A-Parte_06

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Revista Aparte número 6.

Citation preview

  • aParte XXIrevista do teatro da universidade de so paulo

    6

    aPar

    te X

    XI

    revi

    sta

    do tu

    sp

    referenciais ideolgicos dos grupos participantes da jornada de teatro universitrio (2011 e 2012) cludia alves fabiano e edison bicudo s quem nunca teve um cavalo vai saber do que eu estou falando paloma franca amorim teatro, verdade e poder fernando kinas vestgios de um gozo proibido igor de almeida silva heleny guariba: consideraes sobre um teatro esttico-poltico coletivo poltico quem heleny guariba dulce muniz processo de aristeu mariana soutto mayor e paulinho t entrevista com ittala nandi isabel teixeira teatro-jornal do arena: contribuies para o desmascaramento do milagre brasileiro eduardo lus campos lima victor e ruth arrabal e genet jefferson del rios teatro x censura; arte x barbrie csar vieira

    quando eles despertarem de entre os mortos e contestao e desvario: o que quis e o que pde a dramaturgia brasileira ps-68 welington andrade pe-queno histrico biogrfico de um olhar de criana sobre tempos difceis johana albuquerque herana e inveno: a graa minscula do teatro convocado histria luiz paulo pimentel censura, represso e modernizao cultural no tempo da ditadura marcelo ridenti teatro e justia de transio: uma anlise de a morte e a donzela, de ariel dorfman renan honrio quinalha o destino de uma mulher sem pecado: nelson rodrigues e a censura ferdinando martins relatrio final miguel rubio zapata adeus ayacucho julio ortega e miguel rubio zapata

    ISSN 2179-9555

    Distribuio gratuita. No pode ser comercializado.

    6

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Reitor Joo Grandino Rodas Vice-Reitor Hlio Nogueira da CruzPr-Reitor de Pesquisa Marco Antonio Zago Pr-Reitora de Graduao Telma Maria Tenrio ZornPr-Reitor de Ps Graduao Vahan Agopyan Vice-Reitor Executivo de Administrao Antonio Roque DechenVice-Reitor Executivo de Relaes Internacionais Adnei Melges de Andrade

    PR-REITORIA DE CULTURA E EXTENSO UNIVERSITRIA

    Pr-Reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda Pr-Reitor Adjunto de Extenso Universitria Jos Ricardo de Carvalho Mesquita AyresPr-Reitora Adjunta de Cultura Marina Mitiyo Yamamoto Suplente da Pr-Reitora Lucas Antnio MoscatoAssessores Tcnicos de Gabinete Jos Clvis de Medeiros Lima e Jos Nicolau Gregorin Filho

    TEATRO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    Diretor Celso Frateschi Vice-Diretor Ferdinando MartinsOrientadores de Arte Dramtica Cludia Alves Fabiano, Deise Abreu Pacheco, Dilson Rufino, Francisco Serpa Peres, Maria Tendlau e Ren Marcelo Piazentin AmadoAnalista para Assuntos Administrativos Magali Chamiso Chamellette de OliveiraAnalista de Comunicao Fbio LarssonSecretria Neuza Aparecida Moreira CirqueiraTcnico Contbil Nilton CasagrandeSonoplastas/Iluminadores Rogrio Cndido dos Santos e Rodrigo BariAssessoria de Imprensa Elcio SilvaTcnicos para Assuntos Administrativos Marcos Chichorro dos Santos e Vanessa Azevedo de MoraisAgente Cultural Otaclio Alacran Auxiliar de Manuteno Antonio Marcos Nogueira da SilvaAuxiliar para Assuntos Administrativos Fbio Luiz CerqueiraVigia Edinaldo BarbosaEstagiria Yasmin Ghazzaoui Torres, Lahayda Lohara Mamani Poma Dreger e Thais Richena Giovanetti Bolsistas Rafael Pinto Pinheiro e Thais Rossi de Souza

  • aParte XXI

    6

  • Pr-Reitoria de Cultura e Extenso UniversitriaRua da Praa do Relgio, 109Cidade Universitria So Paulo, SP 05508-050Telefones: 11 3091.3240 / 11 3091.2093Fax: 11 3091.3154

    Teatro da Universidade de So PauloRua Maria Antnia, 294Consolao So Paulo, SP 01222-010Telefone: 11 3123.5223Fax: 11 3123.5240

    O Tusp agradece a todos os aPartistas inscritos, e s Edies Sesc pela autorizao concedida para a publicao do captulo Victor e Ruth Arrabal e Genet, de Jefferson Del Rios (In: O Teatro de Victor Garcia - A Vida sempre em Jogo, So Paulo, Edies Sesc SP, 2012, pp. 63-75).

  • Sumrio

    Nota Histrica

    Apresentao

    Referenciais Ideolgicos dos Grupos Participantes da Jornada de Teatro Universitrio (2011 e 2012)

    S Quem nunca Teve um Cavalo Vai Saber do que Eu Estou Falando

    Teatro, Verdade e Poder

    Vestgios de um Gozo Proibido aParte

    Heleny Guariba: Consideraes sobre um Teatro Esttico-Poltico

    Heleny Guariba

    Processo de Aristeu aParte

    Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Paloma Franca Amorim

    Fernando Kinas

    Igor de Almeida Silva

    Coletivo Poltico Quem

    Dulce Muniz

    Mariana Soutto Mayor e Paulinho T

    7

    9

    11

    25

    29

    39

    45

    57

    63

  • Isabel Teixeira

    Eduardo Lus Campos Lima

    Jefferson Del Rios

    Csar Vieira (Idibal Pivetta)

    Welington Andrade

    Welington Andrade

    Johana Albuquerque Luiz Paulo Pimentel

    Marcelo Ridenti

    Renan Honrio Quinalha

    Ferdinando Martins

    Miguel Rubio Zapata

    Julio Ortega e Miguel Rubio Zapata

    Entrevista com Ittala Nandi

    Teatro-Jornal do Arena: Contribuies para o Desmascaramento do Milagre Brasileiro

    aParte

    Victor e Ruth Arrabal e Genet

    Teatro x Censura; Arte x Barbrie

    Quando Eles Despertarem de entre os Mortos

    Contestao e Desvario: O que Quis e o que Pde a Dramaturgia Brasileira Ps-68

    Pequeno Histrico Biogrfico de um Olhar de Criana sobre Tempos Difceis

    Herana e Inveno: A Graa Minscula do Teatro Convocado Histria

    aParte

    Censura, Represso e Modernizao Cultural no Tempo da Ditadura

    Teatro e Justia de Transio: Uma Anlise de A Morte e a Donzela, de Ariel Dorfman

    aParte

    O Destino de uma Mulher sem Pecado: Nelson Rodrigues e a Censura

    Relatrio final

    Adeus Ayacucho

    Sobre os Autores

    65

    79

    85

    93

    97

    97

    105

    113

    119

    127

    135

    147

    157

    169

  • 7Lanada em 1968, a revista aParte surgiu como a publicao do Teatro dos Universitrios de So Paulo, sob a coordenao editorial de Flvio Imprio e Andr Gouveia. Os dois nmeros da aParte, lanados nesse fatdico ano da histria de nosso pas (um terceiro no pde ser publica-do e foi quase totalmente destrudo ante o acirramento da perseguio poltica), so documentos estticos-polticos de posio francamente revolucionria, na qual tendncia poltica e qualidade esttica aparecem como impulso tensionador de posies que insistiam em obscurecer a produo da cultura como questo de classe. Em 2010, 43 anos depois, o Tusp Teatro da usp, rgo da Pr-Reitoria de Cultura e Extenso da Universidade de So Paulo retomou a ideia dessa publicao.

    Nesta nova empreitada, pretendemos indagar e perscrutar caminhos que mantenham aquela vocao da aParte original diante da produo contempornea das artes cnicas e, como consequncia desta, de toda a produo artstica e cultural da atualidade. A partir disso, consideramos que a revista aParte XXI deva expor perspectivas crticas de como opera o mercado da cultura e de como a universidade participa abrindo ques-tes e/ou reiterando comportamentos dessa produo e reproduo: no teatro profissionalizado (tanto o comercial como o dito experi-mental), nas diversas manifestaes da arte universitria e, finalmente, na formao prtica e terica em artes cnicas.

    nota hiStrica

  • A chuvaNo volta para cima.

    Quando a feridaNo di mais

    Di a cicatriz.Bertolt Brecht

  • 9Aprese

    nta

    o

    apreSentao

    Em sua sexta edio, a revista aParte xxi abre-se ao tema Teatro, Verdade e Justia, com o intuito de trazer ao debate a ferida histrica da ditadura militar no Brasil e suas implicaes para o teatro de nosso pas, dentro e fora de cena.

    Perguntas emergem em nosso caminho ao transitarmos pela pau-ta apresentada: como nos posicionarmos diante desta cicatriz de nossa histria na atualidade, evitando os gestos de vitimizao e a sua contra-partida em prticas socorristas? Por quais mtodos poderamos dar voz ao Teatro Brasileiro no como mrtir, mas como sujeito , a fim de contribuir para a consolidao de uma atitude histrico-crtica?

    Para tanto, agradecemos a participao tanto dos colaboradores convi-dados como daqueles que voluntariamente aceitaram enfrentar a provo-cao sobre o tema, lanada na ltima edio, na seo aPartes.

    Cabe meno especfica ao artigo que volta a tratar da Jornada de Tea-tro Universitrio, cujo enfoque difere do tema proposto para esta edio, mas que nos interessa por manter em curso o debate em torno das prticas teatrais universitrias fomentado pela programao do Tusp.

    As questes esto postas, mas no nos parece que existam respostas ine-quvocas. Esperamos, porm, que os artigos e contribuies desta edio possam nuanar a sombra que ainda paira sobre nossa realidade.

    O Tusp

  • 10

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

  • referenciaiS ideolgicoS doS grupoS participanteS da Jornada de

    teatro univerSitrio (2011 e 2012)Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

  • 13 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    O temaQuando se pensa nas artes, as imagens que mais rapidamente nos

    vm cabea so provavelmente aquelas relacionadas com a prtica, o fazer, a materialidade. Apenas num segundo momento que pala-vras tais como filosofia, reflexo e especulao sero associadas s ar-tes. Essa provvel circunstncia deve-se a um fenmeno bsico: todas as artes conhecem, em pelo menos algum momento de sua realizao, manifestaes concretas, corpreas, materiais. Por isso, mesmo uma emi-nente filsofa como Hannah Arendt disse, das artes, que sua principal caracterstica no tanto o pensamento, mas a simples adio de coisas concretas ao mundo dos homens, [...] j que justamente o processo de pensamento que o artista [...] deve interromper e transformar em nome da reificao materializante do seu trabalho (Arendt, 1958/1998, pp. 170-171).

    por causa dessa tendncia a enfatizar os componentes concretos e materiais das artes que se faz preciso chamar a ateno para o lado filosfico ou ideolgico que sempre se expressa no fazer artstico. No caso especfico do teatro, as ideias de Jean-Pierre Ryngaert (2009) nos ajudam a pensar a prtica teatral como algo que transcende a dimenso material da ao humana. Para ele, a nfase na fico que suscita um

  • 14

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    olhar mais apurado em relao ao sujeito e suas formas de manifestao das emoes a partir de processos de codificao.

