis docoração não se aviltem, colaborando para que omilagre da reciprocidade pela ação coletiva serealize, a cada dia um pouco mais, nos processosformativos.

Pelo dito, com Freire está exposta a tarefada filosofia: pensar o presente, com as referênciasdo passado e ontologicamente convocar humanosa serem o que são, humanos, para não passar avida justificando sua própria incompetência. Paratanto, é central escutar e compactuar com a

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reflexão de Chauí (1990, p. 90) para demarcar ocompromisso da filosofia, na qual comunga Freire:“a Filosofia não é um conjunto de idéias [...] quepossamos aprender automaticamente, não é umpasseio turístico pelas paisagens intelectuais, masuma decisão [...] orientada por um valor: averdade. É o desejo do verdadeiro que move aFilosofia e suscita filosofias”. O questionamentoprincipal (RICOUER, 1975, p. 46), pela filosofiaque consegue “conjugar o poder soberano dedecidir, que é o do Estado, com o poder arbitráriode escolher, que é o princípio próprio de cadaindivíduo”, torna imperativo perguntar pelo “atofundado que engendra ao mesmo tempo acomunidade e a liberdade individual”. ParaRicoeur (1975, p. 52), o sentido do Estado (se éque ele tem algum)

é assegurar a coincidência do querer co-mum e da liberdade subjectiva”,3 reflexãocom a qual são geradas condições paraavaliar concepções filosóficas incapazesde dar sentido à “existência política dohomem: trata-se de filosofias dainterioridade, centradas sobre os aspec-tos puramente psicológicos da escolha(RICOUER, 1975, p. 54-55).

Paralelamente à tarefa da “clarificaçãoconceitual” para indicar percursos filosóficos deFreire, é central retomar a reflexão ética, a qualnão pode, por imperativo mínimo, mistificar adiscussão acerca de relações político-dialéticas.“Ética” é conceito que, progressivamenteapropriado por políticas públicas – e banalizado– perdeu vigor crítico: “reconciliar moral e políticaé [...] reconciliar o homem consigo mesmo, éafirmar que [...] ele pode assumir-se totalidade”(BEAUVOIR, 1967, p. 80). Assim, ética não temo sentido de “caráter individual”, mas de ciênciaque analisa valores4 postos pela sociedade,balizadores de “boas condutas”. É a possibilidadede discussão sobre valor universal ou regional dosprincípios que fundamentam os atos humanos.Desde os valores que dão sustentação à culturaparticular e que têm gerado condições de reflexãouniversal a questão imperativa é (BURKE, 1999,p. 5), “como podemos respeitar os pontos de vistaincongruentes de grupos dominantes edominados?” Citando “valores culturais indianos”,que incluem a queima de mulheres viúvas, o autor,combatendo o valor extremado atribuído aorelativismo cultural, conclui dizendo que “parece

3 Também Hegel entende ser o Estado o momento mais elevado da vida política, justamente porque nele a vontade particular eleva-se àuniversalidade. Dentre as muitas referências a esta questão, encontradas principalmente entre os parágrafos 257 e 261 da Filosofia do Direito,destacamos: “É o Estado a realidade em acto da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal, com osseus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si [nos sistemas da famíliae da sociedade civil] que, em parte, se integram por si mesmos no interesse universal e, em parte, consciente e voluntariamente oreconhecem como seu particular espírito substancial e para ele agem como seu último fim” (1990, §260).4 Valor que [do campo da ética e para quem ainda o admite pela indignação ante negação humana recorrente], juntamente com o conceito dedesigualdade [de condições materiais e simbólicas, de oportunidades, de qualidade de vida], pode ajudar a constituir condições de possibilidadeà produção de critérios e juízos em torno da ação humana, para pensar, por exemplo, a objetivação, expressa ontologicamente pelo trabalho[cujas formas de submissão e exploração estão generalizadas, com acentuada servidão pós-moderna e pós-estruturalista], enquanto transformação danatureza e do homem. Ocorre que a ética encontra-se intensamente virtualizada e a moral encarnada. Apple (1999, p. 15) lembra que “qualquerabordagem que elimine o estético, o pessoal e o ético das nossas actividades como educadores não tem nada a ver com educação. É puro treino”,onde o código de ocultação é a mentira. Convém suspeitar a despeito da refutação aos denominados moralismos: a história da humanidade revelamudanças constantes, produzidas em espaços, tempos e referências diversas. Ora a natureza ditou o critério de compreensão do mundo e daspráticas humanas, ora eram deuses eleitos para balizar juízos de realidade e valor. Objetivando romper com paradigmas medievais [dogmáticos,metafísicos e teológicos], a modernidade enunciou o homem senhor da história, mantendo, pelo paradigma da racionalidade, referênciasepistemológicas, políticas, éticas e ao amor, produzindo rupturas: a moral cristã passa a ser vista como equivocada, levando, por conseqüência,os homens à infelicidade. Criticou a dogmática moral da medievalidade e não abriu mão de referências a partir do que os homens poderiamperguntar-se pelo que faziam ou deviam fazer. Ante o drama vivido na modernidade, não apenas pela onda metafísica, mas pelo vício monológicoda razão que acabou tornando-se instrumento do instituído, leituras pós-modernas trazem para o presente o absurdo da referência. Criticam omoralismo clássico, medievo e metafísico moderno, não admitindo estar negando referências para colocar humanos a questionarem-se adespeito da pertinência dos atos que praticam e das representações e conceitos que constituem. Pela razão-sensibilidade, buscar a consistentecrítica a um histórico passado constitutivo de moralidades parece querer propor o absurdo do fundamento e da referência, o que não passa denovo fundamento [dogmático] e nova referência, insistindo em ser “um momento pós-moralista [em que o sexo foi desregulamentado]”,atrelado a momento “pós-social [tudo privatizou-se em relações de amor, amizade e parentesco] e pós-conflitual [os pobres foram extintos, ariqueza é parte da genética e todos se confraternizam na classe média]” (LEITE NETO, 2000, p. 2).

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que estamos diante de um conflito entre o respeitoàs opiniões éticas de outras culturas e o respeitoà vida humana”. Pelo argumento acima, éprincipal voltar à discussão sobre ética, balizadapelo seu clássico objeto que seria o “estudo dosvalores morais, da relação entre vontade e paixão,vontade e razão; [...] idéias de liberdade,responsabilidade, de dever, de obrigação, etc.”(CHAUÍ, 1990, p. 55). Dialogando com Chauí efazendo Freire falar, é possível concluir que aação ética é virtuosa se for livre, o que só ocorrese for autônoma, do que resultam conflitos entrea autonomia da vontade do agente ético e aheteronomia dos valores postos pela sociedade.A afirmação de Chauí é referência para pensar aconstituição da moralidade na escola, discussãoque em Freire ganha centralidade, ao discutir arelação entre liberdade e autoridade. Observandoa “natureza” racional, livre e responsável dohumano (dimensões que não excluem aafetividade e a sensibilidade, por exemplo),respeitando a racionalidade, liberdade eresponsabilidade dos outros, tornando, assim, asubjetividade ética uma intersubjetividadesocialmente construída.

A dimensão ontológica, evidentemente, estáposta, na configuração do presente, neste trabalho.Mas o ponto de partida desde o qual retomamosFreire é a historicidade do seu diálogo com osconceitos filosóficos, com destaque para a“liberdade, a autoridade, a ética e a autonomia”.A filosofia freiriana revela a condição histórica naqual os humanos estão inseridos – nãodeterminados mas condicionados –, e desde a qualconstroem, nos limites da possibilidade queexperienciam, o jeito que descobrem de ser, a cadadia, mais livres. Só é possível, porém, “navegar”pelas incursões filosóficas de Freire, se tomamos aperspectiva de assumir a necessária condiçãohistórica e social da existência, se reparamos queas circunstâncias tornam muitos desumanos e que,então, a “mão” humana, esperta, “deve” interferir

na formação das pessoas para a solidariedade enão para o individualismo. E navegar é preciso!

Se a tarefa da filosofia liga-se à concei-tuação da realidade, Freire o faz ao definir suasintencionalidades educativas, atribuindo, assim,a tarefa educativa, aos humanos, mortais, comuns,enquanto competência da espécie humana, derelevância defensável. Portanto, é preciso afirmara presença da autoridade no mundo da formação,legitimada não apenas pela superação deautoritarismos e licenciosidades, mas por sua basepolítica e ética, num mundo marcado por graves“desigualdades sociais” econômicas e culturais,bem como por exclusões diversas.

Porém, mesmo diante de aparentescertezas, a reflexão não pode jamais abandonar oquestionamento, a dúvida; é sua tarefa pôr emcrise, criticar: “como conciliar interesses diversos,expressos por pessoas diferentes e singulares queparticipam, num mesmo momento histórico, dedeterminado projeto educativo?”. Como conciliarliberdade individual e projeto coletivo? Enfim,quais as estratégias, as teorias e as categorias quepodem auxiliar na tarefa de compreender econstruir alternativas aos problemas educacionaisque enfrentamos, tendo como pressuposto básicoa gestão democrática e coletiva da tarefa daformação? Mais ainda: como afirmar, do campofilosófico, a ética universal e o respeito aos valorescom os quais os educandos e as educandas, porexemplo, chegam à sala de aula?

Mais complexo ainda é admitir que oshumanos mudam, surpreendem, positiva ounegativamente, conforme o comportamentodesejado – e isto é bom e uma referência semprenecessária. Assim, a filosofia que melhor ajudapráticas de formação inicial de professores não éa “fatalista” – querendo nos fazer crer que nadapodemos –, nem a que “superestima a vontadedo sujeito histórico, individual ou coletivo”, ou aque nega “o papel dos sentimentos, o valor dosvalores éticos” (FREIRE, 2000, p. 94). Na

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perspectiva filosófica, há uma tarefa de“construção da verdade”,5 que une as pessoas,coletivamente ou em comunhão, quando aintersubjetividade ganha centralidade.

A LIBERDADE HUMANA E A PROPOSTADE FREIRE

Considerando o atual momento da históriahumana e, em particular, tomando por basepráticas pedagógicas de professores em formaçãoinicial, ensaiar respostas (sempre provisórias) àproblemática da relação e da coexistência daliberdade e da autoridade, que Freire colocatambém em relação à disciplina, é a tarefa que secoloca. É o que o autor afirma quando da ausênciade disciplina tanto “no imobilismo, na autoridadeindiferente, distante, que entrega à liberdade osdestinos de si mesma”, como “no imobilismo daliberdade, à qual a autoridade impõe sua vontade,suas preferências como sendo as melhores para aliberdade” (FREIRE, 1993, p. 115-116).

É evidente que Freire não nega a vocaçãoontológica dos humanos para a liberdade,entretanto, chama atenção para o processohistórico a partir do qual é possível identificar asua negação sistemática para muitas pessoas. E éassim que a “concepção” e a prática da liberdadevão sendo construídas em Freire: “esta luta nãose justifica apenas em que passem a ter liberdadepara comer, mas ‘liberdade para criar e construir,para admirar e aventurar-se. Tal liberdade requerque o indivíduo seja ativo e responsável, não umescravo nem uma peça bem alimentada damáquina’” (FREIRE, 1982, p. 59-60).

A liberdade é dimensão exclusivamentehumana porque envolve o campo das decisões.A idéia de liberdade só ganha significado quandorelacionada ao homem e à mulher. É no“fenômeno humano” que a liberdade tem sentido,ganha estrutura e é possível identificar a suagênese. O humano constrói referências, torna-seimprevisível, agindo e reagindo na interação comos outros e com o mundo. A dimensão daconsciência da possibilidade da liberdade e da suaausência é fundamental para que os humanospossam refletir a respeito da mesma e da suaprópria história. Isto é, a consciência daspossibilidades e dos limites de dispor de si, comos outros, para a “criação” no mundo em quevive, é condição indispensável para que o serhumano possa agir autonomamente. Essa é adimensão dialética da busca desperta e livre daliberdade, ou seja, “os homens [...] porque sãoconsciência de si e, assim, consciência do mundo,porque são um ‘corpo consciente’, vivem umarelação dialética entre os condicionamentos e sualiberdade” (FREIRE, 1982, p. 105-106).

O mundo humano é essencialmente “tarefacultural”, ou seja, é desafio permanente para areconstrução do já construído e a construção denovos elementos culturais, parte integrante domundo da vida de homens e mulheres emsociedade. É a dimensão e a consciência deinacabamento do humano, mesmo que sejamoslevados a reconhecer determinações econdicionamentos na vida de muitas pessoas. Aação humana livre dá-se quando os humanos agemconscientemente, ou seja, quando “sabem o quefazem e por que fazem o que fazem”, mesmo que

pesquisa metódica e nos acontecimentos históricos, no trabalho diário e na luta política resistam aos meios de conhecimento disponíveis,elas são a verdade [...]. Enquanto ela permanecer necessariamente inacabada e por isso ‘relativa’, é simultaneamente absoluta; pois a correçãoposterior não significa que algo verdadeiro tenha sido antes não-verdadeiro” (HORKHEIMER, 1990, p. 152-153).

5 Pensamos em “construção da verdade” enquanto pretensão permanente “à verdade” tomada como referência-síntese, que fala de coisasque são, que foram e que serão. Com Chauí (1999b, p. 108), entendemos a verdade “frágil e poderosa”: frágil, porque “os poderesestabelecidos podem destruí-la” ou “mudanças teóricas podem substituí-la” e poderosa “porque a exigência do verdadeiro é o que dásentido à existência humana”. Na mesma linha de argumentação, também Horkheimer precisa ser lembrado. No vigoroso ensaio Sobre oproblema da verdade, tomando um ponto de vista histórico-social, Horkheimer logra mostrar como a simultaneidade de relativismo edogmatismo, própria do espírito burguês, é superada pelo pensamento crítico. A “parcialidade” da verdade, que corresponde na luta socialaos interesses de certos grupos, bem como sua “provisoriedade”, a qual supõe uma constante correção ativa, de forma alguma afetam sua“validade objetiva” no contexto histórico em que ela se insere. “Por mais que as experiências adquiridas em observações e conclusões, na

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enfrentando os limites que as relações sociaisimpõem.

Conforme Mounier (1976, p. 109), impor-tante interlocução filosófica de Freire, “a liberdadenão é uma coisa”, mas é existenciada por quem,na condição histórica a que é submetido, podedecidir-se “projeto”, capaz, então, de mudar osrumos da história que vive. Assim, a liberdade éconquista e não manifestação espontânea, damesma forma que a liberdade absoluta ou semlimites ou é “criação ideológica” de forças a-históricas ou é mito. Sem a defesa da liberdadena condição histórica em que ela é desenvolvida,não é razoável e consistente a defesa da liberdadeabstrata. Esta é, sim, referência para a defesadas liberdades cotidianas. Para tanto, éindispensável a construção da linguagem dapossibilidade que “comporta a utopia comosonho possível” e não “o discurso neoliberal,‘pragmático’, segundo o qual devemos nosadequar aos fatos como estão se dando, comose não pudessem dar-se de outra forma, comose não devêssemos lutar, precisamente porquemulheres e homens, para que se dessem de outramaneira” (FREIRE, 1994, p. 90-91).

A liberdade é uma conquista do ser humanoao longo do seu percurso na história. O serhumano aprende a ser livre a cada dia. Nesteprocesso, a educação tem uma tarefa importante:a conquista da liberdade é sua missão permanentee por ela o processo pedagógico legitima-se e temum critério para a sua realização. Mas, teria o serhumano liberdade incondicional ou viveria emdeterminismo absoluto? Na perspectiva da“liberdade incondicional”, o humano poderiaescolher qualquer ação para realizar,independentemente de constrangimentosexternos. Na perspectiva “determinista”, noentanto, o ser humano sofreria constrangimentosinternos e externos e apenas teria a ilusão da“escolha livre”. A perspectiva “dialética” deliberdade pode ajudar a superar o impasse exposto,

ou seja, o ser humano está envolto emdeterminações, mas, enquanto ser consciente,(re)conhecendo a situação de contradições em quese encontra, é capaz de atuar sobre a realidadeque o cerca e operar mudanças. A questão,portanto, resolve-se, como afirma Freire, nocampo da ação humana. Mesmo que se admita atese de que o ser humano é ontologicamente tantovocacionado como apto à liberdade, a produçãoda vida pautada pela liberdade é tarefa deconstrução cotidiana.

AUTONOMIA E INTENCIONALIDADEEDUCATIVA EM FREIRE

O que dá sustentação ética à defesa danecessária presença da “autoridade” em processosde formação humana ou em “intencionalidadeseducativas” é, além da construção e garantia daliberdade, a autonomia do ser humano. Freire nãose detém no desenvolvimento de um conceito de“autonomia anterior” ao que a experiênciarefletida possibilita. A sua reflexão está presentenas incursões que vai fazendo a respeito de“saberes necessários à prática educativa”(FREIRE, 1997). Mais ainda, Freire intitulaPedagogia da Autonomia a uma de suasúltimas obras, refletindo exaustivamente temascomo “autoridade”, “liberdade”, “competência”e “ética”. O que leva Freire a apresentar, assim,a sua reflexão sobre autonomia? É a própriacompreensão de autonomia que o faz seguir ocaminho da discussão sobre ética e sua relaçãocom competência e com autoridade. O fim daexclusão do ser humano e a conseqüente inclusãonos processos sociais de construção da vida, emespecial o respeito à dimensão humana doeducando, conforme Freire, passam pelaconstrução da “autonomia”. Para tanto há quese criticar (no sentido original de “pôr em crise”)permanentemente “à malvadez neoliberal, aocinismo da ideologia fatalista e sua recusa inflexível

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ao sonho e à utopia” (FREIRE, 1997, p. 15), pois,de outra forma, não se justifica a preocupação com“autonomia”, porque a história já estaria definidaou pré-determinada. A construção de referenciaispara pensar a “autonomia” depende, também, doreconheci-mento de que somos condicionados, masnão determinados. É assim exposta a possibilidadeda construção da história. Ou seja, a autonomiarealiza-se, historicamente, no saber-se limitado,programado ou inacabado, mas esperançoso de quetodo o homem e toda a mulher possam assumir asua história, ou seja: “nós somos seresindiscutivelmente programados mas, de modonenhum, determinados. Somos programadossobretudo para aprender ...É precisamente porquenos tornamos capazes de inventar nossa existência”(FREIRE, 1993, p. 126). E Freire continua dizendoque “não apenas temos sido inacabados, mas nostornamos capazes de nos saber inacabados. Aí seabre para nós a possibilidade de inserção numabusca permanente. [...] Minha esperança parte deminha natureza enquanto projeto. Por isso souesperançoso, e não por pura teimosia” (FREIRE,1995, p. 75). O respeito devido à “autonomia” deser do educando é um dos saberes necessários àprática educativa, dimensão esta radicalmenteantropológica, pois não é possível pensá-la semadmitir “a inconclusão do ser que se sabeinconcluso”.

Freire (1997, p. 65) reflete sobre o tema“Ensinar exige respeito à autonomia do sereducando”, expondo, com destaque, a coerênciaque é exigida para quem busca e defende a“autonomia” do educando.

Saber que devo respeito à autonomia, àdignidade e à identidade do educandoe, na prática, procurar a coerência comeste saber, me leva inapelavelmente à cri-ação de algumas virtudes ou qualidadessem as quais aquele saber vira inautêntico,palavreado vazio e vontade arrogante domestre (FREIRE, 1997, p. 69).

Para o educador que sabe que deve respeitara dignidade do educando, a sua “autonomia” e asua identidade no processo formativo, Freireaponta a exigência de “realização” e não de“negação” deste conhecimento, o que demandareflexões permanentes sobre a prática educativa.A avaliação permanente do processo, para oautor, é fundamental. Freire não separa a reflexãosobre “autonomia”, identidade e dignidade doeducando. Esta reflexão conjunta exige umqualificado esforço do educador no sentido dediminuir, cada vez mais, a distância entre o que édito e o que é feito.

Partindo da tese de que a “liberdade semlimite é tão negada quanto a liberdade asfixiadaou castrada”, Freire defende a possibilidade daconstrução da “autonomia”. Autonomia essaque, além de histórica, constrói-se nacriatividade e na tensa relação entre liberdade eautoridade. Ou seja, é decidindo, com os outros,que se aprende a decidir, num mundo repleto de“autoritarismos e licenciosidades”. A singularliberdade de cada um cresce no confronto comoutras liberdades, com outras opções, com asdiferenças. A história, repleta de “perversãosocial e de exclusão”, exige que se construam“elos de encontro” na busca desperta e utópicade relações sociais dignas para todos (MARTINS,1996). Portanto, em Freire, liberdade, autoridadee “autonomia” são construções inseparáveis. Naprática docente de professores em formaçãoinicial, tal compreensão garante um processoeducativo não descolado do mundo da vida e,por isso, comprometido com a construção deuma história a cada dia mais solidária e maishumana, como um ato também solidário deintervenção no mundo. Freire é extremamenteexigente com a coerência pedagógica, ética,humana e social dos educadores: “não há nadatalvez que desgaste mais um professor que sediz progressista do que sua prática racista, porexemplo” (FREIRE, 1997, p. 123).

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Os seres humanos vivem permanen-temente em tensão entre o reino da necessidadee o reino da liberdade, conforme se podedepreender da “tradição” da produção filosófica.A dimensão humana, reino de necessidades, nãoestá posta, como em algumas teorias clássicas oupós-modernas, independentemente da liberdade.O ser humano, mesmo que se admita serfundamentalmente sujeito de sua própria história,é condicionado em sua situação de liberdade pelascircunstâncias em que vive. A busca daautonomia está, em Freire, diretamenterelacionada à condição de possibilidade derealização tanto da necessidade como daliberdade, dimensões, respectivamente, históricae ontológica, constituidoras do humano. Maisainda, o humano, em Freire, não é um ser pré-existente ou desde sempre constituído, masconstrói-se na medida mesma da construçãohistórico-social que vai realizando. A construçãohistórica de que o humano é capaz interfere naformação de si, na transformação dos objetos comos quais interage e, da mesma forma, age sobreos outros. Assim, o ponto de partida para aconstrução da autonomia do ser humano, e doeducando em particular, são os próprios sujeitosenvolvidos, o seu mundo, a sua cultura, arepresentação que fazem de si, da história e dosoutros. Freire acentua, neste particular, adimensão política e a formação da subjetividadeatravés das reflexões sobre consciência econscientização. A questão da condição depossibilidade para a construção da autonomia e,conseqüentemente, da relação entre liberdade eautoridade interferidora na formação moral dohumano, claramente está presente em Freire.

É de fundamental importância acompreensão do mundo complexo das relaçõesde poder. O oprimido também é opressor e nãoapenas potencialmente um ser que carrega consigoa opressão. No cotidiano das relações queexperiencia, o oprimido oprime familiares,

vizinhança, colegas de trabalho, de escola etc.Esse conceito freiriano não está ultrapassado nempela história que homens e mulheres continuamfazendo e nem pelo próprio Freire, visto que, emseus últimos escritos (1977 e 2000), fala danecessidade do diálogo permanente. Diálogo quepode ajudar a superar o autoritarismo e que éindicador de uma relação que ultrapassa a própria“atitude licenciosa” e a tendência à “opressão”.É a sempre presente vigilância que todos devemosnos colocar como tarefa. A autonomia é fruto dasuperação das condições de submissão que viveo humano. A importância da atuação coletiva, doencontro com os outros para atuar na construçãode relações mais humanas, é fundamental paraFreire e para o projeto de produção da autonomia.É “o encontro”, a ação coletiva e a criação daidentidade dos que lutam por vida digna quepossibilita, não só o encontro com o outro, mas aprópria ação transformadora. Isto só ocorre quandoas pessoas forem capazes de ações autônomas, istoé, com consciência crítica e criadora. Freire falade proposta organizada, competente, diretiva, massolidária, em que o processo de construção doconhecimento e de luta por vida melhor é realizadoem “comunhão com o outro, através do diálogo”,relação em que os sujeitos envolvidos podemtornar-se autônomos.

A consciência do inacabamento em Freireé dimensão indispensável ao processo deconstrução da autonomia. Isso porque taldimensão permite ao humano inserir-se numprocesso de “fazer e refazer” a história, processodesafiador, capaz de provocar a necessária“tomada” (mudança) “de atitude” diante domundo em que está inserido.

Concluindo, Freire busca, em sua obra, darconsistência argumentativa à tese a favor da relaçãoentre autoridade, liberdade e “autonomia”. Aautoridade legítima possibilita a instalação decondições para a construção da “autonomia” séria,competente e comprometida. A autoridade, neste

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sentido, tem indispensável presença na formaçãodos educandos para a autonomia. Conformedefende Freire, a autoridade pode ser presençanegativa, isto é, presença que inibe a buscainquieta do educando,que nega a possibilidade dacuriosidade “epistemologicamente humana”.Essa mesma autoridade, entretanto, pode serpresença desafiadora, criadora e ética, capaz deproduzir formação comprometida com a

construção de uma vida humanamente digna paratodos. A “autonomia” é construída, na formaçãoescolarizada, frente à capacidade que o educadortem de atuar com segurança, com competênciaprofissional e com generosidade. Esse é opressuposto para o exercício da autoridadelibertadora ou a serviço da formação para aliberdade.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 3 p. 19-32 2005

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Filosofia e História na rede pública estadualdo Rio Grande do Sul – RS.

APROXIMAÇÕES SOBRE HERMENÊUTICA E EDUCAÇÃO

Jose Bolzan1

Hermenêutica é a análise interpretativa das expressõeslingüísticas no sentido de desocultar o significado, interpretar

e compreender a força expressiva colocada na palavra.(Ernildo Stein).

RESUMOPartindo de uma abordagem originária e evolutiva da hermenêutica, o presente artigotem como escopo oportunizar aos leitores uma aproximação reflexiva sobre a experiênciahermenêutica, conceito em torno do qual se estrutura a obra Verdade e Método deHans-Georg Gadamer. A experiência, enquanto expressão reveladora da finitude humana,é tematizada na fundamentação dialética do ato de perguntar. A linguagem, como mediumuniversal que possibilita a aprendizagem do mundo, permite que a educação se articulevia processo comunicativo-dialógico, possibilitando que cada um possa dizer o mundodo seu jeito.PALAVRAS-CHAVE: Hermenêutica. Experiência. Linguagem. Perguntar. Educação.

THE APPROXIMATIONS ABOUT HERMENEUTICS AND EDUCATION

ABSTRACTStarting from an original and evolutive approach of the term hermetic, this paper hasthe objective of providing the readers with a reflexive closeness about the hermeticexperience, whose concept the masterpiece Verdade e Método, of Hans-GeorgGadamer, is all about. This experience, as a revealing expression of human limitation, isthemed in the dialectical foundation of questioning. Language, as a universal means oflearning the world, allows for the articulations of the communicative process so each oneof us can see the world in our own way.KEYWORDS: Hermeneutics. Experience. Language. Education.

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INTRODUÇÃO

A hermenêutica é a arte da interpretação.Ela representa o esforço da razão no sentido derecolocar a temática da incompletude humana noseu devido lugar. Neste sentido, grandes foramos esforços, principalmente, de Heidegger eGadamer, entre outros, no sentido de possibilitara compreensão do complexo mundo humano. Aredescoberta da historicidade como categoriafundante da natureza humana permite a revelaçãodo ser a partir da sua finitude. Nesta perspectiva,a hermenêutica desponta como uma reformulaçãoda razão crítica que permite conhecer o mundopor um caminho diferenciado ao do métodocientífico. Para tanto, oportunizamos inici-almente, para os não familiarizados com o tema,uma breve abordagem histórico-etimológica daracionalidade hermenêutica, procurando mostrara sua relevância no processo crítico deredescoberta da finitude humana no contextológico-analítico. Analisando a estruturasistemática da obra de Gadamer, realçamosalgumas das preocupações da publicação, bemcomo as grandes linhas estruturais do livro. Naseqüência, trazemos à discussão a questão daexperiência hermenêutica, mostrando comoGadamer a articula no seu pensar. A efetivaçãoda experiência, entretanto, engendra-se no ato deperguntar como caminho imprescindível para oconhecimento. Perguntar é colocar no aberto operguntado e ao mesmo tempo abrir apossibilidade de desvelamento do ser. Nestesentido, a pergunta funda o ato dialético deconhecer. Este, por sua vez, é articulado epossibilitado na estrutura comunicativa dalinguagem como o medium universal que permitea realização da compreensão. A linguagem é oresultado do empenho dialógico-dialético da razãoa qual possibilita a instauração do sentido pelaarticulação da experiência. Enfim, numaaproximação produtiva entre hermenêutica e

educação, podemos dizer que somos, em parte, oresultado dos movimentos culturais e dosprocessos históricos. Para Gadamer, educar éeducar-se no processo dialógico-comunicativoque sempre somos. A educação funda o processode reinvenção do humano, possibilitando que cadaum possa dizer o mundo a partir das própriasconvicções.

APORTES ETIMOLÓGICOS

O termo hermenêutica tem sua origem novocábulo hermeneia e designa a arte de‘interpretar’. A significação etimológica vemassociada a vários outros sinônimos, ou sentidosafins, como: esclarecer, declarar, anunciar,proclamar, ou ainda traduzir. Esta multiplicidadede acepções gira em torno de um único efundamental sentido, qual seja, tornar algocompreensível, fazer compreender, levar àcompreensão algo por meio de palavras, ou ainda,transportar o sentido conservando o significadode uma expressão vocabular para outra língua.

O surgimento da hermenêutica articula-seno contexto religioso grego com o sentido deproclamar ou anunciar. Está vinculada a Hermes,o deus-mensageiro alado da mitologia grega, oqual encarregava-se da tradução dos oráculos(resposta dos deuses). Como mensageiro dosentido, deveria tornar a mensagem divinacompreensível para o mundo humano. Por issolhe são atribuídas a invenção e a difusão da escritae da linguagem.

Segundo Palmer (1989), a hermenêutica foiamplamente utilizada no âmbito da teologia cristãcomo recurso para traduzir a Revelação. Comocomentário aos textos bíblicos é um recursoparalelo à exegese, oportunizando a interpretaçãoda Bíblia enquanto anúncio, tradução ecomentário.

Na acepção que vigora atualmente, ahermenêutica é resultado do grande processo

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transformador ocorrido na modernidade. Noséculo XIX com Schleiermacher (1768-1834) eDilthey (1833-1911), ambos ligados à EscolaHistórica alemã, toma forma uma hermenêuticade cunho filosófico, cujos esforços seconcentraram na elaboração de uma “tecnologia”que pudesse servir de modelo no processo deinterpretação, a exemplo do paradigma científico.

Na seqüência, Martin Heidegger (1889-1976), empreende um hercúleo esforço desistematização da racionalidade hermenêutica,elevando-a à categoria de “fenomenologia dodasein e da compreensão existencial”. Assim, arazão hermenêutica assume o caráter de“explicação fenomenológica da própria existênciahumana. [...] a compreensão e a interpretação sãomodos fundantes da existência humana”(PALMER, 1989, p. 51). Essas estruturas dacompreensão heideggeriana são denominadasexistenciais, ou seja, estruturas do poder ser, oucategorias pelas quais o homem se constitui e,portanto, pode ser compreendido. O acesso aohumano articula-se através dos existenciais, comocódigo fundamental, pelos quais é permitidocompreender e explicitar as possibilidadeshumanas.

Hans-Georg Gadamer, (1900-2002),radicaliza a questão da finitude humana na suahistoricidade. Stein, analisando a obra deGadamer (1986, p. 36), entende que “[a únicapossibilidade de se aproximar da questão dohomem situa-se na comunicação dos homensentre si. Esta é possível, diz-nos a experiência”.A experiência da linguagem, que é comunicação,oportuniza o encontro dialógico com o ser,consigo mesmo e com o outro. Neste sentido,segundo a interpretação de Palmer (1989, p. 52),“a hermenêutica é um encontro com o ser atravésda linguagem”. Portanto, é em torno da linguagemque Gadamer radica e articula a possibilidade doentendimento humano. A linguagem é oprincípio de racionalidade, através do qual se

permite ao homem pensar o todo. É o medium noqual se funda e sustenta todo o conhecimento. Oacesso ao objeto se dá via sentido, via significado,permitindo que o saber aconteça mediado pelalinguagem. Por isso, a famosa frase de Gadamer(1999, p. 687), “Ser que pode ser compreendidoé linguagem”, com a qual pretende sintetizar oseu pensamento.

Entretanto, além da hermenêutica decunho filosófico, que acabamos de mencionar,existem outras formas de aplicação doquestionamento hermenêutico, que sãoreconhecidamente produtivas quando aplicadasno campo das ciências humanas, tais como: najurisprudência, na história, na filologia, na teologiae na literatura. Cada uma destas áreas deconhecimento, a seu modo, oportunizam umaabordagem particular ao problema central dainterpretação, seja analisando a representação depontos de vista, seja esclarecendo aspectosdiferentes, seja especialmente na questão dainterpretação de textos.

