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cadernos cemarx, n 0 2 — 2005 59 A modernidade, sobretudo em seu apogeu iluminista, ensejou a crença num devir auspicioso fundado, segundo Adam Smith, no desenvolvimento das for- ças produtivas do trabalho [ productive powers of labour ]. Porém, ainda no sécu- lo XVIII, em meio a um otimismo generalizado, que se consagrou com a gêne- se da historicidade (entendida como “progresso”) e espraiou-se através de au- tores como Kant ou Condorcet, já se insurgia Rousseau contra a crença da técnica como panacéia para a resolução dos problemas humanos. À esteira de ambos (Smith e Rousseau), Marx demonstra que o capital é um poderoso esti- mulante ao desenvolvimento das forças produtivas, mas traz aparelhado em si a submissão estranhada do processo de reprodução social à valorização do valor [Verwertungs des Werts ], com o quinhão de barbárie que lhe é inerente. O cresci- mento permanente e ilimitado da riqueza abstrata que carateriza o capital, figu- ra apoteótica da tríade fetichóide (mercadoria, dinheiro e capital), só se pode consumar às expensas da subordinação da satisfação das necessidades (e da vida) humanas a seu desiderato, pela imposição de seu automatismo, que subal- terniza todas as apetências. Se as mercadorias profanas [profane Waren] necessitam de guardiães que as le- vem ao mercado, o capital configura energúmenos, que são apoderados pela “lógi- ca” do processo de valorização e limitam-se a balbuciar um discurso reiterativo de A panacéia tecnológica e a perspectiva do valor de uso Mauro Castelo Branco de Moura 1 1 Professor Doutor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

A Panaceia Tecnológica e a Perspectiva Do Valor de Uso

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  • cadernos cemarx, n0 2 2005 59

    A modernidade, sobretudo em seu apogeu iluminista, ensejou a crena numdevir auspicioso fundado, segundo Adam Smith, no desenvolvimento das for-as produtivas do trabalho [productive powers of labour]. Porm, ainda no scu-lo XVIII, em meio a um otimismo generalizado, que se consagrou com a gne-se da historicidade (entendida como progresso) e espraiou-se atravs de au-tores como Kant ou Condorcet, j se insurgia Rousseau contra a crena datcnica como panacia para a resoluo dos problemas humanos. esteira deambos (Smith e Rousseau), Marx demonstra que o capital um poderoso esti-mulante ao desenvolvimento das foras produtivas, mas traz aparelhado em si asubmisso estranhada do processo de reproduo social valorizao do valor[Verwertungs des Werts], com o quinho de barbrie que lhe inerente. O cresci-mento permanente e ilimitado da riqueza abstrata que carateriza o capital, figu-ra apotetica da trade fetichide (mercadoria, dinheiro e capital), s se podeconsumar s expensas da subordinao da satisfao das necessidades (e davida) humanas a seu desiderato, pela imposio de seu automatismo, que subal-terniza todas as apetncias.

    Se as mercadorias profanas [profane Waren] necessitam de guardies que as le-vem ao mercado, o capital configura energmenos, que so apoderados pela lgi-ca do processo de valorizao e limitam-se a balbuciar um discurso reiterativo de

    A panacia tecnolgica e

    a perspectiva do

    valor de uso

    Mauro Castelo Branco de Moura1

    1 Professor Doutor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia UFBA.

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    conformidade aos seus (do capital) desgnios. Por esta razo, pde Marx afirmar,sem rodeios, que:

    A circulao simples de mercadorias - a venda para compra - serve de meio

    para um objetivo final que est fora da circulao, a apropriao de valores de

    uso, a satisfao de necessidades. A circulao do dinheiro como capital , pelo

    contrrio, uma finalidade em si mesma, pois a valorizao do valor s existe

    dentro deste movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital

    insacivel. Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinhei-

    ro torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, o ponto de partida e

    o ponto de retorno do dinheiro. O contedo objetivo daquela circulao - a valo-

    rizao do valor - sua meta subjetiva, e s enquanto a apropriao crescente da

    riqueza abstrata o nico motivo indutor de suas operaes, ele funciona como

    capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e conscincia2 .

    Destarte a perspectiva do valor de uso que permite a Marx iluminar o capitalis-mo, denunciando-o. Da seu freqente recurso e encmio obra de Aristteles.

    Com efeito, a forma mercadoria configura-se por uma tenso constitutiva que sedesdobra em seus dois atributos: o valor de uso e o valor. utilidade (valor de uso) subjetivamente fundada em qualidades diferenciadas e sensorialmente perceptveis (en-quanto se destina satisfao de apetncias) contrape-se o valor propriedadesocial objetiva e homognea (enquanto puramente quantitativa e extra-sensorial) quese origina do confronto no mercado, sob as formas relativa e equivalencial, dos produ-tos do trabalho privado. Ao primeiro atributo, que transcende socialidade burguesa eno oferece maiores obstculos inteleco, acopla-se o outro, cujo carter peculiarobnubila-lhe o sentido, convertendo-o em um verdadeiro hierglifo social a ser devida-mente decifrado: trata-se do fenmeno descrito por Marx como fetichismo mercantil.