    Todas as artes sempre requerem ao menos uma combinao mnima entre reflexo e fazer. Assim, elas podem ser olhadas luz da descrio marxiana, que ressalta que toda atividade humana produtiva requer pla-nejamento prvio (Marx, 1867/1990); ou luz da teoria habermasiana, que prope que toda ao social expressa uma racionalidade e permite comunicao (Habermas, 1981/1987).

    No teatro, a mesma complementaridade entre reflexo terica e fazer prtico se verifica. Da, a sucesso de diversas correntes tericas teatrais, cada uma propondo uma certa concepo de encenao e representa-o. Poderamos lembrar Brecht e seu argumento de que o fazer teatral sempre transporta contedos ideolgicos e, por isso, artistas desavisados podem, sob o pretexto de fazer um teatro ideologicamente neutro, indi-retamente corroborar as ideologias dominantes (Brecht, 1967).

    Uma ao como a Jornada de Teatro Universitrio (que parte de um programa de cultura e extenso do Tusp, rgo ligado Pr-Reitoria de Cultura e Extenso da Universidade de So Paulo) no escapa a esses fenmenos. Ainda que lidemos com grupos teatrais que, em sua maioria, possam estar ensaiando seus primeiros passos, e ainda que esses grupos estejam, de alguma forma, buscando seus fundamentos ideolgicos e materiais estticos, suas atividades j podem expressar certas escolhas ou inspiraes filosficas. Tais questes so importantes para pensar sobre a Jornada de Teatro Universitrio, que almeja, desde a primeira edio, em 2011, observar a realidade atual do teatro universitrio. Ora, se se preten-de reconhecer o teatro que se faz nas universidades hoje e explorar todas as suas potencialidades, ento um olhar sobre a dimenso filosfica e sua interao com a prtica teatral s pode ser revelador e construtivo.

    Este artigo constitui um primeiro esforo para realizar essa explora-o. Nosso intuito verificar quais tm sido as fontes filosficas de que se valem os grupos de teatro universitrio contemporneos. Um grupo de teatro pode ser visto como um receptor de ideias e teorias, retendo algumas delas para utiliz-las na prtica teatral. Ento, vale perguntar que tipo de ideias tm sido selecionadas majoritariamente. Com que frequncia so citados pensadores do teatro, socilogos, psiclogos, pe-dagogos? possvel dizer que o teatro universitrio j atingiu um estgio de diversificao ideolgica, no sentido de que sua prtica estimulada por ideias advindas de diversas reas do conhecimento?

    O fato de que lidamos com grupos universitrios muito signifi-cativo. Em teoria, as universidades so promotoras de uma circulao de variado leque de ideias. Assim, uma pluralidade de escolhas ideo-lgicas, pelos grupos, poderia estar indicando uma efervescncia filo-sfica. Mais do que isso, pode ser que os grupos estejam recorrendo a teorias formuladas em seus prprios contextos universitrios, o que

  • 15 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    indicaria uma benfica reciprocidade entre vida acadmica e prtica teatral. Pode-se ento perguntar: Os autores/pensadores referidos pelos grupos de teatro tm alguma participao na histria das universidades brasileiras? Qual o peso das teorias propostas por autores/pensadores brasileiros, em comparao com autores/pensadores estrangeiros? As te-orias e ideias adotadas foram originalmente formuladas para dar conta do contexto brasileiro?

    Essa a explorao proposta pelos autores deste artigo, eles prprios formados em diferentes tradies tericas: uma atriz/professora de tea-tro e um socilogo/gegrafo. Ao final dessa trajetria, esperamos ofere-cer uma interpretao inicial sobre as interrelaes entre filosofia, teatro, espao e sociedade, todos vistos luz dos grupos de teatro universitrio.

    A anliseA Jornada de Teatro Universitrio j teve duas edies (de 09 a 11

    de dezembro de 2011; e de 31 de agosto a 02 de setembro de 2012), am-bas realizadas na cidade de So Paulo, no prdio histrico da rua Maria Antonia onde se localiza o Teatro da usp. Em 2011, 30 grupos foram se-lecionados por uma comisso do Tusp. Em 2012, 17 novos grupos foram selecionados, juntando-se a outros cinco grupos que tinham estado na edio anterior, num total de 22 grupos.

    importante destacar que, dos grupos participantes, a maioria dos integrantes teve ou tem relaes estudantis com alguma universidade. Dos trinta grupos de 2011, por exemplo, 25 eram compostos por estu-dantes universitrios (dezessete grupos com estudantes de artes cnicas e oito com estudantes de outros cursos). Portanto, estamos lidando no apenas com artistas, mas tambm com intelectuais e profissionais for-mados em universidades brasileiras. Alm disso, esses grupos podem ter outros tipos de relao com a universidade. Por exemplo, dos trinta gru-pos, 23 declararam utilizar as dependncias de uma universidade para ensaios e reunies.

    Como dissemos, o objetivo maior da Jornada compreender a rea-lidade do teatro universitrio, promovendo o encontro e a formao de grupos de teatro universitrio. Para que esses grupos pudessem reconhe-cer-se e debater sua experincia esttica, trs etapas foram propostas nas duas edies da Jornada: apresentao dos trabalhos teatrais em cenas curtas (tanto cenas retiradas de espetculos teatrais j prontos como ce-nas criadas especificamente para o encontro); criao de um material esttico com integrantes de outros grupos sob a coordenao de um ar-tista convidado; e uma reflexo sobre o ato de ver e fazer teatro, tecendo conexes com os contextos dos grupos. Ento, as perguntas que perme-aram as duas edies da Jornada foram: Quem so os grupos que hoje se autodenominam grupos de teatro universitrio? Que tipo de relao possuem com a universidade? Como enxergam a universidade hoje?

  • 16

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    Na inscrio, os grupos foram convidados a responder um question-rio do qual constavam dez perguntas, as quatro primeiras solicitando in-formaes bsicas e de localizao geogrfica, e as outras seis destinadas a realizar uma prospeco da relao entre os grupos e as universidades. Na anlise que realizamos neste artigo, foram utilizadas as respostas s questes 8 e 9 desse questionrio, que foram assim formuladas: Como o grupo descreveria a sua pesquisa? (no questionrio de 2012, essa pergun-ta foi reformulada: Como o grupo descreveria seu trabalho? H alguma linha de pesquisa identificada?) e Existe alguma referncia (esttica, poltica, filosfica, etc.) que norteie o trabalho?

    Majoritariamente, os grupos participantes atuam no estado de So Paulo. Houve, porm, em 2011, a participao de dois grupos mineiros, um paranaense e um fluminense; em 2012, um grupo cearense e um ga-cho estiveram na Jornada. Os mapas abaixo mostram a distribuio dos grupos paulistas, com o nmero de grupos de acordo com as cidades.

    Mapa Jornada Tusp: Nmero de Grupos Provenientes de Cidades Paulistas

    Portanto, a cidade de So Paulo sede da maioria dos grupos que participaram dessas edies da Jornada (treze grupos paulistanos em 2011 e cinco em 2012). Este fato pode estar refletindo a primazia geogrfica de So Paulo, onde h uma concentrao de saberes, atividades e cursos de especializao no campo do teatro, o que no acontece nas cidades do in-terior paulista, onde h menor concentrao de cursos de especializao em teatro dentro e fora da universidade. Pode-se indagar se tal prima-zia urbana (ou metropolitana) se verifica tambm noutros aspectos, tais como o referencial terico adotado pelos grupos, tema deste artigo.

    A interpretaoOs grupos de teatro universitrio que enfocamos aqui so relativa-

    mente novos. Dos 47 grupos participantes nas duas edies, 36 (76%) foram criados em 2008 ou nos anos seguintes. Apenas um grupo foi cria-do na dcada de 1940, outro na dcada de 1960, e trs na dcada de 1990.

    2011So Carlos (2) Ribeiro Preto (1)

    Piracicaba (2)

    Campinas (3)

    Guarulhos (1)

    Santa Brbara dOeste (1) So Paulo (13)

    Bauru (1)

    Salto (2)

    2012

    Itupeva (1)

    So Carlos (4)Ribeiro Preto (3)

    Mococa (1)

    Guarulhos (1)

    Salto (2)

    Piracicaba (2)

    Bauru (1)

    So Paulo (5)

  • 17 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    Com isso, no surpresa que a maioria dos grupos esteja em busca de referenciais tericos. Um grupo de Guarulhos declarou: Ainda estamos nos consolidando como grupo, principalmente no que diz respeito a nossa viso esttica, poltica e filosfica. Outro grupo, com sede em So Paulo, afirmou: Diversas referncias j foram e ainda so postas em de-bates ou em prtica, mas no chegamos ainda a algo definido. Pode-se dizer que o grupo, nesse sentido, ainda est em formao.

    Apesar disso, certamente possvel dizer que esses grupos j deno-tam uma importante variedade de referenciais tericos e ideolgicos. Apenas nove questionrios (19%) no tm qualquer indicao de refe-rencial (todos eles em 2011). Nos questionrios que indicaram referen-ciais, o surpreendente nmero de 104 nomes de autores/pensadores foi verificado. Porm, esse nmero poderia ter sido ainda maior, pois o questionrio foi preenchido por um nico representante do grupo. Se todos os membros tivessem sido consultados, mais nomes poderiam ter sido lembrados e, possivelmente, teria sido menor o nmero de questio-nrios sem indicao de referenciais.

    Alm disso, consideramos aqui apenas as citaes de autores/pensa-dores individuais. Houve grupos que citaram movimentos e tendncias (surrealismo, expressionismo, minimalismo, teatro colaborativo, direo coletiva, cultura pop, dadasmo, futurismo, naturalismo, tanztheater, tea-tro pico, direitos humanos, anarquismo). Alguns grupos deixam claro seu interesse pelas artes hbridas, desde a performance, passando pelo site-specific (elementos esculturais dialogando com o meio circundante) e desembocando na plagiocombinao, uma estratgia de criao que integra a cibercultura e que coloca em questo a prpria noo de auto-ria (Martins, 2012). O uso de terminologias variadas no campo das artes performativas pode ser a manifestao de um interesse em dar nomes para esse emaranhado de desejos estticos. Ainda que essas referncias impessoais no tenham entrado em nossas contagens quantitativas, elas reforam, qualitativamente, a concluso de uma interessante diversidade de referenciais.

    De fato, alm de numerosos, os referenciais indicados cobrem diver-sas reas artsticas, cientficas e filosficas. Obviamente, a grande maioria das citaes (51,9%) diz respeito ao domnio do teatro (autores e tericos teatrais) e das artes cnicas (atores e professores). Porm, muitos outros domnios foram indicados. Ainda que em menor nmero, tais citaes cobrem domnios bem diversos, como literatura (Clarice Lispector, An-dr Breton), cinema (Buster Keaton, Charlie Chaplin), filosofia (Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze), pedagogia/educao (Paulo Freire, Jorge Larrosa Bonda), dana/dana-teatro (Mary Wigman, Pina Bausch), psicanlise (Sigmund Freud), sociologia/antropologia (Darci Ribeiro, Theodor Ador-no), dentre outras reas e nomes. A tabela a seguir faz um resumo de todas as citaes feitas.