Enfim, a hermenêutica, enquanto modeloalternativo de racionalidade, permite um olharcrítico revitalizador sobre o paradigma científico.Com isso, abre a possibilidade de uma interpretaçãoque não considera a individualidade objetivamenteisolada, mas oportuniza a valorização do caráterhistórico-cultural que, de modo inconsciente,carregamos às costas. A ciência precisa reconhecero papel da hermenêutica no processo de construçãoe reconstrução do conhecimento, bem como suatarefa de reaproximar os múltiplos horizontes domundo da vida com o saber científico, para torná-lo mais fecundo. O saber não tematizadooportuniza uma visão diferenciada de ciência que“no nascente paradigma pós-moderno [...] passa ahabitar novamente o mundo dos homens,imperfeitos, incompletos e errantes” (COSTA,1994, p. 42). Portanto, a hermenêutica tem apretensão de explicitar os muitos âmbitos veladosdo saber.

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SOBRE – VERDADE E MÉTODO

O livro intitulado Verdade e Método éconsiderado a mais importante e completapublicação de Hans-Georg Gadamer, no qualexpõe, de forma sistemática, o núcleo duro doseu pensamento. Publicado em 1960, faz umaexaustiva crítica sobre a histórica evolução dahermenêutica. O livro oportunizou uma espéciede síntese, como quase sempre ocorre com osgrandes pensadores, que permitiu conectarinvestigações paralelas e fragmentárias sobre ahermenêutica de então. Nela assumeradicalmente a historicidade da racionalidadeexpressa na idéia da finitude, procurandodemonstrar que o conhecimento acontece sempremediado por “prejuízos”, isto é, por condiçõeshistóricas e lingüísticas.

O título Verdade e Método justifica-se,segundo Stein,

[. . .] porque na tradição lógico-semântica, toda a verdade está ligadaao método – o método dedutivo eindutivo, fundamentalmente. [...] tentamostrar, nas três partes do livro, queexistem, no nível da experiência da arte,no nível do conhecimento histórico eno nível da linguagem, três verdadesque não são verdades produzidas pelométodo lógico-analítico. Portanto, aonível da arte, ao nível da história e aonível da linguagem, temos um tipo deexperiência que produz uma verdadeque não é de caráter lógico-semântico(STEIN, 1996, p. 44).

Portanto, a idéia da obra, em seu pano defundo, pretende mostrar que a verdade é umacontecer mediado pela historicidade e pelalinguagem, questionando de forma contundentea reivindicação de exclusividade, neutralidade ecerteza do método experimental. Com isso,Gadamer aponta para outras formas deexperiência que não se esgotam na subjetividade

transcendental do método lógico-analítico,direcionando sua crítica ao chamado processo de‘distanciamento alienante’ provocado pelaobjetividade da ciência moderna.

A compreensão exige uma fusão dehorizontes em que intérprete e texto vão semodificando durante a interpretação. Na verdade,a hermenêutica envereda para uma releitura domundo, guiada pelo intérprete, que tem diante desi infinitos panos de fundo, tanto do texto quantode si próprio. Esta releitura e reconstrução nuncaé definitiva e nem a verdade reina absoluta einconcussa. É a relativização das interpretaçõesonde passa a valer também o ponto de vista dointérprete, o qual não consegue permanecer imune(sem envolvimento) ao processo.

A hermenêutica, ao contrário do métodocientífico, abre-se para o acolhimento do outroenquanto diversidade e ao mesmo tempoaproxima-se mais da vida, que não se repete nooutro da mesma forma. A hermenêutica critica aconcepção metódica da objetividade científicaoportunizando, em contrapartida, uma noção de“sentido objetivo”.

O que é compreendido na compre-ensão, é verdade, a qual ultrapassa aesfera do conhecimento metódico;como, por exemplo, na experiência deum tu, da arte, da tradição humanística.É por isso que o título de sua obraVerdade e Método deve ser lido comcuidado; talvez primeiramente comocontraposição de verdade e método.Mas Gadamer não quer apresentar paraessas áreas uma tecnologia dacompreensão, portanto, não querconstruir um método da compreensão(STEIN, 1986, p. 37-38).

Gadamer não está preocupado emconstruir uma tecnologia da compreensão paraexplicação ou interpretação de textos. Com isso,foge do cerco de Schleiermacher e Dilthey quequeriam, a exemplo das ciências, encerrar a

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interpretação em um método definitivo parainterpretações definitivas. A tarefa de encontrarum método “não é possível nem desejável”(HOLLIDAY, 1990, p. 111). Seu intuito era, comisso, superar as limitações que um provávelmétodo viria a impor no trabalho dahermenêutica.

Portanto, a crítica refere-se à não aceitaçãoingênua das imposições da ciência e da cultura,mas através delas identificar e restabelecer o eloda historicidade que as fundamenta e justifica. Apartir disso, o horizonte da compreensão da razãohermenêutica se abre, dando margem àinterpretação. Aliás, é do caráter hermenêutico aconcepção de abertura de horizontes que sefundem infinitamente.

A obra prima de Gadamer foi, como vimos,propositadamente dividida em três grandes blocos.A primeira trata da análise da obra de arte, a qualvem caracterizada pelo subtítulo: “A liberação daquestão da verdade desde a experiência da arte”.Nela o autor procura mostrar que a experiênciaestética proporciona uma abertura de horizontesque permitem compreender a verdade a partir dosimplesmente dado, do não dito. Na segundaparte, que trata da “Extensão da questão daverdade à compreensão nas ciências do espírito”,empreende uma exaustiva e minuciosa análise,através da qual

[...] critica o entendimento da consciênciahistórica como fixação do passado,como algo que paire acima de nósmesmos, porque, ao contrário dequalquer imobilidade, a história é semprecompreendida em referência ao presente(HERMANN, 2002, p. 42).

Na última parte, Gadamer expõe a “Viradaontológica da hermenêutica no fio condutor dalinguagem”. A oportuna e profunda análise sobrea linguagem permite pontuar sua centralidade esignificado no processo de compreensão.

Assim, resumindo, com o conteúdo e aspretensões de Verdade e Método:

Gadamer realiza a superação da filosofiada subjetividade, vinculando o sujeito quecompreende a historicidade. A crítica àconsciência estética e à consciênciahistórica conduz ao abandono da idéiade objetividade e do fundamentocartesiano da ciência moderna, paradeixar revelar a verdade na linguagem(HERMANN, 2002, p. 43).

A EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA

O complexo conjunto temático deVerdade e Método não se limita apenas a umaexposição e comentários reflexivos sobre afilosofia de Martin Heidegger. Com sua minuciosaabordagem de cada tema, Gadamer oportunizauma reelaboração da hermenêutica filosófica apartir da experiência enquanto revelação dafinitude no horizonte da historicidade. Portanto,apoia-se na filosofia de Heidegger, mas nem porisso acompanha o seu ideário filosófico do inícioao fim. Segundo Stein, Gadamer,

[...] parte de uma situação circunstancialda nossa época em que percebe umaespécie de ponto cego, uma espécie deelemento de estrangulamento das ciênciashumanas, das ciências do espírito e vê anecessidade de tomar esse elementocomo ponto fundamental de suareflexão. É claro que na hermenêuticafilosófica de Gadamer aparece a temáticada finitude, a temática da historicidade.Mas o conceito central de Verdade eMétodo é a expressão “experiência”. Oproblema da experiência é desenvolvidode várias maneiras, mas sempre dandoao conceito de experiência umaamplitude que substitui de certo modoaquilo que no universo lógico-semânticose chamaria o processo dedutivo. A“experiência” é justamente a expressãocom que Gadamer procura nos sugerir

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que temos uma possibilidade derepresentação ou de descrição de umatotalidade e essa totalidade é totalidadeda experiência de mundo. Há, portanto,um universo fundamental do serhumano que pode ser descrito por essaexperiência (GADAMER, 1996, p. 69-70).

O ponto central, em torno do qual searticula a trama de temas de Verdade e Método,é o conceito de experiência, porque Gadamerpercebe que a ciência é absolutamente surda aosapelos da historicidade. O aparato metodológicoda experiência lógico-analítica opera com outrascategorias, as quais visam neutralizar e isolar oexperimento de qualquer antecedente histórico.Como a ciência moderna se articula em torno daobjetividade e neutralidade do experimento, adimensão da subjetividade histórica não pode terrelevância no processo de produção doconhecimento. Assim, para a ciência,

Uma experiência só é válida, na medidaem que se confirma; nesse sentido, suadignidade repousa na sua reproduti-vidade principal. Mas isso significa que,por sua própria essência, a experiênciasuspende em si mesma sua própriahistória e a extingue (GADAMER, 1999,p. 513).

É da análise crítica da dialética hegelianaque Gadamer vai reter o conceito de historicidadeenquanto fundamento para a elaboração etratamento do conceito de experiência herme-nêutica. Neste sentido, um conceito histórico edialético de experiência deve ser proposto emoposição ao conceito de experiência obtido pelarepetição e verificabilidade do método lógico-analítico. A dialética da experiência resulta,segundo Gadamer (1999, p. 525), não num saberconcludente, como pretende o saber daexperiência científica, mas essencialmente na“abertura à experiência que é posta emfuncionamento pela própria experiência”. Com

isso, Gadamer recoloca a experiência na essênciahistórica do homem. E, por isso, a experiênciahumana é a experiência dos limites, a percepçãoconsciente e radical da finitude.

É experimentado, no autêntico sentidoda palavra, aquele que é consciente destalimitação, aquele que sabe que não ésenhor do tempo e nem do futuro. [...]A verdadeira experiência, portanto, éaquela que nos ensina a reconhecer o queé real. Conhecer o que é vem a ser, pois,o autêntico resultado de toda experiênciae de todo querer saber em geral. [...] Averdadeira experiência é aquela na qualo homem se torna consciente de suafinitude. [...] é, assim, a experiência daprópria historicidade (GADAMER, 1999,p. 527-528).

A experiência hermenêutica implica,fundamentalmente, na abertura acolhedora ereconhecimento do outro como “fim em simesmo”, como alguém capaz de ser portador deverdade.

Se não existe esta mútua abertura,tampouco existe verdadeiro vínculohumano. Pertencer-se uns aos outrosquer dizer sempre e ao mesmo tempopoder-ouvir-se-uns-aos-outros. Quandodois se compreendem, isto não querdizer que um “compreenda” o outro,isto é, que o olhe de cima para baixo. Eigualmente, “escutar o outro” nãosignifica simplesmente realizar às cegaso que o outro quer. [...] A abertura parao outro implica, pois, o reconhecimentode que devo estar disposto a deixar valerem mim algo contra mim, ainda que nãohaja nenhum outro que o vá fazer valercontra mim (GADAMER, 1999, p. 532).

Essa dimensão da abertura, do sair aoencontro do outro e acolhê-lo como alteridade,implica também “abertura à tradição que possuia consciência da história efeitual” (GADAMER,1999, p. 532), significando o fato de estarmos

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conscientes de que somos, permanentemente,determinados pelos fatos históricos, os quais, noentendimento de Stein, podem tanto limitarquanto, se explicitados, servir como impulso aodesenvolvimento da compreensão. Assim,colocada como o problema central onde ahermenêutica se estriba,

A consciência da história efetual faz comque o sujeito perca a soberania do pro-cesso compreensivo [...] de modo que acompreensão seja uma conversação. Averdade é uma abertura de sentido, queocorre na aplicação da história efetual(HERMANN, 2002, p. 57).

Gadamer quer resgatar o “preconceito”como parte essencial do processo de interpre-tação. Reconhece a historicidade como pano defundo que dá sustentação ao conhecimento.Denomina “prejuízo” ao efeito da tradição,fazendo um inventário detalhado de como oiluminismo deturpou o significado do termo,deixando escapar o seu verdadeiro sentido, a talponto que hoje, no seu uso corrente, predominao aspecto pejorativo.

Portanto, para Gadamer, a experiência,como via de acesso e fonte de todo oconhecimento, permite revelar ao homem, naabertura de sentido que proporciona, a consciênciada sua finitude enquanto envolvido e determi-nado pela trama da história. A experiência, aomesmo tempo em que revela, abre o mundo paraser conhecido; também o vela. É nessemovimento dialético entre o velar e o revelar quese engendram e se fazem explicitar os limites dohumano.

O PERGUNTAR HERMENÊUTICO

Na tentativa de compreender o fenômenohermenêutico do conhecimento, Gadamerexplora em profundidade a dialética da pergunta

e da resposta. A experiência, fonte do saber, éfruto do perguntar e, portanto, já o pressupõeantecipadamente, se for um perguntar autêntico.A abertura, que é própria da essência daexperiência, tem nela a estrutura do perguntar.Portanto, a experiência e o ato de perguntar seconsumam numa e mesma atividade, porquevisam um saber que ainda não foi explicitado.Assim, tal como a experiência, o perguntar sefunda na negatividade radical do saber que nãose sabe. Nas análises que Gadamer faz paraaprofundar-se sobre a essência do ato deperguntar, portanto, recua até a “doctaignorância” socrática, a qual sintetiza, de formamagistral, a mencionada aporia do não saber e dosaber.

Contudo, toda pergunta precisa ter umsentido de orientação, isto é, precisa ser colocadanuma determinada perspectiva. Esta perspectivase funda, basicamente, no não saber e no fato dedesejar saber. Portanto, o ato de perguntar éprenhe de negatividade, do saber que não se sabe,do ter consciência da ignorância, o que, por suavez, vinha explícito no objetivo de Sócrates.Ignorar e saber estão imbricados na estrutura dapergunta que, ao ser efetivada, produz umaespécie de rompimento, ruptura da coisa para aqual a pergunta está direcionada, colocando-a “noaberto”. Na estrutura da pergunta está pressupostoum saber implícito, ou seja, a consciência do nãosaber e o não saber efetivo que irrompe atravésda indagação.

Por isso, todo o saber se articula através dapergunta, a qual tem a função de colocar “noaberto” o perguntado em sua questionabilidade.Vimos, então, que o perguntar vive danegatividade e da abertura. Em que consiste,todavia, esta abertura que possibilita orompimento da coisa no ato de perguntar? Aabertura colocada pela pergunta consiste,basicamente, em que, no perguntado, a respostanunca está definitivamente dada. Ela o põe em

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suspenso. Portanto, perguntar é colocar operguntado “no aberto”, é postar “no aberto”.“Ele tem de ser colocado em suspenso de maneiraque se equilibrem o pró e o contra” (GADAMER,1999, p. 535). Isso nos dá a entender que noperguntar hermenêutico a resposta nunca écompleta, mas condição fundamental pararecolocar, sempre de novo, a pergunta. Uma vezcolocada a pergunta,ela permanece como queguardiã permanente dessa abertura. O colocar “noaberto” permite revelar o sentido da coisa para aqual a pergunta está orientada. É neste jogo dorevelar-velar que a abertura adquire significado,porque produz um novo saber. Neste sentido, paraGadamer (1999, p. 535),

a abertura do perguntado consiste emque não está fixada a resposta. Operguntado tem de pairar no ar frente aqualquer sentença constatadora edecisória. O sentido do perguntarconsiste em colocar em aberto operguntado em sua questionabilidade.

Portanto, a abertura que a verdadeirapergunta na sua autenticidade proporcionapermite colocar em suspenso o perguntado na suaquestionabilidade, ou seja, na sua possibilidadede ser sempre recolocada a pergunta pelodesvelamento, sempre incompleto, do seu ser, detal maneira que se depurem os prós e os contras.Segundo Hermann (2002), a formulação dapergunta implica o jogo dialético entre abertura elimitação. A abertura, no entanto, encontra seuslimites nos pressupostos que a sustentamenquanto horizonte onde se situa e para onde estáorientada a pergunta.

Perguntar é o caminho imprescindível parase aprender. Quem pergunta é porque tem dúvida.Alguém que duvida sente-se inseguro. Ainsegurança é a filha dileta do não saber. Ela serevela na pergunta, refletindo nosso desejo deencontrar bases sólidas e confiáveis para apoiar

nossas opiniões, desejos, anseios, projetos,aspirações, etc. Por isso, a pergunta é reveladorada incerteza, do fato de nos encontrarmos emterreno movediço. O perguntar põe em suspensoos fundamentos nos quais apoiamos nossasconvicções. O não saber, expresso implicitamentena pergunta, revela, previamente, uma parcial eincompleta compreensão sobre o que está sendoperguntado. Aliás, é no perguntar e em torno deleque se funda todo o aprendizado. Quem nãopergunta é porque, muitas vezes, não se senteprovocado. Alguém que não se sente provocado,incomodado, cutucado, não responde porque nãoprecisa dar respostas. É possível viver semrespostas? E sem perguntas? Toda a perguntaimplica uma resposta, que, em geral, dá margema uma nova pergunta. Não existe o perguntar porperguntar, ou um perguntar sem interesse, semsentido de orientação. O homem além deperguntar pelo mundo, por si mesmo, pelanatureza, é capaz de retroceder ainda mais,perguntar pelo perguntar, ou seja, indagar pelosentido e importância do ato de perguntar.Portanto, é em torno do perguntar que se articulae fundamenta todo o conhecimento humano.

A pergunta se articula, ou seja, é formulada,a partir da curiosidade. Quem pergunta é porquenão sabe e precisa, deseja, quer, pretende saber.Portanto, saber e pergunta se complementamintrincavelmente. Não há possibilidade de sabersem perguntar, e, por outro lado, não há umperguntar sem um mínimo de conhecimentoprévio. Aquele que pergunta já vislumbrou algo,já percebeu, ainda que parcialmente, de formaobscura e sem a devida clarividência, osignificado daquilo pelo qual dirige a pergunta.O perguntar origina-se do empenho, do esforçohumano, na busca de uma fundamentação últimaprimeira, em busca do porquê, ou seja, quer umafundamentação causal, justificada racionalmente,para o mundo e as coisas que nele se apresentamde modo fenomênico.

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Mas, se a experiência e o perguntarinstauram-se como condição fundamental para oconhecimento, exercendo, por isso, sua primazia,uma vez que elas se sustentam na dialética dosim e do não, em que consiste o saber? Qual oconceito do saber para o qual se dirige o perguntarhermenêutico? Segundo Gadamer (1999, p. 538),o saber que se engendra a partir do perguntarhermenêutico significa “entrar ao mesmo tempono contrário”, isto é, naquilo que não é. Portanto,“o saber é fundamentalmente dialético. Somentepode possuir algum saber aquele que temperguntas, mas as perguntas compreendemsempre a oposição do sim e do não, do assim e dodiverso”. Todavia, na dialética do saber deveconstar, necessariamente, a oposição, aconsideração do contrário. Com isso, Gadamerpretende demonstrar o limite da idéia de métodopara o saber hermenêutico, baseado nopressuposto de que não há método que ensine aperguntar, mas que tudo depende de que se saibaque não se sabe, ou seja, da consciência daignorância. Por isso,

todo o perguntar e todo o querer saberpressupõe um saber que não se sabe,mas de maneira tal que é um não saberdeterminado que conduz a umapergunta determinada” (GADAMER,1999, p. 539).

Portanto, a dialética da pergunta e da respostaé a arte de buscar a verdade de forma dialógica, aqual permite articular e manter sempre de pé apergunta, ou seja, sua orientação para o aberto, e,acima de tudo, continuar perguntando, e, assim,continuar pensando. “Chama-se dialética porqueé a arte de conduzir uma autêntica conversação”(GADAMER, 1999, p. 540).

Entretanto, se o saber vive da negatividadede “entrar ao mesmo tempo no contrário” e se adialética é a arte da conversação que permite amanutenção do perguntar sempre com orientação

para o aberto, qual a estrutura dessa arte dedialogar para o pensar hermenêutico?

Como vimos, a pergunta constitui-se noprimordial movimento capaz de conduzir àcompreensão. Portanto, ela marca a dinâmica queimpulsiona os interlocutores do diálogo para aabertura. Não é sem motivo que Gadamer recuae busca refúgio e inspiração para seu pensar nomodelo dialógico platônico. Desperta-lhe aatenção o papel desempenhado pelo personagemSócrates como aquele que, através de perguntasdesconcertantes é capaz de levar o interlocutor aentrar no diálogo, ou seja, leva-o estrategicamentea perguntar, assim, tornando possível aconversação. Diálogo este que somente se efetivana medida em que permite um expor-sereciprocamente dos interlocutores na suaautenticidade. A pergunta abre a possibilidade dainstauração do sentido empurrando osinterlocutores ao aberto e convocando-os adeixarem envolver-se inteiramente no processo.

O verdadeiro diálogo tem sua origemno encontro entre pessoas dispostas aouvirem-se mutuamente – expondo-se,nas próprias opiniões, à avaliação dooutro – e a abrirem-se, nesse mesmomovimento, ao que nunca emergira, atéentão no horizonte da própriacompreensão. Com Sócrates o aprenderé um permitir vir à luz – um parir – deverdade, que só nasce no duplomovimento de um dirigir-se a,solicitando, e um receber de, quecorresponde àquela solicitação(FLICKINGER, 2000, p. 51).

Enfatiza, com isso, não os resultadosalcançados no processo dialógico, mas é o próprioprocesso como movimento circular infindável noqual se instaura a compreensão que entra emquestão.

Seria justamente a esse movimentocircular do diálogo que Gadamer viria a

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designar de ‘círculo hermenêutico’. Énele, dele, que se estabelece acompreensão, isto é, o saber que éenvolvimento elucidativo de parte aparte (FLICKINGER, 2000, p. 51).

O diálogo possui a estrutura da pergunta eresposta, e, para isso, torna-se necessário, então,que os interlocutores orientem o assunto para amesma direção e exercitem-se na arte dacompreensão, isto é, saibam se colocar lado a lado.Portanto, o diálogo exige abertura ao outro comoalteridade, levando a sério a compreensão de suasproposições. Para Gadamer (1999, p. 541), “levaruma conversação quer dizer pôr-se abaixo dadireção do tema, acerca do qual se orientam osinterlocutores”. Acompanhar o interlocutor nomesmo passo exige o êxito da compreensão comocondição para que o diálogo seja levado adiante.Por isso, “o diálogo requer não abafar o outro comargumentos, mas, pelo contrário, sopesarrealmente o peso objetivo da opinião contrária”(GADAMER, 1999, p. 541). O diálogo permiteaos interlocutores uma auto-reflexão sobre suasopiniões. Com sua estrutura voltada para o aberto,o diálogo possibilita que os participantes possamchegar a entender-se sobre o objeto da discussãoque entrou em pauta. O resultado do diálogo, sefor levado a sério, deve levar a um saber maisqualificado do que aquele resultante da simplesopinião, porque é um saber que foi sopesado,refletido, tendo passado pelo crivo da crítica. Aauto-reflexão ocasionada pelo diálogo autênticopermite depurar os prós e os contras,possibilitando aos interlocutores a superaçãoqualificada de suas posições, bem como afastar-se das simples opiniões.

Entretanto, se, como vimos, o diálogo seestrutura, fundamentalmente, no perguntar eresponder, o qual permite, a cada vez, recolocaro perguntado “no aberto”, bem como no acolher

e solicitar o outro na sua alteridade, resta-nos,todavia, indagar ainda, sobre a estruturacomunicativa que possibilita e efetiva a articulaçãodessa dialeticidade dialógica. Ora, o diálogoarticula-se sempre com a mediação da linguagem.Para Gadamer, a linguagem é o medium universal,isto é, o lugar, a morada do ser e da realização daprópria compreensão. Ela permite-nos formular,na pronúncia, na ação, a trajetória histórico-culturalda qual emana o sentido. O sentido, no entanto, éalgo que se inscreve na palavra, que é a articuladorada mensagem, permitindo a revelação do ser, istoé, sua colocação “no aberto” para sercompreendido e anunciado. O sentido, segundoStein (1996, p. 36), “é algo no qual nós nosmovemos, que, em boa parte, já nos é dado”.

Compreender é sempre um ato lingüísticoque possibilita sopesar o assunto, sempre tendoem conta a opinião do outro. Sua forma derealização é a interpretação. A linguagem quepermite a compreensão é portadora de um sentidoque enraíza-se nas experiências do mundo da vida,formando a tessitura, plena de sentido, queinconscientemente carregamos às costas.Portanto, no diálogo dizemos o que já sempre, dealguma forma, somos e através do qualencontramo-nos encadeados um-com-o-outro.

Linguagem é diálogo. Uma palavra quenão chega ao outro é morta, pois, odiálogo é com o outro, e cada palavranecessita no momento concreto o tomcorreto e irrepetível, para que supere aoutra grade, a grade do ser diferente eque chegue ao outro (GADAMER, apudROHDEN, 2000, p. 174).2

A comunicação somente se efetiva nainauguração do ato interativo da escuta e dacompreensão. A linguagem permite operar aabertura do significado do ser pela palavra,oportunizando, assim, a atribuição de um sentido.

2 GADAMER, H. G. Gw8, p. 369-370.

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Por isso, para Stein (1996, p. 16), “o ser humanosó conhece através dos conceitos, só conheceatravés da linguagem [...] somente é racionalporque seu acesso ao mundo se dá via sentido,via significado, via conceitos, via palavras, vialinguagem”. Entretanto, é preciso ter claro que,para Gadamer, “linguagem não é, aliás, somentea linguagem de palavra. Há a linguagem dos olhos,a linguagem das mãos, mostrar e nomear, tudoisto é linguagem e confirma que linguagem ésempre na relação de um-com-o-outro”(GADAMER, apud ROHDEN, 2000, p. 162).Portanto, a linguagem é tomada por Gadamer numsentido amplo como toda forma de expressão queinaugura a covivencialidade humana, a qual nãose limita somente àquela dos símbolos lógicos. Alinguagem é a morada do ser e, por isso, habitamosna palavra. Na linguagem sentimo-nos em nossacasa. Nós não apenas possuímos uma linguagempela qual efetivamos diálogos intercomunicativos,mas somos efetivamente linguagem, nos tornamoshumanos a partir dela.

[...] enquanto medium da experiênciahermenêutica, ela não apenas veicula efaculta nossa capacidade de conceituaro real, mas nela mesma nós vivemos,somos, nos espelhamos, nos projetamose conceituamos. [...] nos movemos [...] epensamos, num processo cujo fim nãoestá dado antecipadamente, mas“padecido” e construído historicamenteno diálogo entre temporalidade eeternidade, entre contingência e liber-dade (ROHDEN, 2000, p. 202).

Por isso, para Gadamer, “O ser que podeser compreendido é linguagem”.

HERMENÊUTICA E EDUCAÇÃO

A hermenêutica é uma formulação daracionalidade cuja verdade não se apóia nem noobjetivismo cientificista, nem no absolutismo das

soluções metafísicas. O fundamento da verdadebrota das articulações da vida cotidiana mediadospelo discurso. É, por isso, um conhecimento quese enraíza nas relações práticas da vida cotidiana,portanto muito antes de qualquer tematizaçãoracional, o que permite a articulação de outrossentidos possíveis para a prática educativa. Apossibilidade de apoiar a verdade na dimensãocompreensiva das múltiplas falas que atravessamo processo educacional possibilita que a educaçãoauto-esclareça suas próprias bases fundamen-tadoras. A crítica da hermenêutica ao objetivismometodológico da ciência moderna abala osfundamentos da matriz epistemológica sobre aqual se instaura o pensamento pedagógico atual.A idéia de método remete ao imobilismodogmático do primado da teoria.

Gadamer, como vimos, ao criticar o métodológico-analítico leva-nos a considerar ainsuficiência da nossa tradição educativa, cujatese fundamental se apoia na idéia de formação(Bildung). Partindo da radical finitude humana,portanto da historicidade, a percepçãohermenêutica de Gadamer aponta para o lequede horizontes, ou panos-de-fundo, que se fundemcomo possibilidade de conexão no universoeducacional. A rejeição da idéia da ‘tábula rasa’rearticula o papel da tradição e dos “prejuízos”como condição de compreensão do processoeducativo. “Gadamer nos permite e estimula aexplicar o papel que desempenha a tradição nacompreensão e a criticar a idéia de que a educaçãosó tem a ver com a idéia da transferência deconhecimentos” (HOLLIDAY, 1990, p. 114).

Para Gadamer, reportando-se a Sócrates, “sóse pode aprender através do diálogo”. Quando umfala, sempre fala a alguém, ou seja, estabelece umarelação intersubjetiva. O falar exige a presença dealguém que escute e compreenda o que está sendodito. Portanto, a educação, na realidade, somentese torna fecunda no diálogo interativo quefavoreça a troca recíproca de experiências. Por

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isso, “a educação é educar-se. [...] nos educamosa nós mesmos, que um se educa e que o chamadoeducador participa somente [...] com uma modestacontribuição” (GADAMER, 2000, p. 15).

A primeira experiência da convivência como outro é o aprendizado da palavra. O falar insere-nos no mundo humano da comunicação.Inicialmente se restringe à imitação de sons.Formulações que vão adquirindo significação narelação comunicativa. A pronúncia da palavrarealiza a experiência mais significativa deaprendizado do mundo humano. É no diálogo que,fundamentalmente, nos inscrevemos comohumanos. A educação se funda na capacidade decomunicar-se interativamente com os outros.Somente nos educamos porque, já sempre,estamos enraizados no mundo da palavra quesustenta e abre o mundo humano para aexperiência do sentido.

O diálogo oportuniza reelaborar aexperiência a partir da exposição ao risco, ou seja,efetivamente se aprende a partir dos próprioserros. Para Gadamer, o diálogo é, desde sempre,o ponto articulador do processo educativo, semo qual é impossível a aprendizagem. Aprender époder dizer com as próprias palavras, a partirdas experiências pessoais, o que se aprendeu.Saber é, portanto, primeiramente saber dizer, istoé, expressar de forma própria aquilo que sabe.Por isso, cada saber é um saber particular comcaracterísticas pessoais, porque vem reelaboradoa partir das experiências circunstanciaishistórico-culturais e das convicções pessoais,com as devidas ênfases que brotam do equilíbrioentre coração e razão. Assim, se faz necessárioo acréscimo da experiência pessoal para que osaber se articule como aprendizagem. Por isso,educar-se depende, antes de tudo, empotencializar as próprias forças na relaçãopermanente com a comunidade viva das pessoase coisas, também dos valores e tradições,costumes e ambiente.

A vida na comunidade se organiza emtorno da convivência. Este fato, segundoGadamer, oportunizou que o homem, pelodesenvolvimento da linguagem, se sobrepusesse atoda a criação. De fato, nos educamos com osoutros. Nos tornamos humanos na relação, na trocade experiências, onde a cada um é dada aoportunidade de reeditar e validar o seuconhecimento. A convivência cria laços e articulao processo de formação da cultura, assim como atransmissão dos valores. A comunidade, instauradano convívio, se torna fecunda a partir da articulaçãodo encontro com o outro nas suas objeções ou suaaprovação. O cultivo de novas experiências e ointercâmbio faz despertar as forças que dormitamcomo potencialidades internas.

A relação entre educador e educandooportuniza o despertar da Pedagogia para acompreensão mais ampla do horizonte vivencialde cada educando. Por isso, o processoeducacional não se restringe apenas a uma meratransmissão de conhecimentos, mas envolvetambém um conjunto de fatores indizíveis, nãotematizados e possivelmente não tematizáveisque dão sustentação às nossas ações. Assim, ahermenêutica ocupa o seu espaço no processoeducacional enquanto orientadora das ações deinterpretação compreensiva da fecunda herançacultural que carregamos às costas.

A hermenêutica nos permite, portanto,perceber que a racionalidade não existe em suaforma pura, ela sempre vem permeada de umconteúdo de experiência, como forma deaprendizado da radical finitude humana. Aracionalidade se constitui a partir da palavra, dofalar, escrever, enfim, na possibilidade de dialogar.Através da palavra ocorre a transmissão dacultura e torna-se possível a educação pelainserção do homem no mundo humano que é omundo da linguagem, da comunicação. Nisso estáo sentido do ato de educar, termo tãocontrovertido na atualidade.

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A hermenêutica mostra-nos que enganam-se os que acreditam que educar encerra-se no atode ensinar o resultado das ciências, os costumese a tradição, como saberes já instituídos einvioláveis. É, segundo ela, o ato de oportunizaro rompimento com o estabelecido, com o fixo,com o aparentemente imutável, certo e acabado.Ensinar, portanto, consiste em favorecer açõescomunicativas que motivem o questionamento.

A curiosidade é uma aliada indissociáveldo perguntar. O próprio ato de educar se fundana curiosidade despertada pelo diálogo com omundo. Mais precisamente, o ato de educar sefunda, dialogicamente, na capacidade humanade questionar o tido como acabado e definitivo.Evidentemente, não é o que vemos hoje emnossas escolas. Nelas a pergunta perdeu o seulugar. Muito mais, perdeu o sentido, a razão deser. Educar hoje se restringe apenas a repetirsem qualquer indício de problematização.

Portanto, a educação é um processo dehominização onde a vida é, fundamental eessencialmente, reinvenção permanente, abrircaminho, romper amarras, apostar no inédito.Para Gadamer (2000), “a educação é educar-se,a formação é formar-se”, isto é, nos educamosa nós mesmos através do diálogo em comunhãocom os outros no mundo. Com isso, ahermenêutica filosófica aposta na idéia de quenão há uma fórmula pronta para educar, mas

que esta se dá na experiência da convivênciapermanente de uma situação em processo. Aeducação funda-se nas potencialidades, nasexperiências, e principalmente nos erros. É atravésdas falhas que o aprendizado se instaura e validanuma conotação particular. A educação efetiva-se como possibilidade no ato comunicativo quesempre somos, justamente ali onde a linguagem,que se realiza plenamente no diálogo, atua comomedium na transmissão consciente ou inconscientedos “prejuízos”, dos desejos, anseios e projetos.Segundo Stein,

Nós não somos apenas sujeitos queapreendem a massa de informação quenos é oferecida nas escolas, nasespecializações, mas somos indivíduosproduzidos pelos movimentosculturais, pelos processos históricosinvoluntários, portanto, temos umabiografia que não se compõe apenaspela rigidez de certos parâmetrosoficiais (STEIN, 1996, p. 52).

