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Resenha do livro A Paixão Segundo GH Por trás do enredo (aparentemente) banal de A Paixão Segundo GH, Clarice esconde uma profundidade que faria deste, o melhor livro do século XX: a desconstrução de uma mulher, identificada apenas pelas iniciais GH, através do seu encontro com Deus. Este romance de pouco menos de 200 páginas é o mais “religioso” livro de Clarice. Depois de um longo hiato de sete anos desde a publicação de A Maçã no Escuro, a autora volta de forma colossal com este que foi o seu primeiro romance em primeira pessoa. O capítulo de abertura do seu último livro se intitulava: Como se faz um homem; A Paixão narra a desconstrução do ser humano pelas mãos de uma mulher identificada como GH, que tem uma revelação mística ao encontrar uma barata num dos guarda-roupas do apartamento onde mora. Depois do primeiro susto, a personagem mata a barata e decide comer seu interior branco – a partir daí começa o monólogo que nos é narrado, junto com a própria impotência de descrever o episódio em que perdera a individualidade. O “crime” de GH, contudo, é muito mais repulsivo e inumano do que o suposto assassinato da esposa por Martim de A Maçã no Escuro. Por meio dele, ela não vai, como Martim, inventar Deus – ela vai encontrar-se com Ele. Mais do que alusões ao divino, A Paixão demonstra o verdadeiro, e excêntrico, fascínio que Clarice tinha por baratas: em vários contos, crônicas e romances as baratas estão presentes. Em dado momento, Clarice afirma que a barata fora esmagada pela cintura, e que o que é esmagado

A Paixão Segundo GH

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Resenha do livro A Paixão Segundo GH

Por trás do enredo (aparentemente) banal de A Paixão Segundo GH, Clarice

esconde uma profundidade que faria deste, o melhor livro do século XX: a

desconstrução de uma mulher, identificada apenas pelas iniciais GH, através

do seu encontro com Deus. Este romance de pouco menos de 200 páginas é o

mais “religioso” livro de Clarice.

Depois de um longo hiato de sete anos desde a publicação de A Maçã no

Escuro, a autora volta de forma colossal com este que foi o seu primeiro

romance em primeira pessoa. O capítulo de abertura do seu último livro se

intitulava: Como se faz um homem; A Paixão narra a desconstrução do ser

humano pelas mãos de uma mulher identificada como GH, que tem uma

revelação mística ao encontrar uma barata num dos guarda-roupas do

apartamento onde mora. Depois do primeiro susto, a personagem mata a

barata e decide comer seu interior branco – a partir daí começa o monólogo

que nos é narrado, junto com a própria impotência de descrever o episódio em

que perdera a individualidade. O “crime” de GH, contudo, é muito mais

repulsivo e inumano do que o suposto assassinato da esposa por Martim de A

Maçã no Escuro. Por meio dele, ela não vai, como Martim, inventar Deus – ela

vai encontrar-se com Ele.

Mais do que alusões ao divino, A Paixão demonstra o verdadeiro, e excêntrico,

fascínio que Clarice tinha por baratas: em vários contos, crônicas e romances

as baratas estão presentes. Em dado momento, Clarice afirma que a barata

fora esmagada pela cintura, e que o que é esmagado pela cintura é fêmea;

logo após isso, ela recita de forma irônica a Ave-Maria, remetendo então à

seguinte conclusão: durante o livro, Clarice compara a barata com sua própria

mãe – isso fica explícito quando se toma conhecimento de que Mania

Lispector, mãe de Clarice, era paralítica e, assim como a barata, fora

“esmagada pela cintura” e agora, ambas, mãe e barata, estavam imobilizadas,

“sustentando por cima do flanco empoeirado a carga do próprio corpo”,

esperando pela morte. Essa personalização da barata com a imagem da

própria mãe, é um dos aspectos mais chocantes deste livro.

