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Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 77-98, jul./dez. 2008 77 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras> A partilha da África e a resistência africana Jorge Euzébio Assumpção * Resumo A África no século XIX foi vítima da cobiça dos países europeus, que em suas disputas imperialistas partilharam o território. Para conseguir colônias os países capitalistas não mediram esforços. Assim como não pouparam os povos nativos que resistiram à invasão, esses foram vítimas de verdadeiros massacres, quando da defesa de seus territórios, como foi o caso do movimento Mau-Mau. Na busca por novas colônias valia tudo, a exemplo do rei Belga, Leopoldo II. Que usou de todos os métodos, legais ou não, subornando pessoas e cometendo trapaças, para conquistar as terras do Congo e sacralizar seus objetivos - retirar toda a riqueza possível do solo africano. Para tanto os capitalistas cometeram todos os excessos, desde o trabalho compulsório até o extermínio físico. O imperialismo deixou como conseqüência a chacina e o aniquilamento dentre os diversos povos de origem africana. Palavras-chave: África. Imperialismo. Congo. Colonialismo e Resistência. A que pese o esgotamento e as conseqüências nefastas dos quais foram vítimas os povos africanos, diante do tráfico internacional de trabalhadores escravizados, longe ainda estava o território negro, ao longo do século XIX, de ter esgotado sua participação como continente vitimado por ações espoliativas, para a construção e a prosperidade dos atuais estados europeus, ditos civilizados. O solo e o subsolo africanos eram um atrativo por demais poderosos à ganância imperialista das potências ocidentais, ávidas por aumentar seus domínios mundo a fora - o que hoje chamaríamos de globalização da economia. O expansionismo europeu pode muito bem ser traduzido através do pensamento de Cecil Rhodes [Conquistador, político inglês, organizador da anexação por parte da Grã-Bretanha de extenso território na África do Sul, dono de grande fortuna conseguida através da exploração de diamantes e ouro na região do Transvaal.]. “... essas estrelas... esses vastos mundos que nunca poderemos atingir.” E afirmava: “Se eu pudesse, anexaria os planetas.” A conquista ou partilha da África (1884/1885) não se deu, contudo, sem resistência, em que pese a superioridade bélica dos Estados espoliadores. De todas as formas tentaram os africanos resistir à investida colonialista: lutando de forma aberta, criando sociedades secretas, realizando pactos, ou ainda individualmente. Os povos negros não deram tréguas aos conquistadores que, aproveitando-se das rivalidades locais, faziam, muitas vezes, alianças com algumas etnias para subjugar determinadas regiões. Entretanto nem mesmo nos aliados a confiança poderia ser total, pois mesmo entre estes, sempre houve focos de resistência. * Docente do Curso de Especialização em “História Africana e Afro-Brasileira” da Faculdade Porto-Alegrense. E-mail: [email protected]

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Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 77-98, jul./dez. 2008 77 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>

A partilha da África e aresistência africana

Jorge Euzébio Assumpção*

ResumoA África no século XIX foi vítima da cobiça dos países europeus, que em suas disputasimperialistas partilharam o território. Para conseguir colônias os países capitalistas nãomediram esforços. Assim como não pouparam os povos nativos que resistiram à invasão,esses foram vítimas de verdadeiros massacres, quando da defesa de seus territórios, comofoi o caso do movimento Mau-Mau. Na busca por novas colônias valia tudo, a exemplo dorei Belga, Leopoldo II. Que usou de todos os métodos, legais ou não, subornando pessoase cometendo trapaças, para conquistar as terras do Congo e sacralizar seus objetivos -retirar toda a riqueza possível do solo africano. Para tanto os capitalistas cometeram todosos excessos, desde o trabalho compulsório até o extermínio físico. O imperialismo deixoucomo conseqüência a chacina e o aniquilamento dentre os diversos povos de origem africana.

Palavras-chave: África. Imperialismo. Congo. Colonialismo e Resistência.

A que pese o esgotamento e as conseqüências nefastas dos quaisforam vítimas os povos africanos, diante do tráfico internacional detrabalhadores escravizados, longe ainda estava o território negro, ao longodo século XIX, de ter esgotado sua participação como continente vitimadopor ações espoliativas, para a construção e a prosperidade dos atuaisestados europeus, ditos civilizados.

O solo e o subsolo africanos eram um atrativo por demais poderososà ganância imperialista das potências ocidentais, ávidas por aumentarseus domínios mundo a fora - o que hoje chamaríamos de globalização daeconomia. O expansionismo europeu pode muito bem ser traduzido atravésdo pensamento de Cecil Rhodes [Conquistador, político inglês, organizadorda anexação por parte da Grã-Bretanha de extenso território na África doSul, dono de grande fortuna conseguida através da exploração de diamantese ouro na região do Transvaal.]. “... essas estrelas... esses vastos mundos quenunca poderemos atingir.” E afirmava: “Se eu pudesse, anexaria os planetas.”

A conquista ou partilha da África (1884/1885) não se deu, contudo,sem resistência, em que pese a superioridade bélica dos Estadosespoliadores. De todas as formas tentaram os africanos resistir à investidacolonialista: lutando de forma aberta, criando sociedades secretas,realizando pactos, ou ainda individualmente. Os povos negros não deramtréguas aos conquistadores que, aproveitando-se das rivalidades locais,faziam, muitas vezes, alianças com algumas etnias para subjugardeterminadas regiões. Entretanto nem mesmo nos aliados a confiançapoderia ser total, pois mesmo entre estes, sempre houve focos de resistência.

* Docente do Curso de Especialização em “História Africana e Afro-Brasileira” da FaculdadePorto-Alegrense. E-mail: [email protected]

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A queda de Napoleão Bonaparte e a conseqüente “pacificação” daEuropa abriram as portas à expansão das nações industrializadas ou emvia de industrialização para ampliarem seus lucros. A nova ordemeconômica mundial necessitava, entretanto, de uma acomodação demercados, caso contrário o choque de interesses entre os novos paísescapitalistas que estavam emergindo acenderia novos confrontos. Nessecontexto geopolítico e econômico, surgiu o Congresso de Viena (1815). Asdecisões tomadas neste Congresso influíram, de maneira significativa,nos destinos da África, colocando-a como um dos pólos de suasdeliberações, agora não mais para estimular o tráfico, mas pelo contrário,seguindo os novos rumos da economia. Principalmente sob a orientaçãoda Inglaterra, começaram as tentativas para restringir o comércio negreirotransatlântico, proibindo sua consecução acima da linha do equador.

Ao continente negro seria atribuída uma nova função. O outroraexportador de seres humanos reduzidos ao cativeiro passaria agora a serfornecedor de matérias primas e riquezas naturais aos Estados‘industrializados’. Para tanto era necessário aos Estados colonialistaspossuírem o controle das fontes produtivas, plantações, minas, etc. Ànova ordem econômica ocidental, que se tornaria hegemônica, não eramais interessante o êxodo de africanos, pois estes poderiam atender, emseu próprio território, as necessidades imperialistas ocidentais, servindoao mundo “civilizado” como mão de obra barata e consumidores dosprodutos manufaturados. Nessa perspectiva, a África sofreu um processode partilha, pelo qual os países mais industrializados abocanharam a maiorparte das colônias africanas. Como disse Leopoldo II “(...) Os lucros coloniaisnão eram o glacê do bolo, mas o próprio bolo.”