Enfim, o paradigma hermenêutico abre apossibilidade de uma educação que considere nãoapenas o indivíduo isoladamente. Todo o seucaráter histórico e cultural entra em questão,articulando a crítica e apontando alternativas paraa superação dos modelos educacionais vigentes,vinculados ao instrumentalismo do paradigmacientífico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, M. V. Pesquisa ação e hermenêutica: interpretando a tradição em educação popular.Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 19, n. 2, jul./dez. 1994.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 33-38 2004

1 Mestranda em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Professora da Universidade do Estado da Bahia(Uneb).

NIETZSCHE EDUCADOR:NOTAS PARA A REDEFINIÇÃO DA FILOSOFIA

Gislene Almeida1

RESUMODigressão em torno da III Intempestiva nietzschiana, cujo destaque é o problema daformação do indivíduo, bem como o do engendramento do gênio que, por sua vez, seconverteria num autêntico mestre. Aborda, também, o aspecto platônico da III Intempestiva,tecendo uma distinção conceitual entre “reino do pensamento” e “reino da razão”.PALAVRAS-CHAVE: Gênio. Formação do indivíduo. Platonismo.

NIETZSCHE ÉDUCATEUR: DES NOTES POUR LAREDÉFINITION DE LA PHILOSOPHIE

RÉSUMÉIl s´agit d´une digression autour de la Troisième considération intempestive nietzscheenne,dont le relief est le problème de la formation de l´individu, ainsi que celui de la naissancedu génie qui, de son côté, deviendrait un maître autentique. On aborde aussi l´aspect platoniquede la Troisième considération intempestive, en établissant une distinction conceptuelle entre“royaume de la pensée” et “royaume de la raison”.MOTS-CLÉS: Génie. Formation de l´individu. Platonisme.

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Em um artigo da revista Arts, de 1964,intitulado Il a été mon maître, Deleuze nos revelaa sua admiração por Sartre enquanto um autênticomestre, aliás, porque autêntico, mestre. Em ummundo cujo sentido da “formação do indivíduo”tem caído em desuso, em favor de um processoirrefletido de “informação” fragmentária, é mesmode se louvar de maneira entusiasta o achado deum mestre, ou, se se preferir, um “pensadorprivado” e não um “professor público”(DELEUZE, 2002, p. 109) ou melhor, um“professador” de um conjunto vazio depensamento.

Em seus escritos sobre educação,Nietzsche põe em relevo uma série de problemasconcernentes à criação e desenvolvimento doque ele entende por verdadeira cultura. Valesublinhar que falei acima em “formação doindivíduo” e não formação de um povo ou deuma cultura, isto porque o indivíduo, a vida, ésempre anterior e hierarquicamente superior àcultura, esta vem a serviço da revelação danatureza humana, e não o contrário, visto que anatureza humana (se me é permitido aqui utilizara terminologia platônico-nietzscheana tãodifusamente presente na III Intempestiva)diferente da dos outros seres, só se revela atravésda cultura, ou das “culturas” (KOFMAN, 1973,p. 146). Destarte, o que importa na sua formaçãoé mesmo a experiência que cada um irá tecer napaulatina descoberta de si e do significado dasua existência, para além das determinaçõeshistóricas em que se encontra: também por issoa educação é assunto filosófico.

Farei aqui uma breve digressão em tornoda III Intempestiva nietzscheana intituladaSchopenhauer Educador. A leitura destaintempestiva remete-nos à imagem de umNietzsche à procura, tal como Diógenes, ocínico, de um Homem, mestre para si, os de seutempo e também para a posteridade. NesteHomem convergiriam as três expressões

máximas da espécie, a saber, o filósofo, o artistae o santo. Porém, é sobre o papel do primeiroque Nietzsche dedicará a sua pena de forma maisdetida.

Em matéria de filosofia, para Nietzsche, oque interessa mesmo é o filósofo, é o rastro, oíndice e o ícone que o mesmo imprimirá nahistória. Rastro na medida em que deixa umlegado de seu pensamento, índice enquanto, apartir da sua expressão integral (vida e obra),vivencia também os “perigos de época”, e íconeporque coincide com um expoente dos “perigosdo gênio” ou o que podemos chamar também de“os perigos da vida filosófica”, susceptíveis aqualquer gênio de qualquer época, a saber, “asolidão, o desespero da verdade e os limites moraise intelectuais do homem” (NIETZSCHE, 2003,p. 150-160). Hoelderlin e Kleist, por exemplo,sucumbiram a estes perigos. Só as naturezas fortespodem suportá-los, dentre estes Nietzsche destacaBeethoven, Goethe, Wagner e Schopenhauer. Eé a este último que Nietzsche, desconsiderandoa fraqueza para com os limites morais ou, paradizer de outro modo, a santidade, confere oestatuto de mestre. Nietzsche destaca os “limitesmorais e intelectuais do homem” como o perigoque requer maior acuidade, uma vez que cada umguarda em si a possibilidade de endurecimentomoral e intelectual, o que frustraria todo projetocriador. Schopenhauer é, nesse sentido, um“milagre”. Entretanto, mais que falar deSchopenhauer como educador, Nietzscheoferece-nos uma inflamada reflexão acerca do quevem a ser a tarefa do mestre, das condições deseu surgimento e, o que é mais importante, dascondições em que o mesmo é sentido comonecessário no interior de determinada sociedade.Semelhante a Tales que “vislumbrou a unidadedo ente, e, quando quis comunicar, falou da água”(NIETZSCHE, 1987, p. 32), Nietzsche, aovislumbrar o exemplo do mestre Schopenhauer,quando quis comunicá-lo, falou “de si mesmo”:

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De que modo entendo o filósofo, comoterrível corpo explosivo diante do qualtudo corre perigo, de que modo tantodistancio meu conceito de filósofo deum conceito que inclui até mesmo umKant, para não falar nos ruminantesacadêmicos e outros professores defilosofia: sobre isso esse trabalho dáinestimável ensinamento, mesmoconcedendo que no fundo não é“Schopenhauer educador”, porém seuoposto, “Nietzsche educador”, queassume a palavra. – Considerando quenaquele tempo meu ofício era o deerudito, e talvez que eu “entendia” domeu ofício, não é sem significância umacre fragmento de psicologia do eruditoque aparece subitamente nesse trabalho:ele exprime meu “sentimento dedistância”, a profunda segurança sobreo que em mim pode ser “tarefa” ouapenas meio, entreato e ocupaçãosecundária. É inteligência minha haversido muitas coisas em muitos lugares,para poder tornar-me “um” – parapoder alcançar “uma” coisa. Por umtempo eu “tive” de ser também erudito– (NIETZSCHE, 1995, p. 70-71).

Nietzsche (2003, p. 157) reconhece,portanto, quatorze anos mais tarde, que traçouuma “psicologia do erudito”, observando qualseria o “comportamento” ou a expressão de ummestre para que seja digno do título. Mestre éaquele que está a serviço da “correção da physis”,pois é nesses termos que Nietzsche concebe acultura. Em outras palavras, mestre é aquele quenos aproxima daquilo que a natureza “gostariaque fôssemos”, se lhe fosse possível essa tarefateleológica a qual o autêntico educador toma parasi. O mestre deve ser uma espécie de artistaplástico do espírito, por assim dizer:

A beleza dos vasos antigos, dizSchopenhauer, brota do fato de que elesexprimem com uma grande ingenuidadeo que são e o seu objetivo; e ocorre assimtambém com todos os outros utensílios

dos Antigos: na sua presença, se percebeque, se a natureza produzisse vasos,ânforas, lâmpadas, mesas, cadeiras,elmos, escudos, couraças, etc., estascoisas teriam exatamente este mesmoaspecto. Inversamente, aquele queobserve como quase todo mundo hojelida com a arte, com o Estado, com areligião, com a cultura – para não falar,e com razão, dos nossos “vasos” – esteencontrará os homens mergulhadosnum certo barbarismo arbitrário e numexagero da expressão, e, para o gênioque virá, este é precisamente o principalobstáculo que está em curso nesta época,cheia de noções tão excêntricas enecessidades tão quiméricas: estes sãoos pesos de ferro que tão freqüen-temente, invisíveis e inexplicáveis, fazemdobrar a mão quando se quer guiar acharrua – de tal sorte que, mesmo assuas obras mais elevadas, precisamenteporque são elevadas à força, devemtambém carregar consigo, até um certoponto, a marca desta violência(NIETZSCHE, 2003, p. 203-204).

“Qual é então o valor da vida em geral?”(NIETZSCHE, 2003, p. 163), esta é a perguntadecisiva que cumpre ao filósofo elevar ao patamarem que deveria estar normalmente. No bojo dessaquestão se encontra uma outra: qual “a imagemde homem” que queremos? Da resposta a estasquestões deriva a ação, que é necessariamenteuma luta que visa a esculpir este homem dado naimagem. Não podemos esperar que o Estado sepreocupe com tais questões, a este cabe apenasproteger o seu território em caso de ameaçaexterior. No que tange à promoção da cultura, oEstado só pode ser conservador ou reacionário,visto que a cultura tem como objetivo primaz oengendramento do gênio que ditará a hierarquiados valores humanos. Dentre as três “imagens dehomem” que Nietzsche destaca, a saber, a deRousseau, a de Goethe e a de Schopenhauer, é,como se poderia esperar, a deste último queNietzsche toma como a mais encorajadora porque

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o homem de Schopenhauer assume parasi o sofrimento voluntário da veracidadee este sofrimento serve para mortificarsua vontade pessoal e para preparar asubversão, a total transformação do seuser, alvo que constitui o objetivo e osentido verdadeiros da vida(NIETZSCHE, 2003, p. 171).

Uma vez exposto o ideal de homem que sequer, Nietzsche toca o problema concernente àfundamentação da possibilidade do educar. Trata-se de retirar deste ideal o conjunto de regras quepermitem passar do transcendente para ogerenciamento da ação, mostrando assim que“este ideal educa” (NIETZSCHE, 1988, p. 51).

O homem ao qual se aspira tem comoobjetivo não a felicidade, visto ser a mesmaimpossível, porém o heroísmo. Trata-se, portanto,de moldar um herói da veracidade, que nãosucumbe à inserção na “história do devir”, eassume a tarefa de “destruir tudo o que pertenceao devir, trazer à luz toda a falsidade das coisas”(NIETZSCHE, 1988, p. 174). Reconhecemos aquiuma expressão sólida do platonismo emNietzsche. Charles Andler chega a afirmar queesta é a noção mais difícil de aceitar

Ela tenderia a fazer crer que a obra daeducação é impossível, como emSchopenhauer. Como modificar umcaractere “inteligível” escondido nofundo de nós como uma forma puraimóvel? Porém esta fixidez não existe narepresentação, e ela é, já, uma forma daconsciência. O real profundo são osinstintos moventes; é o esforço davontade única onde eles se integram. Oque é fora do tempo é esta memóriaonde residem os arquétipos das imagens,dos caracteres, e esta vontade que nosoferece, na representação, seus aspectosdiversos.Pode, portanto, existir, no eterno, omúltiplo não numérico, mas qualitativo,como existe, no pensamento de ummesmo artista, uma multidão de

imagens, por onde se traduz, entretanto,uma mesma força criadora. Uma talforça plástica trabalha em cada um denós. O eterno em nós é justamente estaforça movente, que se manifesta naconsciência sob a forma de um estiloúnico de todos os nossos atos, ou seja,de um caractere. Falta liberar esta energia(ANDLER, 1958, p. 206-207).

Esta bela interpretação do platonismonietzscheano põe-nos em contato com o quechamarei aqui de “reino do pensamento”, emcontraposição ao “reino da razão”. O primeiroseria regido pelo tempo aiônico: “o tempo é umacriança, criando, jogando o jogo de pedras;vigência da criança” (HERÁCLITO, 1999, p. 73).O pensamento é caracterizado por sua expressãofragmentária, aleatória, indisciplinada, etc.,enquanto a razão é caracterizada por uma démarchelógica, pela expressão do logus, do discurso quepretende “adequar-se” ao ser, ao real. Nietzsche,nesse momento de sua filosofia, encontra-seindefinido no que concerne à adoção de um modode vida que assuma como diretriz o pensamento(com todas as conseqüências de uma vidainspirada no devir e no acaso) ou a razão(fundamentando assim um ideal asceta). Essaindefinição é constatada mais uma vez atravésda leitura das últimas partes de Schopenhauereducador: percebemos uma vigorosa crítica aoseruditos, aos professores de filosofia que fazemuma “filosofia de professores”, ou seja, retiramda filosofia tudo o que há de vivo, de mobilizante,de inquietante, em uma palavra, o pensamento, afavor da exibição de uma erudição estéril, cujaconseqüência é um acesso de náusea por partedos jovens estudantes após a submissão a umexame de filosofia. Temos aqui a contraposição,já abordada no Nascimento da Tragédia, entrehomem trágico e homem teórico. Nietzsche julgamalogrado o projeto platônico de a filosofia ficarsob a tutela do Estado. Este último peca justo naseleção daqueles que viriam a ser os produtores e

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propagadores do pensamento filosófico. Contraos grandes filósofos por natureza se encontramos maus filósofos pela graça do Estado. Amediocridade e a hipocrisia são intrínsecas aoprocesso de burocratização da filosofia, na medidaem que se fixa previamente hora, lugar, público eassunto para o filosofar – o que, na maioria doscasos, resulta numa fria reprodução da história dafilosofia. Este é o maior dos males: transformar afilosofia em uma atividade ridícula. Nietzschecomenta que “daqui e dali, um dentre eles [filósofosuniversitários] se envolve ainda em torno de umapequena metafísica – com as conseqüênciashabituais: vertigem, dor de cabeça e sangramentode nariz” (NIETZSCHE, 1988, p. 89).

Para Nietzsche, o que realmente interessanuma filosofia é a demonstração de que se podeviver segundo a mesma e é isto o que asuniversidades de então (e, parece, as de hojetambém) não têm feito. Nietzsche chega mesmoa desconfiar de que a função do Estado concorremais para impedir o nascimento do verdadeirofilósofo do que promover os meios necessáriospara o seu surgimento. O Estado atém-se apenasa fazer bons funcionários e não a formar homenslivres e cultivados.

Diante disto, que alternativa resta entãopara a filosofia? Nietzsche não hesita

[...] é uma necessidade para a culturaretirar à filosofia este reconhecimento doEstado e da Universidade e dispensarabsolutamente o Estado e a Univer-sidade da tarefa insolúvel para eles dedistinguir entre a verdadeira filosofia e afilosofia aparente. Deixar, portanto,crescer os filósofos ao estado selvagem,recusar-lhes toda perspectiva deemprego e utilidade nas profissões civis,não lisonjear-lhes mais com ostratamentos, melhor ainda: perseguir-lhes, olhar-lhes com desfavor – vósvereis os milagres! (NIETZSCHE, 1988,p. 91).

Ao verdadeiro mestre de filosofia é dadaa tarefa de fazer ver que a essência do homemnão está nele, mas acima dele, e esta essência éa criação, mesmo que o indivíduo tenha queperecer para afirmar a criação.

A educação, projetando sobre oshomens as ilusões salutares, estimula estaenergia interior. Ela consiste emenobrecer o esforço onde o homem seconsome. O enobrecimento pode vir atodos de uma fascinação projetada sobreeles por uma grande personalidade. Estaeducação não pode ser imposta. Arevelação se faz por uma via de doçura.Segundo nossas afinidades e nossasforças, nós teremos de descobrir, nopresente e no passado, os mestres quequeremos imitar. Entraremos, por umadisciplina voluntária, no seu raio de ação.Teremos o sentimento de participar dacontinuidade dos mais nobresmomentos da história e do pensamento.Nossa imitação será sempre original.Aprenderemos dos grandes homens osegredo por onde chegaremos a estaprópria maturidade. Os modelossucessivos e cada vez mais elevados quenos propusemos para os venerar, nosensinaram somente a lei da nossaindividualidade, apta a subir uma escalainfinita de perfeições. É uma indicaçãode nosso temperamento a série de nossasadmirações sucessivas. Elas indicamnossa esperança secreta, ampliada semcessar. Elas são uma luz que nos antecedesobre o caminho que abrimos a nósmesmos (ANDLER, 1958, p. 207).

A educação deve promover não oconhecimento de si, mas a liberação de si em prolde uma causa mais nobre, a saber, oengendramento do gênio, porque só ao gênio “épermitido não temer entrar na mais hostil dascontradições com as formas e os regulamentosexistentes, caso ele queira manifestar claramentea verdade e a ordem superior que carrega no seuinterior” (NIETZSCHE, 2003, p. 151). Para

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Nietzsche, só o gênio é capaz deste despren-dimento; ele próprio deixou de ser professorpúblico para ser um “pensador privado”, bemcomo Sartre.

Os pensadores privados possuem duascaracterísticas: uma espécie de solidãoreservada para si em todas ascircunstâncias; porém também uma certaagitação, uma certa desordem do mundoonde eles surgem e no qual eles falam.[...] Porém, maior ainda que a solidãodo pensador privado, é a solidãodaqueles que procuram um mestre, que

desejam um mestre, e não puderamencontrá-lo em um mundo agitado(DELEUZE, 2002, p. 110-111).

Havemos ainda de reconhecer que, neste“mundo agitado” em que nos encontramos, mesmoa necessidade íntima de um mestre já seria um sinalde emancipação. Os modos de vida se encontramtão depauperados, que a procura de Nietzsche, deum mestre desligado das condições oferecidas peloEstado, uma espécie de sofista dos tempos atuais,ainda nos soa inteiramente intempestiva, de vezque os valores permanecem invertidos.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 39-47 2004

1 Pós-graduado lato sensu em Filosofia Contemporânea pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc). Professor da Universidade Estadualdo Sudoeste da Bahia (Uesb)

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBREA PRESENÇA DA INDÚSTRIA CULTURAL NA SOCIEDADE

PÓS-MODERNA: EM FAVOR DA TEORIA ESTÉTICA NA EDUCAÇÃO

Clédson L. Miranda dos Santos1

RESUMOEste artigo traça o perfil da Indústria Cultural, fenômeno marcante da sociedade industrialcapitalista, a partir da leitura de algumas obras dos pensadores da Escola de Frankfurt.Defende a idéia de uma teoria estética aliada a uma teoria crítica como contrapartida aosefeitos da cultura massificada, bem como demonstra que, se a educação trabalhasse apartir da experiência estética, aliada à produção cognitiva, estaria buscando alternativaspara superar a bestialização generalizada, a qual Adorno denomina “barbárie estilizada”.PALAVRAS-CHAVE: Escola de Frankfurt. Indústria cultural. Ideologia. Alienação. TeoriaEstética.

SOME INTRODUCTORY CONSIDERATIONS ABOUT THE PRESENCEOF THE CULTURAL INDUSTRY IN POST-MODERN SOCIETY: IN

FAVOR OF THE AESTHETIC THEORY IN EDUCATION

ABSTRACTThis paper traces an outline of the Cultural Industry, as an outstanding phenomenon of thecapitalist society, based on the reading of some books by the Frankfurt School of thinkers.The paper defends the aesthetic theory idea allied to a critical theory as counterpart to themass culture effects, as well as shows that if education worked from the aesthetic experience,allied to the cognitive production, it would be searching alternatives to surpass the generalizedbestiality, which Adorno calls “styled barbarity”.KEYWORDS: Frankfurt School. Cultural industry. Ideology. Alienation. Aesthetictheory.

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Em Dialética do Esclarecimento, maisprecisamente no capítulo sobre a indústriacultural, Horkheimer e Adorno defendem a tesede que, na sociedade industrial, tudo setransforma em artigo de consumo. O mercadocapitalista reduz todas as formas de produçãocultural em objeto de compra e venda. Tudo énegociável, pois tudo adquire o status demercadoria. Artes plásticas, cinema, tevê,religiões, ideologias..., tudo sucumbe a umauniformização mercadológica imposta pela lógicaconsumista do capital. “Até mesmo asmanifestações estéticas de tendências políticasopostas entram no mesmo louvor do ritmo deaço” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 113).

A essência da atenção que as massasprestam aos meios de comunicação (rádio,cinema, revistas...) é, segundo Adorno eHorkheimer (1985), o reconhecimento do que sefamiliariza através da repetição excessiva dedeterminadas fórmulas. Essas fórmulas deprodução cultural em massa se padronizamatravés do êxito no consumo. Se determinadafórmula logrou êxito, tende-se a repeti-la,porquanto ela é garantia de consumo. Essascircunstâncias intensificam a passividade socialatravés da criação de pseudonecessidades paraprodutos supérfluos, ou seja, cria-se a idéiaconsensual de que se produz o que realmente énecessário.

Essa uniformização da técnica gera umacentralização cada vez maior do poder das classeshegemônicas, porque, ao passo que as“mercadorias” são consideradas por todos comogênero de “primeira necessidade”, as consciênciasse uniformizam e, dessa forma, as forças depermanência perpetuam o status quo da sociedadeindustrial.

A indústria cultural é responsável pela“barbárie estilizada”, um termo usado por Adornopara se referir à uniformização das mercadorias eà pseudodemocratização dos meios de acesso a

essas mercadorias. Foi abolida a distinção entrecultura de elite e cultura popular. A ideologia deque há igualdade e democratização dos meiosmascara as extremas desigualdades que seestabelecem na sociedade. O mecanismo devenda dos produtos culturais não oportuniza àsesferas menos favorecidas da sociedade o acessoaos bens materiais de forma igual às classes altas,pelo contrário, contribuem para a decadência epara a falta de expressão dos “bárbaros”. Assim,evidencia-se a intenção dos meios de comu-nicação de massa que, ao estilizar determinadastendências artísticas, elevam-nas ao status demelhor produto para ser vendido; é o que acontececom a música, por exemplo. Veicula-se desdecountry music, passando pelo axé, forró, brega, dance,pagode e outros ritmos. Na verdade, o que se queré vender. Todavia, o discurso é o de dar“oportunidade” às massas populares de seexpressarem, “valorizando” a sua cultura. Essapolítica de pseudovalorização da cultura popularcria uma falsa imagem de igualdade social edisfarça as enormes disparidades sociais.

Adorno e Horkheimer (1985) postulamque a cultura de massas não é cultura e tampoucoé por elas produzida. A indústria cultural trabalhacom embustes e simulacros. A novidade é bem-vinda, desde que se enquadre nos padrõesestabelecidos e não perturbe a ordem das coisas.Para que os produtos da indústria cultural sejamacessíveis, é indispensável que se elabore umalinguagem comum, um “idioma universal” quetodos compreendam. Um código legível que evitaa complexidade e oferece aos produtos umainterpretação literal e mínima. O sistema decomunicação da indústria cultural esquematizauma semiótica que atinge um número cada vezmaior de espectadores. A educação promovidapela mídia é a educação do condicionamentopela repetição; um adestramento que visa àpromoção de uma cultura “agramatical” e“desortográfica”.

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441Considerações introdutórias sobre a presença da indústria cultural na sociedade pós-moderna: em favor da teoria estética na educação

2 Embora não seja um “teórico de Frankfurt”, a referência ao nome de Michel Foucault insere-se neste artigo pelo fato de este pensadorhaver tratado da questão da sexualidade na sociedade contemporânea de forma bastante pertinente ao conteúdo aqui exposto.

A educação que promoveria uma“contracultura” a essa “cultura de massa” estácircunscrita aos poucos que conhecem as amarrasideológicas do sistema capitalista e tentampromover uma conscientização contra ossimulacros da sociedade do capital. Essa lutacontra-ideológica só pode ser levada adiante, sefor mostrado o conectivo entre a culturamassificada e a persistência das injustiças ediscrepâncias sociais.

Analisando, mesmo que superficialmente,os programas de massa, a partir de umdeterminado nível crítico, percebe-se que osnoticiários e programas informativos, bem comoos de entretenimento, apenas mostram o que éconveniente. Destarte, a verdade se torna algoparcial e manipulável. A realidade é recortada emontada de tal forma que o espectador, ouvinteou leitor tenha uma visão direcionada para o queé conveniente ser verdade; uma verdade induzida.

Até a nossa sexualidade é condicionada porestímulos provenientes da indústria cultural. Asociedade capitalista conseguiu elaborar ummecanismo de desvio da libido para fins nãosexuais. Para garantir a sua sobrevivênciaenquanto grupo, a sociedade impõe a seusmembros uma série de restrições na utilização desua energia libidinal. A esse mecanismo decanalização da libido para fins de cunho não-sexual Freud (1969) chama de sublimação.Marcuse (1981) vem denunciar essa nova formade dominação social. Segundo ele, a sociedadecapitalista, baseada na exploração do trabalhohumano, exacerba a repressão sexual. Para que ocapital pudesse se desenvolver, foi necessário queessa energia libidinal fosse desviada para fins deprogresso social, através da dedicação quase queexclusiva ao trabalho. O homem se vê“dessexualizado”; reprimido em seus desejos

individuais. Para que a sociedade capitalistativesse a sua sobrevivência garantida e chegasseonde chegou, foi preciso reprimir o usoindividualista da libido e desviá-la para fins quegarantissem a segurança social, através dotrabalho. Marcuse (1981) denomina essa medidade “mais repressão” (em analogia à “mais valia”de Marx).

A sociedade do capital tem uma moralsexual repressiva. No momento de nossasocialização, internalizamos esses valores, padrõese normas de comportamento e tornamos nossaessa moral opressora, com todos os seus tabus,preconceitos e crendices necessários àmanutenção da ordem das coisas: exploração daforça de trabalho humana.

Fala-se tanto de repressão sexual! E o quedizer dessa tão propagada liberdade sexual ex-posta pela mídia? Corpos e rostos sensuais cercamnossa atenção diariamente. O sexo é veiculadonos anúncios de forma constante. Pode-seconsiderar esse fato como um indício de que nossaepocalidade é marcada por uma maior liberdadesexual?

Foucault2 (1984) afirma que o discurso éuma forma de exercer o poder sobre o outro.Estamos sempre proferindo discursos na tentativade, pela palavra, impor nossa dominação ao outro.Todo discurso é um discurso de dominação, deimposição. Os meios de comunicação de massa,através da propaganda, veiculam uma forma dediscurso sexual dominador. O que ocorre é umenquadramento de nossa libido aos padrõesveiculados pelos mass media. Essa “variedade” de“opções” sexuais, serviços por telefone, casas demassagem, malhação, culto ao corpo “perfeito”indicam que estamos agindo como o sistema nospermite. Nosso prazer está ajustado àspossibilidades que nos oferecem. E tudo o que

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contraria o que está posto deve ser abolido,eliminado. Assim, fica vedada a liberdade sexualcomo também a tão defendida “opção sexual”. Apossibilidade de exercer uma sexualidade quecorresponda aos nossos desejos “verdadeiros” épraticamente nula.

Numa sociedade onde a produção éalienada, o consumo inevitavelmente se tornaalienado. O homem perde-se de seu centro. Ficafragmentado e diminuto. Perde a sua dimensãode humano e se reduz à mercadoria. É o que Marxchama de reificação do homem em oposição aofetichismo da mercadoria.

A mercadoria adquire um poder quase quemiraculoso, fantasmagórico, nos anúnciosveiculados pelos meios de comunicação demassa. As imagens adquirem uma plásticaincrível, só mesmo existente nos anúncios. Éinteressante notar que a indústria cultural trabalhacom o princípio da não-satisfação das neces-sidades e dos desejos humanos. O princípio dafrustração ou da satisfação incompleta énecessário para que o cliente, insatisfeito ouparcialmente satisfeito, volte a desejar os efeitosmiraculosos da mercadoria, porquanto as suasnecessidades ainda não foram sanadas. Todavia,essa insatisfação se dá de modo bastantesubliminar. É necessário que fique implícito queo produto não garanta a satisfação completa, poiso sujeito desejante necessita de algo que supra(embora esse objeto de desejo nunca, ou quasenunca, supra) a sua necessidade de ser.

Marcuse (1973) classifica o homemcontemporâneo como “unidimensional”, ou seja,as perspectivas humanas, que são a expressão dopróprio homem, se reduzem a uma só face, a umasó dimensão. Na sociedade capitalista, oconsumidor é a única dimensão assumida pelohomem, como também é a sua expressão. Oindivíduo perde a capacidade de crítica econtestação e qualquer possibilidade de oposiçãoé descartada.

Para compreender melhor como a indústriacultural se estabelece a partir da reprodutibilidadetécnica das obras de arte, faz-se necessáriocompreender como se deu a cisão entre civilizaçãoe cultura. Civilização seria o mundo concreto dareprodução material, o mundo do trabalho, danecessidade, da matéria, o mundo da exterio-ridade. Cultura tinha a ver com o mundo das idéiase dos sentimentos elevados, com a liberdade,felicidade, lazer, espírito, interioridade. Ficaevidente que, numa sociedade capitalista, ondeuma maioria detém os meios de produção e amais-valia, apenas um pequeno grupo podeusufruir dessa “cultura”, e do acesso aos bensculturais como a pintura, a música, etc. Essaseparação em dois mundos permitia a justificaçãoda exploração da maioria que sofria num trabalhodesumano. Uma vez no poder, a burguesia falade igualdade abstrata para gozar da liberdade real.

Se o primeiro intento da dominação culturalera separar a produção material (civilização) daprodução de bens espirituais (cultura), o passoseguinte foi baixar a cultura de seu pedestal edisseminá-la entre as massas. O processo foi,então, transformar a obra de arte e a cultura emmercadoria; processo esse viabilizado pelarevolução técnico-industrial. As fábricas, queproduziam bens de consumo, passaram a produzirbens de consumo cultural para todos: imprensa,fotografia, cinema, disco, cassete, vídeo, etc.Adorno afirma que ele e Horkheimer preferiramusar o termo indústria cultural em lugar de culturade massa, que poderia tratar-se de algo como umacultura surgindo espontaneamente das própriasmassas ou da forma contemporânea da artepopular. Freitag assevera que

A separação entre a produção material[civilização] e a produção de bensespirituais [cultura] não era a forma maisadequada para dissimular as estruturasdo novo sistema de produção. A fim detornar os trabalhadores dóceis e

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submissos, não bastava recorrer àdicotomia entre civilização e cultura, entreescassez material externa e riquezaespiritual interna. Tornou-se imperiosomudar os padrões de organização daprodução cultural, que foi sendogradativamente cooptada pela esfera dacivilização, isto é, sendo absorvida pelosistema da produção de bens materiaisque reestruturou inteiramente as formasde circulação e consumo da cultura(FREITAG, 1994, p. 70).

A cultura, tornada mercadoria, perde suacaracterística de cultura e se transforma em valorde troca que ajuda, por sua vez, a reproduzir osistema. Onde a mercadoria reina absoluta, tudoprecisa se transformar em mercadoria: a arte, asidéias, os valores espirituais, as invenções, acriação. O comercial visto na televisão deixa deter o caráter único, singular, deixa de ser expressãode criatividade, da genialidade de um artista,poeta ou publicitário. É uma mercadoria e comomercadoria é tratada: comparada, vendida,consumida. O lucro predomina sobre o filosófico,o estético, o religioso, o literário.

Analisando nossa sociedade e a função dacomunicação, não se pode deixar de ver que asexplicações fornecidas pela elite que produzmensagens e explicações de mundo usam aideologia para tornar suportável a contradição. Adominação passou da esfera corporal, biológica,para a esfera psíquica e para a manipulação dasconsciências. O verdadeiro pecado passa a ser odesejo que os homens têm de bens de consumo,e não a organização geral que os impede de chegara eles.

Na sociedade administrada, a sociedade dacultura afirmativa, isso configura o caráterrepressivo desta sociedade que continua areproduzir em seus membros as necessidades queela mesma estimula, de modo que os indivíduoscontinuem a reproduzir a sociedade. Adornocritica Hegel e Marx, quando afirma que a

dialética desenvolvida por eles recaía no caráterafirmativo do existente. Critica o pensamento porum sistema fechado e a totalidade hegeliana, quepretende abarcar a realidade sem fissuras doAbsoluto. Para combater este problema, o caráterafirmativo da cultura, Adorno (apud MATOS,1993, p. 91) defende que é necessário odesenvolvimento de uma dialética negativadizendo que

[...] poder-se-ia chamar a dialética nega-tiva de um anti-sistema. Com os meiosda lógica dedutiva, a dialética negativarechaça o princípio de unidade e aonipotência e superioridade do concei-to. Sua intenção é, ao contrário, substi-tuí-los pela idéia do que existiria fora doembuste de uma tal unidade.

Os pensadores de Frankfurt não partilhamda mesma opinião quando o assunto é areprodutibilidade da obra de arte. Para Adorno,Horkheimer e Marcuse, a indústria cultural,aparentemente democrática, pelo fato de se teruma fácil reprodutibilidade técnica, nega o acessoàs “grandes obras” da cultura a um contingentemuito grande de pessoas. O que se promove éuma bestialização generalizada, através deprodutos de fácil acesso e baixa qualidade. Aautonomia de pensamento das classes popularessucumbe aos estímulos fantásticos da indústriacultural. Esta, por sua vez, promove a ideologiageneralizada de que evidencia e veicula as formasde expressão das camadas populares. Entretanto,o que se observa é uma obliteração, em escalaindustrial, das consciências.