    Se em sua forma mais prosaica (na mercadoria), configurada por uma faceta abso-lutamente difana (o valor de uso), o valor j resplandece como um absconso enig-ma, em seus desdobramentos subseqentes o mistrio s se incrementa. A formadinheiro emerge para Marx como um resultado necessrio da hipstase transfigura-

    2 Karl Marx, O Capital, Livro I, Vol. 1, So Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 129 [Das Kapital, I, MEW, Tomo 23, Berlim,

    Dietz, 1972, p. 166-167].

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    da do valor com a disseminao do intercmbio mercantil e por ele definido comoa figura consumada do equivalente geral [der fertingen Gestalt des allgemeinen quiva-lents]. O dinheiro, como a riqueza puramente abstrata, na que se extingue todo valor deuso especfico [...]3 porque sua nica utilidade, enquanto tal, consiste em expressar (ourefletir) a forma relativa de valor das diferentes mercadorias, pode, inclusive, desmateri-alizar-se, incorporando assim sua fantasmagoria plena. Por isso Marx pde afirmar queo enigma do fetiche do dinheiro , portanto, apenas o enigma do fetiche da mercadoria,tornado visvel e ofuscante4 . s simples mercadorias denominou-as profanas [profaneWaren] e ao dinheiro, esteira de Shakespeare, divindade visvel [sichtbare Gottheit]5 .

    Sem embargo, o objeto de sua obra magna, como seu prprio ttulo indica, ocapital. A baldeao pelas formas mercadoria e dinheiro foi o recurso imprescindvelpara que pudesse chegar sua tematizao. Para a economia poltica o capital semprefoi um fato emprico inquestionvel, porm, para Marx, no pode ser aceito sem umexame prvio. Associa-se ele, portanto, milenar tradio filosfica que se dedica aoexame de supostas evidncias... Para chegar forma capital teve que escrutar cuida-dosamente a mercadoria e o dinheiro, uma vez que ela (a forma capital) pode serdescrita, em sua frmula mais concisa, como D-M-D (dinheiromercadoriadinhei-ro incrementado), onde D=D+D. Trata-se, por esta razo, de uma figura processual,que se funda na metamorfose entre dinheiro e mercadoria, porm com um rdito: oD. Marx dedica as duas primeiras sees do Livro I dO Capital a enunciar (e denun-ciar) o enigma do D, leitmotiv do capital. Vale dizer, ele problematiza aquilo que aeconomia poltica aceita, sem questionamentos, como empiricamente evidente.

    No obstante, o carter absconso do valor, em suas sucessivas hipstases, s podeser iluminado a partir do valor de uso, atributo constitutivo da figura mais singela (amercadoria), porm que se esfuma em seu desdobramento subseqente (dinheiro) eest alheio ao leitmotiv da figura processual, cujo telos imanente est na riqueza abstra-ta e no na concreta. Por esta razo Marx pde afirmar que

    [...] o capital a juros constitui o fetiche mais completo. Encontramos

    3 Karl Marx, Lineamientos Fundamentales de la Crtica de la Economa Poltica [Grundrisse], 2 Tomos, Mxico,

    Fondo de Cultura Econmica, 1985, Tomo II, p. 413.

    4 Karl Marx, O Capital, cit., p. 85 [Das Kapital, p. 108].

    5 Cf. Karl Marx, Nationalkonomie und Philosophie (1844), in Die Frhschriften, Stuttgart, Alfred Krner, 1959, p. 299.

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    aqui o primeiro ponto de partida do capital o dinheiro e a frmula D-M-

    D, reduzida aos seus dois extremos D-D. Dinheiro que cria mais dinheiro.

    a frmula mais originria e geral do capital concentrada num resumo

    sem sentido6 .

    E este nonsense, claro, s pode ser vislumbrado desde a perspectiva do valor deuso, que, ademais, a da vida humana em sua finitude, j que o valor , per se, en-quanto domnio da riqueza abstrata, ilimitado.

    David Ricardo, no incio de seus Principles, afirmava que Possuindo utilidade, asmercadorias derivam seu valor de troca de duas fontes: de sua escassez e da quantidade de

    trabalho necessria para obt-las7 . Seria absurdo produzir algo que a natureza ofereaimediata e espontaneamente em abundncia. Alfred Marshall denomina bens livresqueles valores de uso que, independentemente de sua imprescindibilidade, como ado ar, por exemplo, nem podem ser alvos da apropriao privada. Destarte, se a escas-sez um dos pilares do valor, a abundncia a condio para sua abolio e nela,portanto, que o comunismo, para Marx, deve se fundar. E aqui importante esclare-cer um recorrente mal-entendido.