O território negro era uma das soluções ao imperialismo monopolistadas nações européias, mas, para tanto, seria necessário colonizar as terrasafricanas. Tal medida foi adotada até pela Inglaterra, país que, devido àsua tradição comercial, defendia o livre comércio. Grandes potências doséculo XIX, tais como França, Alemanha e Grã-Bretanha, lançaram-se naconquista de novas colônias nas terras africanas. O Continente passou aser a ser alvo de cobiça por parte dos países ocidentais, ávidos porconseguirem colônias como fonte de aumentar seus lucros na corridaimperialista deflagrada, assim como para solucionarem seus problemassociais de desemprego e marginalização social.

As terras habitadas pelos negros já haviam mostrado seu potencialeconômico, séculos atrás, quando abasteciam de ouro a Europa. SegundoMário Curtis Giordani, até a descoberta “da América o reino de Gana teria sidoo principal fornecedor de ouro do mundo mediterrâneo”. Como também se destacouna produção de artigos agrícolas, a exemplo do que ocorreu no século XIX,quando devido à crise da Guerra de Secessão estadunidense que causou odesabastecimento de algodão no mercado, coube ao Egito suprir a carênciadessa matéria prima.

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“Na década de 1860, o algodão egípcio expandiu-se em seguida àinterrupção da concorrência americana durante a Guerra Civil(1861/1865) daí em diante ficou valendo para a economia deexportação egípcia o slogan americano ‘algodão é rei’. O algodãocorrespondia a 75% de todas as exportações egípcias. Para osproprietários de terra maiores, representou a promessa de comérciolucrativo; para os menores, em contra posição foi uma fonte deinsegurança, dívida e por fim bancarrota”. 1

Os produtos minerais, encontrados principalmente na África doSul, tornaram-se fonte de conflitos entre os países colonialistas, haja vistaa guerra entre ingleses e bôeres, os quais estavam na região desde o séculoXVII. Entretanto, devido ao Congresso de Viena, a região foi posta sobdomínio britânico o que forçou os boêres a partirem para o norte, ondefundaram a República Independente do Transvaal e Orange, rica emdiamante, ouro e ferro. Os ingleses que viam a região como um importanteponto estratégico, por ser um local de passagem quase obrigatório para asÍndias, sentiram-se ameaçados com a presença dos batavos no território,assim como mais tarde dos alemães, pois eles poderiam obstaculizar seusprojetos expansionistas. Era um sonho, britânico unir a colônia do Cabo,sul da África ao norte, Cairo, onde possuíam também interessesestratégicos. A região sul-africana gerou uma disputa de interesses entre oseuropeus, resultando na chamada “Guerra dos Bôeres”, entre 1899-1902.

A guerra Bôer foi a maior de todas as guerras coloniaistravadas na era imperialista moderna. Durou mais de doisanos e meio (11 de outubro de 1899 a 31 de maio de 1902).A Grã-Bretanha forneceu aproximadamente meio milhãode soldados, dos quais 22 mil foram enterrados na Áfricado Sul. O número total de perdas britânicas – mortos,feridos e desaparecidos – foi de mais de 100 mil185. Ospróprios bôeres mobilizaram quase 100 mil homens.Perderam mais de 7 mil combatentes e quase 30 milpessoas nos campos de concentração. Um número nãoespecificados de africanos lutou dos dois lados. Não seregistram suas perdas, mas provavelmente atingiramdezenas de milhares.2

Para aumentar os lucros e dominarem mercados, os capitalistasassociaram-se em cartéis, sindicatos, trustes e partiram para “novasconquistas”. A ocupação do território negro que limitava-se à costa jánão satisfazia as novas necessidades, era preciso interiorizar asconquistas para retirar o maior lucro possível. Isto desencadeou umadisputa inevitável do controle das vias de acesso africanas, dentre asquais a bacias do Congo e do Níger, que eram consideradas de livrecomércio internacional.

1 WESSELING, H.L. Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). Editora UFRJ;Editora Renavam, 1998. p. 482Ibidem p. 359.

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Segundo Joseph Ki-zerbo, historiador africano, natural do Alto Volta,diplomado, em Paris, pelo Institut d’Études Politiques, em sua história daÁfrica Negra afirma que:

(...) O bluff e os <tratados> extorquidos alternam com aliquidação de qualquer resistência e, se necessário, comchacinas. Impossível descrever por miúdo esta febre destruidora,cujos grandes, <campeões> foram incontestavelmente a Grã-Bretanha, a França, o rei dos Belgas Leopoldo II e porúltimo a Alemanha de Bismarck3.

As disputas imperialistas, principalmente na África, intensificaram-se a partir da década de 70 do século XIX, quando da unificação da Itália eda Alemanha. Esta logo viria a reivindicar seu espaço no cenáriointernacional de concorrência imperialista. Diante desse quadro decompetitividade entre as nações capitalistas, os países, de acordo comsuas conveniências, procuraram aliados, no intuito de ganharem espaço ebarrarem seus principais concorrentes.

3 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra - II. Edição revisada. 3 ed. Publicações Europa-América. LDA. Portugal, 2002. p. 76/77.

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“Finalmente é preciso destacar que o monopólio nasceu da políticacolonial. Aos numerosos “velhos” motivos da política colonial, ocapital financeiro acrescentou a luta pelas fontes de matérias-primas, pela exportação de capitais, pelas ‘esferas de influência’,isto é, as esferas de transações lucrativas, de concessões, de lucrosmonopolistas, etc. e, finalmente, pelo território econômico emgeral. Por exemplo, quando as colônias das potências européiasna África representavam a décima parte desse continente, comoacontecia ainda em 1876, a política colonial podia desenvolver-sede uma forma não monopolista, pela “livre conquista” deterritórios. Mas quando 9/10 da África já estavam ocupados (porvolta de 1900), quando todo o mundo estava já repartido, começouinevitavelmente a era da posse de monopolista das colônias e, porconseguinte, de luta particularmente aguda pela divisão e pelanova partilha do mundo”.4

Na busca por espaços, ocorreram diversos embates colonialistasentre as grandes potências como forma de se manterem mais competitivase se auto- projetarem, elas terminaram por estabelecer pactos entre si eassim se formou a “Tríplice Aliança” (1882). Esta foi uma união militarentre a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Itália. Esse acordo realizado noséculo XIX já era o prenúncio do clima de hostilidade, gerado pela busca econtrole de mercado, que marcaria a I Grande Guerra.