A reflexão crítica cede lugar aoentretenimento perverso. As guerras, osgenocídios, a violência nas cidades e no trânsito,o tráfico de drogas, as catástrofes naturais, etc.misturam-se aos bailes funk, ao carnavalmulticolorido das escolas de samba, aosprogramas de variedades, à beleza anabolizada

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dos modelos, às “popozudas”, “cachorras” e“preparadas”, num espetáculo de belo horror,produzindo uma banalização do colapso socialno qual estamos inseridos.

Para Benjamin, ao contrário do que pensamAdorno, Horkheimer e Marcuse, a reproduti-bilidade em série da obra de arte permite umacesso maior a esta. Embora a arte perca a suaunicidade, aumenta o seu valor de exposição. Éilustrativa a seguinte passagem de Freitag (1994,p. 74-76) quando afirma que

No culto religioso medieval, o valor deexposição da obra de arte é praticamen-te inexistente, sendo enfatizado quase queexclusivamente seu valor de culto.

A obra de arte se mantém escondida,inacessível ao olhar do espectador. [...]Na medida em que o mundo sedessacraliza, a obra de arte vai sendoliberada para o olhar do espectador.Mas, o valor de culto não desaparece.Ele sobrevive nas formas seculares daarte como culto do belo. A idealizaçãoextrema da arte mostra claramente suaorigem religiosa [. . . ] . O valor deexposição aumenta, sem que se perca oelemento cultural, que continua presentena “aura” da obra de arte. O objetoaurático é caracterizado pela unicidade[einmaligkeit] e a distância [entfernung]. Oespectador permanece fascinado pela“aura”. A “aura” é uma espécie deinvólucro que envolve a obra de arte[...].

[...] a passagem do período burguêspara a sociedade de massa estácaracterizada pela perda da aura. Aperda da aura ocorre em conseqüênciade dois fatores básicos: a tecnificaçãocrescente do mundo e a reprodutibi-lidade técnica da obra de arte, que levaa uma massificação do consumo dosbens artísticos. Ambos os fatoresdecorrem da modernização dasociedade burguesa do século XIX. [...]para Benjamin, com a perda da aura, sedestrói a unicidade e a singularidade da

obra de arte, mas, ao perder o seu valorde culto, seu valor de exposição seintensifica.A obra adquire uma nova qualidade: elase torna acessível a todos, seu consumogeneralizado se torna possível, elaadquire, por assim dizer, um novo valor:um “valor de consumo”.

Considerando-se que há diferenças nomodo de pensar e até mesmo divergências entreos teóricos críticos, não se pode negar que hátambém entre eles uma concordânciafundamental, que é o próprio pressuposto dateoria: tudo contém sua negação, tudo contémsua contradição. Assim como a cultura, a arte, osmeios de comunicação em geral têm como funçãorepresentar a ordem existente, eles, também,denunciam, criticam, mostram as contradiçõesdessa ordem. A cultura pode reprimir, pela forçado passado, mas liberta e acena com um futurodiferente. As dimensões conservadora eemancipatória, no campo da cultura, andam demãos dadas. Segundo Freitag (1994, p. 77),

Marcuse, Horkheimer e Adorno, bemcomo Benjamin, são unânimes ematribuir à cultura em geral, e à obra dearte em especial, uma dupla função, a derepresentar e consolidar a ordemexistente e ao mesmo tempo a de criticá-la, denunciá-la como imperfeita econtraditória. Essa dupla função decorredo caráter ambíguo da própria culturade ser, ao mesmo tempo, a depositáriadas experiências passadas de repressãoe das expectativas de melhoria, deaperfeiçoamento: ela critica o presente eremete ao futuro. A dimensãoconservadora e emancipatória da culturae da obra de arte encontram-se, pois, demãos dadas.

Diante do quadro que até aqui fora exposto,ficam algumas indagações básicas: poderá ohomem conciliar a satisfação dos seus reaisdesejos com as imposições da civilização? Haveria

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alternativas a essa dominação? Que papel caberiaà Filosofia e à Educação na promoção dasmudanças aspiradas? Qual seria uma possívelsolução para o quadro de degradação ao qualchegou a sociedade industrial? Como sepromoveria às camadas populares um acessomaior às “grandes obras” da cultura e como fazê-las se expressar de forma não alienada?

Contra essa realidade de exploração dohomem e da natureza pelo homem, os teóricosde Frankfurt propõem uma gratuidade de deleiteestético. Numa perspectiva estética, a imaginaçãoprodutora e criadora e as potencialidades delibertação do Eros das amarras da civilizaçãorepressiva e castradora podem promover umasignificativa mudança social. A arte (não areprodução massificada pela técnica) transcendeas determinações de tempo e de espaço. Elapromove uma reconciliação do homem com anatureza interior e exterior, porque rompe com asubmissão à produtividade do mundo utilitaristae competitivo, centrado no incentivo à produçãoem massa e na renúncia ao prazer. A esse respeito,Marcuse (apud MATOS, 1993, p. 110-113)escreve:

A arte está ligada a uma percepção domundo que aliena os indivíduos de suaexistência funcional e da realização de seudesempenho funcional – arte estávoltada para a emancipação dasensibilidade, da imaginação e da razãoem todas as áreas de subjetividade eobjetividade. Mas esse sucesso supõe umgrau de autonomia que arranca a arte dapotência de mistificação do dado e alibera, permitindo-lhe exprimir averdade que lhe é própria. Na medidaem que o homem e a natureza sãoconstituídos por uma sociedade não-livre, seu potencial reprimido edeformado só pode ser representadosob uma forma que distancia e destaca.O mundo da arte é o de um princípiode realidade diferente, o da alteridade; e

é por sua alteridade que a arte preencheuma função cognitiva: comunicaverdades que não são comunicáveis emnenhuma outra linguagem, ela contradiz.[...]O caráter afirmativo da arte tem aindauma outra fonte, pois a arte está engajadaao lado de Eros, afirma imperati-vamente os instintos de vida em sua lutacontra a opressão social e instintual. Apermanência da arte, sua imortalidadehistórica ao longo de milênios dedestruição testemunham esse engaja-mento [...].Nesse sentido, renunciar à forma estéticaé abdicar de sua responsabilidade.Abdicação que priva a arte da formamesma pela qual ela pode criar esta outrarealidade no interior da realidadeestabelecida: o universo da esperança.

O direito à cultura é o direito de acessoaos bens culturais, e a compreensão destes bensé o ponto de partida para a transformação daconsciência das classes populares. É necessárioconsiderar que os bens culturais não nascemapenas do esforço dos “grandes gênios”. Assentircom esta idéia de que só “os grandes” produzemcultura é elitizá-la e restringir o seu alcance. Faz-se mister considerar que os excluídos da dita “altacultura” a ela devem ter acesso. A indústriacultural produz uma maior exclusão dosindivíduos das classes menos favorecidas quandodesfigura a sua cultura, criando arranjos técnicospara “satisfazer o gosto das massas”. Uma grandequestão se coloca agora: Como criar nas massaspopulares o gosto por uma culturadesbarbarizada? Como dar acesso às classespopulares a esse tipo de produção cultural?Adorno (2000, p. 155-156) vê na educação umaalternativa para a “desbarbarização” dasconsciências e a formação de um espírito negadordo caráter afirmativo da cultura:

A tese que gostaria de discutir é a de quedesbarbarizar tornou-se a questão mais

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urgente da educação hoje em dia. Oproblema que se impõe nesta medida ésaber se por meio da educação pode-setransformar algo de decisivo em relaçãoà barbárie. Entendo por barbárie algomuito simples, ou seja, que, estando nacivilização do mais alto desenvolvimentotecnológico, as pessoas se encontrematrasadas de um modo particularmentedisforme em relação à sua própriacivilização – e não apenas por não teremem sua arrasadora maioria experi-mentado a formação nos temposcorrespondentes ao conceito decivilização, mas também por seencontrarem tomadas por umaagressividade primitiva, um ódioprimitivo ou, na terminologia culta, umimpulso de destruição, que contribuipara aumentar ainda mais o perigo deque toda esta civilização venha a explodir,aliás, uma tendência imanente que acaracteriza. Considero tão urgenteimpedir isto que eu reordenaria todosos outros objetivos educacionais por estaprioridade.Eu começaria dizendo algo terrivel-mente simples: que a tentativa de superara barbárie é decisiva para a sobrevivênciada humanidade.

Não seria demasiadamente ingênuo pensarque a educação promoveria a emancipação dasclasses menos favorecidas pelo sistema socialvigente? Como visar a uma educação libertária,considerando-se que esta tem de enfrentar ainstitucionalização do sistema de ensino, que seconstitui num aparelho a serviço da ideologia dosistema social no qual está inserido? Adornodiscorre:

A educação seria impotente e ideológicase ignorasse o objetivo de adaptação enão preparasse os homens para seorientarem no mundo. Porém, ela seriaigualmente questionável se ficasse nisto,produzindo nada além de well adjustedpeople, pessoas bem ajustadas, emconseqüência do que a situação existente

se impõe precisamente no que tem depior. Nestes termos, desde o início existeno conceito de educação para aconsciência e para a racionalidade umaambigüidade. Talvez não seja possívelsuperá-la no existente, mas certamentenão podemos nos desviar dela(ADORNO, 2000, p. 143-144).

A Teoria Estética, e principalmente amúsica, seria uma forma consistente de negar ecriticar as condições de barbárie. De acordo comFreitag,

A perplexidade com o real, os horroresdo nosso tempo, o fracionamento davida cotidiana podem ser magistral-mente expressos nessa forma estética:a música erudita de vanguarda. Mas amúsica meramente incorpora de formaenigmática e codificada um texto queprecisa ser decifrado, interpretado,revelado. Esse papel cabe à teoria estética,que em sua “leitura” da representaçãomusical do real decodifica e traz à tonaos elementos críticos e contestadoresnela contidos, permitindo, assim, umaanálise e uma crítica das formasmateriais de organização da sociedade.Nesse sentido, a teoria estética se revelasuperior à teoria crítica que, bem oumal, permanecia vinculada a umconceito de razão cuja integridade játinha sido questionada na Dialética doEsclarecimento e na DialéticaNegativa. Nessas obras, Adorno haviaexpressado sua profunda desconfiançaem relação ao próprio ato dopensamento (FREITAG, 1986, p. 83).

Adorno reconhece, assim, que a arte é aúltima barreira, a “reserva ecológica” dasociedade, onde permanecem a esperança e autopia, que transcendem o status quo alienador. Éaqui que se pode começar a falar de alternativase a constatar como nossa sociedade, nosso povo,continua resistindo à avalanche avassaladora dadominação cultural. A Teoria Estética nos fornece

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elementos para podermos compreenderalternativas que estão sendo geradas,principalmente a partir das camadas populares,na construção duma sociedade nova, diferente.É claro que essas próprias alternativas vão sendo,algumas vezes, cooptadas e recuperadas pelamáquina do sistema. Mas sempre permanecemabertas. Contra todo o totalitarismo, contra toda

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Riode Janeiro: Zahar, 1985.

______. Educação e emancipação. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

FOUCAULT, M. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

FREITAG, B. A Teoria Crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1994.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro:Zahar, 1973.

______. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro:Zahar, 1981.

MATOS, O. C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna,1995.

a dominação, o artista ainda consegue entrever oreino da possibilidade, a brecha da liberdade, oraio de luz que mostra num caminho diferente,novo. Através da Teoria Estética, consegue-seperceber, na arte, os momentos críticos e anegatividade que ela representa, compreendendoa realidade em suas múltiplas dimensõescontraditórias.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 49-61 2004

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

OS DIÁRIOS REFLEXIVOS E OS PROCESSOSMETACOGNITIVOS NA PRÁXIS EDUCACIONAL

Jussara Midlej 1

RESUMOEste artigo fundamenta-se nas discussões que têm orientado o debate acerca da formaçãode profissionais da educação e da práxis educacional numa perspectiva crítico-reflexiva,apontando para uma redefinição do papel docente. Ao longo do texto, a pesquisa-ação étomada como uma das alternativas no processo de formação de gestores-pesquisadores.O estudo apresenta uma concepção de pesquisa como atitude do profissional que investigasua própria prática no intuito de aperfeiçoá-la continuamente, tendo o Diário Reflexivocomo um dos instrumentos de reflexão e tematização das experiências vividas. Aliado aisso, aborda a estrutura do pensamento das pessoas, envolvendo a reflexividade emdimensões metapráxica e metacomunicativa, produzindo-se, por meio de interiorizaçãoprogressiva, condutas de desvelamento das experiências e das percepções, explicação,argumentação e conseqüente aprimoramento do trabalho educacional.PALAVRAS-CHAVE: Formação docente. Práxis educacional. Professor-pesquisador.Diários reflexivos.

REFLEXIVE DIARIES AND THE MET COGNITIVEPROCESSES IN THE EDUCATIONAL PRAXIS

ABSTRACTThis paper is based on the discussions that have oriented the debates about the professionaleducational training and the educational praxis in a critical-reflexive perspective, which pointsto a redefinition of the role of the teacher. This action research is taken as an alternative in theprocess of researcher and manager formation. The study presents a research concept inwhich the professional researches his/her own practice with the objective of continuallyimproving it. The study uses the Reflexive Diary as an instrument to reflect on living experiences.Besides, the study addresses the structure of people’s thought, involves reflectivity in metcognitive dimensions, and produces development procedures of experiences, perspectives,explanations, discussions, and a consequent betterment of educational task.KEY-WORDS: Teacher training. Education praxis. Researcher. Reflective diaries.

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Não há ensino de qualidade, reformaeducacional, nem inovação pedagógica sem umaadequada formação de profissionais da área deEducação. Nesse sentido, há uma tendênciacontemporânea de formar agentes sociais, nodizer de Veiga (2002, p. 84), “capazes de planejare gerir o ensino-aprendizagem e de intervir noscomplexos sistemas que constituem a estruturasocial e profissional”. Nessa perspectiva, aformação de pessoas para atuar nesta categoriadeverá acontecer na direção de ampliar aautonomia destas, criando-lhes possibilidades deaquisição e ampliação de elementos conceituaispropiciadores de uma consciência crescen-temente crítico-reflexiva, tanto num nívelindividual quanto coletivo. Diante disso, é desuma importância, nessa atualidade,2 que osprofessores aprendam a pensar de formasofisticada antes que possam ensinar osestudantes a fazê-lo3 (KINCHELOE, 1997, p.38; LIBÂNEO, 1999, p. 27-29).

A esta perspectiva de configuração daprofissão do agente educacional, conjugam-se osestudos etnográficos e até a análise do discursonum compromisso com um projeto de educaçãocrítico, emancipatório. Novamente é precisodestacar-se a importância do estudo dopensamento prático – não apenas dos professores,também dos gestores – como fator que influenciae determina a práxis4 educacional, verificando-seque eles possuem teorias (teorias práticas,implícitas de ação) sobre o que é o ensino. Estasteorias, que influenciam a forma como estespensam e atuam na sala de aula e fora desta,

permanecem provavelmente inconscientes paraeles ou, pelo menos, pouco articuladasinternamente (MARLAND; OSBORNE, 1990,apud VASCONCELOS, 1998) necessitando, naorganização dos cursos de formação profissional,serem amplamente desveladas. Necessário se faz,portanto, num processo formativo, aliar-se àpesquisa, buscando identificar e desvelardiferentes concepções a respeito da atividadedocente e das formas de gestão educacional comopráxis, ampliando as possibilidades de trabalhá-las conscientemente e ressignificá-las, senecessário. Paulo Freire (1978) afirma que opoder transformador da práxis, ao surgir doprocesso dialético5 da ação/reflexão torna-secapaz de produzir uma nova compreensão darealidade.

Assim, o estudo dos processos metacogni-tivos, através dos quais se aborda a estrutura dopensamento das pessoas, envolvendo areflexividade em dimensões metapráxica emetacomunicativa, tem utilizado conceitosdiferentes para designar os mesmos componentesdas teorias implícitas destes. Para configurar esteaspecto do saber dos profissionais da educaçãocomo agentes sociais,6 têm sido utilizados termosdiversos como: conhecimento prático pessoal,reflexão como experiência de construções ereconstruções pessoais, epistemologia da ação, dareflexão e do conhecimento em ação, modospessoais de entender, filosofias instrucionais,teorias da ação, ação comunicacional, sabedoriaprática, metáforas, crenças, lucidez. Qualquer queseja o vocábulo ou a expressão, ele/a designa, de

2 Cada atualidade reúne movimentos de origem e de ritmos diferentes: o tempo de hoje data simultaneamente do tempo de ontem, deanteontem, de outrora [...] o presente e o passado esclarecem-se mutuamente, com uma luz recíproca (BRAUDEL, 1989, p. 18-21).3 Este argumento remete à condição do novo espectador que se encontra num ambiente polifônico e polissêmico que se abriu para todos, como enfraquecimento dos grandes referentes unidimensionais de significação (SILVA, 2001, p. 19).4 A práxis se nos apresenta como uma atividade material, transformadora e ajustada a objetivos. Fora dela, fica a atividade teórica que não sematerializa, [...] não transforma o mundo [...]” (VÁZQUEZ, 1977, p. 206-208).5 Dialético aqui entendido como o modo de compreensão da realidade como essencialmente contraditória e em permanente contradição[...] romper com o modo de pensar dominante ou com a ideologia dominante é, pois, condição necessária para instaurar-se um métododialético de investigação/intervenção (FRIGOTTO, 1994, p. 77).6 Esses profissionais, como agentes sociais, deverão ser capazes de planejar e gerir o ensino-aprendizagem, além de intervir nos complexossistemas que constituem a estrutura social da Escola, numa perspectiva crítica e emancipadora (VEIGA, 2002, p. 82-83).

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451 Os diários reflexivos e os processos metacognitivos na práxis educacional

7 A mediatização, como característica da espécie humana, supõe a utilização de intervenção intencional no sentido de provocar umatransformação, uma adaptação (FONSECA, 1998, p. 59-63; MENTIS, 1997, p. 13-14).

modo implícito, uma forma de reflexividadequando o sujeito toma sua própria ação, seuspróprios funcionamentos psíquicos como objetode sua observação e de sua análise, tentandoperceber e compreender sua própria maneira depensar e agir. Se este funcionamento reflexivo fortrabalhado e utilizado de modo sistemático ecrítico, torna-se uma verdadeira alavanca deformação interativa, produzindo-se, por meio deinteriorização progressiva, condutas dedesvelamento das experiências e das percepções,explicação, argumentação, aprimoramento dotrabalho educacional e, espera-se, implementaçãode renovadas condutas. Vista deste modo, ametacognição deve ser encarada, nesse contexto,como o pensar sobre o pensar entrelaçado à reflexão-na-ação e à reflexão-sobre-a-ação-na-açãoeducativa, (SCHÖN, 1992, p. 80-91) envolvendo,em termos vygotskianos , uma interaçãomediatizada7 e ativa entre os diversos elementosmultifacetados da sociedade. Ainda que taisconceitos se apresentem como recentes, as origensdesta perspectiva remontam a John Dewey (1989,p. 25), o qual, em 1933, defendia que no ensinoreflexivo ensejava “o exame ativo, persistente ecuidadoso de todas as crenças ou supostas formasde conhecimento à luz dos fundamentos que assustentam e das conclusões para as quaistendem”. De seu pensamento, portanto, derivaa necessidade de formação de profissionais daeducação que venham a refletir sobre a suaprópria prática, na expectativa de que tal açãovenha a se constituir num instrumento dedesenvolvimento do pensamento e da suaatividade.

Falar de ações reflexivas e de profissionaisreflexivos leva a constatar que, apesar deexistirem certas atitudes e predisposições pessoaisa uma reflexividade interativa e mediatizada nos

professores e gestores educacionais, há todo umconjunto de destrezas ou habilidades que estesdevem dominar para concretizar este modelo deação. É relevante ressaltar que estas aptidõesdizem respeito mais a habilidades cognitivas emetacognitivas, que remetem ao desenvolvi-mento das funções mentais superiores, do que adestrezas de conduta, ao contrário do que sepensava anteriormente (GARCIA, 1992, p. 61-64). As funções psicológicas superiores tratam-se de um dos pontos centrais da teoria deVygotsky, são de origem sócio-cultural e emergemde processos psicológicos elementares, de origembiológica, como estruturas orgânicas (REGO,1995, p. 26).

Assim sendo, a primeira atitude necessáriapara uma postura reflexiva é a mentalidade abertae flexível que não limite a mente e a impeça deconsiderar novos problemas e de assumir novasidéias. Nesse sentido, o sujeito integra um desejoativo de escutar mais do que um lado, de acolherde modo crítico os fatos independentemente dasua fonte, de prestar mais atenção e ampliar oolhar sem melindres a todas as alternativas, dereconhecer o erro, admitindo a possibilidade derelativizar mesmo aquilo em que mais acredita(DEWEY, 1989, p. 43). Esta atitude conduz,portanto, a identificar e a respeitar diferentesnuanças, a prestar atenção nas alternativasdisponíveis, a indagar das possibilidades deerrância, ao aceitar cometer erros e a considerá-los como inerentes ao aprendizado, a assumirriscos, a administrar incertezas, a examinar asrazões do que se passa na sua ação educativa, ainvestigar evidências conflituosas, a procurarvárias respostas para a mesma pergunta, a refletirsobre a forma de melhorar o que já existe(CHARLIER, 2001, p. 93; PERRENOUD, 2001,p. 175; 2002, p. 13).

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8 Egressos do curso de Pedagogia do campus de Vitória da Conquista e já atuantes no mercado de trabalho na área de Educação, de volta àUniversidade do Sudoeste da Bahia (Uesb) para cursar a Habilitação em Gestão Educacional (2004.1).9 Curso de Habilitação em Gestão Educacional proposto por mim e pelos colegas Andréa Lago, José Jackson Reis dos Santos e Sandra MárciaCampos Pereira, da Uesb/DFCH, para acontecer em dois semestres letivos.10 Composição datada de 1978. Aqui, citada como a faixa 9 do CD 836.528-2 – O Melhor de Caetano Veloso – Sem lenço e sem documento – SeloPhilips, Poly Gram do Brasil, 1994.11 Esta codificação foi feita tomando como base a lista de freqüência às sessões presenciais de trabalho acadêmico com o grupo citado. Tallista, enumerada de cima para baixo e vice-versa, recebeu esta codificação como forma de preservar as identidades dos sujeitos citados.

Estágio-pesquisa: configurando caminhos

Nessa direção epistemológica, foi propostoa um grupo de alunos,8 no bojo de uma ação queteve a pesquisa como princípio formativo, autilização, em ambientes de estágio, de uminstrumento de registro e reflexão de pensamentose ações – o denominado Diário Reflexivo. Aintenção era a de que este pudesse servir deelemento essencial à formação de um profissionalmais atento e consciente, questionador de seupensamento e de sua própria ação. O Diário deAula (ZABALBA, 1994) ou Diário Reflexivo(ANDRÉ; DARSIE, 1999) é um instrumento deinvestigação didática comumente usado pararegistrar as experiências, as realizações e asaprendizagens dos professores e de seus alunos,num processo de retroalimentação das vivênciasda práxis pedagógica.

A concepção e a subseqüente implemen-tação da Habilitação em Gestão Educacional9 paraegressos de Pedagogia vêm se desenvolvendo, naperspectiva de ampliar as possibilidades de oprofissional da área atuar como um agente social.Desse modo, o curso foi concebido tendo comobase de formação a pesquisa e a reflexão da prática– na pretensão de que ambas funcionem comomeios de produção de conhecimento e deintervenção na práxis. Na sua acepção, oproblematizar, o indagar e o duvidar são partesintegrantes da formação e da citada práxiseducacional. Assim, a pesquisa, imbricada com oestágio, acontece como procedimento científico deconstrução de conhecimento e como processoformativo, no entrelaçamento entre formação,pesquisa e o exercício da profissão. Numa

ambiência de pesquisa como relação teoria/prática,como práxis criadora e autocriadora.

Nesse contexto, os primeiros registros noDiário Reflexivo dos alunos egressos, emambiências de estágio/pesquisa foram, ainda, deinsegurança e cada um lembrava, quando lidoscoletivamente, dos versos do compositorCaetano Veloso em Sampa (1978)10 – ao compore cantar, poeticamente, seu medo diante donovo – “[...] à mente apavora o que, ainda não émesmo velho [...]”.

Viu-se surgir, assim, os primeiros registrosrealizados em campo e estes disseram, muito bem,desses versos-sentimento:

[...] em princípio, senti muita dificuldadeem escrever no Diário, pois este não eramais meu diário de adolescência queninguém tinha acesso e, sim, uminstrumento em que eu iria relatar meudia-a-dia como professora-pesquisadora(Aluna A 719).11

Meu primeiro contato com o Diário éinstigante e, ao mesmo tempo, estranho.Sempre detestei expor num papel o quesentia [...] e agora sei que ele será lidopor professores. Tentarei, no entanto,expor minhas angústias e minhasexperiências no processo do estágio emmovimento [...] (Aluna A 1214).

Sobre isso, Welfort (1996, p. 38) pontua que“escrever é muito difícil porque deixa marca,registra pensamento, sonho, desejo de morte evida”. Pôde-se vivenciar esta realidade por inteiro:no decorrer das primeiras sessões, em meio anaturais resistências, os alunos-profissionaisdemonstravam seus receios e suas incertezas. Ospoucos que se arriscavam a escrever resistiam à

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socialização de suas idéias e dos escritosrealizados nos ambientes escolhidos para osestágios-pesquisa em movimento. Nesseprocesso, a pesquisa como princípio educativo,ao ser pensada na perspectiva de pesquisa-ação12

perpassa toda a organização curricular da citadaHabilitação, compondo, no cerne do estágio, oelemento diferencial constitutivo da práxis: ainteração entre o conhecer (a teoria) e o fazer (aprática). O Diário Reflexivo aqui, encaminha aprática, de novo, à teorização e convida os agentessociais, à luz de suas próprias reflexões, adesenvolver suas potencialidades de compreensãodo contexto, instigando-os a transformarem-se,transformando.

A reflexão na ação e sobre a ação

Nas sessões presenciais13 continuou-se ainsistir na necessidade da sistematização dasexperiências vividas e refletidas nos DiáriosReflexivos. Ficou visível que, com o tempo, asresistências dos alunos em escrever foram sendovencidas. Aos poucos, os egressos do curso depedagogia foram criando o hábito de registrarintenções e ações, lê-las para o grupo em classe,avaliando os graus de percepção e realizaçãopossíveis nas diferentes situações. Nas semanasque se sucederam, já se podiam ver registros comoeste, transcrito abaixo, serem lidos para todos:

Ao reconhecer a importância do Diáriocomo instrumento de classificação,reflexão e concretização de meupensamento [...] me disponho a registrar,da melhor forma, o exercício de açõese do que interessar na minha construçãode conhecimento, objetivando meu focode pesquisa (Aluna A 620).

Transparece, assim, no depoimentoanterior, a reflexão como componente essencialda análise que une o pensamento e ação comoinvestigação e esta, quando colocada no mesmonível da responsabilidade intelectual, a gerar,como se vê, uma categoria essencial apontada porDewey, na experiência da reflexividade e daprodução de saberes interligada à práxis:

Ser intelectualmente responsável querdizer considerar as conseqüências de umpasso projetado, significa ter vontade deadotar essas conseqüências quandodecorram de qualquer posição pre-viamente assumida. A responsabilidadeintelectual assegura a integridade, isto é,a coerência e a harmonia daquilo que sedefende (DEWEY, 1989, p. 44).

Vê-se, pelo depoimento, que ser intelectualresponsável significa, além disso, procurarconhecer, desvelando os propósitos educativos eéticos da própria conduta docente e não apenasde seus propósitos utilitários, processandoinformações contextuais e encarando “cadaexperiência presente como uma força emmovimento, destinada a influir sobre o que serãoas experiências futuras” (DEWEY, 1989, p. 93).

Essa “força em movimento” a que Deweyse refere constitui-se como a correspondênciaentre plano-ação-reflexão, compondo a análiseque une o pensamento à ação em contextossistêmicos complexos, não-lineares, o que nãoquer dizer, em absoluto, que esta não estejacomprometida com o rigor e a cientificidade doprocesso. O citado ato parece potencializar acompreensão mais acurada de situações reais numprocesso metacognitivo e metapráxicoimportante. Acerca disso, Pereira (2000, p. 165)

12 A pesquisa-ação aqui, tal como a idealizou Kurt Lewin na década de 1940 nos Estados Unidos, como base para a melhoria da ação prática,tendo o envolvimento de pessoas em espirais de ação-reflexão-ação no seu cerne (ELLIOT, 1993).13 Acontecidas em dez horas/aula, duas vezes por semana, (e nos demais dias, sob a orientação dos outros colegas citados nas dependênciasdo campus universitário da Uesb em Vitória da Conquista).

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muito bem assevera que “reconhecer a impor-tância da reflexão na ação e sobre a ação éreconhecer que os contextos humanos sãoinstáveis e que os problemas que surgem nelespodem ser originais e únicos e são, definiti-vamente, passíveis de mudança”.

Atesta, também, o que está sendodiscutido, um registro selecionado num DiárioReflexivo de uma professora atuante em classesdos anos iniciais do ensino fundamental da redemunicipal de Vitória da Conquista e participantede um Programa de Formação para Professores:

Arrumei a sala em semicírculo e,primeiramente, fui chamando aquelesalunos que se dispusessem a apresentaro trabalho realizado. Eles foram vindoaos poucos, um a um, lendo os textos erecebendo os aplausos. Foram textosmuito interessantes: houve até alunos quecriaram diálogos críticos com temasatuais [...] outros tiveram dificuldadesem escrever de modo claro e, mais aindade ler na frente de todos. Gostei dessaatividade, pois pude perceber que aapresentação oral incentiva os alunos aouvir e respeitar o que os outros colegascriam e que isso precisa ser trabalhadoem minha classe mais vezes. Vouprocurar realizar mais atividades dessetipo: percebi que os meus alunos estãotímidos nas apresentações e, tambémprecisam parar para ouvir mais os colegas[...] (Professora B 19).

Vê-se aqui, claramente, que a práxiseducacional, aliada a um agir epistêmicometacognitivo e comunicacional, acaba sendoexercida como diálogo, se contrapondo a modelostradicionais de educação. Estes juízos pessoaissão, por seu próprio caráter, sempre discutíveis edevem estar abertos a reinterpretações através daprática reflexiva e não em relação a pontos fixose imutáveis (PEREIRA, 2000). E isto ocorreu coma referida professora, ao explicitar, no seu Diário,a sua gestão da situação pedagógica: ali, ela exerce

a pesquisa como uma prática acessível e cotidiana,processando informações colhidas na realidade eselecionando indicadores represen-tativos que aauxiliam a interpretar os sinais e utilizá-los para atomada de decisões. Ao afirmar que “vou procurarrealizar mais atividades desse tipo [...]”, elaexterioriza uma ação metacognitiva, demonstrandoa força que possuem os dados empíricos comofundamento de uma melhoria da práxiseducacional. Assim sendo, o desvelamento doexperienciado ampliou sua compreensão acerca dofenômeno vivido, terminando por deliberar novasações futuras, em outros níveis. Acaba pordemonstrar o cumprimento de um dos objetivosda implementação do Diário Reflexivo em classe.

Paulo Freire (1996, p. 43-44) explica omovimento realizado pela professora com asseguintes palavras: “A prática docente críticaenvolve o movimento dinâmico, dialético, entreo fazer e o pensar sobre o fazer. Por isso é que, naformação permanente dos professores, omomento fundamental é o da reflexão crítica sobrea prática”.

Dewey e Schön: o desenvolvimento reflexivona formação humana

Dewey (1989) se refere à atitude doentusiasmo em ação como a predisposição paraenfrentar a atividade com curiosidade, energia,capacidade de renovação e de luta contra a rotina.Assim, constituiu-se em objetivo a ser alcançado,tanto individual quanto coletivamente no grupotrabalhado, a aquisição de tal atitude atrelada auma prática reflexiva, acreditando-se serem estassuscitadoras de processos evolutivos naaprendizagem humana. Sob tais bases, o registrodas experiências e idéias pôde suscitar eestabelecer a reflexividade já citada e, com ela,uma perspectiva mais emancipatória do pensar edo realizar na área educacional. Um dos alunosda citada Habilitação em Gestão Educacional

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atesta o que está sendo dito, ao pontuar no seuDiário Reflexivo:

Como educador me questiono e reflitoacerca desses meus dezesseis anosdedicados à educação: será que o nossosistema não tem jeito?! Como esperarque a educação seja um dos ícones detransformação, se quem está à frente dasInstituições manipula, dita e determinaregras? [...] penso que preciso dar um‘adeus’ a esta área [...] me sinto exploradoprofissionalmente e pouco reconhecidofinanceiramente. (Aluno A179).