A maioria dos livros de Clarice, autora considerada o maior exemplo da

literatura introspectiva, mostra a revelação e a quebra do cotidiano das

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personagens através do processo conhecido como epifania, e esta epifania é o

clímax do livro. Em A Paixão, a epifania acontece em cada palavra escrita e em

cada emoção sentida. Abandonando de certa forma uma de suas declarações

ateístas de quando era uma adolescente: a de que “acima dos homens, nada

mais há”, Lispector narrou em A Maçã no Escuro a criação de Deus pelo

homem, e agora, narra o encontro entre homem e divino – que acontece

quando o humano deixa de ser humano para se tornar animal.

Além de uma autobiografia do inconsciente simbólico – pois a barata não passa

de um símbolo para algo muito maior, que varia desde a figura materna (que

permeou desde o princípio a obra de Clarice) até a figura do eu-interior –, A

Paixão Segundo GH, é muitas vezes uma confissão desesperada que Clarice

faz ao leitor, como no trecho: “... estou cortada do resto de mim – o resto de

mim é minha mãe...”. Separada do marido, sozinha com os dois filhos Paulo e

Pedro – este com esquizofrenia –, sua solidão nos é passada através de várias

invocações à mãe morta ao longo do monólogo: “mãe: matei uma vida...”,

“mãe, bendita sois entre as baratas...” entre outras coisas.

Fazendo uma analogia à vida, eu diria que Clarice nos mostra que é possível

extrair o melhor de nós mesmos a cada tropeço. É possível encontrar o que

procuramos em seu oposto, basta que nós saibamos tirar o melhor proveito das

piores situações – pois como ela mesma disse numa nota introdutória deste

livro: às vezes para chegar àquilo que se procura, deve-se atravessar o seu

oposto.

Em toda a obra literária de Clarice nota-se que algo queima e clama por ser

contado, neste livro, esta chama toma enormes proporções e mostra-se ao

leitor cara a cara; e é por isso que eu, particular e sinceramente, não

recomendo a leitura deste livro como a primeira a ser feita.

Em seu livro anterior, A Maçã no Escuro, Martin, antes de ser preso diz que irá

escrever um livro onde revelará tudo o que estava oculto – e depois disso,

Clarice nos traz A Paixão, o que deixa um ponto de interrogação no ar: não

seria este o livro escrito por Martin na prisão? Não seria este o livro que

revelaria tudo o que antes fora mantido oculto? – Para mim, este livro trata-se

de uma confissão desesperada de Martin, de GH e de Clarice. Neste livro, o

que sempre queimara na obra de Clarice, desde seu primeiro livro, é exposto –

fazendo deste um livro de renúncia: da autora e do leitor.

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“Sem nome, G.H. identifica-se com todos os seres”, li uma vez numa crítica ao

livro. O momento de maior revelação da essência do ser, se dá quando a

barata expele sua secreção branca – sua última essência – e GH então a

come.

“Comer” a barata é uma forma de GH, e da própria Clarice, renunciar à

linguagem: logo após seu encontro com o divino, quando come a barata, GH

mergulha no silêncio, rendendo-se à sua nova natureza.

A Paixão Segundo GH é, com seu enredo breve e esboçado, o clímax de uma

longa busca pessoal empreendida por Clarice desde seu primeiro livro. Pela

primeira vez ela capta a plena violência, a repugnância física, de seu encontro

com Deus. Neste livro, a autora mostra que penosa e gradualmente se

aproximara do divino, perdendo-se de si mesma.

Antes de GH, um possível encontro entre o homem e o divino, equivalia à

morte do primeiro; mas Clarice mostra que é possível encontrar Deus, mesmo

que se para encontra-lo seja preciso “atravessar o oposto daquilo que se

procura”. Sim, Clarice sobreviveu após encontrar-se com o mais interior de si

mesma – Deus –, e nos convida, através da voz de GH, para uma viagem

solitária para dentro de nós mesmos, para encontrar o Divino, a barata, o Ser

vivo e pulsante – a paixão que nos move e que nos é narrada pela voz

silenciosa de GH.