Todavia no século anterior ao primeiro grande conflito mundial,ainda havia margens para negociação, pois existiam áreas a seremconquistadas, que poderiam evitar, pelo menos no momento, um embateentre as grandes potências em suas ações por novos mercados. O mundoem geral e a África em particular tornaram-se vítimas do imperialismoeuropeu. Segundo o reverendo Müller:

Por exemplo, as seguintes palavras do reverendo padreMüller, transcritas por um católico defensor doimperialismo francês. J.Folliet, doutor em filosofia tomista:“A humanidade não deve, nem pode aceitar mais que aincapacidade, a negligência, a preguiça dos povosselvagens deixem indefinidamente sem emprego asriquezas que Deus lhes confiou, com a missão de utilizá-las para o bem de todos. Se forem encontrados territóriosmal-administrados por seus proprietários, é direito dassociedades – prejudicadas por esta administraçãodefeituosa – tomar o lugar destes administradoresincapazes e explorar, em benefício de todos, os bens dosquais eles não sabem tirar partido.”5

Percebendo a nova conjuntura e o avanço dos povos europeus, algunsgrupos africanos, como no passado, tentaram amenizar ou tirar proveitoda situação e procuraram firmar acordos com os conquistadores. Este foio caso dos Mareales e Kibangas, que fizeram um tratado com os alemães,

4 CATANI, Afrânio Mendes. O que é Imperialismo. Editora Brasiliense, 1981. p. 14 e 15.5 BRUIT, Héctor H. O imperialismo. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1988. p. 11.

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na expectativa de derrotar seus inimigos locais. Outro exemplosignificativo, narrado por Leila Hernandes, foi a aliança firmada entre osfranceses e Ahmadou Seku para manter o controle dos Bambaras,Mandingas e Fulanis em troca do fornecimento de armas.6

Entretanto quando os “acordos” ou tratados fracassavam, osimperialistas não titubeavam em utilizar métodos violentos para subjugaros povos do continente e lhes impor seu domínio, não vacilavam em fazeruso da força e praticar ou estimular verdadeiras chacinas.

Em 1905, a rebelião maji-maji (assim chamado porque ofeiticeiro que estava na sua origem dera uma água mágicada qual as pessoas acabaram por dizer que deviatransformar as balas em água) traduziu-se na pilhagemdos centros administrativos do Sul do Tanganhica e naexterminação dos funcionários e missionários alemães.Juntaram-se a ela os Ngonis. O governo alemão, colhidode improviso, reuniu um grande exército, que, partido dacosta, tudo devastou e queimou à passagem (cubatas,campos e colheitas). Perderam a vida 120 mil pessoasneste genocídio, até ao momento em que, com base emdocumentos fornecidos por missionários, a questão foilevantada no Reichstag por deputados socialistas (1906).7

A Conferência de Berlim

A conjuntura que forçou a partilha da África já é por todos conhecida,entretanto os bastidores que envolveram os acordos entre as grandespotências, da divisão do continente são ainda obscuros à luz da história.Da Conferência participaram os seguintes governos: França, Alemanha,Ástria-Hungria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, Países Baixos, Portugal, Rússia, Suécia, Noruega e Turquia.

A ata geral deixa nítido que os interesses do Tratado de Berlimficaram centralizados na necessidade de estabelecer as melhores condiçõespara o favorecimento do comércio e “da civilização em certas regiões daÁfrica”, assim como assegurar a todos os povos a livre navegação nos doisprincipais rios africanos que deságuam no oceano Atlântico, o Congo e oNíger. A menção a estes rios não poderia deixar de constar, visto que elespoderiam ser motivo de conflitos, bem como a conquista de possessõespelos europeus, no território negro e a preocupação dos ocidentais emrelação aos “meios de crescimento do bem estar moral e material daspopulações aborígenes”. Com esses objetivos sob a presidência daAlemanha, através de Bismark, traçou-se o destino da África, sem aparticipação de nenhum africano.6 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita a história contemporânea. SeloNegro, São Paulo, 2005. p. 85.7 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. p. 97.

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Leopoldo II, rei da Bélgica, conquistador visionário que tudo fizerapara tornar o Congo sua possessão, viu recompensado seu esforço. Detodas as regiões africanas, a bacia do Congo passou a ser o centro dasatenções do Congresso, pois foi o primeiro assunto a ser posto na ata final,assim como o mais discutido, conforme as decisões constadas na mesma,haja vista os títulos dos capítulos acordados na Conferência de Berlim:Capítulo I – Declaração referente ao comércio na bacia do Congo, suasembocaduras e regiões circunvizinhas, e disposição conexas

Capítulo II – Declaração concernente ao tráfico de escravos

Capítulo III – Declaração referente à neutralidade dos territórioscompreendidos na bacia convencional do Congo

Capítulo IV – Ata de navegação do Congo

Capítulo V – Ata de navegação do Níger

Capítulo VI – Declaração referente às condições essenciais a serempreenchidas para que ocupações novas na costa do continente africanosejam consideradas como efetivas

Capítulo VII – Disposições geraisDos sete capítulos transcritos pela Conferência, três referem-se

diretamente ao Congo, sem que com isto o exclua dos demais, a exemplo docapítulo II, que trata do tráfico de escravos. A atenção dispensada à regiãonão foi, porém, aleatória. Alguns fatores fizeram com que esta se tornasseo centro dos debates entre os países competidores.

[...] E não era para menos. Apenas um dos afluentes doCongo, o Kasai, tem um volume de água semelhante ao doVolga, e é quase duas vezes mais comprido que o Reno.Um outro, o Ugangi, é ainda mais longo. Stanley percebeuimediatamente que barcos, nessa rede fluvial, poderiamviajar longas distâncias. Era como se tivesse encontrado oequivalente a milhares de quilômetros de linhas férreas jáprontas. ‘A potência que tomar posse do Congo [...]’,escreveu, ‘absorverá o comércio de toda a imensa baciaque há em volta. Este rio é e será a grande estradacomercial do Centro-Oeste da África.8

Desde a tomada de Ceuta pelos portugueses, em 1415, a Áfricaadquiriu importância cada vez maior para os lusitanos. Através dos anos,sempre com maior freqüência, eles passaram a costear e a fundar feitoriasno continente negro até chegar às Índias, fonte das tão decantadasespeciarias. Para chegar às Índias, tiveram, porém, que percorrer um longocaminho e ao longo do tempo, cada vez mais, travavam contato com ospovos africanos. Suas relações comerciais intensificaram-se a tal ponto8 Hochschild, Adan. O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmona África colonial. Tradução Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 65

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que tornaram essas terras fornecedoras de mercadorias, como também asmaiores exportadoras de trabalhadores escravizados dos temposmodernos, impulsionando com seus lucros a acumulação primitiva decapitais, de vários países europeus.

A região onde se situava o reino de Angola e Congo foi uma dasmaiores fornecedoras de homens escravizados principalmente para oBrasil. Foram os portugueses, os primeiros europeus a travar contatocom o reino do Congo (1482/1483). Embora, mais tarde, tenham sofridoreveses militares frente a outras nações, na maior parte do tempo a regiãoficou sob domínio dos lusitanos. Eles se achavam com direito históricosobre estas terras, onde pretendiam estabelecer uma interligação entreos oceanos Atlântico e Índico, através da unificação, em nome do reiportuguês, dos territórios de Angola e Moçambique, em uma província“Angolamoçambicana”, abrangendo quase toda a Zâmbia e o Zimbábue,teoricamente denominada mapa cor de rosa.