Donald Schön foi um dos autores que tevemaior peso na difusão do conceito de reflexão,contribuindo sua obra para popularizar e estenderao campo da Educação as teorias sobre aepistemologia da prática. Desse modo, a partirda noção de reflective action de Dewey, eleargumenta favoravelmente a essa ação noexercício profissional, afirmando que, na medidaem que a pessoa “conversa” com a situação e“ouve” o que ela tem a dizer, “verbaliza” os seuspróprios processos de reflexão e tende a avançarna concepção e na realização de seu fazer. Ateoria de Schön (1992, p. 80-91) é centrada emnoções fundamentais que caracterizam a reflexãosobre a prática do dia-a-dia. A primeira delas é oconhecimento-na-ação que se refere aoconhecimento demonstrado na execução daprática, o que se denomina nesse artigo de saberexperienciado, um a priori. É a inteligênciamanifestada no know how, na experiência. Adescrição do que se praticou correspondente àreflexão que ocorre simultânea à ação, ele adenomina de “reflexão-na-ação”. Há, nesse caso,apenas um distanciamento breve da situação eos profissionais aprendem a partir da análise einterpretação de sua própria atividade. Schön(1992, p. 85) afirma que esse processo tem a vercom incerteza e confusão, enfatizando muito bemque aprender sem ficar confuso é impossível.

A reflexão, realizada a partir da recons-trução mental da ação, é chamada por ele de“reflexão-sobre-a-ação” e refere-se às análises quea pessoa realiza a posteriori sobre as característicase processos de sua própria atividade, o que lhepermite refletir a partir de retrospectivas dovivenciado, configurando-se, aí, numa tomada deconsciência sobre seu autodesenvolvimento. Esteautor, ao referir-se à profissão docente sob a óticada reflexividade, afirma:

[...] um professor reflexivo tem a tarefade encorajar e reconhecer, e mesmode dar valor à confusão de seus alunos.Mas, também parte das suas incum-bências encorajar e dar valor à suaprópria confusão [...] se não ficarconfuso jamais poderá reconhecer oproblema que necessita de explicação(SCHÖN, 1992, p. 85).

O exercício da indagação reflexiva, aoproporcionar um retorno ao que foi realizado,produz um efeito “reverberador” no sujeito, queo faz repensar a ação praticada, dando-lhe novossubsídios para reformulá-la em outros níveis, sefor o caso. É a “reflexão-sobre-a-reflexão-na-ação”, ato que ultrapassa os três primeirosmovimentos e que facilita ao profissional umatomada de consciência dos problemas da práxiseducacional, superando os limites didáticos daprópria aula (SCHÖN, 1992, p. 54-59).

Novamente, registros de uma aluna-profissional, também da citada Habilitação,ilustram esse movimento reflexivo, essa tomadade consciência:

Diante da violência de alguns alunos, eu,como uma das gestoras daquelainstituição, naquele momento, só pudedizer: ‘quero ir logo para minha casa!’[...] sinceramente, não sei o que fazer paratranqüilizar meus colegas e a mimmesma. Será que a polícia, na escola, vai

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fazer mal? Ou será que deveremosexpulsar da escola os ‘alunos problemá-ticos?’ Será que os violentos não estamossendo, nós, corpo docente e gestores?[...] estou um pouco aliviada, mas apresença de policiais, na escola, meincomoda [...] neste momento, estouchorando, quero sumir [...] estou, já,começando a crer que a violência estáem nós, corpo docente e gestores [...]excluímos nossos alunos quando ostratamos sem afetividade ou achamosque eles não têm condições de aprender[...] precisamos pensar em ações deresgate de auto-estima para todos(Aluna A 251).

Percebe-se que, à medida que o profissionalcoloca questões do seu cotidiano como situaçõesproblemáticas, se indaga sobre estas e busca, emseus estudos e nas interlocuções individuais e/ou coletivas, interpretações para aquilo que estásendo vivenciado. Com isto adquire melhorescondições de ampliar sua compreensão dasituação, relativizando, confrontando, emitindoopiniões e buscando respeitar diferentes pontosde vista, exercitando o pensamento crítico,repensando os fundamentos teórico-metodoló-gicos que embasam seu pensamento e o trabalhoeducacional; enfim, comprometendo-se mais comas possibilidades de reorientação das ações nomomento mesmo em que estas se processam.Num processo formativo que possua como basea ação reflexiva, aprende-se vivenciandocoletivamente, aprende-se pensando, descre-vendo, compreendendo, interpretando: aprende-se o significativo (PEY, 1986, p. 45).

A investigação em ação e a análise da práxiseducacional, tendo como apoio os DiáriosReflexivos, são algumas estratégias possíveis deformação do professor e do gestor educacionalnessa atualidade. Essa concepção de formaçãoprofissional deixa claro que é o exercício daprofissão que constitui verdadeiramente o quadrode referência, tanto da formação inicial quanto

da continuada, bem como da pesquisa emeducação nessa nova etapa em que a humanidadeestá vivendo (TARDIF; LESSARD; GAUTHIER,1999, p. 26).

Nesse sentido, reafirma-se que os DiáriosReflexivos, num processo de uso privilegiado daLíngua, proporcionam, durante todo o “percursodidático”, além de um entrelaçamento dospressupostos teóricos com a prática, umainvestigação didática das situações e experiênciasque vão sendo vividas pelos docentes ou gestores,numa perspectiva de pesquisa-ação. E isto, tantona condição de alunos quanto na de profissionais,ensejando elementos de validação, ou não, dasnovas aquisições no sentido de revigoramento dossaberes; esse processo, traduzindo-se num ricoprocesso metacognitivo que pode acionar asmetacompetências – saber-analisar, saber-refletir,saber-justificar, através de um trabalho sobre aspróprias práticas e experiências. Visto sob talprisma, o pensar epistêmico sobre a própria vidae sobre o processo educacional revela aimportância de se olhar o ato educativo, nãoapenas na perspectiva do sujeito cognoscente,devendo-se levar em conta, também, a dimensãopolítica do ato de viver, convivendo. Além disso,esta ação revigora as possibilidades de aprendera aprender e de se ver atuando em variadoscontextos de um modo mais atento e em níveismais ampliados.

Nessas condições, a reflexão deve sercentrada na tematização das práticas – no sentidode olhar para a práxis educacional como umobjeto sobre o qual se pode pensar – e seguirdesenvolvendo-se coletivamente, através daexplicitação do vivido, construído, reconstruído,visando, além do auto-aprimoramento, arenovação do próprio processo de ensino eaprendizagem (ALTET, 2001, p. 28-35; MIDLEJ,2003, p. 35; WEIZ, 2000, p. 123-124).

Zabalza (1994, p. 30) fala disso e ratifica,muito bem, tais assertivas:

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Na narração que o Diário oferece, osprofessores reconstroem a sua acção,explicitam simultaneamente [umas vezescom maior clareza que outras]o que sãoas suas acções e qual é a razão e o sentidoque atribuem a tais ações.

Welfort (1996, p. 41), por sua vez,“dialoga” com Zabalza e corrobora:

A escrita materializa, dá concretude aopensamento, dando condições de sevoltar ao passado, enquanto está-seconstruindo a marca do presente. Nessesentido o registro escrito amplia amemória e historifica o processo [...].

É um fato que, na reconstrução das açõesexpressas, por escrito, nos instrumentos dereflexão, as condutas auto-observáveis passampor um processo metacognitivo dirigido poroperações mentais complexas que as afastam doautomatismo. Nesse contexto informativosistematizado e intencional, a atuação das pessoasé exercida de acordo com seus julgamentos demodo dinâmico e dialético, através de suasobservações e registros.

Com referência ao acesso às citadas funçõessuperiores – essenciais às novas tarefas doprofessor-profissional – Vygotsky (1991, p. 59-65) amplia essas discussões ao afirmar que nodesenvolvimento cultural do indivíduo todas asfunções aparecem duas vezes: primeiro no nívelsocial e depois no nível individual. Inicialmenteentre as pessoas (interpsicológica ou social) edepois no seu interior – intrapsicológica oupessoal, colocando em destaque, assim, o lugardas interações sociais como espaço privilegiadode construção de sentidos, especialmente sehouver a interação e intermediação (dialogismo)do outro, ratificando:

Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre os indivíduoshumanos. [...] O aprendizado despertavários processos internos de desenvol-vimento, que são capazes de operarsomente quando o indivíduo interagecom pessoas em seu ambiente e quandoem cooperação com seus companheiros(VYGOTSKY, 1991, p. 64, 101).

Vê-se, assim, que na concepção sócio-histórica é dada uma importância especial àinteração entre as pessoas e, assim, também àescola. O aluno precisa do professor (um dosmediadores mais experientes) e dos colegas paraexercer sua ação sobre o meio social e culturalsistematicamente. Numa relação dialética comestes (intervenção deliberada), ele é capaz dedesenvolver e potencializar sua percepção,organizar os elementos percebidos, compreendero inter-relacionamento das ações humanas e dosfenômenos naturais, desenvolvendo funçõespsicológicas cada vez mais sofisticadas. Sob esseprisma, o uso da linguagem se constitui nacondição mais importante do desenvolvimentodestas funções.

Em seu texto Novos caminhos para opracticum: uma perspectiva para os anos 90,Zeichner (1992, p. 115-123) defende a idéia deque o professor, apesar de guiar-se por seu própriosistema de crenças e princípios, terá muito paraaprender ao investigar e partilhar seus pontos devista com seus pares, socializando-os. O autortambém sugere que para ser prático-reflexivo faz-se necessária a discussão no grupo, a interação, ocompartilhamento de registros, o que proporcionaao profissional uma forma pessoal de reconstruiro conhecimento, fortalecer-se e de agir de mododiferenciado do que agia.14 Assim, na utilizaçãodo Diário Reflexivo, de modo sistematizado eintencional, nos processos de formação de agentes

14 Um dos pontos centrais da teoria de Vygotsky é a complexidade da estrutura humana que deriva do processo de desenvolvimentoprofundamente enraizado nas relações entre história individual e social (REGO, 1995, p. 26).

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da área de Educação, esta se identifica com a idéiade percurso, processo, trajetória de vida pessoale profissional. A pesquisa, sob estas novasnuanças constitui-se, portanto, como um princípioformativo da maior relevância.

Um outro ponto importante ressaltado porZeichner (1992, p. 120) é que o professor, aorefletir de modo intencional e sistematizadoindividualmente, terá mais condições de avaliara sua ação com uma pergunta do tipo: “Gosto doresultado?”. Esta forma de reflexão estárelacionada com o conceito de pesquisa-ação quepermite aos profissionais analisarem sua práticade modo crítico, identificando possíveis estra-tégias de implementação de melhorias. Nessesentido, o questionamento introduz um novoelemento no contexto real: um compromisso demudança e de desenvolvimento que outrasmodalidades de reflexão comumente nãocontemplam.

Para ilustrar, apresenta-se um outro trechodo Diário Reflexivo, socializado numa sessão deestudos. Desta vez, uma aluna da citadaHabilitação expõe sua própria experiência epercebe algo que não havia detectado antes deregistrar, sistematicamente, suas aulas:

A vice-diretora falou que o recreio nãodeveria acontecer, pois as criançasestavam muito violentas umas com asoutras. Aí pensei: ‘isso não irá me atingirnem às crianças, pois levarei para a classeatividades recreativas e desenvolvereicom elas’ [...] no entanto, depois de váriosdias dos alunos sem recreio e, apesar dasatividades aplicadas, fui percebendo queestes começavam a desenvolvercomportamentos que antes não haviammanifestado: agressividade, falta deatenção e concentração nas atividadespropostas em sala de aula, muitadispersão. Isso me surpreendeu: de início,pensei que a suspensão do recreio nãofosse provocar essas mudanças decomportamento e afetar até a aprendi-

zagem dos alunos. Diante disso, prepareiatividades lúdicas e levei os alunos parauma rua pouco movimentada, nosfundos da escola [...] após a realizaçãodas atividades recreativas eles retornarampara a sala, menos agressivos e maisconcentrados nos estudos. Hoje vejo queeles precisam se movimentar paraaprender mais e melhor (Aluna A719).

Observa-se, neste fragmento, que, osprofessores aprendem a partir do registro, daanálise e da interpretação de suas própriasatividades. Vê-se que, de um modo integrado ecoerente, há uma importância intrínseca no usodesse Diário Reflexivo como instrumento deinvestigação didática e de registro provocativode reflexão, de tomada de consciência do próprioprocesso de atuação profissional e de concomi-tante interferência na práxis, quando, no dizer deMichel Maffesoli (1998), o pensar se reintegra àação. A compreensão mais ampliada das tramasdo cotidiano e das atividades educacionais nãose constitui, assim, apenas como uma atitudetécnico-metodológica, mas em atos de caráterpolítico, pedagógico, antropológico, cultural,complexo e dinâmico que dão uma dimensãoespecial ao processo metapráxico.

Assim sendo, nas sessões coletivas dacitada Habilitação, tornou-se visível como oprofissional pedagogo, ao sentir que “voltava aaprender”, colocava-se como aluno na relaçãocom o conhecimento. E observa-se, muitasvezes, assumindo suas dificuldades e suasnecessidades, ao socializar, através de seusregistros escritos e suas explicitações orais, suascrenças, seus anseios e dúvidas, suas teoriaspráticas (implícitas de ação) produzindo umagama de conhecimentos ressignificados, combase na análise interpretativa do trabalhoeducacional nos diversos contextos onde apesquisa-ação estava a ocorrer.

Tornou-se, desse modo, patente que,incentivar os profissionais a investigar em ação,

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registrar acontecimentos e examinar, individualou coletivamente, o que se passa na práxis, tendea ampliar suas percepções e suas possibilidadesde ação. Além disso, revelou-se como elementodesvelador das limitações de ordem cultural,social e ideológica do sistema educacional.

Pelo visto, constata-se que não se pode pôrmais em dúvida que a formação do profissionalde Educação articulada à pesquisa-ação deve sedar como um processo reflexivo e de análisecontínuo da realidade, permeado pelas situaçõese necessidades concretas vividas em ambienteseducacionais. Nesse caso, a utilização dos DiáriosReflexivos, a funcionar como alavanca deformação interativa, produz, por meio deinteriorização progressiva, condutas de

desvelamento das experiências e das percepções,explicação, argumentação e aprimoramento dotrabalho educacional.

A reflexividade crítica, nesse contexto, aoproporcionar novos elementos de açãointeriorizada, passa a constituir-se como base dereforma do pensamento e instigação a renovadasinvestidas profissionais. Finalmente, ao funcionarcomo um fator essencial no desenvolvimento dosesquemas complexos dos profissionais daEducação, na ampliação de suas competênciassociais e políticas, na potencialização da qualidadedo trabalho educacional desenvolvido, poderá darà escola um novo sentido ético e estético, tãonecessário a um tempo de temores e prenhe deincertezas, como o que se vive na atualidade.

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APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 63-78 2004

1 Doutora em História dos Sistemas de Pensamentos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). Professora da UniversidadeEstácio de Sá (Unesa – RJ).2 Mestre em Educação e Cultura Contemporânea pela Universidade Estácio de Sá (Unesa – RJ). Professor da Unicarioca e do Instituto Isabel – RJ.

A ESCRITURA E O PAPEL NA ERA DIGITAL

Estrella Bohadana1

Marcio Mori Marques2

RESUMOO objetivo do presente artigo é discutir, no âmbito das tecnologias de informação ecomunicação, outras possibilidades para o ensino da Língua Portuguesa, considerando ohiato existente entre a formação do aluno e as demandas dos recursos informacionais, querequerem a escrita teclada. Essa reflexão problematiza a função da educação e a formapela qual o universo de crenças do sujeito no interior da cultura está sendo afetado pelastransformações que marcam o momento histórico atual.PALAVRAS-CHAVE: Tecnologia de informação e comunicação. Ensino da línguaportuguesa. Linguagem digital. Escrita teclada.

THE WRITING AND THE PAPER IN THE DIGITAL ERA

ABSTRACTThe purpose of this article is to discuss in the realm of communication and informationtechnologies other possibilities for the teaching of the Portuguese language, taking intoaccount the existing hiatus between the student formation and the demands of theinformational resources, which require keyboard writing. This reflection questions thefunction of the education and the way in which the universe of beliefs of the subject insidethe culture is being affected by the changes that mark the present historical moment.KEYWORDS: Communication and information technology. Portuguese language teaching.Digital language. Keyboard writing.

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3 Disponível em: <http//:www.ipm.org.br/na_ind_inaf_3.php>. O Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa apresentaram, em08/09/03, os resultados do III Inaf. A data foi escolhida por representar o Dia Internacional da Alfabetização.

INTRODUÇÃO

Escrever é uma das formas que o sujeitoencontra para manifestar poética e prosaicamenteo seu “existir-no-mundo”. Afirma Lispector:

Escrever é o modo de quem tem a pa-lavra como isca: a palavra pescando oque não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca,alguma coisa se escreveu. Uma vez quese pescou a entrelinha, poder-se-ia comalívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa aanalogia: a não-palavra, ao morder a isca,incorporou-a. O que salva, então, é es-crever distraidamente (LISPECTOR,1998, p. 20).

E é por meio da escrita que se podeconcretizar uma das formas de o sujeito semanifestar como educado: “educado para omundo, educado para a vida”. Essas afirmaçõessão corroboradas por Hoffmann (2002),sobretudo ao destacar que o produto visível daeducação é a escrita. De fato, a vida escolar érecheada intensamente com atividades escritas.São 11 anos de estudos – oito no EnsinoFundamental e três no Ensino Médio –exercitando tal atividade, às vezes, em detrimentode outras atividades de comunicação, como ler,falar e ouvir.

Entretanto, de acordo com os dados do IIIIndicador Nacional de Alfabetismo Funcional(Inaf),3 do Instituto Paulo Montenegro, 8% dapopulação brasileira, entre 15 e 64 anos,encontram-se na faixa de analfabetismo absoluto.Nessa pesquisa, as pessoas alfabetizadas foramclassificadas em três níveis, a saber: no nível 1,30% da população brasileira, entre 15 e 64 anos,têm habilidade muito baixa, pois só são capazesde localizar informações simples em enunciados

com uma só frase, num anúncio ou chamada decapa de revista, por exemplo; no nível 2,encontram-se 37% da população, na mesma faixaetária, com habilidade básica para localizarinformações em textos breves (cartas, notíciascurtas, etc.); e, no nível 3, encontram-se 25% comhabilidade plena, pois são capazes de ler textosmais longos, localizar mais de uma informação,comparar informações contidas em diferentestextos e estabelecer relações diversas entre eles.

Estes dados revelam não só a desigualdadesocial expressa na dimensão do conhecimento dalíngua portuguesa, em que a plena capacidade deleitura e compreensão de textos se tornaprivilégio, mas também o agravamento de umacrise social, justificável pela entrada dastecnologias de informação e comunicação.Tecnologias que, ao introduzirem uma novalinguagem, a digital, e seus diversos recursosinformacionais, lançam-nos a um universo deparadoxos e, por vezes, de contradições,tornando-se um revelador de diversasproblemáticas.

No que tange especificamente à linguagemdigital, assistimos a uma das importantesproblemáticas: por um lado, esses recursosimplementam e valorizam a imagem, o espetáculo,o já-sentido, dando-lhes supremacia com relaçãoa outros recursos; por outro, mesmo com a fluideze a mobilidade desse suporte, deparamos com anecessidade da escrita, uma escrita teclada.Entretanto, essa escrita teclada não prescinde dalinguagem escrita.

Como ressalta Moraes (2001, p. 93),devemos aceitar que o “mundo das letras já nãogravita apenas em torno de livros impressos,prontos e acabados, nem se vincula,atavicamente, a crivos acadêmicos e aos filtrosda grande mídia”. Segundo Hagège (2001 apud

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FERREIRO), esse novo lugar de gravitação dossignos tampouco é uma língua oral transcrita,mas um novo fenômeno lingüístico e cultural,em que antigos dilemas, presentes no ensino dalíngua escrita no País, tornaram-se maisevidentes, principalmente, no que concerne àpassagem da linguagem oral para a linguagemescrita.

Passagem cuja história nos desloca notempo e nos remete a algumas reflexões que foramdeterminantes de práticas pedagógicas que,sobrepujando a educação, perpetuaram uma açãoeducativa não centrada no sujeito.

Considerando as múltiplas questõesintroduzidas por esta “Nova Era”, o objetivodeste artigo é o de buscar perspectivas no interiordas tecnologias de informação e comunicação quepossam abrir outros espaços para o ensino dadisciplina de Língua Portuguesa na modalidadeescrita, uma vez que se trata, por excelência, deuma disciplina fundamental para o entendimentoe aprendizagem de outras que estruturam asdiferentes áreas do conhecimento.

Entretanto, cabe lembrar que tais objetivosnos remetem a duas questões: a metodológica e arelacional. Por meio de tais questões, que mantêmuma relação de interdependência – procedimentoe finalidade –, torna-se imprescindível trazer àluz subsídios, no intuito de alimentar a reflexãosobre a função da educação.

Consideramos que tais subsídios desem-penham papel fundamental na compreensão dosignificado e sentido a respeito do que é o sujeito,de qual o seu lugar no planeta e de como seuuniverso de crenças e sua cultura estão sendoafetados no atual momento histórico.

Neste sentido, lançamos um olharpoliocular sobre as transformações que vêmocorrendo com o advento das tecnologias deinformação e comunicação, a fim de que o ato deensinar e aprender não ocorra desvinculado deuma perspectiva dialógica de educação.

UM OLHAR POLIOCULAR: UM MUNDOEM (TRANS)FORMAÇÃO

Mundo globalizado, redes interconectadas,conhecimento e informações são potencializadose potencializam as tecnologias de informação ecomunicação. Mundo constituído de componen-tes da multimídia – escrita teclada, textos,imagens, gráficos, áudio, ilustração, animação –que, num mesmo suporte numérico e acopladosvia “interface”, promovem a linguagem digital.Linguagem que altera os atuais conceitos de tempoe espaço e rompe vínculos sociais já estabelecidosentre pessoas, instituições e nações, ao mesmotempo em que os recria.

Essa nova linguagem, cujo suportepossibilita a interatividade, a não-linearidade doarmazenamento das informações, bem como aruptura da narrativa e do pensamento linear eseqüencial, favorece a descontinuidade do espaçoe do tempo que, adquirindo mobilidade eparticularidade, acompanham o desejo e anecessidade do sujeito.

Esses são alguns dos indicadores quemarcam um período de mutações científico-tecnológicas, em que a microeletrônica impulsionadiferentes inovações no campo da informação eda comunicação, afetando dimensões da vidasocial, econômica e cultural. Como parteintegrante dessas transformações, a informáticaencontra no computador o seu mais importanteproduto, cuja característica é a velocidade comque produz, armazena e dissemina informação(DREIFUSS, 1996).

Por meio de tais recursos, fortalece-se acomunicação digitalizada e a produção de umanova gama de objetos digitais. Trata-se de outrotipo de trânsito, agora pelo ciberespaço,possibilitando um “navegar” que ocorre nadescontinuidade do espaço e do tempo, os quaisadquirem mobilidade e particularidade. Navegarque ignora fronteiras geográficas, favorecendo a

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troca de informações e criando formas de contatoentre pessoas e grupos sociais dos mais distintoslugares, credos e etnias. Em contrapartida,estabelece outras fronteiras geopolíticas.Fronteiras esculpidas pelo significativocontingente de excluídos, quer seja pelos projetospolíticos, quer seja pela exigência de uma novacognição.

Assim, embora as tecnologias deinformação e comunicação ampliem o poder dedifusão da informação, rompendo barreirasgeográficas até então intransponíveis epropagando a comunicação mundo afora, são elastambém que alimentam e são alimentadas,segundo Dreifuss (2000), pelos processos de“mundialização”, “globalização” e “planetarização”,denominados de “configurações-em-processo”,pois se apóiam e se entrelaçam reciprocamente.

A mundialização é conceituada pelo autorcomo responsável pela criação “de denominadorescomuns nas preferências de consumo das maisvariadas índoles”, lidando com mentalidades,hábitos e padrões, com estilos de comportamento,usos e costumes e com modos de vida, atingindodiretamente o universo da cultura.

No que se refere ao conceito de globalização,esta, embora voltada para os fenômenos da“oikonomia transnacional”, abarca os efeitos edesdobramentos da mundialização, visto que,além de ocorrer no plano da economia, enlaçatambém as dimensões da cultura e da política.Portanto, na globalização econômica, o mundo épercebido como o local da produção e dacomercialização.

Já a planetarização, atuando diretamentesobre as relações de poder, explicita-se como“cortes e redesenhos nas relações de poderinternas dos países e como reformulações dasrelações internacionais”. A planetarização é,portanto, segundo o autor, indissociável dosoutros dois processos, pois consiste em “umconjunto de mutações ocorridas nas dimensões

político-institucionais, político-estratégicas e nasnovas formas de organização e expressãosocietária” (DREIFUSS, 2000).

Concomitantemente a esses fenômenos,descortina-se o cenário dos paradoxos, das reaçõese das reafirmações excêntricas, expressas econfiguradas pelas singularidades e particularidadesnacionais, étnicas, religiosas e civilizatórias. Assim,marcados por tensões, no interior de cada um dessesprocessos coexistem o particular e o genérico, osingular e o universal, a homogeneização e aheterogeneização. Como acontecimento, essamudança de base científico-tecnológica, sem serestringir nem a um fenômeno tecnológico nem aum fenômeno científico, tem sido capaz dedesestabilizar o antigo equilíbrio das forças e dasrepresentações, provocando impactos comressonâncias e efeitos inesperados e viabilizandoestratégias inéditas e alianças inusitadas.

Vivemos, então, um momento e ummovimento de crise de paradigmas, isto é, de decisãodo padrão ou do arranjo sistemático (arcabouço) daspartes repetidas ou correspondentes que constituemo cenário de poder e a relação de forças, mudandohierarquias, estruturas, desenhos nacionais dosEstados, alinhamentos, blocos e coalizões, erecondicionando planos, esquemas e diagramasusados como guias para a compreensão e a ação(legislação e fiscalização, formulação de diretrizes eexecução). Perde-se a noção da seqüência de eventose do peso e da importância de cada um. Assim,desconhecemos intimamente para onde vamos ecomo. Perdemos a capacidade de predizer.Redirecionam-se os rumos da caminhadaprometéica da humanidade, desenhando-se umdestino fáustico.

LINGUAGEM DIGITAL E LINGUAGEMESCRITA

À diferença do padrão comunicacionalconstituído pelas linguagens oral e escrita –

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baseado na relação emissor-receptor –, o padrãode comunicação introduzido pelo computador epelas redes se caracteriza pelo fenômeno dainteratividade, cuja ocorrência se dá nasimultaneidade do tempo, isto é, em tempo real.A partir dessa perspectiva, podemos dizer, então,que o fenômeno da interatividade faz crescer onúmero de inventos e de possibilidades,aumentando com isso as potencialidades dosrecursos informacionais e configurando o cenárioparadoxal deste novo milênio: excesso deinformação e, proporcionalmente, poucaprodução de conhecimento; excesso de reflexose pouco pensar; excesso de imagens e a espantosadisseminação da escrita teclada; e a baixaescolaridade impedindo a expansão da linguagemescrita.

Se retomarmos o papel social das váriaslinguagens, observaremos que, quando alinguagem oral predominava, a cogniçãoprivilegiada era a memória humana que,identificada com a inteligência, encontrava nocérebro a única forma de registrar, armazenar edisseminar a informação, instaurando-se nointerior de uma relação em que emissor e receptorda mensagem encontram-se localizados nomesmo espaço e no mesmo tempo. A linguagemoral viabiliza a constituição de um contexto únicode significação, responsável pela interaçãosemântica que flui inseparável do contextocultural. Efeito da lembrança dos indivíduos, acultura se nutre da memória que tece a históriacom seus invisíveis fios. Com o surgimento daescrita, a linguagem oral cede lugar à linguagemescrita, da qual nasce outra modalidade decomunicação. Nela predomina o discurso que,separado do contexto espaço-temporal no qualfoi produzido, libera o homem da função demediador da mensagem. Por meio da linguagemescrita, multiplicam-se as formas de registro,tornando-se o livro o principal suporte, o formatomais conhecido para concentrar o pensamento,

pois na difusão da informação ele adquire umeficaz poder de disseminação. Além disso,estabelece-se uma duração temporal maior, umavez que a linguagem escrita, à diferença da oral,está fora de um tempo biológico. Dispensando apresença física e simultânea do emissor e doreceptor, a linguagem escrita faz crescer o hiatoentre o escritor e o leitor, embora exija umacognição voltada para a decifração e ainterpretação. Portanto, uma cognição que sesustenta na possibilidade de provocar e operarrelações entre os diferentes signos que,adormecidos na linearidade do tempo, tombandosobre si mesmos, aguardam que o leitor osdesperte (BOHADANA, 2004).

Já a linguagem digital exige um suporte –disquete, disco rígido, disco ótico, entre outros –formado por uma série de códigos informáticosque somente podem encontrar sua tradução emsinais alfabéticos por meio de um objeto ou“instrumento”: o computador. Fenômeno tambémlingüístico, a linguagem digital, ocorrendo pormeio do predomínio das tecnologias deinformação e comunicação, complexifica oconhecimento que, produzido e reconhecidoatravés de redes, dissolve a relação emissor ereceptor, cedendo lugar a uma relaçãobidirecional. Amplia-se, assim, o universo decriação e de interpretação dos signos, propiciandosimultaneamente a emergência de uma novamaneira de conceber a subjetivação e aobjetivação, consideradas, agora, comomovimentos complementares da virtualização. Éo nascer de jogos de linguagem que trazem ainstabilidade e a dispersão dos elementos delinguagem, expandindo o raio de atuação douniverso comunicacional. Uma vez modificadasde forma radical as condições da dinâmica damensagem, a linguagem digital funda-se emcontextos móveis que inviabilizam adeterminação de um sentido prévio, emboraexigindo a escrita teclada (BOHADANA, 2004).

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Deslizando no suporte digital, a linguagemdigital adentra um jogo de comunicação em quea mensagem ingressa na contingência do espaçoe do tempo, exigindo que o contexto, mutante eefêmero, seja compartilhado pelos parceiros,inaugurando, assim, um novo sistema de escrita(grifo nosso).

Ao se referir às tecnologias de informaçãoe comunicação, Ferreiro (2002, p. 25) afirma que“novos estilos de fala e de escrita estão sendogerados graças a esses meios”. O navegar, salientaa autora, já faz parte dos objetivos educacionaisdeclarados ou em vias de o serem. Além disso,ressalta também que a Internet, o correio-eletrônico, as páginas na Web, os hipertextos,entre outros, estão introduzindo mudançasprofundas e aceleradas na maneira de noscomunicarmos.

Portanto, estes “novos tempos” trazempara o campo da Educação uma das grandesproblemáticas: a imensa lacuna existente entre aformação e o preparo do aluno para a utilizaçãoda língua escrita e as exigências dos recursosinformacionais, que necessitam da escrita teclada.Como decorrência, docente e discente sãolançados a um profundo desafio. No entanto,mesmo conscientes de que a questão de base denossa temática reside na passagem da linguagemoral para a linguagem escrita, vamos nos restringirespecificamente à problemática que relaciona opouco domínio da linguagem escrita com asdemandas impostas pelos recursos informacio-nais, que exigem o domínio da escrita teclada.

Para Martin-Barbero (2003, p. 70), apesarda fascinação pregada pelos manuais de pós-modernismo, comunicar – que engloba todas aslinguagens – torna-se algo mais difícil e amplo doque informar. Para esse autor, “comunicar é tornarpossível que homens reconheçam outros homensem um duplo sentido: reconheçam seu direito aviver e a pensar diferente e reconheçam a simesmos nessa diferença”. Dito em outras

palavras, o autor ressalta a necessidade de umadisposição de luta pela defesa dos direitos dosoutros, visto que nesses mesmos direitos estãocontidos os próprios.

Assim, concordamos com Bourdieu (1998,p. 54) quando afirma que “a igualdade formal quepauta a prática pedagógica serve como máscarae justificativa para a indiferença, no que dizrespeito às desigualdades reais diante do ensinoe da cultura transmitida, ou melhor, exigida”.

Buscando caminhos que pudessem vir aminorar as questões impostas pela linguagemdigital, em face do pouco domínio que o alunopossui da linguagem escrita, priorizamos umareflexão voltada para as condições e possibilidadesgeradas pela informática, capazes de favorecer oaprimoramento da língua escrita.

DO APRENDER E DO ENSINAR

O fato de as tecnologias de informação ecomunicação não abrirem mão da escrita teclada,a despeito de introduzirem uma linguagem comcaracterísticas singulares, acabou por denunciara precariedade da formação básica, pois é nelaque ocorre o processo de alfabetização e, portanto,a passagem da linguagem falada para linguagemescrita. Trata-se de uma passagem complexa, jáque não se restringe a um momento pontual, masa um longo processo que engloba desde aaquisição da linguagem escrita até o seu totaldomínio, incluindo o ler e o escrever com plenoentendimento.

Se a questão da alfabetização veio serevelando, ao longo dos tempos, um dosimportantes e ousados desafios para oseducadores, hoje se torna questão premente,impulsionando debates e formulações depropostas. Várias têm sido as propostaselaboradas para que a ação que impulsiona oensinar alcance o êxito necessário. A medidadesse esforço pode ser verificada por meio dos

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4 O termo cibercultura está sendo utilizado para descrever o fenômeno sócio-político-cultural decorrente da incidência das tecnologias deinformação e comunicação – redes informáticas, realidade virtual, multimídia – na vida societária. Neste caso, cibercultura seria a indissociávelarticulação entre tecnologia e sociedade.

estudos de Halliday, McIntosh e Strevens (1974),quando apresentam três tipos de abordagem deensino: o prescritivo, o descritivo e o produtivo.