  • 18

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    2011 2012 Totalrea Citaes Proporo (%) Citaes Proporo (%) Citaes Proporo (%)Teatro 16 24,6 14 35,9 30 28,8Artes cnicas 16 24,6 8 20,5 24 23,1Filosofia 5 7,7 7 17,9 12 11,5Crtica teatral 4 6,2 4 10,3 8 7,7Sociologia/antropologia 5 7,7 1 2,6 6 5,8Literatura 5 7,7 1 2,6 6 5,8Dana/dana-teatro 4 6,2 0 0 4 3,8Pedagogia/educao 2 3,1 2 5,1 4 3,8Cinema 2 3,1 0 0 2 1,9Psicologia 1 1,5 1 2,6 2 1,9Mitologia 1 1,5 1 2,6 2 1,9Comunicao/semitica 1 1,5 0 0 1 1,0Escultura 1 1,5 0 0 1 1,0Msica 1 1,5 0 0 1 1,0Psicanlise 1 1,5 0 0 1 1,0Total 65 100,0 39 100,0 104 100,0

    Tabela 1 reas Citadas pelos Grupos de Teatro do Jornada: 2011 e 2012

    Estamos, ento, diante de uma interessante variedade ideolgica. Ainda que, entre as reas mais comumente citadas, encontremos ativida-des afins ao teatro (tais como crtica teatral e dana/dana-teatro), outras reas com bastantes citaes (como filosofia, sociologia/antropologia e literatura) tm relao mais indireta com o teatro. Isso demonstra um esforo em aplicar teorias sociais, culturais e literrias ao domnio do teatro, num trabalho de traduo interdisciplinar.

    Dentre os citados, 10,5% so autores/pensadores que poderiam ser tidos como clssicos; ou seja, autores (tais como Marx ou Freud) que trabalha-ram no sc. XIX (ou anteriormente), cujas ideias/teorias so largamente conhecidas em certos domnios. Outros 58,8% so autores/pensadores cujo pice de produo aconteceu at o final do sc. XX (tais como Bertolt Bre-cht, Italo Calvino ou Maurice Merleau-Ponty). Por fim, 30,7% das citaes referem-se a autores/pensadores que podemos considerar contemporne-os, ou seja, pessoas cuja trajetria artstica ou cientfica ainda est em curso (tais como Antunes Filho, Marcelo Lazzarato ou Anne Bogart). compre-ensvel que a maioria das citaes remeta a autores do sc. XX, pois essas teorias tiveram tempo para se consolidar e difundir, porm vemos que uma importante proporo dos referenciais citados de contemporneos (30,7%), o que denota uma sede por novas ideias e paradigmas.

    Como atesta a tabela a seguir, a maioria dos referenciais citados tem origem europeia.

    2011 2012 TotalOrigem Citaes Proporo (%) Citaes Proporo (%) Citaes Proporo (%)Europa 33 50,8 24 61,5 57 54,8Brasil 25 38,5 9 23,1 34 32,7Estados Unidos 6 9,2 6 15,4 12 11,5Canad 1 1,5 0 0 1 1,0Total 65 100,0 39 100,0 104 100,0

    Tabela 2 Origem dos Referenciais Citados

  • 19 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    Como se sabe, muitas universidades brasileiras tiveram forte influ-ncia de teorias europeias (sobretudo francesas), e essa tradio faz com que intelectuais e professores brasileiros estejam particularmente inte-ressados na produo artstica e cientfica dessa regio do mundo. Esse fenmeno parece refletir-se, ento, no universo dos grupos de teatro universitrio. Porm, tambm vemos que autores/pensadores brasileiros foram citados em grande proporo (32,7%). Desse modo, a prtica dos grupos est longe de menosprezar ou desconhecer a produo intelec-tual do Brasil. Porm, interessante notar que no existem referncias produo artstica e cientfica de outros pases latino-americanos, o que pode sinalizar a ausncia de estudos teatrais relevantes que considerem a produo acadmica e artstica dos pases da Amrica Latina.

    Por fim, verificamos que, dos 104 nomes citados, doze (15,3%) tiveram ou tm atuao em universidades brasileiras. As citaes incluem pensa-dores j falecidos (como Paulo Freire ou Darci Ribeiro) e profissionais em plena atuao universitria (como Cristine Greiner, Alexandre Mate ou Isabel Setti). A tabela abaixo resume essas citaes do ponto de vista das universidades em que atuaram ou atuam os nomes citados.Universidades Citaes em 2011 Citaes em 2012 TotalPontifcia Universidade Catlica (puc-sp) 3 1 4Universidade de So Paulo (usp) 2 2 4Universidade de Campinas (Unicamp) 2 0 2Universidade do Estado de Santa Catarina (Unesc) 1 1 2Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj) 1 0 1Universidade de Braslia (UnB) 1 0 1Universidade Estadual de So Paulo (Unesp) 1 0 1Universidade Catlica rj 1 0 1

    Tabela 3 Universidades Brasileiras em que Trabalham as Pessoas Citadas

    difcil dizer se a proporo de profissionais universitrios citados (15,3%) satisfatria ou no. Possivelmente, este nmero s poderia ser de algum modo significativo se comparado a uma anlise similar feita em outros pases. Porm, parece haver um certo dilogo entre a produo intelectual universitria e a atividade dos grupos de teatro. Por exemplo, um grupo de So Paulo declara trabalhar com o conceito de anteparos, proposto pelo professor Armando Srgio da Silva (usp), enquanto um grupo de Campinas diz empregar a ideia de zona de improviso, desen-volvida por Marina Elias (Unicamp). Desse modo, j existem exemplos de produes teatrais universitrias sendo estimuladas por teorias con-temporaneamente cunhadas nas universidades brasileiras.

    Apesar de toda essa riqueza ideolgica, poderamos indicar duas au-sncias. Em primeiro lugar, foi interessante notar o silncio em relao aos pintores. Considerando-se o fundamental componente visual do teatro, chama a ateno a completa ausncia de referenciais pictricos. Esse fato ainda mais marcante quando se considera que um escultor (Auguste Rodin) chegou a ser mencionado.

  • 20

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    Essa ausncia nos permite refletir sobre os elementos que a arte pict rica pode trazer cena, elementos estes que, de uma forma geral, estiveram ausentes nos materiais cnicos compartilhados pelos grupos nas duas edies da Jornada.

    Lehmann (2007, p. 277) enfatiza que artistas como Pina Bausch e Bob Wilson se utilizam de elementos que esto presentes na linguagem pictrica, ou seja, [...] revela-se a inteno de propiciar uma determi-nada experincia temporal por meio de concepes espaciais especfi-cas [...]. Bob Wilson tem como prtica criar molduras com elementos que constituem o teatro: a luz, o som, o gesto escultural dos atores. Em Pina Bausch podemos perceber a espacializao das aes do corpo, na amplificao, por exemplo, das batidas do corao, o que propicia ao espectador uma outra relao com o espao-tempo sem a necessidade de alterar a viso frontal da cena, por exemplo (Lehmann).

    A segunda ausncia que notamos nos questionrios da Jornada pro-vm de uma aparente superestimao de teorias e ideias formuladas para dar conta de contextos geogrficos e sociais de cunho urbano-metropoli-tano. Quando consideramos os nomes mais frequentemente citados, te-mos o seguinte resultado.

    2011Nome Domnio Origem CitaesBertolt Brecht Teatro Europa 9Augusto Boal Teatro Brasil 6Karl Marx Sociologia Europa 3Michel Foucault Filosofia Europa 3

    2012Nome Domnio Origem CitaesBertolt Brecht Teatro Europa 6Augusto Boal Teatro Brasil 4Jerzy Grotowski Teatro Europa 3

    Tabela 4 Autores/Pensadores mais Frequentemente Citados

    Bertolt Brecht foi o nome mais frequentemente citado (9 questio-nrios o mencionaram em 2011, mais 6 em 2012), seguido por Augus-to Boal. Esses autores/pensadores (assim como Marx e Foucault) tm uma viso crtica da sociedade e propuseram interpretaes que, de um modo ou de outro, confrontam os sistemas produtivos e ideolgicos do capitalismo. Essa circunstncia sugere uma sede crtica e contestadora por parte dos grupos de teatro, que parecem preocupados com injustias e problemas sociais. Por exemplo, um grupo afirma estar atento ao [...] esquema de compreenso da efemeridade temporal e da dissipao das fronteiras, dando a impresso de pseudo-desregulamentao universal, num momento em que o capital segue imperante. Num outro questio-nrio, lemos que [...] a principal referncia para o grupo a discusso poltica e social, ou melhor, um pensamento crtico, que embasa todo o processo colaborativo de construo de cenas e roteiros.

  • 21 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    Percebe-se nos referenciais apresentados uma noo de arte pblica, uma busca por termos para nomear anseios estticos, polticos e sociais, alm de um esforo por criar materiais que dialoguem com um contex-to geral e imediato. Por exemplo, um grupo declara buscar [...] refletir sobre o local em que o grupo possui sede, que no apenas um campus de cincias humanas, mas tambm o campus de uma universidade p-blica que se localiza em um bairro perifrico da cidade de Guarulhos.

    Cabe citar que dentre os grupos de teatro participantes das duas edi-es da Jornada, quatro foram formados a partir de 2009 nas cidades de Bauru, Ribeiro Preto, So Carlos e Piracicaba a partir da ao deno-minada Ncleos de Experincia e Apreciao Teatral (ou simplesmente Ncleos Tusp). Cada um dos orientadores de arte dramtica dos campi do interior ficou responsvel por criar um ncleo de estudo e prtica teatral com a comunidade local, especialmente universitria. Em 2011, participou da Jornada o Ncleo Tusp de Piracicaba e em 2012 os Ncleos Tusp de Piracicaba, So Carlos e Ribero Preto. Portanto, esses so grupos que, desde seu incio, tm o lugar como uma referncia crucial.

    Alm disso, alguns grupos revelaram estar preocupados, ou trabalhar em associao, com grupos desprivilegiados ou marginais. Possivelmen-te, esse tipo de atitutude faz ganhar fora entre os grupos temas como a criao colaborativa e as formas improvisacionais de levantamento de materiais estticos.

    Essa atitude crtica parece prevalecer sobretudo nos chamados gru-pos vocacionados (ou grupos vocacionais), ou seja, aqueles formados, em sua maioria, por estudantes de cursos universitrios que no os de especializao em teatro. So tambm esses grupos que possuem um discurso muito mais prximo do teatro universitrio das dcadas de 1960 e 1970, utilizando o teatro mais como forma de refletir sobre uma universidade em que pouco espao h para atividades artsticas, e menos como um instrumento de proposio de novas formas estticas.

    Apesar dessas preocupaes crticas, os autores mais citados (com exceo de Augusto Boal) construram seus sistemas tericos com base nos processos ocorridos em pases do centro do sistema capitalista. Suas ideias podem, sem dvida, ser aplicadas situao brasileira, mas isso requer adaptaes e ajustes. Neste sentido, interessante notar, nas ci-taes realizadas pelos grupos, a ausncia de teorias formuladas para dar conta, especificamente, de situaes marginais, perifricas ou no--hegemnicas. Tais referenciais poderiam ser buscados em diversas reas, tais como sociologia (Florestan Fernandes), geografia (Milton Santos), cinema (Gluber Rocha), poesia (Joo Cabral de Melo Neto), pintura (Cndido Portinari), entre outras.