Todavia os interesses imperialistas na África, a partir da segundametade do século XIX, já não admitiam esse tipo de argumentação. Agoraa posse não mais se daria pela presença de um pequeno contingente militar,seria necessário ter condições efetivas de manter a ocupação militarmenteou populacionalmente, o que não era o caso do Estado Luso. Outrorapoderoso Portugal agora não passava de um país fraco, como mostra ofato de que, apesar de ser um dos maiores interessados nos debates sobreo território negro, principalmente na região onde se situa o rio Congo, foiele o último a ser convidado para a Conferência de Bruxelas (1876).

Os lusitanos não tinham mais força política e condições de fato paramanterem seus privilégios em terras africanas, salvo acordos políticoscomo o da Conferência de Berlim. Sobre a presença dos portugueses noterritório negro, afirma Wesseling:

Em Angola, as atividades portuguesas restringiam-se apoucas cidades: Ambriz e Luanda no Norte, Benguela eMoçâmedes, no Sul. Luanda, a capital de Angola, vivia desua antiga reputação de ser a mais bela cidade da costaocidental da África, mas sua antiga prosperidade, baseadano tráfico de escravos, deixara de existir e suas perspectivaseconômicas eram sombrias. Daí que, não importava quãoterríveis fossem as condições em seu próprio país,dificilmente um português ia voluntariamente para aspossessões africanas, e a maior parte dos mil habitantesbrancos de Luanda eram, na realidade, criminosos.9

Este era o contexto internacional em que a África, maisespecificamente a região ao sul do Equador, onde se localiza a bacia do Congo,foi alvo das reivindicações portuguesas; das manobras de Leopoldo II;do expansionismo francês; do interesse britânico de manter o livre comércio

9 WESSELING, H.L.Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). p. 113-114

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e seu sonho de construir uma estrada de ferro, ligando Cabo ao Cairo; dainvestida alemã de 24 de abril de 1884, que proclamava como seuprotetorado a área desde o sudoeste, do rio Orange ao rio Cunene. Nadamais restava a fazer, nesta conjuntura, do que uma grande negociação queresultou na ata de 23 de fevereiro de 1885, da Conferência de Berlim,conseqüência das ações imperialistas ocidentais na África.

A conferência presidida por Bismark regulamentou o livre comércio,assim como tentou proibir o protecionismo nas duas principais baciasafricanas como demonstra o documento final, em seu capítulo I, artigo 2:

Todos os pavilhões, sem distinção de nacionalidade, terãolivre acesso a todo o litoral dos territórios enumeradosacima, aos rios que aí se lançam no mar, a todas as águasdo Congo e de seus afluentes, inclusive aos lagos, a todosos portos situados nas margens dessas águas, assim comoa todos os canais que possam futuramente ser abertoscom a finalidade de ligar entre eles os cursos das águas ouos lagos compreendidos cm toda a extensão dos territóriosdescritos no artigo 1. Eles poderão realizar qualquerespécie de transporte e exercer a navegação costeira fluviale marítima, assim como toda a navegação fluvial em pé deigualdade com os nacionais.10

No mesmo capítulo, “ironicamente” o artigo 6 reporta-se à proteçãoaos aborígenes “...Todas as Potências que exercem direitos de soberania ou umainfluência nos referidos territórios, comprometem-se a velar pela conservação daspopulações aborígines e pela melhoria de suas condições morais e materiais de existênciae em cooperar na supressão da escravatura e principalmente no tráfico dos negros;...”Ora esse capítulo seria cômico, se não fossem tão trágicos seus resultadossofridos pelas populações nativas. Basta vermos os métodos utilizadospelos ocidentais no processo de consolidação das cobiçadas colônias.

O capítulo II, possui um só artigo e proíbe definitivamente o tráficode escravos. Vale a pena lembrar que o Brasil, maior país escravista dasAméricas já havia proibido o tráfico transatlântico desde 1850, maspermanecia com o trafico interno, tão cruel quanto o transatlântico, quesó findaria, em 1888, com o ato de Abolição da escravatura.

O capítulo III refere-se à neutralidade que deve ser exercida, mesmoem caso de guerra, para a manutenção do livre comércio.

ARTIGO 11: Caso uma Potência que exerça direitos desoberania ou de protetorado nas regiões mencionadas noartigo 1 e colocados sob o regime de liberdade comercial,for implicada numa guerra, as Grandes Partes signatáriasda presente Ata e as que vierem posteriormente a aderir aela, se comprometem a: prestar seus bons serviços para queos territórios pertencentes a essa Potência e compreendidosna zona convencional de liberdade comercial sejamcolocados, durante a guerra, com o consentimento unânime

10 Ata da Conferência de Berlin

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dessa e da outra Potência, ou das outras partesbeligerantes, sob regime de neutralidade e sejamconsideradas como pertencentes a um Estado nãobeligerante; as partes beligerantes renunciariam desdeentão a estender as hostilidades aos territórios dessamaneira neutralizados, como também a fazê-los servir debase para operações de guerra.11

É crível que as potências signatárias já sabiam que o Tratado apenasadiava um conflito inevitável, que se concretizaria em 1914, pois nemmesmo a sangria do continente negro conseguiria pôr fim aos conflitosinerentes ao próprio imperialismo. Como observa Catani:

Dessa maneira, as alianças interimperialistas ou ultra-imperialistas no mundo capitalista – seja qual for a suaforma: uma coligação imperialista contra outra coligaçãoimperialista, ou uma aliança geral de todas as potênciasimperialistas – só podem ser inevitavelmente, “tréguas”entre guerras. As alianças pacíficas preparam as guerrase por sua vez surgem das guerras, conciliando-semutuamente, gerando uma sucessão de formas de lutapacífica e não pacífica sobre uma mesma base de vínculosimperialistas e de relações recíprocas entre a economia ea política mundiais.12

O capítulo seguinte IV, reforça o livre comércio entre as naçõesproibindo atos de restrição à navegação.

A navegação do Congo não poderá sujeitar-se a nenhumentrave ou encargo que não estejam exatamente estipuladosno presente ato. Ela não será sobrecarregada de nenhumaobrigação de escala, de etapa, de depósito, de violação decarga ou de retenção forçada. Em toda a extensão do Congo,os navios e as mercadorias que transitam no rio não serãosubmetidos a nenhum direito de trânsito, qualquer que sejasua proveniência ou sua destinação.13

Conforme o capítulo V, no que se refere ao Níger, área direta deinteresse dos britânicos, ficam estes encarregados de manter e assegurar olivre comércio.

ARTIGO 30. A Grã-Bretanha se compromete a aplicar osprincípios da liberdade de navegação enunciados nosartigos 26, 27, 28, 29 já que as águas do Níger, de seusafluentes, ramificações e saídas estão ou ficarão sob suasoberania ou seu protetorado. Os regulamentos queestabelecerá para a segurança e o controle da navegação

11 Ibidem12 CATANI, Afrânio Mendes. O que é imperialismo. p. 53/54.13 Ata da Conferência de Berlin

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serão concebidos de maneira a facilitar tanto quantopossível a circulação dos navios mercantes. Fica entendidoque nada nos compromissos assim assumidos poderia serinterpretado como impedindo ou podendo impedir a Grã-Bretanha de fazer qualquer regulamento de navegaçãocontrário ao espírito desses engajamentos.14

O direito de possessão do continente pelas forças soberanasimperialistas fica nítido no Capítulo VI, artigos 34 e 35.