De acordo com esses autores, o ensinoprescritivo tem como finalidade levar o aluno asubstituir seus padrões de atividade lingüística,considerados inaceitáveis, por outros, conside-rados corretos. Portanto, objetiva levar o aluno adominar a língua culta ou padrão.

O ensino descritivo tem como objetivomostrar o funcionamento da linguagem e de umadeterminada língua em particular. Trata-se,portanto, de todas as variedades lingüísticas. Decerta forma, a validade desse ensino tem sidojustificada pela afirmação de que o falante precisaconhecer a instituição lingüística que utiliza, assimcomo outras instituições sociais, para melhor atuarem sociedade.

O ensino produtivo tem como propósitoensinar novas habilidades lingüísticas, sem alteraras já adquiridas, mas incorporando-as aosrecursos que o aluno possui, no intuito de deixarà disposição a maior escala possível depotencialidades da língua para o uso adequado,afirmam Halliday, McIntosh e Strevens (1974).

No entanto, a hipervalorização observadaem relação à abordagem prescritiva vemrevelando que esta tem trazido mais danos quebenefícios à formação do alunato, pois,reivindicando fundamentalmente a língua culta,o ensino prescritivo tende a aumentar o hiato entrea linguagem falada – que afeta e é afetada pelastransformações culturais – e a linguagem escrita,essencialmente mais morosa em suas mutações.Na atualidade, lembra Perini (1997), o maiorperigo que correm as línguas é o de “nãodesenvolverem vocabulário técnico e científicosuficiente para acompanhar a corrida tecnológica”.

As formas de ensino prescritiva e descritiva,envoltas de ideologia, remetem-nos ao pensar deSoares (1999), quando afirma que estas podemgerar um fracasso justificado e legitimado, quer sejapela ideologia do dom, da deficiência cultural, querseja pela ideologia do déficit cultural.

No entanto, encontramos tambémformulações feitas por Travaglia (2002) e Soares(1999), em que estas três abordagens de ensinoda língua não são excludentes, podendo serutilizadas de acordo com os objetivos definidospela instituição e pelo professor.

Dessa maneira, numa época de profundastransformações, em que a velocidade e a rapidezmostram-se aliadas, é importante não deixar quea linguagem culta se torne cada vez mais distantedo alunato – já que na cibercultura4 há umaumento dos neologismos, demonstrando umaredução de rigor –, pois tal fato tem tornado oensino da língua culta cada vez mais difícil. Épossível observar que o aluno vem desenvolvendoum sentimento de abominação ao aprendizadoda língua na modalidade escrita, sobretudoquando lhe apresentam, exclusivamente, umaforma prescritiva para a compreensão da língua.

Com a entrada da linguagem digital, asdiscussões têm se voltado para repensar o ensinoe a aprendizagem da língua na modalidade escrita,no intuito de acompanhar o desenvolvimento doléxico, uma vez que esta linguagem vai além daquestão lingüística, ou seja, implica a introduçãode transformações profundas e radicais. Noentanto, com as novas atividades que asferramentas computacionais propiciam, surge,sem dúvida, a necessidade de maior atuação dodocente, a fim de que o alunato amplie sua visãodo computador, nele percebendo um uso embenefício da atividade acadêmica.

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Nessa perspectiva, é importante observarque, com a utilização das tecnologias deinformação e comunicação, surge a possibilidadede integrar essas abordagens de ensino – aprescritiva, a descritiva e a produtiva – e levar osalunos a ter mais competência no uso da línguana modalidade escrita. O fato de a linguagemdigital se utilizar da escrita teclada e de recursosde multimídia, que estimulam sensações próximasda linguagem falada, pode tornar o computadorum importante recurso a ser explorado paraauxiliar essa passagem.

Como ressalta Ferrés (2001), tal pensar jáleva em consideração que o alunato estámergulhado numa cultura em que há ahiperestimulação sensorial e, por isso, necessitaem todos os momentos de uma estimulação. Oautor afirma ainda que a atual geração habituou-se a ver espetáculo em qualquer lugar, por issocusta-lhe ter acesso a uma realidade que não tenhasido espetacularizada.

Considerando essas várias tensõesprovenientes do computador, percebemos que oensino produtivo poderá se tornar um importantesuporte no processo de reapropriação dastecnologias de informação e comunicação. Noentanto, o êxito desse processo – no sentido de comoas abordagens de ensino criam ou inibem ascondições e as possibilidades de auxiliar os discentesno aprimoramento da linguagem civilizacional –dependerá fundamentalmente da postura que odocente adotar. No entanto, tal postura não deve sedeter, apenas, na forma pela qual o docente iráensinar a utilizar as novas possibilidadestecnológicas, mas na maneira pela qual se dará aaprendizagem. Portanto, a responsabilidade dodocente não consiste, apenas, em criar novosmétodos ou procedimentos de aprendizagem, postoque não se trata de uma questão técnica, mas deuma questão relacional que – tendo comopressuposto o diálogo, numa perspectiva dialógica– se volte mais para valorizar o aprendizado.

Aprendizado que se realiza como umsemear. E cremos ser este um dos propósitos dodocente: semear a possibilidade de educar. Educaré fazer alguém amadurecer. Lembrando Arendt(1973), “não se pode educar sem ao mesmo tempoensinar; uma educação sem aprendizagem é vaziae, portanto, degenera, com muita facilidade, emretórica moral ou emocional”. Entretanto, Arendt(1973) chama a atenção para o fato de ser muitofácil ensinar sem educar, visto que se pode aprenderdurante o dia todo sem, por isso, ser educado.

Nesse sentido, consideramos que astecnologias de informação e comunicação,quando se restringem a uma perspectivatecnicista, dificilmente têm condições deresponder às questões que envolvem o campo daeducação, uma vez que nos remetem a indagaçõesque afetam tanto a vida em sociedade quanto aprópria vida humana.

EDUCAR NUMA PERSPECTIVA DIALÓGICA

No momento em que todas as técnicas decomunicação e de processamento de informaçãose digitalizam, conectando o cinema, o rádio, atelevisão, o jornalismo, a edição, a música, astelecomunicações e a informática, o princípio deinterface, em um mesmo tecido eletrônico, torna-se um dado irreversível. Assim, passa oconhecimento a ocorrer por interface, interaçãoe simultaneidade, indicando um contexto dediálogo em rede, no qual o entrecruzar de diversasindividualidades, o pensar coetâneo à distância eo recurso aos bancos de dados de acessoinstantâneo e simultâneo acabam por impor outrapercepção da noção de “disciplina”.

Noção de disciplina que não se prende aoestudo disciplinar de um único domínio do saber,uma vez que este tem se mostrado limitado paralidar com as questões típicas de uma sociedadeinformatizada, que, realizada via interface, abrehorizontes para uma perspectiva transdisciplinar.

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Entendemos que as áreas do conhecimentoadquirem estatuto transdisciplinar quandoperpassadas por uma mesma questão. Nestemomento específico, em que a humanidade seencontra vulnerável, a ética torna-se osustentáculo da vida humana. É neste sentido queos diferentes campos do saber podem se unificar,uma vez que todos devem ter como ponto centrala preocupação em preservar a humanidade.

Por sua natureza, o campo da educação seencaixa no âmbito da transdisciplinaridade, vistoque tem por pilares a ética e a estética, sendo,por isso, responsável, em parte, pela inserção dohomem na cultura. A educação, portanto, nãodeve ficar omissa diante de um contextosociocultural e político-econômico que refleteuma das mais significativas crises civilizatórias,nem tampouco restringir-se ao âmbitoinstitucional ou formal. Etimologicamente,“educar” vem do latim educare, derivado de educere– conduzir. No entanto, o que conferelegitimidade à condução é o fato de o conduzidopoder construir o próprio caminho, caminho quesó ocorre no caminhar. Em nada, porém, essepercurso retira do condutor a responsabilidadesobre o conduzido, pois o ato de caminharpressupõe escolhas, efetiváveis somente quandoo caminhante já atingiu a autonomia, tornando-se um sujeito que se percebe na sua alteridade.Educar é, então, possibilitar a constituiçãoexistencial do outro, uma vez que o homem, parase constituir como sujeito, necessita estabelecerrelações com um outro da cultura.

Cabe lembrar que o estado de prematuraçãointrínseco ao homem faz dele o único animal quenecessita de um “outro semelhante” – de umoutro ser humano – para que possa existirbiológica e psiquicamente, constituindo-se comosujeito. Trata-se, portanto, de um estado dedependência estruturante, sem a qual a vidahumana seria impossível. Assim, o homem éforçado a inserir-se na cultura.

Em outras palavras, para que o homem seconstitua como sujeito, ele precisa estabelecerrelações que o insiram em contextos socio-culturais. Essas relações se estabelecem no âmbitosociocultural por meio do diálogo, cujoinstrumento é a linguagem. Linguagem em que acompreensão ocorre nos interstícios “da fala”. Énesse sentido que educar pressupõe oestabelecimento de uma relação gerada e nutridapor um tipo de diálogo, cujo compromisso é o defavorecer a existência. Como lembra Arendt(1973), “a educação é o ponto em que decidimosse amamos o mundo o bastante para assumirmosa responsabilidade por ele”.

O diálogo ao qual nos referimos deverá sertecido por uma palavra “dialógica”, na qualprevaleça a intenção de um “voltar-se para ooutro” (BUBER, 1979). Na visão buberiana, aúnica forma de o homem se tornar “EU” ocorrequando ele estabelece uma relação com o “TU”.“EU-TU” traduz uma experiência relacionalresponsável pela existência humana, posto que énela que o EU se realiza. Afirma Buber: “O EUse realiza na relação com o TU; é tornando EUque digo TU. Toda vida atual é encontro.” [...]“O TU encontra-se comigo. Mas sou eu quementra em relação imediata com ele. Tal é a relação,o ser escolhido e o escolher.” Portanto, comolembra Morin (1998), para cumprir um papelestimulador, o diálogo deve comportar a idéia de“antagonismo”, caso contrário desempenharáuma função “reguladora”.

Acreditamos que seja por meio dessapalavra “estimuladora” ou dialógica que aeducação pode intervir nos processos sociais deforma transformadora. Portanto, a identificaçãodo sujeito com o coletivo – este constituinte do“espaço do saber” – só pode ocorrer de maneiraadequada se as atuais tecnologias forem utilizadascomo meio para promover uma relação dialógica.No entanto, mesmo considerando que, do pontode vista técnico, as tecnologias de informação e

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comunicação propiciem essa relação, elas exigemcertas habilidades básicas, tais como ler eescrever, o que automaticamente exclui umagrande parcela da população do planeta. Por outrolado, essa relação depende menos da tecnologiae mais do grau de consciência que o educadortem de seu papel.

Em uma sociedade informatizada, que nãosó entroniza a linguagem digital como engloba,paradoxalmente, o domínio da escrita teclada, odocente vê-se diante de profundos embates. Comojá assinalamos, se, por um lado, a questão de fundoencontra-se na maneira inadequada de realizar apassagem da linguagem oral para a linguagemescrita, por outro, não devemos ignorar a grandeexpectativa que recai sobre o docente, no sentidode ele proporcionar um ensino cujo alvo seja o depossibilitar um domínio básico da escrita teclada.

Cabe lembrar que, para Freire (1994, p.165), “a operosidade de grupos humanos está cadavez mais na dependência do saber técnico ecientífico”, em níveis distintos, e que, paraoperacionalizar esses conhecimentos –imprescindíveis para o futuro –, saber utilizar etransmitir a linguagem é primordial. Seguindo opensar freireano, é inevitável refletir sobre aspossibilidades de os docentes se reapropriaremde uma tecnologia que tem gerado exclusãosocial, impondo uma nova cognição e aintrodução da escrita teclada.

Observando pelo prisma cognitivo, porpromover experiências estéticas por meio derepresentações antes inexistentes, o uso docomputador passou a requerer competências nocampo da cognição. Se associarmos a isso o fatode que, em geral, as mudanças tecnológicasacarretam necessariamente alguma exclusão,surge uma questão preocupante para a educação.Ainda observando os aspectos cognitivos, talvezpossamos nos valer da reflexão de Morin (1999),segundo a qual o atual momento impõe umareforma de caráter paradigmático e não somente

programática. Trata-se de uma nova maneira dereorganizar o conhecimento.

Pensado como modelo a ser seguido, umparadigma se rompe quando os elementos que oconstituem deixam de viger. Por esse prisma, astecnologias de informação e comunicaçãopromovem a quebra de paradigmas, desconstruindoconceitos e valores até então estáveis.

No campo da educação, tal ruptura ficaevidenciada diante das novas exigênciascognitivas dessas tecnologias, vinculadasdiretamente aos novos parâmetros de navegação,os quais encontram no computador oviabililizador das práticas de coleta de informaçãoe acesso ao conhecimento, contribuindo paraoutras formas de aprendizagem e impondodiversidade e velocidade de evolução dos saberes.

Essa perspectiva imprime na educação umdeslocamento na relação ensino-aprendizagem, naqual a aprendizagem assume um papelproeminente. Portanto, nossa preocupação devevoltar-se, não só para o que ensinamos, mastambém para o que o outro aprende. Um dosaspectos importantes dos recursos inerentes aocomputador é o de agregar elementos tanto dalinguagem falada quanto da escrita, embora alinguagem digital esteja longe de ser um somatóriodas duas. No entanto, o fato de encontrarmoselementos em comum entre essas três linguagenspossibilita indagar até que ponto a linguagemdigital, metaforicamente argumentando, pode serutilizada como uma “ponte” entre a linguagemoral e a linguagem civilizacional, ou seja, entre alinguagem falada e a linguagem escrita.

PROBLEMATIZANDO A EDUCAÇÃO

Entendemos que uma das singularidadesdas tecnologias de informação e comunicação éo fato de elas se expressarem sobretudo em umobjeto-meio (o computador), que necessita daatuação do sujeito, para realizar as funções para

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as quais foi programado. Nesse caso, estamosafirmando que essas tecnologias, sozinhas, oucom um “docente-meio” – “mediador” –,dificilmente teriam condições de solucionarquestões como as que apresentamos. No entanto,é por exigir a presença de um sujeito que ocomputador pode permitir uma apropriaçãovoltada para o âmbito da educação, favorecendoque se estabeleça uma relação dialógica entredocente e discente.

Encontramos em Ferreiro (2002) subsídiospara tal reflexão, uma vez que para a autora astecnologias de informação e comunicação serãode grande valia para a educação se contribuírempara sepultar os intermináveis debates sobre temasobsoletos, como, por exemplo: “deve-se começara ensinar com letras cursivas ou bastão?”; “o quefazer com os canhotos?”; “deve-se ensinar a lerpor palavras ou por sílabas?”, entre outrasquestões. Corroborando essa visão, Luft (2003)nos lembra que expor o aluno à constante leiturae, posteriormente, levá-lo a produzir textos,significa fazê-lo conviver com a gramática emfuncionamento, portanto, com a língua viva.

Cabe lembrar que Freinet (1989, p. 120) járessaltava que, se a escola se apropriasse dosinstrumentos e das técnicas, em todos os graus,que propiciam um trabalho que atenda àsnecessidades funcionais das crianças, o problemada aquisição da escrita-leitura – ou lectoescrita –já não se apresentaria com tanta agudeza. Com osurgimento do computador, essa possibilidadepode se materializar na produção textual, quandose efetuam links – ligações – para integrar,interagir, corrigir e refletir, devido ao rápidoprocessamento de dados.

Neste sentido, no âmbito acadêmico, astecnologias de informação e comunicação podemauxiliar no aprimoramento da linguagem escrita,desde que os recursos interativos e multimediá-ticos presentes na linguagem digital, próximos dadinâmica da linguagem oral, sejam utilizados pelo

docente como elementos facilitadores para que oaluno se aproxime da escrita teclada.

Inevitavelmente, essa questão nos remete,de início, à própria gramática e aos métodos deensino. No que tange à gramática, Perini (1997,p. 52-53) afirma que essa matéria carece de“organização lógica”, fazendo uma ressalva aolançar tal afirmativa, explicando que a gramáticaque não tem lógica é a que se ensina com o nomede gramática nas escolas. Como exemplo, o autorcita uma definição de “sujeito” encontrada numagramática: “Sujeito é o ser sobre o qual se fazuma declaração”. Nessa mesma gramática,algumas páginas depois, segundo o autor,encontra-se a seguinte frase: “Quem disse isso?”,e o pronome “quem” vem sublinhado como sendoo sujeito. Para testar a logicidade de suaafirmação, o autor indaga qual é a declaração quese faz sobre esse “quem”, confirmando a suaassertiva. Nesse ínterim, ressalta que não é de seespantar que os alunos não sintam segurança nessadisciplina.

No que concerne à metodologia, Perinitambém salienta que, muitas vezes, o alunorecebe como resposta às suas perguntas a seguintefrase: “Assim que é o certo”. – ‘E ponto’,inferimos – (grifo nosso).

Cremos, então, quando se refere àmetodologia, que se trata de um uso excessivodo ensino prescritivo, sem metodologia adequadae com objetivos mal formulados para que talresposta seja dada.

No que se refere ao docente, para umconsiderável número de pensadores, como nocaso de Lévy (1999, p. 171), “o professor torna-se o animador da inteligência coletiva dos gruposque estão a seu encargo”.

Se, por um lado, podemos entender essaafirmativa de Lévy, resgatando do termo animadorpor ele utilizado o sentido etimológico, a saber,aquele que dá anima, ou seja, movimento, alma,por outro, esse animador pode ser aquele

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produzido por um sistema em que o espetáculoimpera. Palavras como animador, mediador efacilitador têm sido empregadas para designar oofício docente, entretanto, acabam por mascararuma situação que não se sustenta, porque não éverdadeira. O professor será sempre o professore, na sua ação, poderá mediar, orientar, facilitar etambém animar, uma vez que tais verbos fazemparte dessa ação.

No que concerne à questão ensino-aprendizagem, porém, a aprendizagem somenteocorrerá em uma relação na qual o docente nãoseja visto como detentor da verdade e do saber,recaindo, portanto, toda a discussão em como seensina, considerando, também, como se aprende.

Ao argumentar sobre o “si-mesmo” comoimago Dei, Jung (1986) salienta que as pessoasligadas a profissões de ajuda, como professores emédicos, por exemplo, devem ficar atentas àsprojeções “divinas” que se costumam fazer sobreelas. No entanto, é parte do ato de educar nãoacatar essa projeção que o aluno confere aoeducador. Na perspectiva de Buber (1979), aceitaruma projeção divina é impedir o estabelecimentode uma relação Eu-Tu, uma vez que essa relaçãoé que poderá gerar a transformação e a libertaçãodo outro.

Fritz Lang, em seu monumental filme de1926, Metropolis, afirma que entre a mente doque planeja e a mão do que constrói deve haverum mediador. Esse mediador, localizado entre amente e a mão, é o coração. Apropriamo-nosdessa metáfora para esclarecer nosso ponto devista, pois cremos que não é do ofício do professorser o que está “entre”, “o meio” – o coração.Acreditamos que, no alvorecer desse mundo quese configura de forma desterritorializada, o papeldo professor vai além da mediação, da facilitação,da orientação, pois sua responsabilidade é aindamaior, devido à velocidade das transformaçõespor que passa o planeta e pela ruptura de valoresque tem ocorrido na mesma velocidade. Cremos

que o professor, nestes tempos, deve ser aqueleque está à frente, que consegue perceber o sim-bólico e o dia-bólico em sua ação e, assim,construir pontes. Dito em outras palavras, oprofessor é a mente que planeja, a mão queconstrói e também o coração – enfim, umsomatório dos três.

Por meio desse somatório, cremos que oprofessor se transformaria em educador,guardando para si a responsabilidade deestabelecer uma relação dialógica, a despeito dosmeios e das ferramentas tecnológicas utilizados.Nessa óptica, torna-se relevante para oestabelecimento de uma relação dialógica oquase sempre enriquecedor ato de ouvir comoatividade integrante do processo decomunicação – ato ativo e voluntário,fundamental para o estabelecimento de relaçõesinterpessoais. Relações que ocorrem quandoquem fala e quem ouve assumemcomportamentos que permitem o encontro doEU com o TU.

No entanto, o fato de as tecnologias deinformação e comunicação poderem serutilizadas para a “carnavalização” e a espetacula-rização, fortalecendo uma perspectiva distanciadada atividade acadêmica, não impede que seu usotambém se volte para uma ação educativa,prestando-se a uma relação que favoreça aaprendizagem baseada no diálogo entre docentee discente.

Mariotti (2000, p. 194) ressalta a dificuldadeque temos em ouvir o que o outro tem a dizer,porque isso implica transacionar a vida com ele,deixando de vê-lo como objeto. E acrescenta queo “já sei” ou o “já conheço” é a lâmina com quelhe cortamos a palavra. Em resumo, Mariottiafirma que se trata de uma violência com a qualinterrompemos a formação das redes deconversação, imprescindíveis ao desenvolvimentode uma alteridade solidária. Trata-se de umalâmina que interrompe o encontro do Eu-Tu,

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responsável pelo reconhecimento do outro comopura alteridade.

Ferreiro (2001) saúda e dá boas-vindas àtecnologia que elimina destros e canhotos aotrazer o teclado. Reconhece, porém, que atecnologia, por si só, não vai simplificar asdificuldades cognitivas e que tampouco será aoposição “método versus tecnologia” quepermitirá superar as desventuras da educação.

Ao utilizarmos as tecnologias deinformação e comunicação para realizar umensino produtivo, no qual prevaleça a relaçãodialógica, o docente se afasta do que Huxley(1992) denominava de “celibato do intelecto”.Tendo como foco a aprendizagem e, portanto, apreocupação com o outro, essas tecnologiasdevem ser usadas como mais uma das possíveisferramentas a serem exploradas, principalmenteno que elas possam oferecer para fortalecer arelação Eu-Tu.

É mister colocar os alunos frente adificuldades, frente a enigmas, orientando-os efazendo-os perceber que essas tecnologiasapontam para muitas possibilidades, emborapassíveis de serem questionadas. Daí a impor-tância de os alunos realizarem uma reapropriação,ou seja, apropriarem-se novamente dastecnologias, para delas retirar o que potencializea existência-humana-no-mundo.

Essa postura, sem dúvida, exige mudançasdos docentes. Em algum momento o docentedesempenhará o papel de transmissor, mediador,facilitador e tantos outros papéis, mas a questãocentral parece recair nas antigas perguntas: Quala responsabilidade do docente no ato de educar?Educar o quê? Para quem? Para quê? Como? Epor quê?

Posto nesse lugar, caberá a ele maiorresponsabilidade, pois não lhe deverá faltar aconsciência de que assumir o papel de autoridadeimplica assumir uma posição responsável.Responsável pelo que diz, responsável pelo

conteúdo, mas também responsável poremancipar o jovem. É importante destacar que autilização das tecnologias de informação ecomunicação seja entendida como uma opçãopara se realizar uma educação contextualizada.Por educação contextualizada entendemosfornecer contexto a cada acontecimentosociocultural ou existencial e não retirar ainformação do seu contexto para fazê-la chegarao contexto do aluno.

Percebemos que as tecnologias deinformação e comunicação, coleando entre ovirtual e o presencial, dão-nos o referencial dosignificado de pontífice, pois podem serentendidas como ponte capaz de auxiliar a açãointegradora das diferentes mídias e, nessaintegração, abrir “novos espaços”. Essastecnologias trazem no seu bojo possibilidadesinovadoras. No entanto, para que se efetive o atode educar, é fundamental que o educadorreconheça a necessidade de incorporar um pensarque englobe a concepção filosófica freiriana deconhecimento inacabado e permanente, o quemantém o docente em constante ato reflexivo,disposto a revisar constantemente seu repertóriode saberes.

Sabemos que, mesmo trazendo apotencialidade de introduzir novas práticas nocampo do ensino e da aprendizagem, astecnologias de informação e comunicação per senão propiciam a emergência espontânea de novosparadigmas de apreensão da realidade. Torna-se,portanto, de fundamental importância um projetoeducacional que vise a preparar o educador paraa dimensão da aprendizagem. Por sua vez, oensino calcado na técnica ou em procedimentosnão proporciona nem ao educador nem aoeducando a possibilidade de interagir com apluralidade de informações e conhecimentos quese entrecruzam nesse “novo espaço do saber”.

Neste momento de verdadeira mutaçãocivilizatória, cabe ao docente, tal como um arauto,

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anunciar ao discente, não somente as atuaistransformações, mas orientá-lo e promover adiscussão, a fim de estimular o diálogo e a reflexãocrítica. Essa atitude pode ser comparada a umsalto.

E, nesse salto, arriscamos. Arriscamos comouma aranha, que, ao produzir uma substânciaaquosa, semelhante a uma goma, friccionando oabdome, planeja a construção da teia. O primeirosalto de um ponto ao outro, para dar início àconstrução, é um risco. Ao saltar, o aracnídeo cola-se em outro ponto com a goma produzida, que setransformará em fios. E assim, sucessivamente,vai de um ponto ao outro, desenhando o seutrabalho.

Arriscamos, cientes do “correr o risco”, poracreditarmos que a construção ocorre pela relaçãopermeada por um diálogo, que, preservando adimensão dialógica, não permita que o outro entreem elipse. Relação que se faz religação. Religaçãoque significa uma permanente travessia na buscade uma relação diferenciada entre o eu e o outro.

Nessa travessia, o nosso empreendimentoé o de perlustrar os mares ainda pouco navegados,no propósito firme de somar, para posteriormentedividir, pois o pouco que temos e apresentamosfoi conseguido pela divisão.

Divisão que, para se realizar, colocou-nosentre pensadores ilustres, apresentando-nosadmiráveis novos horizontes, habitados porsábios, deuses e poetas. Com e “sobre os deusese os poetas”, conseguimos aprender que “o poetanão é o melhor operário, mas o melhorinstrumento” (PERNIOLA, 1993). Mas, paraobtermos essa ferramenta, talvez tenhamos de,como educadores, visitar o Parnaso parapodermos reinventar, reencantar, redescobrir edespertar, conduzindo-nos a uma visão daeducação que, mesmo condizente com esses“novos tempos”, não perca a responsabilidadeque encerra o ato de educar.

Talvez pouco haja de novo a dizer, masmuito exista no ato da re-dicção. Quandoquestionada, a educação deve voltar-se para seusprincípios básicos e, através do olhar poliocularsobre ela lançado, talvez apenas re-dizer o quesempre lhe coube: manter-se fiel a umaperspectiva ética, cujo horizonte seja o dapreservação da dignidade do homem. Dignidadeque deve englobar não só o atendimento dasnecessidades básicas de sobrevivência, mas o dever e ouvir o outro como alteridade.

Educar é também ter a possibilidade deouvir o outro. “Quando se ouve alguém,verdadeiramente, e se apreende o que maisimporta a essa pessoa, ouvindo não apenas aspalavras, mas a ela mesma, e fazendo-a saberque foram ouvidos os seus significados pessoaisprivados”, surge um sentimento de gratidão, e apessoa se sente libertada (ROGERS, 1977). E,imersa nesse sentimento de liberdade, a pessoasente um forte desejo de transmitir mais coisassobre o seu “pequeno-grande-mundo”, quehabita poética e prosaicamente. De acordo comRogers (1977, p. 223), nesse momento,vivenciando esse novo senso de liberdade, emque prevalece o viver em estado de poesia, “apessoa pode se tornar mais acessível ao processode mudança”. No entanto, acrescenta, hoje hápessoas que vivem “em cárceres privados, genteque nada exterioriza do que tem no seu íntimo,cujas tênues mensagens só com muito esforçose podem captar”.

Na visão rogeriana, há pessoas que, emdevaneios e aprisionadas em seu mundo prosaico,clamam por alguém que as ouça, como se fossemprisioneiras de uma masmorra e passassem adedilhar, em código Morse, dia após dia, asseguintes mensagens: “Alguém me ouve?”, “Háalguém aí?”, “Pode alguém ouvir-me?”. Até queum dia, finalmente, escuta uma tênue batidinhaque ele soletra: “Sim!”

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“Sim!” Tal resposta “mímica o liberta dasolidão, ei-lo a se tornar, outra vez, um serhumano” (ROGERS, 1977, p. 223).

É...Ouvir carrega realmente consigo conse-

qüências: gratidão, liberdade e o fato de promoverum possível e rápido acesso ao processo demudança. Mudança que pode conduzir o sujeitoa uma vida harmônica. E estar em harmonia étransitar pelo poético e o prosaico.

Morin (1998) afirma a necessidade dereconhecer que o sujeito, inserto em qualquercultura, produz duas linguagens a partir da sualíngua. Uma racional, empírica, prática, técnica,tendendo a precisar, denotar, definir, apoiadasobre a lógica. Outra simbólica, mágica, mítica,utilizando-se da conotação, da analogia, dametáfora, ensaiando “traduzir a verdade dasubjetividade”. A cada uma dessas linguagens,que podem ser justapostas ou misturadas,separadas ou opostas, correspondem dois estados:o prosaico e o poético.

Viver em estado prosaico significa responderàs vicissitudes da vida diária, percebendo o mundoque nos cerca e raciocinando, na busca incessantede um agir melhor.

Viver em estado poético significa viver emum “estado segundo”, em estado de vidência, quenos transporta “através da loucura e da sabedoriae para além delas”.

Assim, conclui o autor, “poesia-prosaconstituem o tecido de nossa vida” (MORIN,1998, p. 23).

E para perceber o entrelaçamento dessetecido que perpassa o nosso existir-no-mundo épreciso ouvir. Os santos e os poetas talvezpercebam, um pouco, esse entrelaçamento, poisouvem além das palavras, aguçando o terceiroouvido e apreendendo a incorporeidade dapalavra. Saber ouvir talvez seja uma dascondições para que possamos nos tornar de fatoeducadores.

Remetemo-nos a Bilac, o mais espontâneopoeta brasileiro, que percebeu a magia desseentrelaçar e a traduziu num dos mais belossonetos da língua portuguesa. Transcrevemo-lointegralmente para que possa ser apreciado,sentido, mas também aprendido.

“Ora (direis) ouvir estrelas! CertoPerdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muitas vezes despertoE abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquantoA Via-Láctea, como um pátio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em prantoInda as procuro pelo céu deserto

Direis agora: “Tresloucado amigo!Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

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1 Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

POSIÇÃO SOCIOMÉTRICA DO ALUNO COMDIFICULDADES DE APRENDIZAGEM: CONTRIBUIÇÕES

DA TEORIA DE MORENO PARA A EDUCAÇÃO

Eliane Giachetto Saravali 1

RESUMOO objetivo desse trabalho consistiu em investigar a posição sociométrica de alunos comdificuldades de aprendizagem na inter-relação com seus colegas de sala. Nossos sujeitosforam alunos de uma 4ª série da rede pública do estado de São Paulo, indicados pelaprofessora como sendo crianças com dificuldades de aprendizagem. O teste sociométricoobjetivo foi aplicado duas vezes no ano letivo. Os resultados apontaram para a baixa ounenhuma escolha que as crianças com queixa de Dificuldade de Aprendizagem têm deseus colegas.PALAVRAS-CHAVE: Dificuldades de aprendizagem. Sociometria. Interação social.

SOCIOMETRIC POSITION OF A STUDENT WITHLEARNING DIFFICULTIES: CONTRIBUTIONS

OF MORENO’S THEORY FOR EDUCATION

ABSTRACTThe central objective of this work consisted in investigating the sociometric position ofstudents with learning disabilities when inter-relating with their school-mates. Our informantswere fourth graders of the Public State Schools of São Paulo, Brazil, indicated by theschoolteacher as being children with learning disabilities. The socio-metric objective testwas applied during the first and second terms of the school year. The results pointed inthe direction of a low or nonexisting choice the children with learning disabilities have oftheir school-mates.KEYWORDS: Learning disabilities. Sociometry. Social interaction.

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O campo de estudo referente às dificul-dades de aprendizagem é amplo e muitas vezesambíguo e confuso, não havendo consenso sobrea definição e caracterização desse termo. Noentanto, a cada dia vemos que cresce o númerode alunos do nosso sistema de ensinocaracterizados como tendo dificuldades deaprendizagem. Rapidamente, muitos professoresencaminham e rotulam crianças que não têm tidosucesso na escola. Tal fato tem encontradoressonância na explosão dos cursos de especia-lização em Psicopedagogia que, teoricamente,vão formar o profissional que deverá lidar comas questões relacionadas ao processo de aprender.Assim, muitos professores esquivam-se de suasresponsabilidades, transferindo-as para ospsicopedagogos e psicólogos. Isso ocorre nãosomente pelo comodismo ou pela negligênciados educadores, mas também pela falta de(in)formação a respeito das questões referentesàs dificuldades de aprendizagem, às formas deintervenção e ao papel da escola nesse processo.Destaca-se, também, a formação dos pedagogos,que muitas vezes não aborda tais questões.

A amplitude e confusão terminológica dasDificuldades de Aprendizagem (DA) ocorrem emrazão das diferentes influências que o camposofreu, tais como, a médica e organicista, queprocura relacionar as dificuldades de aprendi-zagem com problemas no funcionamentocerebral provocados por lesões, mau funcio-namento ou desequilíbrio químico; a pedagógicaou escolar, que procura associar as DA comquestões metodológicas e didáticas; e aquelasligadas a fatores psicológicos e a problemasrelacionados ao processamento da informação.