    Essas ausncias podem ser explicadas pela juventude terica dos gru-pos participantes, que ainda esto selecionando seus arsenais ideolgicos. Porm, elas podem ser, tambm, um ndice de que, nas universidades

  • 22

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    brasileiras, ainda se d uma demasiada nfase a sistemas tericos que ex-plicam contextos centrais e metropolitanos. Se tal fenmeno tiver mesmo lugar, ele provocar imprecises e descompassos maiores para grupos que trabalham em contextos no-metropolitanos, tais como as cidades de San-ta Brbara dOeste, Salto ou Itupeva. No limite, teramos grupos falando linguagens tericas que no condizem com seus contextos geogrficos.

    Uma outra importante ressalva diz respeito ao efetivo conhecimento que tm os grupos dos sistemas tericos citados. Vale frisar que as cita-es de obras completas so escassas. Em certos casos, so citados cap-tulos de livros, artigos ou obras especficas. A metodologia deste artigo no nos permite verificar com que profundidade se estudam as obras dos autores citados.

    Teatro universitrio e referenciais tericosA anlise que apresentamos neste artigo nos permite enxergar uma

    pequena frao do teatro universitrio que se pratica em So Paulo e no Brasil. Mesmo assim, vale reconhecer que essa frao nos d um retrato bastante auspicioso em termos de referenciais tericos. Em diferentes cidades, h grupos trabalhando com ideias formuladas por diversos au-tores, em diversas reas. Assim, o teatro universitrio parece estar longe de estruturas hegemnicas, rgidas ou monolticas.

    Do ponto de vista dos organizadores de programas como a Jornada de Teatro Universitrio, fica o desafio de verificar at que medida os gru-pos esto sendo bem-sucedidos em sua misso de incorporar essas ideias em seu trabalho. Como se sabe, pode haver uma diferena entre aquilo que expresso ou procurado pelo grupo, por um lado, e aquilo que realmente posto em prtica nos espetculos e apresentaes, por outro lado. Por exemplo, os materiais estticos dos grupos participantes da Jornada foram, sem exceo, apresentados numa perspectiva de fronta-lidade. Se os grupos declaram buscar novas relaes com o espectadores e com o seu entorno, vale indagar quais seriam os motivos de tantas di-ficuldades em alterar a relao entre palco e plateia. Um outro exemplo a prtica de interveno urbana, que, apesar de fazer parte, direta ou indiretamente, das aspiraes de muitos grupos, ainda pouco praticada nas cidades do interior. Nesse sentido, em 2012, logo aps a segunda Jor-nada de Teatro Universitrio, realizou-se um workshop coordenado pela diretora Vernica Veloso, tendo por foco a relao dos participantes com a sua cidade, criando materiais estticos que dialogassem com os espaos pblicos, numa perspectiva de interveno urbana.

    Reconhecemos que programas como a Jornada tm mecanismos que do conta de somente uma parcela dos anseios e necessidades dos grupos. Mesmo assim, cabe admitir que os orientadores de arte dramtica tm uma importante contribuio a oferecer aos grupos em sua busca por tticas cnicas que possam traduzir suas aspiraes e fundamentos ideolgicos.

  • 23 Cludia Alves Fabiano e Edison Bicudo

    Ref

    eren

    ciai

    s Id

    eol

    gico

    s d

    os G

    rup

    os P

    artic

    ipan

    tes

    da

    Jorn

    ada

    de

    Teat

    ro U

    nive

    rsit

    rio 2

    011

    e 20

    12

    Mais especificamente, pode-se indagar se tal tpico poderia ser um ponto especfico de debate dentro de um programa como a Jornada, j que ela constitui uma estratgia pedaggica do Tusp, no sentido de criar mecanis-mos que possam dar conta de um trabalho contnuo de formao no qual o exerccio da prtica e da apreciao teatral sejam indissociveis e colabo-rem diretamente com a produo atual do teatro universitrio.

    Alm disso, cabe relembrar a nfase nas teorias que se inspiram em contextos metropolitanos e centrais. Uma vez que lidamos com muitos grupos que trabalham em cidades que poderiam ser consideradas como mdias, pequenas ou no-centrais, talvez seja interessante propiciar o encontro com teorias mais condizentes com seu contexto geogrfi-co mais imediato. Possivelmente, ser difcil pr em prtica um teatro realmente crtico (meta de muitos grupos de teatro universitrio) sem que as teorias adotadas por eles possam estar em maior sintonia com as dinmicas espaciais e sociais que os rodeiam.

    Referncias bibliogrficasArendt, Hannah. The Human Condition. Chicago, University of Chicago

    Press, 1958/1998Brecht, Bertolt. Teatro Dialtico: Ensaios. Rio de Janeiro, Civilizao

    Brasileira, 1967.Habermas, Jrgen. The Theory of Communicative Action, vol. 2: Lifeworld

    and System. Cambridge, Polity, 1981/1987.Lehmann, Hans-Thies. Teatro Ps-Dramtico. So Paulo, Cosac Naify, 2007.Martins, Beatriz Cintra. Autoria em Rede: um Estudo dos Processos Autorais

    Interativos de Escrita nas Redes de Comunicao. Tese de doutoramento. Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao. Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, 2012.

    Marx, Karl. Capital: a Critique of Political Economy. London, Penguin, 1867/1990.

    Ryngaert, Jean-Pierre. Jogar, Representar: Prticas Dramticas e Formao. So Paulo, Cosac Naify, 2009.

  • 25

    S

    Que

    m n

    unca

    Tev

    e um

    Cav

    alo

    Vai S

    aber

    do

    que

    Eu

    Est

    ou F

    alan

    do

    Paloma Franca Amorim

    S quem nunca teve um cavalo vai Saber do que eu eStou falando

    Paloma Franca Amorim

    Um dia uma menina da minha classe chegou com a orelha esquerda cheia de curativos e ns ficamos to curiosos que o tempo parou e s voltou a andar depois que ela nos contou o ocorrido.

    Aconteceu na aula de equitao, o cavalo chamado Minrio se assus-tou com qualquer coisa no caminho e causou o acidente.

    A menina foi, entre galopes, lanada ao cho.O Minrio assustado acabou pisando em sua orelha.Depois disso foi apenas o sangue misturado com o mato e a terra e

    os adultos correndo em direo menina para cuidar dela e controlar o cavalo.

    A menina teve de fazer uma cirurgia plstica para salvar a orelha do dilaceramento e em alguns meses j estava absolutamente curada dos traos tortos promovidos pelas patas do bicho.

    Um dia perguntei a ela o que tinha sido feito do Minrio. Perguntei assim mesmo: O que foi feito do Minrio? Em um tom ousado de aproxi-mao como se em algum lugar eu possusse laos de intimidade com ele. Isto que em mim vibrava e que movia minhas aes e meus pretextos s me ocorreu depois era aquilo que os homens chamam de valentia.

    A menina disse nunca mais ter voltado hpica. Ela no sabia o que tinha sido feito do Minrio.

    E ento eu sabia: o Minrio veio morar comigo.

  • 26

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    Primeiro eu escrevi um conto no qual ele narrava a situao da que-da da menina. Um detalhe importante era o fato de o cavalo ter verda-deira atrao por orelhas desde o momento em que descobriu que o seu pintor favorito, o Van Gogh (o meu Vam Ggui na escrita infantil), havia extirpado a prpria orelha.

    O Vam Ggui se livrou da orelha porque com ela ouvia muitas coisas o tempo todo e no conseguia se concentrar nas pinturas.

    O Minrio s vezes de longe olhava durante muito tempo para dois quadros que ficavam no salo de entrada da hpica, um deles retratava um quarto onde havia uma cama, uma mesa e uma cadeira de palhinha (como as que tinham na casa da minha av) e o outro era paisagstico: um pequeno vilarejo, com uma grande rvore contorcida e a noite, como uma colcha de retalhos, pairava sobre os homens e mulheres inexistentes na imagem cheia de luzes amarelas distorcidas e tristes. De algum modo que eu no soube explicar, o Minrio sabia que aquelas duas obras eram filhas das mos de Vicente Vam Ggui.

    O Van Gogh foi o meu primeiro amarelo. O Giuseppe Arcimboldo foi meu primeiro vermelho.

    Eu os conheci quando fui pela primeira vez jantar em um restaurante italiano da minha cidade as paredes do restaurante eram preenchidas pelas cores vigorosas destes dois pintores. Na poca, comecei a achar que o mundo era dividido entre vermelhos e amarelos. E eu era o mundo, eu era vermelha e amarela. Foi quando escrevi meu primeiro quadro:

    Quando amarela, uma pracinha numa tarde de sol. Quando vermelha o prprio sol. Quando amarela, um sorriso largo na boca e por dentro um silncio devastador. Quando vermelha meu olhar entristecido vai s ruas e se exibe para os passantes, por dentro a morte uma alegoria. Quan-do amarela sinto o vento profundamente apaixonado por meus cabelos. Quando vermelha, tenho sete furaces em rotao dentro do estmago. Quando amarela sinto fome. Quando vermelha devoro coincidncias, re-ticncias e inconstncias. Quando amarela invento canes, cao no escu-ro as luzes restantes do dia, converso com o tempo e esqueo as regras da boa educao. Quando vermelha eu sou o cu, a distncia e o azul.

    Em amarelo eu me destaco nos voos mais imprecisos. Vermelha eu sou o corte do pssaro veloz rasgando o meu peito. Quando amarela eu quero ter filhos. Quando vermelha eu j sou a me do mundo. Quando amarela eu percorro o mundo em um suspiro. Quando vermelha mi-nhas pernas doem, meus calcanhares em runas. Quando amarela, me atraso. Vermelha, me antecipo. Quando amarela eu sou o detalhe e o ensaio e o difcil. Quando vermelha, um desastre de improviso...

    Quando cinza, eu era nada disso.Assim pairo nas ruas lembrana de meus cavalos, minhas cores,

    enfim, o mundo eu enxergo sob as lentes da memria e da Histria, s assim torna-se possvel criar.

  • 27

    S

    Que

    m n

    unca

    Tev

    e um

    Cav

    alo

    Vai S

    aber

    do

    que

    Eu

    Est

    ou F

    alan

    do

    Paloma Franca Amorim

    Quando, para produzir estas imagens, fui novamente procurar o meu Minrio nas gavetas, encontrei-o em um estado muito diferente daquele que dizia respeito aos meus desejos juvenis de criao. S o que permaneceu dele foi a ideia da orelha dilacerada dentre outras tantas dores que no posso desenhar.

    Contextualizado em um regime ditatorial, envolto pelo vu da pol-tica perversa, meu Minrio se materializa em tanque de guerra, torna-se bomba atmica, perambula ordenado por esporas e votos de cabresto.

    A nica justificativa possvel para a traio (minha ou dele?) o fato de cavalos serem criaturas irracionais. Minrio no fez por mal, no es-colheu. Sobre ele havia um homem e sobre este homem havia o Estado e sobre o Estado havia uma verdade, isto , uma construo ideolgica.

    Sob as ferraduras do Minrio estavam outros homens e mulheres a lutar contra os aparatos polticos da ditadura militar. E, entre vermelhos e amarelos, presente e passado, os tons inominveis do aniquilamento humano, das tragdias perifricas, das reintegraes de posse, das higie-nizaes sociais, dos cavalos juvenis amputados pelas mos daqueles poucos aos quais atribudo o poder sobre a Histria.

    Antes eu achava que o mundo era dividido entre vermelhos e ama-relos, e eu era o mundo. Hoje j no acho mais. O mundo no sou eu e a verdade no pode ser to dualista. A verdade a mistura de vrias nu-ances. Em todo amarelo h vrios amarelos, e de todo vermelho podem ser feitas distintas e inmeras imensides.