    O dogma da propenso ilimitada ao consumo, que povoa certos manuais deeconomia, apenas traveste o postulado metafsico moderno, onde a vontade e aliberdade agigantam-se de tal maneira que no conhecem limites, fundamentan-do, para Descartes, a prpria imagem e semelhana com Deus8 . Estas caractersti-cas do individualismo burgus e de seu egosmo constitutivo, transformam-se paraHobbes nas premissas de um conflito generalizado prvio configurao da soci-edade civil, inerente prpria condio humana; pois, antes dos pactos, [...] eralcito a cada qual fazer o que lhe aprouvesse diante de quem-quer-que-seja, e apoderar-

    se, para usar e desfrutar, de tudo que quisesse e pudesse9 . Esta cupidez gensica,fundamento da guerra de todos contra todos, pode ser interpretada como o modohobbesiano de enxergar a etiologia do confronto entre proprietrios privados in-dependentes no mercado.

    6 Karl Marx, O Rendimento e suas Fontes, In: Karl Marx, So Paulo, Abril Cultural, Col. Os Economistas, 1982, p. 189.

    7 David Ricardo, Princpios de Economia e Tributao, So Paulo, Abril Cultural, Col. Os Economistas, 1982, p. 43.

    8 Cf. Ren Descartes, Meditationes de Prima Philosophia, Campinas, IFCH/UNICAMP, Ed. Bilnge, 1994, Meditatio

    Quarta, 9, p. 16.

    9 Thomas Hobbes, De Cive, Petrpolis, Vozes, 1993, p. 54.

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    No plano ordinrio da vida humana, no entanto, em sua mesquinha finitude,esta volio desmesurada no pode encontrar guarida, posto que, no mbito dariqueza concreta, se do ponto de vista da qualidade a satisfao das necessidadesno configura, em princpio, limites, sendo seus contornos abertos; sob o prismada quantidade, a delimitao parece evidente. O valor de uso das mercadorias spode ser efetivamente desfrutado pelos indivduos humanos em quantidades li-mitadas; apenas o consumo produtivo tende ilimitao, enquanto substrato doprocesso de valorizao, que caracteriza o capital, responsvel pelo produtivismodesmedido. Reduzidas a simples objetos prticos, as mercadorias esbarram noslimites quantitativos das apetncias humanas. No se pode comer, beber, vestir,morar, transportar, etc., em quantidades ilimitadas. Pelo contrrio, h limites fsi-cos capacidade individual (e, no somatrio, coletiva) de consumo.

    S a riqueza abstrata, qual o prprio Deus, pode no ter limites. Sua desme-sura constitutiva ofusca o verdadeiro carter da riqueza concreta, permitindoque se lhe impute ltima atributos que no possui, condenando os incautos indistino entre as riquezas concreta e abstrata, algo que o pensamento peripa-ttico j ensinara de h muito como fazer. Tomemos, por exemplo, um sapato[props Aristteles]: existe seu uso como sapato e existe seu uso como artigo deintercmbio10 . Destarte, a perspectiva do valor de uso aquela que permite cir-cunscrever o mbito da riqueza abstrata. Confrontado com a perenidade da uti-lidade, condio de possibilidade da vida humana, em qualquer momento his-trico, o valor revela-se apenas um atributo transitrio, histrico, confinado formas da socialidade mercantil. Conferir-lhe a abrangncia do valor de uso apenas mais um mito burgus...

    Conviria, portanto, com respeito tecnologia, desembaraar, ao menos teori-camente, a produo da riqueza concreta de sua submisso ao processo de valori-zao. A constatao de que o capital promove uma incessante revoluo das for-as produtivas, em virtude da permanente alterao de sua composio orgnica,com um peso crescente do trabalho morto em relao ao vivo, explica seuprofundo interesse pelos resultados da cincia, porm, no a converte num atri-buto do capital. Inclusive porque ele tambm tolhe os movimentos da cincia,submetendo-a a seu ritmo e interesses, para no falar da dilapidao dos recursos

    10 Aristteles, Poltica, In: Obras, Madri, Aguilar, 1973, p.1420 [1257a].

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    naturais e da destruio peridica das foras produtivas que auspicia, atravs desucessivas crises cclicas. No se pode sorrateiramente escamotear a fonte perma-nente de disseminao de barbrie que se esconde sob o manto do culto da rique-za abstrata, posto que, se a produo da riqueza concreta no , per se, descontro-lada, a valorizao do valor sim...

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