ARTIGO 34. A Potência que de agora em diante tomarposse de um território nas costas do continente africanosituado fora de suas possessões atuais, ou que, não ostendo tido até então, vier a adquirir algum, e no mesmocaso a Potência que aí assumir um protetorado, faráacompanhar a Ata respectiva de uma notificação dirigidaàs outras Potências signatárias da presente Ata, a fim delhes dar os meios de fazer valer, se for oportuno, suasreclamações.ARTIGO 35. As Potências signatárias da presente Atareconhecem a obrigação de assegurar, nos territóriosocupados por elas, nas costas do Continente africano, aexistência de unia autoridade capaz de fazer respeitar osdireitos adquiridos e, eventualmente, a liberdade docomércio e do trânsito nas condições em que for estipulada.15

Os dispositivos do capítulo VII versam sobre as disposições gerais,pela quais as potências signatárias comprometem-se a cumprir os acordosfirmados no pacto que davam direito aos europeus de domínio sobre oterritório africano. Somente os Estados da Etiópia e da Libéria conseguiram“escapar” do domínio colonial, permanecendo independentes, sem seremcolônia ou protetorados de qualquer potência estrangeira.

O Tratado de Berlim é um marco nas relações internacionaisimperialistas, porém, após ele, foram fixados vários outros acordos entreas potências dominantes. Muito mais do que a divisão da África, 1885marcou uma tentativa de estabelecer normas de convivências e regrasentre os dominadores. Sobre o assunto escreveu Wessling:

Mais do que definir a partilha da África, a Conferênciaserviu como símbolo dela. Colocara-se a partilha da Áfricana agenda de diplomatas europeus e ela se recusou a irembora durante algum tempo. A conferência talvez tenhasido uma ‘operação de holding’, mas uma operação quefalhou, pois, ao mesmo tempo em que os delegadosmediam suas palavras, assinavam-se acordos reconhecendoo Estado Livre e fixando suas fronteiras, e acelerou-seenormemente o jogo africano”16

14 ibidem15 Ibidem16 WESSELING, H.L.Dividir para dominar: a partilha da África (1880-1914). Editora Revan. Riode Janeiro, 1998. p. 143.

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Pan-africanismo: um ato de resistência afro-descendente

Um dos mais destacados movimentos de denúncia e combate aocolonialismo foi o Pan-africanismo. Este propunha a união dos africanosem suas lutas pelos direitos civis, a independência e no combate àdiscriminação. Nascido no exterior, oriundo de uma elite negra que estudouna Europa e nos EUA, o Pan-africanismo foi um instrumento de denúnciadas chacinas e barbáries que estavam acontecendo nas colônias africanas.Embora servisse de porta-voz às reivindicações desses povos, ele tornou-se, todavia, mais conhecido fora da África do que dentro dela.

O Pan-africanismo teve caráter político, filosófico e social, porémnão era uma organização homogênea. Pregou a unidade do continenteafricano em um âmbito único e nisto pecou, pois não entendeu asdiversidades ali existentes nem suas complexidades.

Talvez pelo fato de ter sito gestado por uma elite intelectual, queresidia no exterior, suas ações restringiram-se principalmente aos grandes

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centros urbanos europeus e estadunidenses. Nos EUA, provavelmentedevido às condições dos negros neste país, adquiriu certo grau deradicalização. Embora, em seu estágio inicial, a agremiação tenha tidomero caráter de apoio e solidariedade aos afro-descendentes, entre si, eaos povos africanos de maneira geral, acabou por ampliar seus rumos emodificar-se ao longo do processo, o que influenciou o curso dasindependências que agitaram o território negro.

O Pan-africanismo que tem, segundo alguns autores, sua paternidadeatribuída a W.E.Burghardt Du Bois, não foi a primeira tentativa de criaçãode uma entidade voltada aos interesses africanos. No século XIX, já haviasido criada, em 1897, a “Associação Africana”, com cerca de 20 mil negrosque tinham o objetivo de “... proteger os interesses de todos os africanos e seusdescendentes tanto no império britânico como em outras partes do mundo”. Para tanto,foi redigido um documento apresentado, em 1900, por um grupo deintelectuais, destacando a necessidade da “solidariedade com seus irmãosafricanos menos favorecidos”.17

Esta organização de caráter reformista sequer pensou em questionaro domínio colonial, limitando-se a criticar os excessos cometidos pelosconquistadores. Julgavam ser benéficas para os africanos a associação e acolaboração com os europeus. Todavia, teve a agremiação o mérito depreparar a Conferência Pan-africana, ocorrida em Londres (1900).

Os quatro primeiros congressos Pan-africanos realizados em 1919,1921, 1923, 1927, não avançaram em suas propostas, ficando basicamentecom uma pauta denuncista e reivindicatória sobre as condições de vidados povos colonizados na África e sobre os abusos cometidos peloseuropeus. Quanto aos trabalhos forçados, prática do colonialismo, foisolicitado seu abrandamento. Isto demonstra que esses congressos forameminentemente reformistas, tal como a “Associação Africana”.

O quinto congresso Pan-africano foi, no entanto, marcado pela maiorradicalização de suas propostas e pelo debate político mais aprofundado.Desta feita, com alguns dos principais líderes convertidos ao marxismo,houve a condenação ao capitalismo empregado no território negro; àdiscriminação racial; à segregação racial assim como um chamamento àunião dos africanos na luta contra os opressores. Era uma virada de mesa.Deste Congresso participaram líderes africanos que, mais tarde, após aindependência, tornaram-se notórias personalidades em seus países, entreoutros: Agustinho Neto, Samora Machel, Amilcar Cabral, KwameNkrumah.

Um dos desmembramentos do Pan-africanismo foi a criação pelosenegalês Lamine Senghor, filiado ao partido comunista, de umaorganização que abrigasse todos os negros oriundos das colônias francesas,independente de suas filiações partidárias, a qual deu origem ao “comitê

17 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita a história contemporânea. SeloNegro, São Paulo, 2005. p. 137.

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de Défense de La Race Nègre”, visando à valorização dos negros africanose antilhanos – a “serem negros com letra maiúscula”. O comitê ultrapassou,em suas reivindicações, as questões raciais, como podemos perceberatravés das palavras do próprio Senghor:

Não há distinção entre os negros, submetidos ao jugo deum outro imperialismo... Nós somos todos irmãos unidospela mesma raça. Sofremos o mesmo destino (sob formasdiferentes, bem entendido) escravagista, dominado peloimperialismo internaciona18

. . . A opressão imperialista que nós chamamos decolonização e que chamais aqui de imperialismo é a mesmacoisa: tudo isso não é senão capitalismo, é ele quem produzimperialismo nos povos metropolitanos.Em conseqüência, os que nos nossos países sofrem aopressão colonial dem da-se Seria em dar-se as mãos,ajudar-se mutuamente e juntar-se aos que sofrem dosmalefícios do imperialismo metropolitano, usar as mesmasarmar e destruir o mal universal que é o imperialismomundial. É preciso destruí-lo e substituí-lo pela união dospovos livres. Basta de escravos!19

Em âmbito mais cultural, deve-se dar destaque à Negritude.Embora o termo tenha sido criado por Aimé Césaire, da Martinica, ele foiusado de maneira singular por Leopoldo Senghor, que utilizou omovimento para redescobrir a África e sua cultura. Ele pregava o resgatedos valores negros, combinados com os valores franceses, no que foicriticado por “ser francês demais”.