    Van Gogh, Giuseppe Arcimboldo, cantina italiana. A minha classe rascunha a prpria trajetria atravs dos meus passos e eu me pergunto: para onde caminhar, aonde devo lev-la? Criar, criar, criar, para quais horizontes apontam a inveno artstica?

    Terminei triste. Fiz uma ltima aquarela. Porteiras abertas, cafonas. At nosso prximo reencontro, Minrio. Sei que injusto pedir depois de tudo que fiz com voc mas se voc puder voltar, por favor, volte.

    (A pueril oferta de liberdade a um cavalo foi tudo que fui capaz de realizar. Se este cavalo agora livre pudesse ser todas as mulheres e os ho-mens violentados pelo crcere social eu certamente esboaria no sorriso uma pontinha de sol.)

  • teatro, verdade e poderFernando Kinas

  • 31 Fernardo Kinas

    Teat

    ro, V

    erd

    ade

    e P

    oder

    O teatro, tal como o conhecemos no Ocidente, tem vocao poltica. Esta vocao pode se expressar com mais ou menos intensidade; pode ser explcita e reivindicada, ou velada e no intencional. O fato que no somente o surgimento do teatro, parido na plis grega, mas tambm seu desenvolvimento ocidental, indicam a presena daquilo que Bernard Dort pesquisador de teatro e primeiro grande estudioso de Brecht na Frana chamou, justamente, de vocao poltica do teatro, insistindo na qualidade ontolgica do fato:

    Em vez de ficarmos nos perguntando como o teatro pode ser poltico, no seria melhor refletir sobre o fato de que, de alguma maneira, o teatro sempre poltico, ontologicamente?(Dort, 1977, p. 366)

    A pergunta de Dort tem algo de retrica porque sua resposta evi-dente. Para ele, uma das funes do teatro brechtiano que evidente-mente no se confunde com a totalidade das prticas teatrais, mas ra-dicaliza esta vocao poltica ontolgica comum a todo teatro era a de formar pessoas aptas decifrar sua prpria situao histrica. Tarefa eminentemente poltica. No surpreende que esta anlise a respeito do teatro ocidental tenha despertado reaes de todo o tipo.

    Uma delas, reveladora, a de Florence Dupont, que faz a defesa in-transigente de um teatro dos sentidos, opondo-se assim a um teatro do sen-

  • 32

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    tido1. Nada de novo sob o sol, trata-se de mais uma tentativa para matizar ou negar a evidncia poltica do teatro. Louis Althusser, nos agitados anos de 1960, j analisava a relao entre teatro e poltica nestes termos:

    A filosofia e o teatro so fundamentalmente determinados pela poltica, e en-tretanto, eles fazem todos os esforos para apagar esta determinao, para negar esta determinao, para fazer de conta que escapam poltica. No fundo da filosofia, como no fundo do teatro, sempre a poltica que fala: mas quando a filosofia ou o teatro falam, o resultado que no se escuta mais nada da voz da poltica. A filosofia e o teatro falam sempre para cobrir a voz da poltica. E eles conseguem isso muito bem. Pode-se mesmo dizer que na imensa maioria dos casos, a filosofia e o teatro tm como funo abafar a voz da poltica. [...] Brecht chamou pelo seu nome esse teatro que faz poltica, mas declara que no faz poltica: o teatro do divertimento vesperti-no, o teatro culinrio, o teatro do simples gozo esttico (Althusser, 1999, pp. 567-568).

    Se o teatro crtica em ato da significao (Dort, 1988, p. 184), sua di-menso poltica no mais apenas uma possibilidade, antes lhe vai cola-da na pele. Ento, o tema do poder, e da verdade, no pode ser estranho a ele, que fala, mesmo quando disfara, a voz da poltica. Sua natureza necessariamente transitiva, o que o coloca ainda mais decisivamente no corao do debate pblico. O teatro, assim, diz respeito ao comum, ao social, ao pblico.

    Convm lembrar que o projeto brechtiano, cujo carter explicita-mente emancipador, no tem nada de problemtico (inclusive porque a autocrtica e a incorporao da dialtica so constituintes do prprio projeto); embora Florence Dupont afirme de ps juntos exatamente o contrrio, representando um peloto coeso na nova defesa da velha arte pela arte, aproveitando para elogiar o teatro energtico, ps-moderno, das sensaes, do ritual, para alm das ideologias etc. etc. No h pro-blema no projeto brechtiano, tambm, porque a decifrao da situao histrica no incompatvel com o prazer, o divertimento e a necess-ria liberdade de explorao (das formas e dos contedos). claro que esta inveno no deve ser confundida, pensando nos dias atuais, com a adoo de um tropicalismo lulista ps-rancor, que seria repetir como farsa uma das falsas sadas experimentadas por parte do movimento cultural na poca da ditadura, especialmente depois de 19672.

    A associao entre decifrao histrica e prazer , inclusive, uma das snteses possveis, quase uma definio, do projeto artstico-poltico de Brecht. Bernard Dort, antecipando tanto as crticas conservadoras quan-to o rebaixamento intelectual do debate, j tinha feito a advertncia:

    1 Ver Florence Dupont, Aristote ou le vampire du thtre occidental. 2007. 2 Sobre o assunto, ver o esclarecedor texto de Roberto Schwarz, Verdade Tropical:

    um Percurso de Nosso Tempo (2012). No custa lembrar que 1967 o ano de Terra em Transe, de Glauber Rocha, um filme (anlise, balano, crtica, mea culpa...) so-bre a derrota sofrida pelas esquerdas com o golpe de 1964. O filme teria preparado o caminho para o tropicalismo.

  • 33 Fernardo Kinas

    Teat

    ro, V

    erd

    ade

    e P

    oder

    Mas a uma pedagogia dogmtica ele [Brecht] substituiu uma pedagogia aberta, uma maiutica [...] Seu teatro pico aparece assim como um empreendimento de descondicionamento e de destruio das ideologias (Dort, 1987, p. 199).

    Se Brecht incontornvel na discusso sobre teatro, verdade e poder, dois de seus contemporneos, s voltas com dilemas semelhantes mas solues prprias , merecem referncia: Erwin Piscator e Vsvolod Meierhold. Entre o muito que h para lamentar na situao teatral do Brasil de hoje, uma delas a ausncia de debate em torno do teatro pol-tico de Piscator. A lacuna de discusso vale tanto para a ao teatral deste diretor alemo, quanto para o livro (Teatro Poltico, 1929), escrito durante a Repblica de Weimar, momento teatral e poltico de excepcional efer-vescncia. O livro uma smula do trabalho e das ideias de Piscator at aquele momento. Ele rene descries e anlises, relatos e crticas, prestao de contas e projeto (ou mtodo) de ao.

    Para justificar a importncia histrica de Piscator, bastaria lembrar que o teatro documentrio proposto por ele, com suas inovaes formais e opes polticas, est na origem do moderno teatro documentrio de Peter Weiss e, por consequncia, de parte importante do teatro contem-porneo que recusa a matriz dramtica e os procedimentos ficcionais clssicos. Tudo isso sem abrir mo da perspectiva crtica.

    Neste raro livro, publicado pela Civilizao Brasileira em 1968 (sic) e nunca mais reeditado no Brasil, pode-se ler que a arte no deve recuar diante da realidade (Piscator, 1968, p. 29). Se o episdio de onde o autor extrai a lio no dos mais gloriosos (a participao de Piscator como soldado na Primeira Guerra Mundial, sua paralisia diante da luta no front e a insignificncia, segundo ele, da profisso de ator frente quela situao), a concluso teve e tem um alcance inegvel. No apenas a arte (e o teatro) frequentemente recua diante da realidade, recusando o desa-fio de fazer a crtica em ato da significao, mas refora o oportunismo, o pragmatismo, a conciliao e, mesmo, o obscurantismo, ao encobrir e enviesar aquilo que em tese pretende ou deveria revelar.

    Os elementos desta equao teatro, verdade e poder no levam a respostas simples, e toda tomada de posio fica sujeita s armadilhas do debate poltico. Que lugar ocupa o teatro na escala que vai da crtica radical e sistmica submisso diante do establishment? Como evitar os riscos da subordinao da arte aos ditados polticos e ao mesmo tempo no fazer destes riscos um libi para o escapismo ou para a inao? Pis-cator d algumas respostas. Referindo-se montagem de Dilvio (1926), ele afirma que a tentativa de despolitizar o material poltico e ergu-lo ao potico conduz necessariamente imperfeio (inconsequncia) (idem, p. 89). Mas a imperfeio/inconsequncia no , digamos assim, monoplio do teatro. a articulao entre produo artstica e situao social geral que pode explicar o funcionamento (incluindo ambies, possibilidades e limites) do teatro de determinada poca. Contedos,

  • 34

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    problemas e tambm formas no so absolutamente assuntos la carte (idem, p. 105), refora Piscator. No existe milagre, no basta esticar a mo e escolher temas e meios para decifrar a realidade e, eventualmen-te, interferir nela. H uma rica dinmica entre foras sociais e criao ar-tstica sobre a qual um trabalho de investigao precisa ser feito, j que, nas palavras de Roberto Schwarz, a matria do artista no informe: historicamente formada, e registra de algum modo o processo social a que deve sua existncia (Schwarz, 2007, p. 31).

    Hoje, dezenas de grupos paulistanos, vrios deles apoiados pelo Pro-grama de Fomento ao Teatro, criado no mbito municipal em 2002, esto alterando o panorama teatral da cidade ao se apresentarem como sujeitos do debate poltico e ao colocarem em discusso a dimenso social e es-ttica das suas mltiplas intervenes. Esta nova situao, que interpela e registra o processo social, no exclusiva da cidade de So Paulo, mas nela ganhou amplitude e consequncia, exigindo um exame criterioso sobre as relaes entre plis e teatro. possvel existir efervescncia cul-tural sem efervescncia poltica? Para entender as relaes entre teatro, verdade e poder seria preciso, ento, analisar os enunciados sociais e os enunciados artsticos, fazendo emergir a trama complexa e dialtica que eles estabelecem entre si: complementaridade, oposio, sobreposio, retroalimentao... Este procedimento repete, por analogia, aquele em-pregado na investigao da relao entre forma e contedo.

    A partir das reflexes de Adorno e Benjamin, a forma seria o resul-tado do contedo social precipitado. No nosso caso, a dialtica entre produo artstica e processos sociais gerais seria a chave para compre-ender e agir sobre os termos da equao, evitando o conforto da falsa conscincia. Segundo este mtodo, o futuro aparece como um campo de possibilidades e no como fatalidade.

    Portanto, discutir o trinmio teatro, verdade e poder, significa, de partida, recusar o pensamento metafsico e idealista, alicerces tradicio-nais do teatro que se consolida com a ascenso da burguesia. A forma dramtica burguesa, baseada no conflito de subjetividades e nas vontades individuais, ao excluir as foras sociais , por definio, idealista. No de estranhar que a maior parte da atividade teatral de Meierhold tenha sido, justamente, um combate contra o drama absoluto e autnomo, que ao pre-tender a universalidade (e, portanto, a verdade) expressa apenas o particular que a sociedade de classes e a forma-mercadoria autorizam. O preo que Meierhold pagou por esta e outras ideias a contrapelo foi altssimo: censu-ra, perseguio, banimento e, finalmente, o assassinato na priso stalinista.