Diante desse quadro, evidenciar um eloentre problemas de interação social, ou mesmo aexistência de inadaptações sociais e asdificuldades de aprendizagem é algo que nãoencontra unanimidade na literatura. Dependendodo enfoque adotado, alguns autores admitem ou

não que estes problemas sejam as própriasdificuldades enfrentadas pelo sujeito. No entanto,um consenso que parece existir é o de que as DApodem gerar ou mesmo agravar problemasrelacionados à adaptação social e convivência.

A criança que desde cedo vivenciaexperiências de fracasso e insucesso e percebeconstantemente os julgamentos dos professorese dos próprios colegas da sala sobre os seusproblemas com a aprendizagem, tende a formaraos poucos uma imagem negativa de si mesma.A repetição dessas situações certamente causadesconforto para o aluno, que pode passar adesacreditar nas suas próprias capacidades esentir-se altamente desmotivado em relação aosestudos e à escola. Tal situação pode gerar umainstabilidade emocional bem como a dificuldadeem formar vínculos afetivos e sociais. É possível,também, que a criança procure um meio para fugirdessa situação, como, por exemplo, apresentarmau comportamento em sala de aula, na tentativade mudar o foco da incapacidade cognitiva parao da indisciplina e rebeldia. Há também casos emque o aluno, excluído ou sentindo-se excluído pelogrupo, simplesmente fecha-se, assumindo umaposição de total rejeição.

A interação social é importante para odesenvolvimento humano. Jean Piaget (1896-1980)já a apontava como um fator do desenvolvimento,na medida em que o contato com o outro provocaa descentração do pensamento, criando anecessidade de coerência nas ações. Ou seja, temosa necessidade de trocar e conviver com o outro,como condição para o avanço cognitivo.

O presente trabalho teve por objetivocentral investigar as interações sociais quecrianças, apontadas pela professora como alunoscom dificuldades de aprendizagem, estabelecemno grupo da sala de aula do qual fazem parte(SARAVALI, 2003).

Algumas questões nortearam nossotrabalho: Como estão esses alunos na sala? Como

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são vistos pelos colegas e pelos professores? Estãotendo possibilidades de interagir com os demais?Como percebem suas relações interpessoais? Nostempos atuais, em que a inclusão é assunto tãodebatido, será que essas crianças estão incluídasno grupo da sala a que pertencem?

Para avaliarmos essa interação, baseamo-nos na sociometria, criada por Moreno (1972a) eutilizamos o teste sociométrico objetivo, nointuito de avaliar a posição que ocupam ascrianças com dificuldades nas relações queestabelecem com o grupo. A sociometria parece-nos um referencial bastante válido, uma vez quebusca compreender a real posição ocupada poralguém no grupo do qual faz parte. O testesociométrico, que avalia as preferências dosmembros do grupo em relação a diferentescritérios, permite-nos compreender melhor a redede interação que se estabelece entre todos. Comoescolhem e são escolhidas as crianças que têmdificuldades de aprendizagem? Há diferençanestas escolhas conforme o critério sociométricoadotado?

Estaria o rótulo da incapacidadeatrapalhando o aluno no seu desenvolvimentocognitivo e também social e afetivo? Uma criançaque está construindo sua própria imagem e é vistapelo professor e pelos colegas como alguémincapaz, nunca sendo, por exemplo, escolhida pararealizar um trabalho escolar, não teria problemasna sua forma de se relacionar com as situaçõesde aprendizagem? Tal avaliação negativa nãoinfluenciaria também as relações de amizade,afetivas e sociais, vivenciadas com os demaiscolegas da sala?

A partir dessas reflexões, formulamos oseguinte problema de pesquisa: Qual a posiçãosociométrica observada em alunos com queixade dificuldades de aprendizagem na inter-relaçãocom os demais colegas da sua sala, conforme aanálise dos resultados de um teste sociométricoobjetivo?

Os objetivos que pretendemos alcançarcom o nosso trabalho puderam ser assimformulados:

Objetivo Geral: aplicar e analisar osresultados de um teste sociométrico numa salade aula, nos meses de junho e setembro do anoletivo e investigar a posição sociométrica ocupadapelas crianças com dificuldades de aprendizagem.

.Objetivos Específicos:1) Investigar se há diferenças ousemelhanças nas posições ocupadas porcrianças com dificuldades de aprendizagemconforme o critério sociométricoapresentado;2) Relacionar a posição sociométricaocupada pelos alunos com observaçõesrealizadas pela professora;3) Analisar o histórico escolar dos alunosda sala pesquisada;4) Relacionar a posição sociométricaocupada pelos alunos com os dadosobtidos no histórico escolar;5) Verificar, por intermédio de depoimentoscoletados com os alunos da sala, como ossujeitos vêem sua relação com os demaismembros do grupo.

A metodologia de pesquisa empregada nopresente estudo caracteriza-se pela pesquisa não-experimental ou ex post facto (KERLINGER,1979). Neste tipo de pesquisa não há manipulaçãonem controle de variáveis, uma vez que o fato éinvestigado após sua ocorrência. Portanto, nossaproposta metodológica consistiu num trabalhodiagnóstico e não de intervenção.

Nossos sujeitos foram alunos de uma 4ªsérie da rede pública de um município do interiordo estado de São Paulo. A sala de aula escolhidafoi indicada pela professora como uma sala quepossuía crianças com dificuldades de aprendi-zagem, dessa forma, os sujeitos foram caracteri-

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zados pela queixa de dificuldade de apren-dizagem.

Os procedimentos empregados foram osseguintes: aplicação do teste sociométrico no mêsde junho, coleta de observações sobre os alunosjunto à professora da sala, análise do históricoescolar. Em seguida, no mês de setembro, osmesmos procedimentos foram reempregados,ocorrendo também a coleta de depoimento dosalunos numa redação com o seguinte tema: Comoé sua relação de amizade com seus colegas declasse?

Os resultados apontaram para a baixa ounenhuma escolha que as crianças com queixa de

DA têm de seus colegas. Apresentamos aqui doissociogramas da aplicação feita em setembro, queretratam tal fato; as crianças com queixa de DAestão representadas pela cor cinza. Para arepresentação sociométrica, os círculos indicam oselementos do sexo feminino e os triângulos os dosexo masculino, as setas correspondem a quem sereferem as escolhas feitas pelos sujeitos. Durantea aplicação dos testes, os alunos eram sempreconvidados a pensarem sobre questões afetivas eintelectuais. Assim, primeiramente deveriam pensarsobre qual colega da sala escolheriam para passearno Shopping e em seguida qual colega escolheriampara fazer uma lição difícil.

Figura 1 – Sociograma da primeira escolha do critério afetivo: Qual colega da sala você levaria para passear no Shopping com você?

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Para a obtenção das informações junto àprofessora, solicitamos que a mesma preenchesseuma tabela na qual deveria avaliar os alunossegundo o relacionamento interpessoal e odesempenho acadêmico, utilizando-se doscritérios: P – péssimo, R – regular, B – bom, MB– muito bom e O – ótimo. Os dados obtidosmostraram que nem sempre o julgamento daprofessora sobre o aluno coincide com a posiçãosociométrica que este ocupa no grupo,ressaltando a importância do teste sociométricopara um maior conhecimento das interaçõesestabelecidas na sala de aula. Foi possível observartambém que o julgamento que a professora fazdo aluno com dificuldade de aprendizagem temrelação direta com o número de escolhas que estealuno obtém no teste sociométrico.

Os conceitos utilizados no histórico escolarcorrespondiam a Muito Bom (MB), Bom (B) e

Figura 2 – Sociograma da segunda escolha do critério intelectual: Qual colega da sala você escolheria para fazer uma lição difícilcom você?

Insuficiente (I). A análise do histórico constatouo baixo rendimento escolar da criança com queixade DA, confirmando as observações daprofessora. As crianças com DA tinham I em pelomenos uma disciplina e poucos conceitos MB. Ascrianças que tinham os piores conceitos tiveramtambém menos escolhas no teste do que as outrascrianças com DA que tinham conceitos um poucomelhores.

A análise das redações não evidenciouquestões relacionadas aos sentimentos deexclusão, ou problemas no relacionamentointerpessoal como era esperado. Os conteúdosdas redações concentraram-se em:

• Uso de adjetivos: “É muito legal” “Émuito boa”2

• Descrição das atividades que maisgostavam de realizar com os amigos:

2 As transcrições foram feitas respeitando os textos originais, exatamente como eles foram escritos. Os nomes dos sujeitos foramsubstituídos pelo número correspondente ao utilizado no sociograma a fim de não possibilitar a identificação.

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“... Sempre me damos bem e, nós semprejogamos handebol, pingue-pongue,queimada, amarelinha, esconde-esconde,pega-pega e etc.”

Somente um aluno apresentou uma redaçãocujo conteúdo retratava sentimentos envolvendoas relações de amizade: “Eu respeito eles, eubrinco do que eles quer brincar na hora que elesquer falar eu deixo eles também me respeita nósnão brigamos um com o outro não jogamos umjogo sujo e nós repartilhamos as nossas coisas.”

O fato das redações não retratarem o temaamizade e quase sempre referirem-se a descriçõesdas ações que realizavam com os colegas,sobretudo em momentos fora da sala de aula,como por exemplo, no recreio e nas aulas deeducação física, nos alerta para a importância dascrianças terem realmente oportunidade de estaremjuntas, de cooperarem, de tomarem decisões queenvolvam coordenações de diferentes pontos devista e, sobretudo, de refletirem sobre estasquestões.

A inclusão social tão almejada perpassapelos bancos escolares, que desde cedo devempromover a inclusão escolar de TODOS os alunose não somente daqueles que possuem neces-sidades educativas especiais. A escola, depois dafamília, é a instituição que irá introduzir a criançano mundo social e este pode ser acolhedor evoltado para o diálogo ou tremendamentesegregador e excludente.

Pretendemos com nosso trabalho oferecerreflexões acerca do papel da escola e dosprofessores. Acreditamos também que psico-pedagogos, profissionais ligados à formação deprofessores e demais interessados nas questõesque tratamos poderão beneficiar-se e inclusiverealizar outras pesquisas, a partir do queconcluímos.

Entendemos que, na medida em que seinvestiga sobre a interação social estabelecida

pela criança com dificuldade de aprendizagem nasala de aula, muito se pode fazer para melhorar econtribuir diante de um quadro de exclusão ourejeição, por exemplo.

Nossos resultados indicaram que ascrianças com queixa de dificuldade deaprendizagem têm comprometimentos em relaçãoà interação social que estabelecem com o grupo.Tal afirmação pôde ser comprovada, aoobservarmos os resultados da aplicação do testesociométrico em dois momentos do ano letivo.No que se refere a eleições afetivas e intelectuais,nossos sujeitos, apontados como tendo DA,tiveram pouca ou nenhuma escolha dos seuscolegas de sala.

Acreditamos que o estudo sociométricopode trazer grandes contribuições ao trabalhodocente, uma vez que nem sempre as idéias quea professora tinha sobre seus alunos, sobretudoem relação ao relacionamento interpessoal,coincidiam com a forma como as crianças eramvistas pelos demais colegas. Portanto, a aplicaçãodo teste pode contribuir para um maior e melhorconhecimento dos alunos e da posição queocupam em relação aos colegas da sala. Oprofessor que já possui uma série de informaçõessobre seus alunos, pode empregar o testesociométrico como um instrumento a mais nacompreensão, reformulação e reflexão sobre oque já conhece da turma. Essa reflexão deveconduzir a mudanças nas ações realizadas em salade aula, na direção de aprimorar principalmentea organização do trabalho pedagógico, visandonão somente o desenvolvimento da inteligênciae a apropriação dos conteúdos, mas também odesenvolvimento afetivo e social dos alunos.

O professor pode começar perguntando-se:em quantos momentos do dia seus alunos podemtrocar e interagir? Sabemos que tais trocas sãoimportantes não somente para a socialização comotambém para o desenvolvimento cognitivo.Notamos que nas redações feitas pela turma, toda

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vez que as crianças mencionaram as relações quetêm com os colegas, as brincadeiras e jogos quetêm prazer em realizar juntos, fizeram referênciaa atividades extra-sala. Será que ricos momentosde troca dentro da sala não estão sendoperdidos?

Piaget já refletia sobre essas questões edizia que a escola tradicional conhece apenas umtipo de relação social: a que se refere à ação doprofessor sobre o aluno. Neste sentido, o autorexplicava que a vida social entre as crianças nãoé aproveitada dentro da sala de aula e que ostrabalhos denominados de coletivos são, naverdade, uma justaposição de atividades, poiscada indivíduo faz o seu, sem confrontá-lo, dividi-lo, coordená-lo, aprimorá-lo com os demais(PIAGET, 1988).

Ao analisar um sociograma da sua turma,o professor poderá ter um conhecimento maior,sabendo, por exemplo, sobre líderes e sobrerejeitados, enfim, crianças mais ou menosescolhidas. Uma ação bem direcionada poderáfacilitar e até melhorar as relações interpessoais.

Não se trata de aproximar crianças que seescolhem, formar grupinhos com afinidades, massim de provocar a troca, o conhecimento eaceitação pela singularidade e especificidade.Assim, por exemplo, o professor pode organizaratividades em pequenos grupos que visem àparticipação de todos numa meta a ser atingida,pode valer-se menos de atividades coletivas, nasquais sempre uns terminam primeiro e outrosnunca terminam e deixá-los mais juntos,trabalhando em grupo, trocando, conversando eajudando-se enquanto fazem as atividadespropostas, entre outras.3

Os projetos e temas abordados podem sermais originais, saindo daquilo que usualmente étrabalhado e muitas vezes repete-se de ano paraano. Neste sentido, é possível trabalhar com temasrelacionados, por exemplo, aos sentimentos dosalunos, suas atividades preferidas, hábitos,angústias, medos, visando o conhecimento detodos os colegas com os quais se relacionam, orespeito e aceitação pela diferença, a amizadeentre outros.

Os jogos de regras devem ser trabalhadosvisando à interação, à cooperação, à reciprocidadee até mesmo ao trabalho com conteúdos de umaforma prazerosa e lúdica. Os jogos dramáticospermitem a personificação de papéis quetranscendem os limites do tempo e do espaço(ARANTES, 2001).

Conforme observamos anteriormente, avisão da professora em relação ao relacionamentointerpessoal nem sempre coincidiu com aseleições da turma. Todavia, em relação aodesempenho acadêmico, é importante ressaltarque, em muitas ocasiões, o julgamento daprofessora foi coincidente com as eleições dascrianças na escolha intelectual. Tal fato, a nossover, caracteriza a grande influência que o mestre,nessa faixa etária, ainda exerce sobre a turma.Neste sentido, suas opiniões, seus julgamentospodem ser transmitidos por meio de olhares,palavras, gestos, decisões sobre os lugares que osalunos podem sentar-se, comentários, entremuitas outras ações. Os professores devem estaratentos para isso, ao confirmarem os resultadosdo teste que também é um bom instrumento paraalertá-los a observar e reconsiderar seus alunosdiante do grupo.

3 Mantovani de Assis (1999) apresenta uma proposta para a realização das atividades diárias dividida em atividades individuais, atividadescoletivas, atividades em pequenos grupos e atividades diversificadas. Nas atividades coletivas há o mesmo objetivo a ser alcançado pelaturma, por exemplo, ouvir uma história; nas diversificadas: há objetivos diferentes conforme o lugar que a criança escolhe para trabalhar,por exemplo: produzir um texto, confeccionar um mapa, etc; nas atividades em pequenos grupos, as crianças trabalham em grupos menoresbuscando alcançar um objetivo, por exemplo, quatro crianças com a tarefa de fazer uma maquete; nas individuais o professor trabalhadiretamente com uma criança, a fim de acompanhar mais de perto o seu desenvolvimento. Esta proposta corresponde às orientaçõesmetodológicas do Programa de Educação Infantil e Ensino Fundamental (Proepre).

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Todas as crianças que a professora apontoucomo tendo dificuldades de aprendizagem, forampouco escolhidas nos critérios afetivo eintelectual. Sobre este fato, é muito bom refletirsobre os sentimentos que essas crianças elaborama respeito de si próprias. Uma criança que nãotem sucesso na escola vai acumulandoexperiências de fracasso sucessivamente,percebendo-se negativamente em relação aosdemais. Suas dificuldades em relação àaprendizagem tornam-se muito mais destrutivas,na medida em que tem dificuldade em fazeramigos, em relacionar-se, e aos poucos vaificando à margem do grupo, formando umaimagem deformada de si mesma.

Recomendamos a utilização do testesociométrico na sala de aula com as seguintesressalvas: Moreno defendia em nível clínico, nãosomente o diagnóstico, mas a intervenção nogrupo; trabalhando, muitas vezes, com o testeperceptual, devolvendo os resultados aosmembros do grupo e utilizando-se do psicodramapara o tratamento do grupo. O trabalho compsicodrama em nível pedagógico deve ocorrer pormeio da utilização de jogos dramáticos. Nossapesquisa teve fins de diagnóstico num contextoeducacional e não clínico e, portanto, nãorealizamos os demais procedimentos que Morenorecomendava, apenas informamos a professora ecoordenadora pedagógica dos resultados, ao finaldo trabalho.

Acreditamos que o teste possa ser utilizadono sentido de melhorar as relações sociais eafetivas estabelecidas pelo grupo, objetivando ainclusão e a participação de todos. Não érecomendada a devolução das respostas do testeao grupo, pois acreditamos que isso só possa serfeito por um profissional com experiência efundamentação na prática psicodramática em áreaclínica. Um profissional sem este preparo pode,ao apresentar os resultados sobre as escolhas, oumesmo numa análise do teste perceptual, causar

grandes danos a alguns alunos, que terão seussentimentos de rejeição e de inadaptação socialseveramente agravados. Os resultados devem serutilizados sigilosamente para melhorar o inter-relacionamento grupal.

As ações dos professores devem caminharao encontro das necessidades dos alunos,necessidades estas relacionadas ao seu desenvol-vimento não somente cognitivo, mas afetivo,social e motor. Portanto, estar atento ao querealmente ocorre com o aluno na sala e atuar emprol de uma melhor interação é papel fundamentaldo educador.

As inúmeras experiências de fracassopodem levar o aluno a formar uma imagemnegativa de si mesmo, a ter medo do desafio, a sedesinteressar pelas atividades escolares, entreoutros aspectos indesejáveis. Diante deste quadro,suas relações com os colegas podem vir a serprejudicadas, acentuando-se ainda mais oproblema.

Portanto, se a escola mantiver uma posturaseletiva, com ênfase somente no rendimentoacadêmico, pode inf luenciar e reforçar ainadaptação do aluno, culminando muitas vezes,mais tarde, no atraso mental, na delinqüência ouem sociopatias múltiplas (FONSECA, 1995).Sobre isso, vale ressaltar que pesquisas recentesapontam que um grande número de adolescentese adultos envolvidos na criminalidade ou atémesmo no uso de drogas tiveram uma históriaescolar complicada, caracterizada pordificuldades na escola primária, autoconceitonegativo, exclusão social, entre outros(TOPCZEWISKI, 2003).

Acreditamos que tais reflexões devam serampliadas para todos os níveis de escolaridade,não somente para séries iniciais do ensinofundamental, mas para nossos alunos do ensinomédio e superior.

Em nossa sociedade convivemos com aintolerância e as guerras são destaques nos

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noticiários. Ora, não podemos esquecer que asociedade da diversidade começa na escola e queuma segregação que já se inicia nas carteirasescolares, tão cedo, é muito perigosa.

Precisamos aprender a aprender juntos,acessar juntos o conhecimento. Não se trata decompensar as diferenças, todos devem ver-secomo diferentes e singulares e não somente ver ooutro como diferente. A educação e a escoladevem ser espaço para emoção e convivência. Noespaço escolar deve predominar o diálogo, o afeto,a valorização dos sentimentos alheios. Deve-se

buscar a aceitação e o rechaço pela rejeição,mediante uma participação ativa e prazerosa nasala de aula, compreendendo e acolhendo,ensinando os alunos a ter uma atitude maisflexível e cooperativa em relação aos outros,valorizando as capacidades de cada um.

Queremos estar contribuindo para que osprofessores encontrem meios para transmitir aosseus alunos os fundamentos do ensinodemocrático, o reconhecimento do colega na suadiferença, na sua alteridade, chaves fundamentaispara uma vida em sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DOPROLETARIADO EM CLASSE

Jussara Marques de Macedo1

RESUMOA partir de revisão bibliográfica de Marx, Engels e Gramsci, o artigo aborda a constituiçãodo proletariado em classe na sociedade capitalista. Com base nos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico, o artigo apresenta a tese de que as condiçõespara a constituição do proletariado em classe na contemporaneidade estão colocadas emdecorrência do aumento da produtividade do trabalho e da complexificação da política.Cabe, portanto, à direção do movimento dos trabalhadores capitalizar tais condições emfavor de seus interesses.PALAVRAS-CHAVE: Luta de classes. Capitalismo. Burguesia. Proletariado.

SOME NOTES ON THE CONSTITUTIONOF THE PROLETARIAT IN CLASS

ABSTRACTThis article is about the formation of the proletariat in class in the capitalist society, basedon Marx, Engels and Gramsci’s bibliographical review. Still, based on the theoretical-methodological presuppositions of the historical materialism, this article presents thefollowing thesis: the conditions for the formation of the proletariat into a class nowadaysare presented here, resulting from labor’s productivity increases and from the diversificationof public politics. It behooves, therefore, to the working class leadership search for suchconditions in behalf of its member’s interests.KEYWORDS: Class conflict. Capitalism. Bourgeoisie. Proletariat.

APRENDER - Cad. de Filosofia e Pisc. da Educação Vitória da Conquista Ano II n. 3 p. 89-103 2004

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF–RJ). Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

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INTRODUÇÃO

Neste artigo apresentamos uma reflexãosobre as possibilidades de constituição doproletariado em classe. Para isso, fez-se necessáriauma retomada da leitura de Marx, Engels,Gramsci e outros autores contemporâneos comoNeves, por exemplo. Nossa intenção foi a deapontar as reais possibilidades de tomada dopoder por parte da classe trabalhadora, com vistasà constituição de uma nova sociedade, a partirda perspectiva da classe dominada, rompendo,dessa forma, com a hegemonia burguesa.

Em um primeiro momento, analisamos odesenvolvimento da sociedade capitalista,segundo a contribuição de Marx e Engels,tomando como referência o Manifesto. Com basenesses teóricos, apontamos as reais possibilidadesde organização da classe trabalhadora. Nossa tesecentral é a de que o desenvolvimento docapitalismo exige a qualificação dos traba-lhadores, o que abre possibilidades concretas parasua organização em classe. Em seguida, tomandocomo referência a contribuição de Gramsci,desenvolvemos o conceito de hegemonia e opapel da formação do trabalhador como elementofundamental para a ruptura do senso comum e aelevação do bom senso, com vistas à constituiçãode novos dirigentes, para uma nova sociedade.Por fim, apresentamos a categoria do “binômioindustrialismo/democracia”, capaz de fornecerelementos teóricos significativos para nossacompreensão das condições de constituição doproletariado em classe na contemporaneidade.

REVISITANDO O MANIFESTO

É no Manifesto Comunista, de Marx eEngels, publicado pela primeira vez em Londres,no ano de 1848, que encontramos as referênciasoriginais do processo de desenvolvimento doproletariado, ou seja, da constituição do proleta-

riado em classe. Para esses autores, a constituiçãodo proletariado em classe tem sido a conseqüênciado próprio desenvolvimento da maquinaria e dasupremacia da burguesia. O Manifesto nosmostra que o desenvolvimento da maquinaria eda grande indústria fortalece a classe burguesa e,como conseqüência, promove o desenvolvimentodo proletariado, o que representa, de certa forma,a ruína do artesanato e da pequena burguesiatradicional.

Procuraremos aqui, resgatar os aspectosapontados por Marx e Engels acerca desseprocesso. Nosso principal objetivo é demonstrarcomo no Manifesto Marx e Engels concebem odesenvolvimento da supremacia burguesa e aconstituição do proletariado em classe, não comoum fenômeno social do campo das forçasprodutivas apenas, mas também do campo dasrelações de poder, confirmando uma das premissasfundamentais do pensamento histórico dialético:a unidade entre a economia e a política.

Ao abordar o processo revolucionáriopromovido pela burguesia, Marx e Engels (1994,p. 18) nos indica que, se por um lado, naquelecontexto, não mais cabia o trabalho artesanal,caracterizado pela atividade manual do homem,que buscava no trabalho doméstico os meios parasua sobrevivência, trabalho este que se confundiacom o trabalho cotidiano e que buscava atenderà necessidade doméstica, sem grandesinvestimentos, por outro, não cabia também amanufatura que, caracterizada pela introdução damáquina, eliminava o trabalho doméstico, poiseste se processava na oficina, buscando nãoatender apenas à necessidade de uma pessoa, massim, de uma corporação.

Embora tenha alterado o modo deprodução, a sociedade burguesa moderna quesurge com o fim da sociedade feudal, não aboliuas diferenças de classes que existiram em todo omundo desde as sociedades mais antigas. Aocontrário disso, essa burguesia moderna acabou

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por consolidar mais ainda a diferença de classe,passando a sociedade a dividir-se cada vez maisem duas classes opostas e bem visíveis, a saber: ada burguesia e a do proletariado (MARX; ENGELS,1994, p. 18).

O descobrimento de novos continentes, oavanço da ciência, a negociação por meio da trocade mercadorias contribuíram, enormemente, parao surgimento da burguesia moderna. Desta forma,a antiga organização feudal já não podia satisfazeràs necessidades, que aumentavam com a aberturade novos mercados. Com a procura cada vezmaior de mercadorias, a própria manufaturatornou-se insuficiente, sendo substituída pelaprodução industrial, o que levou ao surgimentode verdadeiros exércitos industriais gerenciadospelos burgueses modernos.

Com o crescimento da indústria, crescetambém o mercado que se expande em nívelmundial, o que faz acelerar mais ainda os meiosde comunicação, as novas técnicas na área danavegação, as vias férreas e, conseqüentemente,o crescimento do comércio nunca visto emtempos outrora. Porém, isto não foi condição paraque sucumbisse a divisão de classes presente nasociedade. Pelo contrário, enquanto crescia aburguesia e seus capitais, crescia com mais vigorainda a exploração da classe subalterna, que viviaem condições cada vez mais precárias. Todavia,podemos afirmar que a burguesia desempenhouum papel fundamental na história e este pode serconsiderado revolucionário. Inclusive, noentendimento de Marx e Engels,

[...] a burguesia destruiu todas as relaçõesfeudais, patriarcais e indílicas. Todos oscomplexos e variados laços queprendiam o homem feudal a seus“superiores naturais” ela os despedaçousem piedade, só para deixar subsistir, dehomem para homem, o laço do friointeresse, as duas exigências do“pagamento à vista”. Afogou osfervores sagrados do êxtase religioso, do

entusiasmo cavalheiresco, do sentimen-talismo pequeno-burguês nas águasgeladas do cálculo egoísta. Fez dadignidade pessoal um simples valor detroca; substituiu as numerosas liberdades,conquistadas com tanto esforço, pelaúnica e implacável liberdade docomércio. Em uma palavra, em lugar deexploração velada por ilusões religiosase políticas, a burguesia colocou umaexploração aberta, cínica e brutal(MARX; ENGELS, 1994, p. 19).

Esta nova forma de organização dasociedade, da produção e da comercialização dasmercadorias fez com que a classe proletáriavivesse em condições de completa subordinação.Mas, a existência e manutenção da burguesia sóforam possíveis pelo fato de a burguesiarevolucionar os instrumentos de produção, asrelações de produção e todas as relações sociais.Para isso, utilizou-se de toda a tecnologiaproposta pela ciência. Assim, “tudo o que ésólido e estável se esfuma, tudo o que erasagrado é profano, e os homens são obrigadosfinalmente a encarar com seriedade suascondições de existência e suas relaçõesrecíprocas” (MARX; ENGELS, 1994, p. 20).

É justamente esse o momento maispropício para a classe proletária construir aconsciência de que é uma classe diferente daburguesia, justamente por sua própria condiçãode existência e subalternidade, pois, estão postas,no novo modo de produção capitalista, ascondições necessárias para o proletariado seorganizar enquanto força social autônoma,colocando-se como força dirigente.

AS POSSIBILIDADES DE ORGANIZAÇÃODO PROLETARIADO

Esta nova forma de produção estárelacionada diretamente à utilização da máquina,que vai cada vez mais eliminar maior quantidade

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de força física, barateando e desqualificando otrabalho do operário. Dessa forma, o trabalhorealizado por este operário é visto como umamercadoria sujeita a flutuações do mercado, o quevai gerar um mal-estar entre os trabalhadores,levando-os à concorrência entre si. A máquina,de certa forma, dispensa a força física,desqualifica e barateia o trabalho do operário, oque possibilita a introdução de mulheres ecrianças na indústria, proporcionando, assim, oenriquecimento cada vez maior da classeburguesa. A indústria, na visão de Marx e Engels,passa a ser determinada pelo movimento dasmáquinas. Desta forma, afirmam os autores:

A indústria moderna transformou apequena oficina do antigo mestre dacorporação patriarcal na grande fábricado industrial capitalista. Massas deoperários, amontoados na fábrica, sãoorganizados militarmente. Comosoldados da indústria, estão sob avigilância de uma hierarquia completa deoficiais e suboficiais. Não são somenteescravos da classe burguesa, do Estadoburguês, mas também diariamente, acada hora, escravos da máquina, docapataz e, sobretudo do dono da fábrica.E esse despotismo é tanto maismesquinho, odioso e exasperador,quanto maior é a fraqueza com queproclama ter no lucro seu objetivoexclusivo (MARX; ENGELS, 1994, p. 23).

Com esta nova organização do trabalho, oproletário estava cada vez mais organizadogeograficamente, a maior proximidade com os seuspares era inevitável e, assim também era a lutapor interesses comuns. A luta por melhoressalários, por exemplo, fazia crescer a unidade e aorganização do proletariado. Por outro lado,porém, como lembra Boito Jr. (1998, p. 118-119),a nova forma de concorrência entre os proletáriosinaugurada pelo desenvolvimento da maquinariaretardava consideravelmente a constituição doproletariado em classe.

Contraditoriamente, a constante guerra daburguesia para manter-se no poder, favorecia,sobremaneira, as formas de desenvolvimento doproletariado. Marx e Engels (1994, p. 24-25) citamcomo exemplo a luta que a burguesia travava“contra a aristocracia; depois, contra as fraçõesda própria burguesia cujos interesses seencontram em conflito com os progressos daindústria; e sempre contra a burguesia dos paísesestrangeiros”. Não devemos considerar que osintelectuais pertencentes à classe burguesa, tendocompreendido o processo de evolução históricaem seu conjunto, passariam para o lado dosproletários. É o novo modo de produçãocapitalista que possibilita, pela primeira vez nahistória, a participação do proletariado na lutapolítica, estando este em condições de “hegemo-nizar” um processo revolucionário. Ou seja, ascontradições presentes no seio das classesdominantes pôde facilitar a constituição doproletariado em classe ou, ainda, a obtenção dereformas dentro do próprio sistema capitalista.

A respeito das sugestões propostas por Marxe Engels no Manifesto Comunista, Boito Jr.salienta que

[...] não apenas o proletariado, criadopelo desenvolvimento do capitalismo,pode fazer, desde que as condições opermitam, a revolução, como tambéma revolução, isto é, a crise revolucionária,pode fazer o proletariado; ou seja, podeensejar sua constituição em classe comum programa político próprio (BOITO

JR., 1998, p. 121).

Assim, o movimento socialista, para sefortalecer, não deve ocorrer somente no interiordas fábricas, mas junto às demais lutas sociaisprogressistas, como as lutas democráticas,camponesas e de libertação nacional, como sugereMarx e Engels no Manifesto (MARX; ENGELS,1994, p. 11).

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Com a introdução das máquinas nasindústrias, foi necessária uma maior qualificaçãodo trabalhador e, em contrapartida, este passa aser visto como aquele que opera a máquina,extensão da máquina. O custo desse novotrabalhador diminui, dando-lhe apenas um salárionecessário para perpetuar sua existência. Aburguesia não estava atenta para o detalhe de que,à medida que aumentava o seu poderio,aumentavam-se, também, as condições objetivase subjetivas para a organização e luta da classetrabalhadora por melhores condições de trabalhoe de sobrevivência.

Os operários modernos, percebendo queeram tratados como mercadoria ou como artigode comércio, tomaram consciência do quesignificava, na prática, viver sobre constantevigilância nas indústrias, fosse esta realizada pelosgerentes ou pelos chefes. Além de serem escravosda classe burguesa e do Estado burguês, eramtambém escravos das máquinas. À medida que aindústria se modernizava com a aquisição demaior quantidade de máquinas, abriam-se brechaspara que houvesse, também, nesse espaço aexploração de mulheres e crianças, visto quepouca era a força e a qualificação exigida para omanuseio das máquinas, aprimoradas pelatecnologia.

Assim, o Manifesto sugere que, com ocrescimento da exploração da classe trabalhadorapela burguesia, cresce também a motivação paraos proletários se organizarem e lutarem por seusdireitos. Inicialmente essa organização se dava nopróprio espaço da fábrica, depois dentro de ummesmo ramo industrial, para em seguida atingirmaiores proporções.

