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nicolasneves
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Resenha do livro A Paixão Segundo GH
Por trás do enredo (aparentemente) banal de A Paixão Segundo GH, Clarice
esconde uma profundidade que faria deste, o melhor livro do século XX: a
desconstrução de uma mulher, identificada apenas pelas iniciais GH, através
do seu encontro com Deus. Este romance de pouco menos de 200 páginas é o
mais “religioso” livro de Clarice.
Depois de um longo hiato de sete anos desde a publicação de A Maçã no
Escuro, a autora volta de forma colossal com este que foi o seu primeiro
romance em primeira pessoa. O capítulo de abertura do seu último livro se
intitulava: Como se faz um homem; A Paixão narra a desconstrução do ser
humano pelas mãos de uma mulher identificada como GH, que tem uma
revelação mística ao encontrar uma barata num dos guarda-roupas do
apartamento onde mora. Depois do primeiro susto, a personagem mata a
barata e decide comer seu interior branco – a partir daí começa o monólogo
que nos é narrado, junto com a própria impotência de descrever o episódio em
que perdera a individualidade. O “crime” de GH, contudo, é muito mais
repulsivo e inumano do que o suposto assassinato da esposa por Martim de A
Maçã no Escuro. Por meio dele, ela não vai, como Martim, inventar Deus – ela
vai encontrar-se com Ele.
Mais do que alusões ao divino, A Paixão demonstra o verdadeiro, e excêntrico,
fascínio que Clarice tinha por baratas: em vários contos, crônicas e romances
as baratas estão presentes. Em dado momento, Clarice afirma que a barata
fora esmagada pela cintura, e que o que é esmagado pela cintura é fêmea;
logo após isso, ela recita de forma irônica a Ave-Maria, remetendo então à
seguinte conclusão: durante o livro, Clarice compara a barata com sua própria
mãe – isso fica explícito quando se toma conhecimento de que Mania
Lispector, mãe de Clarice, era paralítica e, assim como a barata, fora
“esmagada pela cintura” e agora, ambas, mãe e barata, estavam imobilizadas,
“sustentando por cima do flanco empoeirado a carga do próprio corpo”,
esperando pela morte. Essa personalização da barata com a imagem da
própria mãe, é um dos aspectos mais chocantes deste livro.
A maioria dos livros de Clarice, autora considerada o maior exemplo da
literatura introspectiva, mostra a revelação e a quebra do cotidiano das
personagens através do processo conhecido como epifania, e esta epifania é o
clímax do livro. Em A Paixão, a epifania acontece em cada palavra escrita e em
cada emoção sentida. Abandonando de certa forma uma de suas declarações
ateístas de quando era uma adolescente: a de que “acima dos homens, nada
mais há”, Lispector narrou em A Maçã no Escuro a criação de Deus pelo
homem, e agora, narra o encontro entre homem e divino – que acontece
quando o humano deixa de ser humano para se tornar animal.
Além de uma autobiografia do inconsciente simbólico – pois a barata não passa
de um símbolo para algo muito maior, que varia desde a figura materna (que
permeou desde o princípio a obra de Clarice) até a figura do eu-interior –, A
Paixão Segundo GH, é muitas vezes uma confissão desesperada que Clarice
faz ao leitor, como no trecho: “... estou cortada do resto de mim – o resto de
mim é minha mãe...”. Separada do marido, sozinha com os dois filhos Paulo e
Pedro – este com esquizofrenia –, sua solidão nos é passada através de várias
invocações à mãe morta ao longo do monólogo: “mãe: matei uma vida...”,
“mãe, bendita sois entre as baratas...” entre outras coisas.
Fazendo uma analogia à vida, eu diria que Clarice nos mostra que é possível
extrair o melhor de nós mesmos a cada tropeço. É possível encontrar o que
procuramos em seu oposto, basta que nós saibamos tirar o melhor proveito das
piores situações – pois como ela mesma disse numa nota introdutória deste
livro: às vezes para chegar àquilo que se procura, deve-se atravessar o seu
oposto.
Em toda a obra literária de Clarice nota-se que algo queima e clama por ser
contado, neste livro, esta chama toma enormes proporções e mostra-se ao
leitor cara a cara; e é por isso que eu, particular e sinceramente, não
recomendo a leitura deste livro como a primeira a ser feita.
Em seu livro anterior, A Maçã no Escuro, Martin, antes de ser preso diz que irá
escrever um livro onde revelará tudo o que estava oculto – e depois disso,
Clarice nos traz A Paixão, o que deixa um ponto de interrogação no ar: não
seria este o livro escrito por Martin na prisão? Não seria este o livro que
revelaria tudo o que antes fora mantido oculto? – Para mim, este livro trata-se
de uma confissão desesperada de Martin, de GH e de Clarice. Neste livro, o
que sempre queimara na obra de Clarice, desde seu primeiro livro, é exposto –
fazendo deste um livro de renúncia: da autora e do leitor.
“Sem nome, G.H. identifica-se com todos os seres”, li uma vez numa crítica ao
livro. O momento de maior revelação da essência do ser, se dá quando a
barata expele sua secreção branca – sua última essência – e GH então a
come.
“Comer” a barata é uma forma de GH, e da própria Clarice, renunciar à
linguagem: logo após seu encontro com o divino, quando come a barata, GH
mergulha no silêncio, rendendo-se à sua nova natureza.
A Paixão Segundo GH é, com seu enredo breve e esboçado, o clímax de uma
longa busca pessoal empreendida por Clarice desde seu primeiro livro. Pela
primeira vez ela capta a plena violência, a repugnância física, de seu encontro
com Deus. Neste livro, a autora mostra que penosa e gradualmente se
aproximara do divino, perdendo-se de si mesma.
Antes de GH, um possível encontro entre o homem e o divino, equivalia à
morte do primeiro; mas Clarice mostra que é possível encontrar Deus, mesmo
que se para encontra-lo seja preciso “atravessar o oposto daquilo que se
procura”. Sim, Clarice sobreviveu após encontrar-se com o mais interior de si
mesma – Deus –, e nos convida, através da voz de GH, para uma viagem
solitária para dentro de nós mesmos, para encontrar o Divino, a barata, o Ser
vivo e pulsante – a paixão que nos move e que nos é narrada pela voz
silenciosa de GH.