    Ao discutir o teatro pico, Benjamin fez o seguinte relato em 1931:Quando perguntado recentemente ao diretor russo Meierhold, em Berlim, o que

    distinguia, em sua opinio, os seus autores dos da Europa Ocidental, sua resposta foi: Duas coisas. Primeiro, eles pensam, e segundo, pensam materialisticamente, e no idealisticamente (Benjamin, 1985, p. 87).

  • 35 Fernardo Kinas

    Teat

    ro, V

    erd

    ade

    e P

    oder

    O fait divers descrito por Benjamin confirma o sentido geral de uma abordagem crtica, informada pelo marxismo. Piscator, Meierhold e Bre-cht definiram um campo prtico e conceitual a partir do qual possvel discutir produtivamente sobre teatro, verdade e poder. Este campo no parece ter perdido, globalmente, a validade.

    A estes trs artistas e pensadores do teatro se juntam, obviamente, muitos outros. Um deles, cuja trajetria continua inspiradora sob vrios aspectos, Augusto Boal. Em 2009, escolhido embaixador mundial do teatro pela Unesco, Boal escreveu um de seus ltimos discursos, e nele vai reafirmada uma convico: Teatro a verdade escondida3. Revelar a verdade seria, ento, no ontologicamente, mas politicamente, uma das tarefas do teatro.

    Necessariamente poltico, o teatro s crtico por opo. Da a neces-sidade de botar a boca no mundo, como dizia Boal em 1968, quarenta anos antes do discurso da Unesco, numa entrevista para o primeiro n-mero da revista aParte. Acrescentando que o bom cabrito aquele que mais alto berra (Boal, 1968, p. 17).

    Com Boal voltamos ao Brasil de hoje. Longe de ter aproveitado mo-mentos favorveis da conjuntura nacional e internacional a no ser em alguns aspectos, como o relativo controle da inflao , o pas no conseguiu se livrar da herana de um modelo sui generis de desenvol-vimento nacional e sociabilidade. Juntando liberalismo e escravido, cordialidade e autoritarismo, samba e pau-de-arara, forjamos e estamos condenados a perpetuar persistindo o marasmo atual, bem entendido um modelo extremamente violento e injusto de sociedade.

    Aos conhecidos e alarmantes indicadores sociais (analfabetismo, disparidade de renda e riqueza, assassinatos no campo e na cidade, repe-tncia e abandono escolar, concentrao fundiria, falta de acesso a bens culturais, dficit habitacional...), soma-se uma espcie de letargia quan-do o assunto so mudanas estruturais. No nenhum exagero, dado o quadro atual, utilizar o conceito de estado de exceo permanente (a partir de Benjamin, Agamben, Chico de Oliveira e Paulo Arantes).

    Um dos resultados desta exceo permanente utilizada em perodos de normalidade democrtica para a administrao de populaes e a manuteno de privilgios , a lio de casa sempre por fazer em mat-ria de direitos humanos e de reparao dos crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes do Estado. Situao que tambm no constitui novidade, vista a incompletude crnica que caracteriza nossa sociedade excntrica (nos dois sentidos do termo), em que a exceo, de fato, pare-ce ser a regra.

    3 O discurso de Augusto Boal para o Dia Mundial do Teatro, escrito em 2009, pode ser facilmente encontrado na internet, por exemplo: , consultado em 17 de agosto de 2012.

  • 36

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    Condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010 no caso da Guerrilha do Araguaia4, o Brasil primeiro recorreu, de-pois ameaou no cumprir a sentena, para finalmente iniciar um tmi-do processo de recuperao da memria e estabelecimento da verdade histrica. No entanto, a justia, que forma o trip das reivindicaes feitas desde o final da ditadura por diversos coletivos e movimentos sociais (existem Comits pela Verdade, Memria e Justia por todo o pas), raramente mencionada ou levada em considerao pelo poder pblico. Nas ocasies em que isto ocorre, como no mbito do judicirio, para, invocando a Lei da Anistia, aprovada em plena ditadura, garantir a impunidade para torturadores, assassinos e sequestradores que agiram na condio de agentes do Estado. Supremo Tribunal Federal, Governo Federal e Congresso Nacional do (e lavam) as mos quando se trata de passar realmente a limpo a histria recente do pas.

    Aos artistas e grupos de teatro caberia, ento, neste novo contexto, que, entretanto, mantm em funcionamento velhos hbitos e antigas estruturas5, no recuar diante da realidade, tal como pedia Piscator e como fizeram muitos dos nossos antecessores durante a ditadura: es-crevendo e montando peas, inventando formas, propondo agitprops, assinando e divulgando manifestos, organizando debates e publicando suas ideias (a primeira infncia da revista aParte, limitada pela ditadura a apenas duas edies, ambas em 1968, um dos exemplos).

    Dado o histrico de conciliao por cima, de arranjos feitos sob medi-da para excluir as vozes discordantes (que lembra uma ideia no muito an-tiga: Se o povo est descontente com o governo, demita-se o povo!), esta-mos mais uma vez diante do desafio de no recuar. Ou de responder aos desafios da nossa poca, como sugere, em outro contexto, o dramaturgo britnico Edward Bond (2000, p.29). E os ltimos anos mostram que esta longussima etapa de transio para a democracia nossos vizinhos da Amrica do Sul foram muito mais rpidos feita de pequenos avanos parciais. So exemplos disso a condenao do Brasil referente s omisses do Estado no caso da guerrilha do Araguaia e a aceitao de denncia na esfera penal apresentada pelo Ministrio Pblico Federal contra o major Curi (hoje coronel da reserva) e o major Lcio Augusto Maciel, acusados de crimes cometidos durante a represso neste mesmo episdio.

    Outro exemplo foram as condenaes, no segundo semestre de 2012, do tambm coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra. Conside-rado torturador em ao declaratria na esfera cvel, movida pela famlia

    4 Ver Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Sentena de 24 de novembro de 2010. A sentena completa pode ser encontrada em , consultado em 17 de agosto de 2012.

    5 Ver Edson Teles e Vladimir Safatle (Orgs.), O que Resta da Ditadura: a Exceo Brasileira. So Paulo, Boitempo, 2010.

  • 37 Fernardo Kinas

    Teat

    ro, V

    erd

    ade

    e P

    oder

    Teles, e condenado a pagar indenizao pela morte sob tortura de Luis Eduardo Merlino, em ao movida por familiares do jornalista, o coro-nel, responsvel pelo doi-codi nos anos de maior represso da ditadura, continua blindado na esfera penal pela interpretao conservadora que o Supremo Tribunal Federal deu Lei da Anistia. Ilustram esta nossa transio sem fim, ainda, as condies adversas que moldaram a criao da Comisso Nacional na Verdade, submetida a importantes limitaes de tempo, recursos, competncias e autonomia; e a escalada da violncia institucional, especialmente por parte da Polcia Militar, cujas violncias permanecem escandalosamente impunes, alm de, muitas vezes, serem justificadas pelas autoridades pblicas.

    Todos estes casos confirmam o desafio de no recuar, de no pensar idealisticamente e de berrar como o bom cabrito. O direito ao dissenso e luta por alternativas globais no deve admitir concesses. Por isso, a miragem que representa apenas a punio dos agentes da ditadura outro desafio com o qual precisamos nos defrontar. Far certamente jus-tia imensa maioria dos perseguidos e mortos pela ditadura a inveno de modelos de sociedade capazes de incluir, mas tambm ultrapassar, as justas reparaes j em curso e as necessrias responsabilizaes pe-nais que parecem se avizinhar. Armadilha parecida ronda as discusses e aes em torno das polticas pblicas de cultura, que por descuido ou convenincia podem desaguar no pntano do onguismo de resultados, do mercado da cidadania e da era da participao6.

    O teatro atual, especialmente aquele feito em grupo, que busca alter-nativas ao modo de produo comercial e est em sintonia com outras foras sociais, reivindica no sem contradies e em alguma medida j exercita tambm com contradies um certo protagonismo que no passado foi indispensvel vida do pas. Protagonismo que criou problemas (inclusive de segurana nacional!) para o regime de exceo. Este teatro foi censurado e sofreu com a brutalidade do Estado e de gru-pos de direita e extrema-direita. A destruio do Teatro Ruth Escobar e o ataque ao elenco do Roda-Viva em 18 de julho de 1968, em So Paulo, e a violncia contra o mesmo elenco em 2 de outubro do mesmo ano, em Porto Alegre, ambos organizados e executados pelo Comando de Caa aos Comunistas, so retratos do ambiente violento da poca e da partici-pao ativa, ou tolerante, de parte da sociedade civil na represso. Epis-dios semelhantes, com autores nem sempre identificados, aconteceram com o Arena e outros coletivos teatrais. Se o momento atual de fato outro, tambm so outros os problemas com os quais nos defrontamos, da acomodao renncia, passando pelo pragmatismo7.

    6 Ver Paulo Arantes, A Lei do Tormento. In: Teatro e Vida Pblica. O Fomento e os Coletivos Teatrais de So Paulo. So Paulo, Hucitec, 2012.

    7 Deslocada para a esfera econmica e sustentada pelo discurso publicitrio e pela ideologia liberal, a censura parece ter apenas mudado de roupa.

  • 38

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    A reivindicao por parte de artistas e grupos teatrais de um papel mais ativo, frequentemente em sintonia com outros movimentos so-ciais, pode contribuir para o redimensionamento dos trs termos que balizam esta reflexo: teatro, verdade e poder. um caminho que retoma perspectivas interrompidas pelo golpe de 1964 e seu recrudescimento aps o ai-5, e que permite indagar sobre o lugar da utopia, uma vez que recusa o triunfalismo da sociedade de consumo e da indstria cultu-ral (inventando a duras penas antdotos padronizao e vulgarizao da televiso) e a adeso normalizao do capital. Por outro lado, h sempre riscos no ar, como o da cultura como pacificao (ou da cultura de pacificao). Portanto, este papel reivindicado pelo novo teatro de grupo supe, no mnimo, um horizonte para a ao e um esboo de programa; ambos colocam na pauta temas como a independncia (e a opo) de classe e a no subsuno da poltica economia. uma dis-cusso que passa necessariamente pela ampliao dos espaos comuns e da conscincia crtica, e pelo exerccio da autonomia. Este papel, ativo e dissidente, ser mais decisivo quanto mais o teatro estiver assentado em princpios inegociveis e na inveno constante.

    Referncias bibliogrficasAlthusser, Louis. crits philosofiques et politiques. Paris, Le Livre de

    Poche, v. I, 1999.Arantes, Paulo. A Lei do Tormento. In: Teatro e Vida Pblica. O Fomento e

    os Coletivos Teatrais de So Paulo. So Paulo, Hucitec, 2012, pp. 208-209.Benjamin, Walter. Que o Teatro pico [1931]. In: Magia e Tcnica, Arte

    e poltica. Obras Escolhidas I. So Paulo, Brasiliense, 1985.Boal, Augusto. Depoimentos sobre o Teatro Brasileiro Hoje. In: aParte,

    n 1, So Paulo, Teatro dos Universitrios, maro/abril de 1968.Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e ou-

    tros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Sentena de 24 de novembro de 2010.