Leopold - Sédar Senghor (1906-2001) nasceu em Dakar, a 9 deoutubro de 1906, filho de pais ricos, estudou em Paris, onde conheceuAimé Césaire com quem instituiu as bases do “Negritude”. Poeta, deputadoeleito em 1945, foi o primeiro presidente da república do Senegal. Intelectual,deixou uma vastíssima obra literária.

O principal opositor de Senghor, dentro do movimento, foi ohistoriador egiptólogo, também senegalês, Cheikh Anta Diop, autor dolivro “Nações Negras e culturas”. Ele defendia a retomada dos valores daÁfrica pré-colonial, no sentido de resgatar a auto-estima dos povos negros.Nascido em 29 de dezembro de 1923, estudou em Paris, teve sua tese dedoutorado rejeitada em 1951, na Sorbonne, e aceita, em 1960, com ressalvas,o que o impediu de lecionar na França. Nos anos 70, fundou jornais deoposição ao regime de Leopold - Sédar Senghor. Diop e Senghor foram osdois maiores símbolos do “Negritude”, movimento que se difundiu eperpetua-se até os dias de hoje.

18 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita a história contemporânea. SeloNegro, São Paulo, 2005, p. 149.19 Ibidem, p. 150.

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A luta contra o invasor

Mesmo antes da partilha da África, os confrontos com os europeusjá eram freqüentes. Várias foram as formas de luta empreendidas pelospovos subjugados, que muitas vezes resultaram em verdadeiros massacres.Sempre existiu, no entanto, por parte dos povos negros, resistência àsações dominadoras, com exceção daqueles que, para vencer seus inimigoslocais ou conseguirem algumas vantagens, uniram-se aos conquistadores.Contudo, muito mais que a cooperação, prevaleceu a aversão, que semanifestou por todo o território. Como exemplo podemos citar o ImpérioZulu,fundado por Chaka, que entrou em batalha contra bôeres e britânicos,na África meridional e a Argélia ao norte, ocupado pela França desde 1830,que teve sua resistência como um dos símbolos das lutas anti-colonial, tãomarcante, que chegou a ser transformadas em filme (A batalha de Argel).

Embora não tão conhecidas, mas não menos importantes esangrentas, ocorreram várias outras ações anti-coloniais, dentre as quaispodemos aludir o movimento Mau-Mau, contra o domínio inglês noQuênia. Essa região era composta, antes da chegada do invasor britânico,por mais de 50 grupos, divididos entre sete etnias. Entre os vários povosdestacavam-se os Nandis, Wangas, Akambas, Bangada, Massais, Luos,Abaluyias.

Usando sua estratégia de expansão imperialista apoiadaprincipalmente no comércio, os ingleses, desde sua chegada ao continente,tentaram interliga-lo através de ferrovias, assim construíram a estradade ferro de Uganda que se unia ao interior do Quênia. Este fato provocou,de imediato, a reação dos Mandis, que, na primeira década do século XX,opuseram-se à chegada dos invasores.

No intuito de promover a conquista da região, os britânicosconfiscaram as melhores áreas propícias à agricultura. As concessões deterras fornecidas aos invasores, através da legislação agrária de 1915,possuíam validade de 999 anos. Outro fato a ser destacado refere-se àproibição de serem os imigrantes indianos proprietários de terras. Destaforma, a concentração fundiária foi sendo sacramentada através dadiscriminação racial. Como descreve Leila Hernandes:

Paradoxalmente, a propriedade fundiária não era direitolegal da minoria européia, foi só com a Land ApportionmentAct, uma lei agrária aplicada desde abril de 1931, que foiconsagrada a concentração de terras em mãos doseuropeus em detrimento da grande maioria africana. Essalei tornava legítima a divisão do solo do Quênia em quatrocategorias: as ‘reservas indígenas’ (22,4%), nas quais aocupação da terra seguia o direito consuetudinário dospovos africanos; a ‘zona de compra para indígenas’ (8,4%),que tornava disponível a aquisição individual de terraspelos africanos, isto é, uma espécie de compensação pelo

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fato de eles não poderem comprar terras em algumas partesda Rodésia do Sul; a ‘zona européia’ (50,8%), terras jáocupadas pelos europeus às quais ainda se somavam 7.700hectares, reservados para ser mais tarde explorados ouadquiridos por eles. Só não eram incluídos 18,4% das terraspobres e inóspitas, que poderiam ser distribuídas aqualquer uma das três categorias. 20

Somando-se a esses fatos temos outro agravante: o trabalhocompulsório, largamente utilizado pelo sistema colonialista, e a proibiçãodo cultivo do café por africanos, devido ao fato de ser este produto o maislucrativo no país, o que não deixa dúvidas sobre o caráter racista emonopolista da administração britânica.

Esses atos somente aumentaram o quadro de insatisfação geral dosdiversos povos da região. Assim começou a germinar o nacionalismoafricano, reforçado por uma elite negra intelectualizada que estudara noexterior, o que possibilitou a formação de vários grupos de resistência.

Em meio aos povos que habitaram o Quênia, talvez tenham sido osKikuyus os que mais se destacaram por não dar tréguas aos invasores,negando radicalmente a dominação européia e seu racismo etnocêntrico.Não aceitaram suas leis de exclusão, em geral, e, em especial, a que proibiaa plantação de café e algodão, o que levou à criação de entidades eassociações organizativas. Dentre outras, os Kikuyus fundaram a CentralAssociation (KCA), defensora dos interesses dos trabalhadores rurais eurbanos.

Em 1928, Jomo Kenyatta assumiu a secretaria geral desta entidade.Ele promoveu uma revolução cultural, estabeleceu novas formas desolidariedade e de lealdade. Kenyatta, nascido em 20 de outubro de 1894,no atual Quênia, com o nome de, Kamau wa Ngengi, estudou em umaescola missioneira escocesa e foi um dos fundadores da Federação Pan-africana. Como líder dos kikuyus, foi preso, em 1952, sob a acusação deliderar os mau-mau. Em 1963, tornou-se primeiro-ministro e, em 1964, foinomeado presidente do novo Estado independente com o título honoráriode Mzee (velho senhor).

Os kikuyus são uma das várias etnias que habitam o país, localizam-seentre o lago Vitória e o Oceano Índico. Em 1948, possuíam aproximadamenteum milhão de pessoas, que representavam 19,5% da população. Com achegada dos ingleses, os nativos foram expulsos das melhores terras, alémde terem de pagar pesados impostos em dinheiro, foram-lhes impostos oscultivos obrigatórios para integrar os “indígenas” na economia monetária.Tal política de opressão fez eclodir o movimento denominado mau-mau, nesta colônia de povoamento que, em 1950, possuía 60.000 europeusque controlavam 43.000km2, sendo 34.000km2 de terras aráveis,

20 HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita a história contemporânea. SeloNegro, São Paulo, 2005. p. 489

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proporcionando, pois, a monopolização do território mais fértil que ficounas mãos de 1% da população. Quanto aos negros, esses foram confinadosem reservas, de solo esgotado.21

Neste contexto, surgiu entre os kikuyus, a mais forte resistênciacontra o colonialismo implantado pela Grã-Bretanha, no Quênia, visto tersido esse povo um dos mais atingidos pela expropriação de terras. Aliderança do movimento foi atribuída a Kenyatta. Os mau-mau adotarama sabotagem, os assassinatos e o amedrontamento, como sua tática deluta. Eram uma espécie de sociedade secreta e utilizavam, entre seusmembros, desde práticas religiosas animistas até juramentos secretos.