Toda esta mobilização dos proletários foigerida concomitantemente ao desenvolvimentoda burguesia. Logo, as reivindicações dostrabalhadores se evidenciam como uma luta declasses. Assim, poderíamos afirmar que o avançoda ciência contribuiu para o crescimento da

burguesia da mesma forma que contribuiu para aunião dos trabalhadores, que se utilizaram dosmeios de comunicação e dos meios de transportepara transformarem sua luta local em uma lutade nível nacional. Por isso, a afirmação de Marxao dizer “que a burguesia fornece aos proletáriosos elementos de sua própria educação política,isto é, armas contra ela própria” (MARX; ENGELS,1994, p. 25), ou seja, a burguesia acaba dandonumerosos elementos de educação para oproletariado, ou ainda, a própria relação de poderé em si uma relação pedagógica.

A constituição do proletariado em classe ébem diferente da luta burguesa, que visa aacumulação de capital por parte de uma classemediante a apropriação do trabalho excedente deoutra classe. O movimento proletário é divergenteda luta burguesa, justamente por buscar, narealidade, os interesses coletivos de umadeterminada classe explorada.

Segundo Marx e Engels (1994, p. 43), é peladerrubada violenta da ordem burguesa e de suasinstituições que o proletariado assume o poder.Coutinho (1999) analisando a obra de Marx ebuscando sistematizar sua teoria política afirmaque é através da “revolução permanente” que ostrabalhadores assumiriam a direção do Estado,ou seja a tomada radical do poder, que se dariaatravés da força.

Poderíamos apreender do Manifesto anatureza conflituosa da ordem social fundada pelaburguesia. Trata-se da incessante comoção detodas as condições sociais, uma inquietude e ummovimento constante que distinguem a épocaburguesa de todas as épocas anteriores.Entretanto, o que para nós, aqui, é de maiorrelevância volta-se à constatação de que arevolução da maquinaria e das relações deprodução são a condição fundamental para odesenvolvimento do capital. E com esse processode revolução constante, revolucionam-se,também, todas as relações sociais. Embora no

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Manifesto Marx e Engels estivessem mais atentosao processo revolucionário desencadeado pelaburguesia no século XIX, eles acabamevidenciando uma das premissas do desenvol-vimento do capital: o desenvolvimento doindustrialismo e da democracia (MARX; ENGELS,1994, p. 55).

Inclusive, nesse processo de revoluçãoconstante, o Manifesto já aponta o caráterinternacionalista do capital, certamenteestabelecendo o princípio fundamental do quehoje alguns chamam de “globalização” ou de“mundialização” do capital, pois, no Manifesto,fica claro que o constante processo deaperfeiçoamento dos instrumentos de produçãoe o constante progresso dos meios de comunicaçãosão os meios pelos quais a burguesia arrasta todasas nações, desde as mais atrasadas, para a lógicada ordem capitalista, fazendo-os capitular aospreceitos das leis de mercado, ou seja, “forja ummundo a sua imagem e semelhança” (MARX;ENGELS, 1972, p. 57).

Mas, certamente o mérito do Manifestoestá na sua capacidade de evidenciar para aclasse trabalhadora as contradições internas daordem burguesa. O constante processorevolucionário das forças produtivas e dasrelações de produção fundam uma condição talque as forças produtivas nunca são suficientespara o desenvolvimento da ordem socialburguesa, constituindo-se sempre em umobstáculo para seu desenvolvimento, de modoque poderíamos afirmar que o desenvolvimentodo capital é uma constante superação/condicionamento das forças produtivas, o queprecipita uma condição de ordenamento/desordenamento de toda a sociedade burguesa,ameaçando permanentemente a existência dapropriedade privada. Como Marx aponta, asrelações burguesas resultam demasiado estreitaspara conter as riquezas criadas em seu seio(MARX; ENGELS, 1972, p. 59).

A partir dessa tese do Manifesto,poderíamos compreender a ordem capitalistacomo um processo de produção e reprodução dasociedade, onde a própria reprodução pressupõe,paradoxalmente, um processo de conservação ede ruptura, articulados dialeticamente; umprocesso no qual, à medida que o sistema muda,alimenta e conserva sua estruturação. Paracompreendermos a dinâmica desse processo, noentanto, é necessário reconhecer que o sistemade produção e reprodução do capital é umprocesso histórico e, como tal, é um processo emtransformação, com rupturas ou crises. A rupturana ordem de continuidade do sistema capitalistase produz no contexto dos conflitos de classe(interclasse e intraclasse), ou seja, a ruptura naordem de continuidade do sistema de produção ereprodução do capital se produz no contexto dascrises de um determinado patamar dedesenvolvimento das forças produtivas e dasrelações de produção, expressos numadeterminada configuração do conflito de classe(SOUZA, 1998a, p. 52).

CONCEITO DE HEGEMONIA EMGRAMSCI

Passaremos aqui a analisar a contribuiçãode Gramsci para a compreensão desse processo,já que o conceito de hegemonia de Gramsci é defundamental importância para trazermos àatualidade as lições do Manifesto Comunistade Marx e Engels.

A história nos aponta que, desde os temposmais remotos, o conceito de hegemonia erautilizado como forma de expressar domínio domais forte em relação ao mais fraco. De origemgrega, etimologicamente significa guiar, conduzir,mandar, governar, ser chefe. Com o passar dotempo, este termo foi tomando diferentes formasde uso, considerando-se o momento histórico emque o mesmo estava sendo utilizado e, mesmo

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valendo-se de palavras sinônimas, relacionava-se sempre ao sentido original presente na culturagrega (JESUS, 1989, p. 32).

Com base nos estudos realizados por Jesus(1989), podemos considerar, didaticamente,quatro períodos em que se constituiu de formabastante significativa o sentido da palavrahegemonia, a saber: o período que abrange osséculos V e VI a.C., período em que o sentido dotermo se voltava ao chefe ou ao comandante doexército, representando,desta forma,a hegemoniano mundo grego, que poderia ser exercida emtempo de guerra ou de paz; o período da IdadeMédia, quando o conceito de hegemonia seamplia em relação ao primeiro período, uma vezque não se relacionava apenas ao poderio militar,mas a outros campos, destacando-se, princi-palmente, o político e o religioso, os quaismantiveram sempre a mesma supremacia político-militar presente no período anterior, pois, nestaépoca, era a Igreja o principal poder hegemônico.O autor caracteriza como terceiro período oreferente aos Tempos Modernos onde o termohegemonia é utilizado principalmente para sereferir ao poder exercido de uma classe sobre aoutra, considerando, não apenas os fatorespolítico-militares, mas outros de fundamentalimportância, como o econômico, cultural ereligioso. Da Contemporaneidade até nossos dias,é o que o autor considera como último período,destacando como principal característica dahegemonia o sentido político-militar da mesmaforma que foi utilizado na Grécia, evidenciando-se como preponderante desse período o sentidomilitar.

Podemos apreender, então, que desde suaorigem, o termo hegemonia, mesmo utilizando-se de palavras sinônimas para atender àsnecessidades de cada época histórica, vemtraduzindo o sentido de poder-direção oudominação-consenso. Mas, o que tudo isso tem aver com constituição do proletariado em classe?

Vejamos como Gramsci utilizou o termo e, deque forma isto contribuiu para o enriquecimentoda teoria marxista, indo além de Marx e Engels.

Ao iniciar suas reflexões a respeito da lutado proletariado, Gramsci desenvolve conceitosequivalentes ao de hegemonia e no discorrer desuas obras vai se tornando cada vez maisnecessária a consolidação de uma perspectiva deluta que visa à transformação da sociedadecapitalista em uma sociedade socialista. ParaGramsci, o socialismo era a única forma em quetodos os cidadãos teriam oportunidade de fazervaler seus interesses coletivos e não apenas osseus interesses pessoais. De tal modo, esta novaordem social se daria através da elevação dacultura e do saber, em todos os níveis sociais, ouseja, a constituição do proletariado em classeestaria condicionada à superação do sensocomum (GRAMSCI, 1989a).

Portanto, tal elevação se daria somente apartir do momento em que a classe subalterna –isto é, os proletários – tomasse consciência desua própria condição de classe e passasse, a partirdaí, a lutar organicamente por seus direitos.Assim, Gramsci inaugura uma nova forma deentender hegemonia dentro do próprio movimentomarxista; entendimento este que se voltavadiretamente para a capacidade de pensar e refletira respeito de sua própria realidade. Isso elevariao proletariado, dando-lhes uma capacidade críticaque os tornaria, não apenas objeto de uma históriaescrita por outros agentes, mas sujeitos críticoscom capacidade de escreverem e direcionarem suaprópria história. Pode-se afirmar, diante disso, queas reflexões gramscianas a respeito da hegemoniaimplicam em uma necessidade da classe proletáriase tornar dominante e dirigente.

Gramsci acreditava que os proletáriosdeveriam superar o senso comum e a religião, ouseja, deveriam buscar o bom senso, que vai alémdo senso comum. Não deveriam os proletáriostomar como referência somente as filosofias

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anteriores à filosofia da práxis. Como exemplo,podemos citar os movimentos heréticos da IdadeMédia, que surgiam como forma de politicagemda Igreja, tendo sua base na filosofia escolástica,que buscava justificar os conflitos existentes nointerior da própria Igreja. A este respeito Gramsciafirma

Por isso, a filosofia de uma época nãopode ser nenhum sistema individual oude tendência: ela é o conjunto de todasas filosofias individuais e de tendência,mais as opiniões científicas, mais areligião, mais o senso comum. Pode seformar artificialmente um sistema degênero, através da obra de grupos e deindivíduos? A atividade crítica é a únicapossível, notadamente no sentido decolocar e resolver criticamente osproblemas que se apresentam comoexpressões do desenvolvimentohistórico. Mas o primeiro destesproblemas, que deve ser colocado ecompreendido, é o seguinte: a novafilosofia não pode coincidir com nenhumsistema do passado, não importa qualseja o seu nome. Identidade de termosnão significa identidade de conceitos(GRAMSCI, 1989, p. 180).

Os marxistas vêm tentando através de suateoria romper com esta forma simplista de pensara sociedade. Mas, é Gramsci o primeiro aconsiderar o saber popular, buscando, a partirdeste, uma forma de superação do pensamentoalicerçado somente no observável para umaforma mais elaborada, com bases filosóficas. Paraque os homens comuns tivessem condições de setornarem dominantes e dirigentes era necessário,segundo Gramsci

Criticar a própria concepção do mundo,portanto, significa torná-la unitária ecoerente e elevá-la até o ponto atingidopelo pensamento mundial mais desenvol-vido. Significa, portanto, criticar,também, toda a filosofia até hoje exis-

tente, na medida em que ela deixouestratificações consolidadas na filosofiapopular. O início da elaboração crítica éa consciência daquilo que somosrealmente, isto é, um “conhece-te a timesmo” como produto do processohistórico até hoje desenvolvido, quedeixou em ti uma infinidade de traçosrecebidos sem benefício no inventário.Deve-se fazer, inicialmente, esteinventário (GRAMSCI, 1989a, p. 12).

Podemos verificar que Gramsci se referia àsuperação do “homem massa” que vive de formaacrítica e que, por isso, deixa-se levar por formasde compreensão do mundo que não condizemcom sua realidade, mas com a de outrem. Portanto,a compreensão crítica deste mundo, segundoGramsci, equivale à compreensão de sua própriacondição de subalterno, tornando-se capaz de lutarem prol dos seus interesses e organizar-se, a fimde promover um mundo mais justo, onde asoportunidades sejam iguais para todos. Nessesentido, Gramsci afirma que

A compreensão crítica de si mesmo éobtida, portanto, através de uma luta de“hegemonias” políticas, de direçõescontrastantes, primeiro no campo daética, depois no da política, atingindo,finalmente, uma elaboração superior daprópria concepção do real. A consciênciade fazer parte de uma determinada forçahegemônica [isto é, a consciência política]é a primeira fase de uma ulterior eprogressiva autoconsciência, na qualteoria e prática finalmente se unificam(GRAMSCI, 1989, p. 21).

O que na verdade diferencia Gramsci deoutros autores marxistas é sua capacidade depensar a hegemonia como a forma de a classetrabalhadora se organizar, conquistando tambéma supremacia, o domínio, a direção e o consenso.Se a classe que detém o poder tem se constituídoe se mantido no decorrer da história através da

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consolidação de uma ideologia hegemônica, nãose deve deixar de considerar que a classe quealmeja o poder, no caso os proletários, necessita,também, criar sua contra hegemonia, que é umacondição imprescindível para uma luta conscientee firme, capaz de se contrapor à hegemoniadominante. Uma vez assumido o poder, a classetrabalhadora poderá criar sua própria ditadura.

É interessante notar que esta forma detomada do poder, para Gramsci, não se dariaenquanto a classe trabalhadora estivesse lutandode forma fragmentária, mas sim a partir domomento em que, unidos, buscassem se organizarculturalmente. Essa organização se daria nomomento em que o povo, unido, buscasseconstituir um bloco intelectual moral, o que édeterminado pela filosofia da práxis. Para isso háde se considerar a urgência da classe proletáriaproduzir seus próprios intelectuais, da mesmaforma que a classe dominante os possui. A esterespeito descreve Gramsci

Parece-me justo que também esteproblema deva ser colocado histori-camente, isto é, como um aspecto daquestão política dos intelectuais.Autoconsciência crítica significa, históricae politicamente, criação de uma elite deintelectuais: uma massa humana não se“distingue” e não se torna independente“por si”, sem organizar-se [em sentidolato]; e não existe organização semintelectuais, isto é, sem organizadores edirigentes, sem que o aspecto teórico daligação teoria-prática se distingaconcretamente em um estrato de pessoas“especializadas” na elaboração concei-tual e filosófica (GRAMSCI, 1989, p. 21).

Tal processo não deve ser visto como algofácil, mas com muitas contradições. É umprocesso que exige dos intelectuais e da massamuita disciplina, persistência e credibilidade deambas as partes, o que deve levar a uma confiançae credibilidade mútua. Intelectuais e massa devem

estar unidos dialeticamente no desenvolvimentodesse processo, buscando superar as dificuldadesoriundas desta luta.

É papel dos intelectuais dinamizar eorganizar as massas, elevando os simplórios “aníveis superiores de cultura e [ampliando]simultaneamente o seu círculo de influência,através de indivíduos, ou mesmo grupos mais oumenos importantes, no estrato dos intelectuaisespecializados” (GRAMSCI, 1989a, p. 22). Destaforma, percebe-se que a criação de intelectuaisprovindos da própria classe é uma possibilidadeconcreta que deve ser considerada por aquelesque lutam pela tomada do poder, e que almejama constituição do proletariado em classe e,conseqüentemente, a passagem da sociedadecapitalista para a sociedade socialista.

Podemos perceber que esta possibilidadeapregoada por Gramsci só é possível pelo fato dasociedade capitalista estar organizada de tal formaque os membros da classe proletária já podempossuir os elementos necessários à sua própriaqualificação e à produção de seus intelectuais,ou seja, este pensamento só é válido, só fazsentido, justamente devido à existência da própriasociedade capitalista. Fora dela, nada disso teriasignificado.

Observamos que este pensamento deGramsci tem sua base na teoria de Marx e Engelsque via no avanço do capitalismo as condiçõesnecessárias para a própria constituição doproletariado em classe. Para Marx e Engels (1994),à medida que o industrialismo vai se desen-volvendo, vai exigindo também, maior organiza-ção do trabalhador, com isso, os mesmos se valemdesta oportunidade para se organizarem em classee, assim, buscarem cada vez mais a concretizaçãode seus interesses.

Podemos identificar que, na base dopensamento gramsciano, a formação dosintelectuais se volta diretamente ao pensamentode Marx e Engels, no que diz respeito à trans-

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formação do proletariado em classe, aproveitandoas oportunidades oferecidas pela própria classeburguesa à classe proletária. À medida que aprodução capitalista aumenta, buscando atenderà exigência do mercado consumidor, aumentatambém a necessidade de introdução de máquinascada vez mais potentes para garantir a produção.A industrialização moderna exige então, osurgimento de um novo trabalhador, com umanova mentalidade. Tomando consciência de suaprópria classe, como sugere Marx e Engels, oproletariado terá condições de se organizar e,assim, lutar por seus interesses e construir ahegemonia de sua própria classe, como sugereGramsci.

É justamente neste aspecto que Gramsciapresenta uma contribuição significativa aomaterialismo histórico, pois propõe que a tomadado poder não deveria ser fruto apenas do exercícioda força, como sugeriu Marx e Engels, mas simfruto da construção de uma hegemonia da classetrabalhadora, pois considera que não basta atomada do poder pelos proletários, se os mesmosnão tiverem como se manter no poder. Asupremacia de um grupo social se manifesta como domínio e a direção moral e intelectual e nãoapenas com a força. Para ser classe dominante éimprescindível ser antes classe dirigente, o quemostra que já se tem o consenso da maioria dostrabalhadores. Isto não impede, porém, que aclasse trabalhadora seja dirigente, mesmo antesde assumir o poder e é nisto que consiste a relaçãodialética dos elementos “direção” e “dominação”em uma relação hegemônica. Segundo Jesus,

[...] não existe para Gramsci umahegemonia em si, uma categoria abstrata,indiferente à realidade histórica, ou, então,uma hegemonia que é ora dominação,ora direção, como elementos separadose independentes. Isto é tão verdade quenão se pode entender o conceitoeliminando um dos elementos, pois

ambos significam aspectos diversos deuma mesma realidade. Uma compre-ensão dialética da totalidade do conceitoexige a relação entre suas partes e o todoe das partes entre si. Somente ascircunstâncias históricas, ou seja ahistoricização dos fenômenos, é quepossibilitarão o destaque de um ou deoutro elemento, também representadospor seus equivalentes, como “consenso”e “persuasão” para o primeiro, e“ditadura” e “coerção” para o segundo(JESUS, 1989, p. 39).

Esta hegemonia não será construída semque o proletariado tenha acesso a uma educaçãode qualidade, uma escola onde estes possamformar intelectuais orgânicos de sua própria classee organizar sua própria cultura, fazendo com quea classe proletária deixe de pensar corporati-vamente levando-a a uma motivação de luta pelasuperação dos interesses imediatos, visando ointeresse de todos. Só assim, será possível aconsolidação de uma classe nacional.

Para Gramsci, a “revolução permanente”sugerida por Marx já não mais cabia em umasociedade com seus pilares firmados na idéia desociedade democrática, como no caso dassociedades modernas. Assim, ele afirma

A fórmula [da revolução permanente] éprópria de um período histórico em quenão existiam ainda os grandes partidospolíticos de massa e os grandes sindicatoseconômicos, e a sociedade ainda estava,por assim dizer, no estado de fluidez sobmuitos aspectos: maior atraso no campoe monopólio quase completo daeficiência político-estatal em poucascidades ou numa só [...]; aparelho estatalrelativamente pouco desenvolvido emaior autonomia da sociedade civil emrelação à atividade estatal; determinadosistema de forças militares e doarmamento nacional; maior autonomiadas economias nacionais no quadro dasrelações econômicas do mercadomundial, etc. (GRAMSCI, 1989, p. 92).

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Esta estratégia proposta por Marxfuncionaria no que dizia respeito aos países e àscolônias atrasados e não especificamente aosEstados modernos, onde a organização interna eexterna muito se complexificam. Para este novotipo de sociedade, cabe sim, a perspectivareferente ao conceito de “hegemonia civil”,embora polêmico.

É com este conceito de hegemonia queGramsci avança em relação a Marx. A conquistadessa hegemonia, contudo, só seria possívelatravés da “guerra de posição”, entendida porGramsci como ligada diretamente à construçãoda hegemonia da sociedade civil por parte doproletariado. Gramsci percebe as transformaçõeshistóricas ocorridas no seio da sociedadecapitalista, o que o leva a uma renovação ereelaboração da teoria marxista, a fim de dar contadesta complexidade. Complexidade esta,inclusive, sugerida pelo próprio Marx noManifesto.

Gramsci (1991), já preconizava que atomada do poder pelo trabalhador só se daria combase em uma sólida formação que garantiria aformação da hegemonia dos trabalhadores, porisso propôs:

A escola unitária ou de formaçãohumanista [entendido este termo,“humanismo”, em sentido amplo e nãoapenas em sentido tradicional] ou decultura geral deveria se propor a tarefade inserir os jovens na atividade social,depois de tê-los levado a um certo graude maturidade e capacidade, à criaçãointelectual e prática e a uma certaautonomia na orientação e na iniciativa(GRAMSCI, 1991, p. 120).

Esta é a escola onde não cabe a fragmen-tação entre os conteúdos oferecidos, mas umaorganicidade que leve os alunos a estabeleceremrelação com a prática, buscando exercitar o hábitodo questionamento e construção de novosconhecimentos. É uma escola onde se deveexplorar toda a inovação da ciência e tecnologia,a fim de se apropriarem de todo o conhecimentomais elevado da cultura que já tenha sidoproduzido. Dessa forma, estaria sendo colocadoem xeque todo o conhecimento dogmáticovalorizado tradicionalmente. A disciplina é umaforma de conquistar a autonomia intelectual emoral.

O valor da teoria educativa de Gramsciconsiste, no entanto, em analisar e criticar asformas pedagógicas de sua época, principalmentea que se refere à Reforma Educacional Gentile.2

É percebido em sua análise a crítica à educaçãovocacional, rejeitando, dessa forma, a versãopositivista da educação. Sua pedagogia radical liga-se à história, à dialética e à crítica. É através daeducação que a classe proletária criticaria a culturadominante antes de poder transformá-la e,conseqüentemente, chegar à tomada do poder.Com isso, o proletariado teria condições plenasde formar sua consciência revolucionária atravésde uma educação que não seria injetada na classetrabalhadora de fora para dentro, mas simmobilizada de dentro para fora, a partir daparticipação dos intelectuais orgânicos destaclasse.

Enquanto o senso comum sugeria umavisão mística da realidade por parte dosproletários, Gramsci via na educação o terrenopropício onde os homens tomariam consciência

2 Na verdade, o que Gramsci estava criticando era a Reforma Educacional feita por Gentile em 1923, de cunho meramente conservador,durante o fascismo italiano que perdurou de 1922 a 1943. Reforma esta que consistia em um programa escolar e educativo que “fixava umsistema escolar rígido e internamente diferenciado, que separava as escolas secundárias humanistas [para as classes dirigentes] das técnicas[para as classes subalternas], que indicava como cultura formativa só a literário-histórico-filosófica, que permitia acesso à universidade sópelos liceus, que introduzia o ensino religioso na escola elementar [para dar ao povo uma “concepção do mundo”] e que era controlada nasua eficiência através do exame de Estado que concluía todos os ciclos secundários. A escola saiu dessa reforma profundamente renovadanas estruturas e nos conteúdos, mas foi logo atacada dentro e fora do fascismo, pela sua seletividade e pelo bloqueio que produzia naascensão social dos grupos inferiores” (CAMBI, 1999, p. 578).

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de si mesmos, porém via nesta forma simplistade ver o mundo uma prática incapaz de “romper”com o mundo dado e transformá-lo.

A noção de Gramsci de que no sensocomum existe elementos de uma visão maisracional do mundo reforça a posição de que atarefa do intelectual é promover lutas contra-hegemônicas, tomando como ponto de partida oconhecimento popular, considerado a base dequalquer relacionamento pedagógico. Somentecom este tipo de pedagogia, as pessoas estariamcompreendendo as contradições da sociedadecapitalista e, desta forma, poderiam transformareste conhecimento em resistência, a fim de formaruma nova consciência política.

É portanto, imprescindível para acompreensão da possibilidade de tomada do poderpela classe proletária identificar a relaçãoexistente entre hegemonia, intelectuais e guerrade posição. Não estabelecer esta relação significasustentar uma visão simplista e fragmentada daposição de Gramsci a respeito das possibilidadesda emancipação da classe trabalhadora.

O INDUSTRIALISMO, A DEMOCRACIAE A POSSIBILIDADE DA CONSTITUIÇÃODO PROLETARIADO EM CLASSE

É com base no pensamento de Marx eGramsci que afirmam que a burguesia deu aoproletariado elementos necessários à suaeducação a partir da própria exigência de formaçãoe qualificação para o trabalho na indústriamoderna; que Neves (1994) formula sua tese arespeito do “binômio industrialismo/demo-cracia”, onde aponta as muitas contradiçõesexistentes na sociedade capitalista. Esta autoraparte do princípio elaborado por Gramsci, ondeindustrialismo é entendido como um “estágiocivilizatório superior” em que não há divisão entretrabalho e ciência e nem entre ciência e vida,considerando que para esta nova sociedade

industrializada é necessária a formação tambémde um novo tipo de homem.

Democracia seria, então, o crescimento daparticipação popular na tomada de decisão, o queprovoca, segundo Gramsci, a possibilidade deuma maior luta de classes no interior do aparelhodo Estado. A autora salienta que neste novoconceito – industrialismo/democracia – os doistermos estão imbricados, e que um só existe emfunção do outro. Segundo a autora, é a junçãodos dois termos, industrialismo/democracia quepossibilita a sociedade contemporânea a exigirmelhores condições de vida e conseqüentemente,o crescimento do sistema educacional, quecomplementará a formação dos novos dirigentesda classe proletária. Considerando que esta tesefoi elaborada a partir do materialismo histórico-dialético e fundamentada pela teoria de Gramsci,podemos acrescentar que não apenas o espaçoescolar é considerado o lugar privilegiado para aformação do proletariado, mas sim, todos osoutros espaços da sociedade onde se verificaqualquer expressão cultural.

A educação, com base nos interesses daclasse dominante, busca formar, antes de tudo,quadros para a efetiva manutenção do poder. Nomomento em que a sociedade capitalista buscanovas formas educacionais para a formação deseus intelectuais e seus dirigentes, concomitan-temente oferece, também, aos trabalhadores aoportunidade de educação necessária a suaorganização. Desta forma, compreendemos quea escola gerida na sociedade de classes, com todasas suas contradições, dá oportunidade aostrabalhadores de se qualificarem. A este respeitosalienta Neves

A escola forma os intelectuais orgânicosda burguesia e forma também, aomesmo tempo, os intelectuais orgânicosdo proletariado. A mesma escola queprepara os técnicos especialistas emfunções de controle industrial [gerentes,

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supervisores, projetistas], as novasgerações de militantes partidários esindicalistas das várias frações da classedominante e seus aliados, prepara,também, os técnicos especializados emtarefas de execução, tanto na indústriaquanto na burguesia estatal e no setorterciário da economia, ou seja, militantespartidários e sindicalistas da classe domi-nada e seus aliados (NEVES, 1994, p. 24).

Quanto à educação, cabe ressaltar, noentanto, que existe diferença no que diz respeitoao “binômio industrialismo/democracia”. Aescola, nesta sociedade, está organizada segundoos padrões da classe dominante que busca formarseus intelectuais, mas, mesmo assim, dáoportunidade também de nela se formar ointelectual da classe proletária. Isso, porém, nãonos impede de ver que esta educação na sociedadecapitalista acaba reservando os graus maiselevados de ensino, como as universidades, paraos membros da classe burguesa. Contudo,entendemos que o controle democráticopossibilitado à classe trabalhadora pela própriasociedade capitalista oferece também aoportunidade do desmonte dos mecanismos defiltragem social, possibilitando à classetrabalhadora os espaços imprescindíveis para apreparação quantitativa e qualitativa de seusdirigentes (NEVES, 1994, p. 26). Assim, o“binômio industrialismo/democracia”, nacontemporaneidade, permite que os sistemaseducacionais possam ser vistos e entendidossegundo duas óticas, a do capital e a do trabalho.A este respeito, Neves afirma o seguinte:

Na ótica do capital [...] se traduz nanecessidade de sua reprodução ampliadae na manutenção das relações sociais deprodução. Assim, o capital requer daescola a formação de técnicos e dedirigentes voltados para a produção porela controlada [...]. Do ponto de vistado trabalho, industrialismo e democracia

significam a possibilidade técnica epolítica de transformar as relações deprodução vigentes, na perspectiva de queo domínio do conhecimento das leis danatureza e da dinâmica da sociedade, aomesmo tempo que resgata para otrabalhador a condição de sujeito doprocesso social, proporciona-lhe osinstrumentos necessários para odesenvolvimento coletivo de suas lutascontra a apropriação privada da riquezae do saber (NEVES, 1994, p. 24-26).

Se vivemos em uma sociedade dividida emclasses, é evidente que a educação oferecida aoscidadãos, sejam eles pertencentes a uma classeou outra, é a educação com base nos padrõesestabelecidos pela classe dominante, ou seja, umaeducação voltada para a produção e para omercado que, mesmo tendo a base científica etecnológica provenientes do avanço científico,está longe de corresponder à educação almejadapela classe proletária, já que estes buscam seapropriar, não só do conhecimento acumulado aolongo da história, mas de forma fecunda,relacionando teoria e prática no seu cotidiano,visando sua emancipação. Evidencia-se destamaneira, dois projetos de educação em disputana sociedade buscando alcançar sua hegemoniafrente ao Estado.

Se Marx e Engels afirmavam que asociedade capitalista dava condições aoproletariado para se constituírem enquanto classe,bastando para isso que este se organizasse ebuscasse assumir o poder através da força, seGramsci preconizava que a constituição doproletariado em classe se daria a partir daconstrução de uma hegemonia pertencente àprópria classe, Neves (1994), por sua vez, nosoferece os elementos teóricos que nos permitemcompreender que as condições para a constituiçãoda classe proletária já está dada na sociedadecontemporânea, partindo dos princípios de Marx,Engels e Gramsci, acrescentando que a classe

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proletária precisa,como nunca, projetar seusobjetivos e, conquistando o apoio da sociedadecivil, organizar projetos que definam suasnecessidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após uma releitura do Manifesto de Marxe Engels, foi possível compreender que odesenvolvimento da ordem burguesa pressupõeo desenvolvimento da classe trabalhadora.Justamente por esta razão, a burguesia aciona seusmecanismos de mediação do conflito de classepara manter sua hegemonia. Em razão disto, atomada de consciência por parte da classetrabalhadora está relacionada diretamente com odesenvolvimento do capitalismo, ou seja, é nocontexto do desenvolvimento do capital que sedão as condições objetivas e subjetivas paraconstituição do proletariado em classe.Paradoxalmente, na medida em que a ordem social

de produção burguesa se desenvolve, abrem-senovas possibilidades para a classe trabalhadora,bem como novos limites para a classe dominante.

Portanto, para uma melhor compreensão daluta que se trava no seio da sociedade entreburguesia e classe trabalhadora, é necessárioevidenciar os mecanismos instituídos na ordemsocial para garantir o consentimento ativo dascamadas subalternas em torno do projeto desociedade dominante. O conceito de hegemoniadesenvolvido por Gramsci constitui-se em umacontribuição essencial nesse sentido, na medidaem que esclarece a dinâmica da mediação doconflito de classe. A compreensão desta dinâmicaé fundamental para os trabalhadores resgataremas possibilidades existentes, tomar consciência dasua condição de explorado, para tornar-sedominante e dirigente. Isto seria possível atravésda sua formação que permitiria a passagem dosenso comum para o bom senso, ou seja, suaconstituição enquanto classe social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

O Aprender é uma publicação que pretende divulgar trabalhos sobre o processo educacionalem suas variáveis filosóficas ou psicológicas, ou contribuições de outras áreas de conhecimento, deacordo com o enfoque da publicação.

Dada a abrangência do processo educacional, o Aprender define enfoques temáticos paramelhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação:

Filosofia da educação:• A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições se dá a transmissão,

construção ou apropriação do conhecimento;• A Filosofia e a instituição escolar;• Abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas;• Diferentes conceitos e concepções de educação;• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com os processos educacionais;• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e a aprendizagem, a ética

profissional do educador, entre outros.• O papel da Filosofia nas transformações da educação contemporânea.

Psicologia da educação:• Análise psicológica do processo ensino-aprendizagem e suas variáveis;• Desenvolvimento psicológico e educação: aspectos psicomotores, afetivos, cognitivos,

lingüísticos, sociais, culturais e familiares;• Diferentes aspectos psicológicos da educação para portadores de necessidades especiais;• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos psicopedagógicos;• Psicanálise e educação;• Psicologia e instituição escolar: trabalho docente, cultura escolar, currículos escolares, atuação

do psicólogo na escola, entre outros;• Psicologia social e educação;• Relações humanas na escola;• Trabalho e educação.

(Somente serão aceitos trabalhos que se enquadrem em um ou mais enfoques temáticos citados acima).

Envio dos trabalhos:Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser enviados por e-mail, com o texto anexo,

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EQUIPE TÉCNICA

Coordenação editorialJacinto Braz David Filho

CapaJoaquim Oliveira Santos (Idéia)

Editoração eletrônica e supervisão gráficaAna Cristina Novais Menezes

DRT-BA 1613

Revisão de linguagem (Português)Marluce de Santana Vieira

Normalização técnicaJacinto Braz David Filho

Revisão das traduções:

InglêsDiógenes Cândido de Lima

FrancêsCarlos Alberto Almeida Ferraz e Araújo

[email protected]

Impresso na Empresa Gráfica da BahiaNa tipologia Garamond 12/16/papel offset 90g/m²

Em outubro de 2005.