    Dort, Bernard. O Teatro e sua Realidade. So Paulo, Perspectiva, 1977._____. La reprsentation mancipe. Paris, Actes Sud, 1988._____. Lecture de Brecht [1960]. Paris, Seuil, 1987, p. 199.Dupont, Florence. Aristote ou le vampire du thtre occidental. Paris, Flam-

    marion/Aubier, 2007.Hankins, Jerme (Org.). Edward Bond, lnergie du sens Lettres, pomes et

    essais. Montpellier, Maison Antoine Vitez, 2000.Piscator, Erwin. Teatro Poltico. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira,

    1968.Schwarz, Roberto. As Ideias Fora do Lugar. In: Ao Vencedor as Batatas

    [1977]. So Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2007._____. Verdade Tropical: um Percurso de Nosso Tempo. In: Martinha ver-

    sus Lucrcia. So Paulo, Companhia das Letras, 2012, pp. 52-110.

  • veStgioS de um gozo proibidoIgor de Almeida Silva

  • 40

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    VestgiosTexto Aimar Labaki Encenao Antonio Cadengue Elenco Carlos Lira (Cardoso),

    Marcelino Dias (Marcos) e Roberto Brando (Marcelo)Assistncia de Direo Rudimar Constncio Assistncia de Produo Elias Vilar

    Trilha Sonora Original Eli-Eri Moura Cenografia Doris RollembergFigurinos Anibal Santiago Iluminao Saulo Ucha

  • 41 Igor de Almeida Silva

    Vest

    gio

    s d

    e um

    Goz

    o P

    roib

    ido

    Em reportagem publicada no jornal Folha de S. Paulo sobre a recente constituio da Comisso da Verdade no Brasil, designada a investigar casos de violao aos direitos humanos em nosso pas entre 1946 e 1988 (compreendendo nesse perodo duas ditaduras), a psicanalista Maria Rita Kehl, uma das integrantes da comisso, questiona o porqu do in-cmodo de altas patentes militares, envolvidas em casos de tortura, com o esclarecimento e divulgao desses acontecimentos se a ao desta co-misso no tem carter punitivo. Ela apresenta duas hipteses:

    A otimista seria a de que tm vergonha do que fizeram. Mas a pessimista, ou rea-lista, : existe um gozo na teoria psicanaltica, que o gozo proibido. To sem freios que no limite mortfero (apud Kachani, 2012).

    Segundo a psicanalista, [...] a pessoa que est diante do corpo inofensivo dispondo dele a seu bel-prazer,

    est gozando. Ento me parece que o grande vexame, e no a culpa ou o medo, o sentimento que pode predominar entre aqueles que tero seus nomes citados eventu-almente. Como se fossem devassados no seu sentimento mais ntimo (idem).

    Este gozo proibido, da ordem do inconsciente, que impulsiona os atos de tortura e opresso no lugar de motivaes exclusivamente ideol-gicas, parece ser o leitmotiv do espetculo Vestgios, texto de Aimar Labaki e encenao de Antonio Cadengue, que cumpriu temporada de agosto

  • 42

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    a novembro de 2012, no Recife. Trata-se de um espetculo que discute a tortura, ou melhor, seus vestgios. Na trama, dois investigadores, Cardoso e Marcos, torturam um jovem professor universitrio, Marcelo, acusado de assassinar uma moa desaparecida h mais de dez anos. Como ves-tgio dessa desapario, resta apenas uma cabea, da prpria moa, que surge inesperadamente na cama de Marcelo. O rapaz abandona a cabea sem corpo na frente do Instituto Mdico Legal. Em seguida, preso e torturado a fim de que confesse o suposto crime e revele a localizao do corpo. A trama se complica, no entanto, e se torna cada vez mais inslita. Marcelo v-se ento sob a suspeita de envolvimento com organizaes internacionais ligadas a Cuba e antiga Unio Sovitica, que atuaram no Brasil ainda nos anos de 1980, no final da Ditadura Militar.

    Os investigadores buscam a verdade obsessivamente, mas, sobretudo, nomes. A verdade sempre possui um nome. o que acreditam. preciso nomear, dizer quem , o que se .

    Porm, esta interpelao constante dos investigadores disfara uma dicotomia presente na pea e que metaforizada por aquela cabea apartada de seu corpo. Em outras palavras: razo e instinto, consciente e inconsciente. Antes de se iniciar uma sesso de tortura, na qual Marcos vai estuprar Marcelo, os torturadores confessam:

    Cardoso: Eu no vou ver. Eu no gosto de ver. Eu no me importo de fazer. Mas fazer o corpo. E o corpo esquece. A cabea, esta no esquece.

    Marcos: Comigo sempre foi o contrrio. Meu crebro no retm nada. Mas meu corpo se lembra de cada movimento, cada carcia, cada dor. (Labaki, 2010)

    Ambos concebem corpo e mente de modos diferentes. Isto claro. Porm, o que se evidencia que ambos recusam o ato de ver. Negam-se ou simplesmente no podem. So incapazes de enxergar. A valorizao do corpo para ambos talvez seja um modo de permanecerem no nvel dos instintos, do inconsciente, daquilo que no nomeiam. No ousam. Con-tradio, pois buscar nomes, ou verdades, sua principal funo.

    O inconsciente, portanto, mostra-se como fora propulsora das per-sonagens e da prpria ao dramtica do texto. Aqui, h apenas pulses. Nesse sentido, a encenao imprime uma atmosfera de pesadelo e ob-sesso ao espetculo. Tudo se passa numa sala de tortura recortada por biombos de vidro suspensos, de formas geomtricas irregulares, como estilhaos em grandes propores. Por trs desses biombos, encontra-se a sala dos investigadores que monitoram todos os movimentos e reaes de Marcelo. uma outra cmara, que se revela ao espectador a depender dos efeitos da luz, ora expondo o que h por trs das cortinas de vidro, ora rebatendo o reflexo do interior da sala onde se encontra Marcelo. Porm, essas imagens refletidas so distorcidas. No se oferecem repro-dues de uma realidade, mas reflexos de um espelho cindido que ques-tiona o real no lugar de reproduzi-lo. As imagens geradas por esses falsos

  • 43 Igor de Almeida Silva

    Vest

    gio

    s d

    e um

    Goz

    o P

    roib

    ido

    espelhos produzem fantasmagorias que duplicam as cenas de tortura da pea. A iluminao e a trilha sonora reforam e ampliam esse efeito.

    A encenao enceta um mecanismo de repetio e automatismo. Com cenas de torturas que se repetem sem que o espectador tenha certeza se se trata de um delrio de Marcelo, j debilitado psicolgica e fisicamente, ou de algo imposto pelos investigadores, como acontece quando Cardoso pede, por duas vezes, que Marcelo (professor de hist-ria) descreva procedimentos de tortura. Na primeira vez, o professor est apenas de cala; na segunda, nu e visivelmente insano. Assim como o torturado, o espectador parece ser tambm envolvido neste clima de pe-sadelo, perdendo-se na profuso de fantasmagorias e cenas de suplcio.

    De certa forma, os torturadores so autmatos, pois seus gestos so irrefletidos. Nos intervalos das sesses de tortura, reiteradas vezes, ilumi-na-se a cmara dos investigadores onde eles, num mesmo movimento, bebem gua, como se fossem duplos um do outro, num gesto obsessivo, como se por meio da gua buscassem a purificao de seus atos. Mas, ao mesmo tempo, esse signo remete prpria obsesso dos militares pelo controle e higienizao de tudo o que consideravam subversivo ao pas. Esse gestus ao mesmo tempo sntese e vestgio dessa obsesso.

    No piso, uma imagem abstrata vermelha pulula do cenrio negro. Ela sugere uma grande poa de sangue, mas tambm uma espcie de re-demoinho que vai tragando as personagens medida que a pea avana. Todos so atrados por esse redemoinho, torturadores e torturado, mes-tres e escravo, pois, por intermdio do sofrimento impingido a Marcelo, os investigadores confessam suas obsesses e conflitos interiores.

    Devido ao ofcio, ambos levam uma vida dupla. Contudo, esta parti-o permite o exerccio de outros aspectos de suas personalidades. Mar-cos fala claramente de uma moral na casa e outra na rua. Uma moral para seu trabalho de torturador e outra para sua famlia:

    No fundo, o que a gente ? Um tipo de polcia mesmo. No s isso, o que eu fao, que eu deixo pra fora quando entro em casa. Deixo tambm uma parte enorme da minha vida pessoal. O que eu gosto, o que eu no gosto, o que eu fao no escuro do meu desejo. Porque o meu desejo sempre foi na rua, mas fora do sol. A famlia o lugar do dever. No o lugar do prazer. Famlia, com prazer, vira baderna. Mas eu t sempre ligado, por que o preo da liberdade a eterna vigilncia. Se eu vacilo, meu trabalho, meu desejo, aparecem. Como se tivesse umas migalhas escondidas na camisa, e quando eu fosse tirar, cassem no cho, me entregando. Migalhas de prazer, migalhas desse meu dever. Que eu escondo para no perder as migalhas que eu tenho l dentro de casa, dentro de mim. Eu escondo as minhas migalhas, pra poder escolher entre as migalhas que a vida me oferece. sempre melhor poder escolher. (idem)

    Chega-se ao gozo proibido do opressor, seu desejo inconfesso, que a personagem refere-se de modo indistinto como prazer e dever. Escon-dendo essas migalhas, ele pode exercer seu domnio.

    Vestgios se passa em meados dos anos de 1990, aps o processo de

  • 44

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    redemocratizao do pas, mas o que o espetculo evidencia a latncia desse gozo proibido, talvez o lado inconsciente da verdade a qual a Co-misso composta em maio de 2012 deve trazer ao conhecimento pblico. O espetculo demonstra que, como vestgio, esse gozo de que fala Kehl permanece potente. Sua permanncia na obscuridade, a despeito do fim de perodo ditatorial, no pressupe sua supresso. Pelo contrrio, seu retorno uma ameaa constante. Enquanto migalha imperceptvel, ele pode escolher.

    Talvez seja esta uma das principais funes da Comisso da Verdade, que se pode perceber por meio desse espetculo: impedir a possibilida-de de escolha do gozo proibido, ao traz-lo claridade e, dessa forma, varrer seus ltimos vestgios, suas migalhas.

    Referncias bibliogrficasKachani, Morris. Integrante Associa Tortura a Gozo Proibido. Folha de

    S. Paulo, So Paulo, 16 de maio 2012.Labaki, Aimar. O Teatro de Aimar Labaki. So Paulo, Imprensa Oficial, 2010.

    Atores: Roberto Brando e Carlos Lira. Imagens (pp. 43-44): Amrico Nunes

  • heleny guariba: conSideraeS Sobre um teatro eSttico-poltico

    Coletivo Poltico Quem

  • 47 Coletivo Poltico Quem

    Hel

    eny

    Gua

    riba:

    Con

    sid

    era

    es

    sob

    re u

    m T

    eatr

    o E

    stt

    ico-

    Pol

    tico

    J passou o tempo em que as diretrizes artsticas de um elenco podiam-se fundamen-tar na disposio de fazer bom teatro. Este um conceito demasiado vago e ecltico. Fazer bom teatro para que e para quem?

    Estas frases de Augusto Boal contm a principal questo do teatro brasileiro de ento: como efetuar a reinsero do esttico no poltico? Reinsero essa que, como nos revela Boal, passa necessariamente por uma problematizao, por um lado, da funo maior do teatro (para qu?) e, por outro, da constituio de seu pblico (para quem?). Este campo problemtico ser, precisamente, o ponto de partida da reflexo e atuao de Heleny Guariba no que concerne ao teatro.