Se a reação foi forte, a repressão não tardou. Kenyata assim comooutros líderes foram presos. O número de cativos beirou aos 100.000. Osmortos “rebeldes” chegaram a 7.811 vítimas, enquanto, do lado colonial,foram executados apenas 68 europeus. Os africanos vitimados pelos mau-mau chegaram a 470. Como se vê, morreram mais africanos não mau-maudo que europeus. Kenyata foi preso e condenado em um julgamento quedurou cinco meses, sendo condenado a sete anos de trabalhos forçados.Mais adiante, foi mandado para o exílio em Lodwar, no próprio Quênia.Encerrou-se assim o movimento libertário, que, mais tarde, fez de seuprovável líder o presidente de seu país, agora independente (1964).

A procura de uma Colônia

Impossível falarmos do colonialismo na África sem nos referirmosa uma pessoa em especial: Leopoldo II. É crível que nenhum outrorepresentante de Estado tenha se ocupado e feito tantos esforços paraconseguir uma colônia para si, como ele que, mesmo antes de ocupar otrono, já estava atrás de uma possessão.

“Quando pensava no trono que seria seu, irritava-se abertamente.‘Petit pays, petis gens’ (país pequeno, gente pequena), chegou a dizer certavez da Bélgica. O país, menos da metade do tamanho da Virgínia Ocidental[pouco maior que o estado de Alagoas], ficava entre a grandiosa França deNapoleão III e o cada vez mais poderoso Império Alemão. O jovem herdeiroestava aborrecido e impaciente. O país que receberia de herança erapequeno demais para ele.

Voltou então as atenções para o exterior. Antes mesmo decompletar vinte anos, Leopoldo, de caneta e papel namão, visitou os Bálcãs, Constantinopla, o Egeu e o Egito,viajando em grande estilo em navios de guerra britânicose turcos, e, ao voltar, fez discursos entediantes sobre opapel que a Bélgica poderia ter no comércio mundial. Emtodos os lugares por onde passava, buscava oportunidades

21 KI-ZERBO, Joseph. História da África Negra. II. Edição revisada. 3 ed. Publicações Europa-América. LDA. Portugal, 2002. p. 247.

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imperiais. Conseguiu do quediva do Egito a promessa defundarem juntos uma companhia de navegação ligandoAlexandria a Antuérpia. Tentou comprar alguns lagos nodelta do Nilo, para poder drená-los e reivindicar as terrascomo colônia sua. Escreveu: ‘É possível comprar umpequeno reino na Abissínia por 30 mil francos. “[...] Se, emvez de falar tanto sobre neutralidade, nosso parlamentocuidasse do comércio, a Bélgica poderia se tornar um dospaíses mais ricos do mundo”.22

O futuro jovem monarca já deslumbrava a importância que teriamas colônias para os países que, por ventura, delas se apoderassem. Comessa visão, após assumir o trono, ele dedicou-se a conseguir uma para si.Visto não ser apoiado em seu pleito pelo parlamento de seu país. Obstinado,lançou-se a estudos sobre este tipo de empreendimento: gastos, lucros eprincipalmente como consegui-lo.

“E onde encontra - lá? Durante bem uns dez anos, Leopoldo revirouo mundo. Em carta a um assistente escreveu:

Estou especialmente interessado na província Argentina de EntreRios e na pequena ilha de Martin Garcia na confluência do Uruguai com oParaná de quem é a ilha? Seria possível comprá-la, estabelecer ali umporto livre, sob a proteção moral do Rei dos Belgas? [...] Nada mais fácil doque tornar proprietário de terras em estados argentinos três ou quatrovezes maiores que a Bélgica.

Leopoldo investiu na companhia do canal de Suez. Pediu a umassistente que tentasse adquirir Fiji porque não convinha ‘deixar umapresa tão bela escapar’. Andou vendo ferrovias no Brasil e pensou emarrendar o território da Ilha de Formosa.”23

Leopoldo II nasceu em 9 de abril de 1835, com o nome de LeopoldoLuís Felipe Maria Vitar. Filho do rei Leopoldo I da Bélgica e primo irmão darainha Vitória do Reino Unido. Governou a Bélgica de 1865 até a sua morte,em 1905, sendo sucedido por Alberto I.

Como rei dos belgas, não mediu esforços no sentido de conseguiruma possessão para governar, para o que não poupou esforços financeiros,utilizando sua própria fortuna, o que o levou a fazer vários empréstimos,tanto junto a banqueiros, como também ao parlamento belga, que lheforneceu a quantia equivalente a 125 milhões de dólares, em moeda atual.Em troca, o soberano deixaria para o país em seu testamento a colôniaadquirida.

Até conseguir possuir sua própria colônia, Leopoldo precisou usarde toda sua astúcia e de métodos legais ou não, para se colocar na condiçãoprivilegiada, que lhe deu prestígio e credibilidade de que desfrutou poralgum tempo. Chegou a ser aplaudido, em pé, pelos integrantes doCongresso de Berlim, mesmo não estando presente no encontro que definiu

22 Hochschild, Adan. O fantasma do Rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmona África colonial. Tradução Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 46.23 Ibidem p. 48

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os rumos da África.Para chegar a tanto, o monarca belga colocou sobre si uma capa de

cordeiro para, como lobo, abocanhar a melhor fatia do bolo africano – oCongo. Sabendo das disputas pela região entre as grandes potências,Leopoldo entrou na briga, não como mais um membro para disputar estasterras, mas sim para “praticar ações filantrópicas”.

Com esse “objetivo”, segundo seu estratagema, patrocinou, em 1876,uma Conferência Internacional de Geografia, na Bélgica.

Em setembro de 1876, na linha da ideologia humanitária, omecenas reuniu em seu palácio de Bruxelas umaconferência internacional de Geografia. O objetivo era‘abrir à civilização a única parte de nosso globo em queela não havia ainda penetrado... conferenciar para acertaro passo, combinar os esforços, tirar partido de todos osrecursos, e evitar a duplicação de trabalhos. 24

Desta Conferência, surgiu, em 14 de setembro de 1876, com sede emBruxelas, a Associação Internacional Africana (A.I.A.) que conferiu aLeopoldo sua presidência. Esta serviu de fachada para o Imperadorlegitimar suas conquistas no Congo, principalmente através de Stanley,que passou a fazer parte da folha de pagamentos de sua majestade. Asconquistas receberam o nome de Estados Livres do Congo, que passarama ser governados teoricamente não por Leopoldo, mas pela associação,por ele coordenada.

