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5 10 15 20 25 30 35 40 A palavra resistente Escolha o leitor uma palavra qualquer, diga-a muitas vezes seguidas − pouco a pouco, ela irá perdendo sentido e densidade, até se transformar num articulado sonoro incoerente, que nada exprime já. Chegado a esse ponto crítico, nasce em si um movimento de pânico: precisa de recuperar a palavra destruída, amassá-la de novo no complexo de emoções que lhe restituirão a antiga e familiar fisionomia. É uma experiência simples que serve para mostrar a que extremos precisamos das palavras para continuarmos a ser. Se achar a introdução pretensiosa, dê-a o leitor por não lida. Nem eu a teria escrito se não tivesse aqui à mão uma palavra que já resistiu a todas as minhas tentativas de pulverização: por alguma coisa andamos a dizer, há séculos, que a exceção é que confirma a regra. A tal palavra é «horizonte». Cheguei a pronunciá-la cinquenta vezes. Pois ao fim de toda essa canseira, acabei por me descobrir eu dentro de uma esfera ressoante, no centro de um círculo vertiginoso e inacessível. Foi então que descobri o prestígio desta palavra, o qual provém do carácter muito particular daquilo que exprime. Ora vejamos. O horizonte, segundo as definições correntes, é a linha em que o céu parece confundir-se com a terra ou com o mar. Se o observador se deslocar em qualquer sentido, a linha do horizonte desloca-se igualmente. Vai-se formando assim uma sucessão de círculos secantes, como se o observador fosse empurrando o espaço adiante de si, e arrastando atrás uma cortina distante, que é o limite do seu alcance visual. Daqui se conclui que nunca ninguém pôde estar no horizonte. De qualquer lugar onde nos encontremos, o horizonte é sempre uma imagem que nos desafia, que nos promete maravilhas. Vamos para ele e logo se afasta, para outra vez nos fazer negaças. Tudo isto, como o leitor já percebeu, tem dois sentidos: o próprio e o figurado. Um, é o da realidade física − e contra ele nada podemos, uma vez que não é possível estar aqui e além ao mesmo tempo, ser simultaneamente o observador e o observado, estar colocado onde se está e também na linha onde o céu, etc., etc. Deste sentido não curemos, para defesa da nossa sanidade mental.

«A Palavra Resistente» José Saramago

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A palavra resistente

Escolha o leitor uma palavra qualquer, diga-a muitas vezes seguidas pouco a pouco, ela ir perdendo sentido e densidade, at se transformar num articulado sonoro incoerente, que nada exprime j. Chegado a esse ponto crtico, nasce em si um movimento de pnico: precisa de recuperar a palavra destruda, amass-la de novo no complexo de emoes que lhe restituiro a antiga e familiar fisionomia. uma experincia simples que serve para mostrar a que extremos precisamos das palavras para continuarmos a ser.Se achar a introduo pretensiosa, d-a o leitor por no lida. Nem eu a teria escrito se no tivesse aqui mo uma palavra que j resistiu a todas as minhas tentativas de pulverizao: por alguma coisa andamos a dizer, h sculos, que a exceo que confirma a regra.A tal palavra horizonte. Cheguei a pronunci-la cinquenta vezes. Pois ao fim de toda essa canseira, acabei por me descobrir eu dentro de uma esfera ressoante, no centro de um crculo vertiginoso e inacessvel. Foi ento que descobri o prestgio desta palavra, o qual provm do carcter muito particular daquilo que exprime.Ora vejamos. O horizonte, segundo as definies correntes, a linha em que o cu parece confundir-se com a terra ou com o mar. Se o observador se deslocar em qualquer sentido, a linha do horizonte desloca-se igualmente. Vai-se formando assim uma sucesso de crculos secantes, como se o observador fosse empurrando o espao adiante de si, e arrastando atrs uma cortina distante, que o limite do seu alcance visual. Daqui se conclui que nunca ningum pde estar no horizonte. De qualquer lugar onde nos encontremos, o horizonte sempre uma imagem que nos desafia, que nos promete maravilhas. Vamos para ele e logo se afasta, para outra vez nos fazer negaas.Tudo isto, como o leitor j percebeu, tem dois sentidos: o prprio e o figurado. Um, o da realidade fsica e contra ele nada podemos, uma vez que no possvel estar aqui e alm ao mesmo tempo, ser simultaneamente o observador e o observado, estar colocado onde se est e tambm na linha onde o cu, etc., etc. Deste sentido no curemos, para defesa da nossa sanidade mental.O outro sentido (o figurado), esse sim, convm-nos. Agora falo de um horizonte transposto para o plano da realizao pessoal, para os trinta mil ramos em que essa realizao pode projetar-se. E isto muito mais importante do que ter o dom da ubiquidade. Claro que tambm neste caso a linha do horizonte se deslocar a cada passo que dermos. Para alm do horizonte, h espao infinitamente. No consente a brevidade da vida (da nossa vida) um longo trajeto no caminho das realizaes possveis. Mas, se atentarmos bem, esta vida no teria grande sentido se no fosse, ou no devesse ser, um continuado esforo para atingir horizontes mesmo que eles j no estejam onde os tnhamos visto antes.Deu-me hoje para aqui. Outras vezes me tem acontecido contar casos reais ou histrias inventadas, de tal maneira embrechadas que acabo por no saber onde acaba a realidade e onde comea a inveno. Desta vez, no silncio e no isolamento em que trabalho, foi como se por artes mgicas me tivesse desdobrado e me estivesse vendo a caminhar, seguro e obstinado, pela paisagem interior da minha humanidade, com os olhos num horizonte a que nego a inacessibilidade porque para ele que vou. Como quem sobe a pulso uma longa e spera corda, que tem a realidade da sua aspereza e da sua extenso, mas a que imponho a realidade do querer e desta indefinvel certeza que no perco mesmo quando pareo afogado cm dvidas: no h outro caminho seno aquele em que podemos reconhecer-nos em cada gesto e em cada palavra, o da resistente fidelidade a ns prprios.Deu-me para aqui hoje, leitor. Tenha pacincia e vire a pgina.

Jos Saramago, Deste Mundo e do Outro, Lisboa, Editorial Caminho, 1997