    De fato, em seu nico texto publicado, Teatro e Comunicao, de 1968, encontramos uma teorizao relativamente sofisticada desta du-pla problemtica. A partir do pressuposto de que o teatro se inscreve numa abordagem mais ampla da linguagem, Heleny procura atacar o problema da perspectiva de uma teoria da comunicao, para qual o espetculo s pode ser pensado no interior de um sistema formado pela interao entre o texto teatral, uma escritura cnica e o prprio pbli-co. Compreendamos: a teorizao das artes como constituindo um siste-ma prprio entre autor, obra e pblico no nova; j se encontrava, por exemplo, relativamente bem estabelecida com Antonio Candido, que havia mostrado a fecundidade deste modelo de anlise para o campo da

  • 48

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    literatura. No entanto, Heleny avana um passo, ao mostrar a especifici-dade do teatro no interior deste esquema. Com a palavra, Heleny:

    A crise provocada pela concorrncia do cinema e de outros meios de transmisso tem exigido esforos de repensar a forma de comunicao tradicional. Criticando--a, descobrimos a importncia do teatro, nica forma cultural onde o trabalho de criao do texto, a transcrio deste em uma nova linguagem e o universo de inter-pretantes do pblico se colocam materialmente em presena e interagem dinamica-mente, com intensidade que no se encontra em nenhuma outra produo artstica. nesse sentido que as formas contemporneas de comunicao levam descoberta, no espetculo renovado, de sua importncia.

    Em outros termos: se o teatro possui uma especificidade prpria, porque ele pode atingir seu pblico mais diretamente, mesmo material-mente, gerando uma interao dinmica que inexiste nas outras artes. Essa capacidade se revela na importante noo de escritura cnica, tomada de emprstimo a Roger Planchon, com quem Heleny trabalhou durante o seu perodo de estgio em Paris. A escritura cnica a traduo do texto em espetculo, a construo da cena dramtica pelo diretor, o qual no se limita a dar voz ao autor, mas antes realiza uma obra prpria, uma segun-da obra, com novos cdigos e constituindo um novo sistema de signos. Com tal teorizao, procurava-se colocar em questo a maneira segundo a qual, classicamente, o teatro compreendia as relaes entre texto e ence-nao, subordinando integralmente a segunda ao primeiro neste ponto, Heleny no poupa crticas aos crticos teatrais, para quem direo cor-reta, frase comum em nossos jornais, significa uma direo discreta que serve ao texto. Ao definir o teatro como um fenmeno de comunicao de signos, Heleny era capaz de substituir velha ideia de subordinao uma concepo renovada de interao dinmica entre texto e encenao, inserindo a um elemento mediador fundamental: o diretor.

    Evidentemente, esse primado da direo sobre a dramaturgia no significa o apagamento do texto, nem mesmo sua reescritura. Ao con-trrio, como lembra Heleny, a atualizao de um texto geralmente deve respeit-lo at em sua pontuao, no lhe alterando sequer uma vrgu-la. O diretor no um segundo dramaturgo, ainda que, como ressalta Heleny, o encontro de ambos na mesma pessoa dever tornar-se cada vez mais comum. Trata-se, aqui, da produo de um novo universo de signos, para alm da mera repetio da ideologia do autor, utilizando--se, para este fim, dos mais diversos recursos do teatro (e.g., cenografia, sonoplastia etc.), de modo que o texto somente mais um elemento no interior deste conjunto.

    No por acaso, em seu grande espetculo, Jorge Dandin, Heleny con-tou com a colaborao de Flvio Imprio, o nome prprio da cenografia brasileira de ento.

    Podemos assim dizer que cabe ao diretor, na perspectiva terica de Heleny, o trabalho de interpretar o texto teatral, comentando-o a par-

  • 49 Coletivo Poltico Quem

    Hel

    eny

    Gua

    riba:

    Con

    sid

    era

    es

    sob

    re u

    m T

    eatr

    o E

    stt

    ico-

    Pol

    tico

    tir de signos pertencentes a um universo ideolgico diferente daquele em que a dramaturgia foi concebida. Desse modo, a interao dinmica entre texto e cena, da qual falvamos anteriormente, possibilita uma es-pcie de choque ideolgico. No sem interesse sublinhar o emprego do termo ideologia em Teatro e Comunicao. Longe de ser o recurso arbitrrio a uma conceitografia em moda nos meios artsticos brasileiros nos anos 1960, sua utilizao por Heleny indica a perspectiva terica em que a diretora pensava o teatro. Detenhamo-nos um pouco sobre este ponto, pois ele de suma importncia para se compreender certos desdobramentos de sua posio.

    Todo sistema de signos exprime, para Heleny, uma ideologia, isto , um modo pelo qual certo grupo social pretende objetivar, fragmentada e parcialmente, sua prtica histrica. Sublinhamos este ltimo termo pois ele absolutamente prenhe de consequncias. Significa, entre outras coisas, que nenhum sistema de signos nenhuma linguagem um sistema autnomo, como que pairando em um distante cu platnico. Ao contrrio, todo sistema de signos est inserido em uma prtica so-cial global, a qual, por um lado, lhe confere um contedo e, por outro, recebe dele novos contedos, enquanto formas, ainda que precrias, de organizao desta prtica. Observe-se que a linguagem artstica, e portanto a arte de modo geral, no uma exceo a tais consideraes; antes, encaixa-se perfeitamente em tal esquema, sendo, assim, mais uma modalidade da prtica social. Disso resulta que, na viso de Heleny, o objetivo de uma produo artstica no outro seno construir uma srie de apelos diretos experincia global do pblico, despertando um comentrio, conferindo-lhe um contedo contedo que, como no cansamos de sublinhar, refere-se sempre a uma determinada prtica. Este carter apelativo da escritura cnica, espcie de chamado do pbli-co ao, essencial afinal, como j lembrava Vianninha, a condio bsica do teatro essa o pblico atua.

    precisamente a que se situa o carter inexoravelmente poltico da criao teatral. O teatro, em cada um dos seus momentos, sempre re-sultado de uma deciso, de uma opo acerca da perspectiva pela qual ele objetivar a experincia humana para comunic-la ao pblico. Dra-maturgo, diretor ou ator, ningum que queira fazer teatro pode se furtar a esta deciso: o artista no tem a alternativa de se colocar no alm do ideolgico; sua nica alternativa decidir por repetir, ou interferir, no sistema ideolgico do seu pblico. Ou a arte pura duplicao da reali-dade, naturalizao da experincia cotidiana dos homens, ou ela crtica s formas ideolgicas pelas quais os grupos sociais organizam sua prti-ca. Essa crtica, o teatro pode exerc-la sem sair do sistema de signos no qual quer intervir, como se se tratasse de utiliz-lo de tal modo a inver-ter seus efeitos sobre o pblico. Exemplos maiores de tal procedimento crtico eram, para Heleny, Brecht, com suas tcnicas de distanciamento,

  • 50

    aPar

    te X

    XI

    no 6 | 1o sem. 2013

    e Planchon, pela utilizao da linguagem do cinema e da cultura de massa, por meio das quais o diretor pretendia empreender uma violenta crtica sociedade de consumo francesa.

    Voltemos ento s questes que Boal colocava ao teatro brasileiro acer-ca da sua finalidade e pblico. A tais indagaes, Heleny respondia afir-mando que arte de modo geral, e ao teatro em particular, cabia intervir criticamente a fim de modificar um certo sistema ideolgico, enquanto determinado modo de organizao de uma prtica social. No Brasil, esse sistema ideolgico era aquele que bloqueava o processo de constituio de uma experincia de classe, de objetivao da situao de espoliao e opresso do proletariado. Comea assim a se esboar um projeto mais amplo de um teatro verdadeiramente popular, o qual possa, de alguma forma, cumprir com o duplo objetivo de esclarecer criticamente a reali-dade e, mais que isso, chamar seu pblico ao. Neste ponto, Heleny se insere numa clara tradio teatral brasileira, a qual j vinha, pelo menos desde a estreia de Eles no Usam Black-Tie, de Guarnieri, elaborando tais questes de maneira extremamente consciente.

    Efetuemos assim um pequeno recuo, a fim de apreciar este ponto de maneira mais demorada.

    Em Eles no Usam Black-Tie, o operariado j assumira a cena como objeto privilegiado do teatro. Essa elevao do proletariado ao nvel de protagonista da pea j era altamente sintomtica, revelando o peso crescente que essa classe ganhava no cenrio nacional de ento, como decorrncia de sua consolidao como ator poltico durante o regime trabalhista. verdade, no entanto, que, no mbito da pea de Guarnieri, essa assuno se dera to somente no nvel do objeto, sem ainda consti-tuir propriamente um alvo deste teatro; em outros termos, tanto do pon-to de vista do contedo como de sua forma, esta importante pea ainda revela alguma hesitao por parte da intelectualidade da poca quanto ao real papel exercido pelo proletariado no interior do jogo poltico.

    Do ponto de vista do contedo, o personagem Tio encarna uma certa incerteza com relao possvel coeso da classe operria. A infn-cia passada no meio burgus bloqueia a perspectiva de classe de Tio, que mesmo trabalhando em uma fbrica recusa-se a reconhecer-se como operrio, alvo da mesma explorao e submetido s mesmas condies sociais dos seus colegas na linha de produo. Esta recusa se expressa na atitude de Tio, que decide furar a greve para se beneficiar do prestgio que lucraria com seus superiores. No final da pea, o jovem operrio explicita os motivos que o levaram a tomar tal deciso:

    Eu disse porque eu quero s alguma coisa, eu preciso s alguma coisa!... No queria fic aqui sempre, t me entendendo? T me entendo? A greve me metia medo. Um medo diferente! No medo da greve! Medo de s operrio! Medo de no sa nunca mais daqui! Faz greve s mais operrio ainda!...

  • 51 Coletivo Poltico Quem

    Hel

    eny

    Gua

    riba:

    Con

    sid

    era

    es

    sob

    re u

    m T

    eatr

    o E

    stt

    ico-

    Pol

    tico

    Tio parece resumir, assim, um diagnstico corrente na intelectua-lidade brasileira de ento, para quem os operrios constituem apenas um grupo em estado de desagregao extrema, composto por indivdu-os que, isoladamente, perseguem seus prprios interesses sem nenhum vnculo com sua profisso e seus colegas. Da o fato de que a classe ope-rria existiria apenas nominalmente, sem ser capaz de constituir uma verdadeira entidade coletiva, reunindo e integrando os seus membros. No surpreende, portanto, que, do ponto de vista formal, a pea ainda retenha o esquema clssico do drama burgus, centrada nos conflitos vividos por um indivduo Tio absolutamente desligado de suas relaes de classe, de modo que os eventos polticos reais (tais como assembleias grevistas, piquetes etc.) no so propriamente encenados, mas apenas narrados, como se o que realmente interessasse ou, talvez, o que fosse possvel representar, dadas as condies de ento fosse me-ramente o individual, em detrimento do coletivo.

    Tal viso estreita da classe operria parece traduzir algumas limita-es inerentes ao prprio Teatro de Arena. verdade que, aps Eles no Usam Black-Tie, formar-se-ia um extenso programa de pesquisas, inicia-do nos seminrios de dramaturgia promovidos pelo grupo e efetuado em peas extremamente inovadoras, mesmo do ponto de vista formal, tais como Revoluo na Amri