A agremiação era, na verdade, um empreendimento econômico comfachada filantrópica, cujo objetivo, de fato, era a exploração econômica enão havia ninguém melhor que Stanley para realizar a missão. HenryMorton Staley (1841-1904) foi um jornalista anglo-americano que se tornouum dos mais destacados exploradores de sua época. Autor de uma biografiacontroversa ficou conhecido por suas ações violentas e inescrupulosas noCongo. Segundo a Sociedade de Proteção dos Aborígenes e a SociedadeAnti-escravocrata, o explorador matava os negros como se eles fossemmacacos.

Segundo Adan Hochschild, o rei Belga conseguiu, através daAssociação Internacional Africana, o reconhecimento filantrópico parasuas ações, a ponto de suas ações serem consideradas pelo Visconde deLesseps “o maior trabalho humanitário da época”, porém seus verdadeirosinteresses eram outros, as riquezas da África: dentre as quais o marfim e aextração da borracha.

Para tanto, os colonizadores, que tinham como missão promover aproteção às nações nativas, não hesitaram em introduzir o trabalhoescravo, as torturas e as mutilações. Sobre a barbárie no Congo de Leopoldo,descreve Voltaire Schilling:

24 Brunschwing, Henri. A partilha da África negra. São Paulo. Editora Perspectiva, 1974. p. 30

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Era comum, por divertimento, os homens brancos queandavam nos vapores pelo rio acima, atirarem contra asaldeias ribeirinhas, matando ou afugentando aspopulações. Rivalizaram-se nas atrocidades dois monstros:os oficiais Leon Rom e Guillaume Van Kerckhoven, quedistribuía prêmios a quem lhe trouxesse cabeças humanasdurante uma operação militar qualquer, “para que eles sesentissem estimulados em fazer proezas em face doinimigo”.25

Os lucros encobertos pelas ações filantrópicas no Congo eram pordemais satisfatórios. Schilling, citando o também historiador JulesMarchal, afirma que o comércio congolês teria rendido cerca de “U$ 1,1bilhão de dólares aos cofres do monarca”. Como pode ser visto Leopoldo“tinha razão” em lutar tanto pelo Congo. O “bolo” africano estava sendosaboreado, não importando como, o resultado estava excelente.

Todavia a falsa ação humanitária do rei Belga, talvez, o único homemdo mundo a possuir sozinho uma colônia, começou a ser desmascarado e,por ironia, por um afro-descendente: Washington Willians. Ele denuncioua situação do Congo, através de um documento denominado “uma cartaaberta a sua serena majestade, Leopoldo II, rei dos Belgas e soberano doEstado Independente do Congo, escrita pelo coronel Geo W. Willians, dosEstados Unidos da América”.

Willians nasceu na Pensilvânia, em 1849, lutou na guerra de Secessãoao lado da União na 41ª batalhão de cor. Depois que deixou o exército,passou por diversas funções, desde teólogo até dono de jornal. Comoescritor, publicou “História da raça negra na América de 1619 a 1880”.Segundo W. E. B. Du Bois, ele se constitui no maior historiador da raçanegra.

George Willians denunciou ao mundo os métodos usados porLeopoldo, tanto para conseguir sua colônia – Congo – como para mantê-la. Acusou Leopoldo e Stanley de usarem truques para enganar osafricanos. Em seu conceito, o explorador era um tirano e não um herói.Mencionou as destruições feitas pelos brancos, além dos assassinatos poreles realizados. Denunciou as atrocidades cometidas pelos europeus.

Oficiais brancos estavam matando aldeões, às vezes parapegar suas mulheres, às vezes para forças os sobreviventesa trabalhar em regime escravo, às vezes por esporte. ‘Doisoficiais do exército Belga viram do convés do barco, umnativo numa canoa, a uma certa distância [...] Os oficiaisfizeram uma aposta, no valor de cinco libras, de quepoderiam atingi-lo com seus fuzis. Três tiros foramdisparados e o nativo caiu morto, com uma bala na cabeça’26

25 SCHILING, Voltaire. http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index.htm. Acesso em 15 de agosto,2008.26 HOCHSCHILD, Adam. O fantasma do rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmona África colonial; tradução Beth Vieira – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p 121.

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Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 77-98, jul./dez. 2008 97 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>

O negro George Willians mostrou ao mundo a realidade filantrópicado regime colonialistas do rei Belga. Caía a máscara de Leopoldo. Esteenfrentou uma série de protestos públicos, assim como pressão daintelectualidade mundial, o que faz com que o “Benfeitor Belga”, nãoresistindo mais ao assédio, vendesse sua possessão ao país que ele própriogovernava, pois as concessões dos Estados Livres do Congo pertenciam àsentidades privadas das quais, Leopoldo era dono.

A colônia africana, que fora alvo de tanta disputa entre os paísesimperialista e ficara nas mãos de Leopoldo, passou então para a Bélgica. Orei vendeu a colônia pelo valor de 45,5 milhões de francos e mais 5 milhõesde títulos que lhe foram dados como “um marco do agradecimento porseus sacrifícios feitos pelo Congo”. O rei saiu em grande estilo. Todavia,mesmo após a morte de Leopoldo, a exploração e os maus tratos persistiramno Congo Belga, assim como em toda a África.

Somente entre 1911 e 1918, na região de Katanga, morreram, nasminas de cobre e na fundição, mais de 5 mil trabalhadores. O segundogrande conflito mundial também contribuiu para o agravamento dascondições de trabalho dos negros congolenses, o trabalho forçado foiaumentado para 120 dias ao ano. O subsolo africano tornou-se preciosopara os aliados. Segundo Adam Hochschild, mais de 80% do urânioutilizado nas bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki vieram do Congo.Este país também foi importante no fornecimento de borracha, para aconfecção de pneus de caminhões, jipes e aviões militares.27

Leopoldo não pode ser crucificado, pois tanto na África francesa,inglesa, alemã, portuguesa... a exploração foi a mesma. O trabalhocompulsório as chacinas, a exploração, os castigos físicos não foramexclusividade dos belgas, mas integraram o sistema hegemônico que impôso colonialismo no continente negro, o qual trouxe consigo a disputaimperialista em várias partes do mundo. Portanto, se quisermos entender“As Áfricas” de hoje, temos que retomar o período colonial e a conseqüentedescolonização do continente, vítima do imperialismo ocidental.

Recebido em agosto de 2008.Aprovado em outubro de 2008.

Title: The Division of Africa and the African Resistance

AbstractAfrica in the nineteenth century was a victim of the greed of European countries, whichdivided the territory in their imperialist disputes. To get colonies these countries neithermeasured efforts nor spared native peoples. By defending their territories and trying toresist the invasion these peoples became the real victims of massacres, as for example,the Mau-Mau movement. In the search for new colonies everything was allowed. TheBelgian king, Leopold II used legal and illegal methods in order to conquer the lands ofCongo and achieve their goals - extract all possible wealth from the African soil.

27 Ibidem, p. 289.

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Ciênc. let., Porto Alegre, n. 44, p. 77-98, jul./dez. 2008 98 Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras>

Consequently, these capitalist countries committed all possible excesses, from compulsorywork to physical extermination. Imperialism left the massacre and annihilation amongpeoples of Africa as a consequence.

Key words: Africa. Imperialism. Congo. Colonialism and resistance.

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