A “Pena Temporal Do Pecado” –

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    A pena temporal do pecado uma expresso que, se bem entendida, projeta luz

    animadora sobre a busca do amor perfeito

    Resumo

    A inteno deste artigo apresentar uma ideia clara do que a pena temporal do pecado, da qual se fala na explicao dos efeitos do sacramento da Penitncia ou das indulgncias. Partindo da doutrina do magistrio da Igreja, o autor reflete sobre os efeitos ou consequncias do pecado no pecador. Considerando que, no Batismo, todas as penas do pecado so perdoadas, per-manecendo, porm, certas consequncias do pecado (diversos sofrimentos, doena, morte, propenso ao mal), se deve concluir que h consequncias do pecado que no so propriamente pe-nas do pecado, embora, s vezes, sejam chamadas tambm com o nome de penas.

    Examinando a converso dos cristos (os batizados), com a possibilidade de uma converso incompleta, o autor chega a re-conhecer a verdadeira identidade da pena temporal, distinta da culpa do pecado venial e ligada com esta: a pena temporal do pecado a privao temporal daquela perfeio da comunho com Deus que a pessoa poderia ter e de fato teria se no tivesse pecado ou se, tendo pecado, sua converso fosse completa. Esta perfeio da comunho com Deus , de fato, impossibilitada por um apego desordenado a um bem criado, pois este apego impede os atos de amor perfeito dos quais a pessoa seria capaz se no tivesse esse apego. Depois da morte, essa perfeita comunho com Deus a comunho pela viso beatfica.

    importante distinguir entre esta pena temporal e outras consequncias do pecado (os diversos sofrimentos), que no tm o significado de pena-castigo, mas servem de meio para eliminar esta pena, enquanto conferem ao amor uma determinada quali-dade (amor penitente). Quando, neste caso, se usa a palavra pena, fala-se de penas satisfatrias e purificatrias, que no se devem confundir com as penas temporais do pecado propriamente ditas. Tais penas podem e devem at mesmo ser

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    aceitas como graa, enquanto, pelo contrrio, se deve fazer tudo para se livrar da pena temporal do pecado.

    Somente com a clara distino entre a pena temporal e as outras consequncias do pecado pode-se reconhecer o papel positivo que o sofrimento pode exercer na purificao do co-rao e no desenvolvimento do amor at ao pice, manifestado no amor de Jesus em Sua paixo redentora, bem como se pode ver mais claramente em que Jesus Se tornou solidrio com os pecadores, e, enfim, na busca da purificao plena do corao, se evita o desnimo que surge espontaneamente quando, mais ou menos conscientemente, se identifica a pena temporal, p. ex., com a inclinao a determinados pecados, causada por pecados pessoais passados. Concluso: o corao puro no um ideal inatingvel, embora deva sempre de novo ser conquistado atravs da converso diria pelo amor fervoroso.

    Summary

    The intention of this article is to present a clear idea of the concept temporal punishment due to sin, which is spoken of in the explanation of the effects of the sacrament of Penance or of indulgencies. Taking as its point of departure the teaching of the Churchs magisterium, it reflects on the effects and consequences of sin on the sinner. Considering that in baptism all the punish-ments due to sin are forgiven, while there remains certain conse-quences that come from sin (diverse sufferings, sickness, death, tendency to evil), one should conclude that there are consequences of sin that are not properly punishments of sin, although, at times, they are called also by the name punishments.

    Examining the conversion of Christians (the baptized), with the possibility of an incomplete conversion, the author comes to recognize the true identity of temporal punishment, distinct from the guilt of venial sin and linked with this: the temporal punishment due to sin is a temporal privation of that perfection of communion with God which a person could have and in fact would have if he had not sinned or if, having sinned, his conversion was complete. This perfection of communion with God is, in fact, made impossible by a disordered attachment to a created good, since this attachment impedes the acts of perfect love of which the person would be capable if he did not have this attachment. After

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    death, this perfection of communion with God is the communion of the beatific vision.

    It is important to distinguish between this temporal punishment and other consequences of sin (the different sufferings), which do not have the sense of punishment, but which serve as a means to eliminate this punishment, insofar as they help the sinner to achieve determined quality of love (a penitent love). When, in this case, one uses the word punishment, one is speaking of the purificatory and satisfactory punishments, which ought not to be confused with temporal punishments due to sin properly speak-ing. Such punishments can and must be accepted as grace, while on the other hand we ought to do everything we can to be free from the punishment due to sin.

    Only with this clear distinction between temporal punishment and the other consequences of sin can we recognize the positive role that suffering can exercise in the purification of the heart and in the development of love to its height, manifesting the love of the heart of Jesus in His redemptive passion. One can also see with greater clarity why Jesus became one with sinners. Also, in the search for purification of heart, one must avoid discourage-ment which arises spontaneously when, more or less consciously, one identifies temporal punishment with the inclination towards particular sins, caused by personal past sins. Conclusion: purity of heart is not an unattainable ideal, although it ought to again and again be conquered through a daily conversion through fervent love.

    * * *

    Ao falar do perdo dos pecados e dos efeitos do sacramento da Penitn-cia e, particularmente, ao explicar o que so as indulgncias, se costuma ou se obrigado a mencionar a pena temporal ou as penas temporais do pecado. Mas quem explica o que tal pena temporal realmente? E como explicar se no se tem uma ideia clara sobre isso? De fato, existe certa confuso. Ao menos uma das razes o uso da mesma palavra pena em sentidos diferentes, sem se dar conta de que se est falando de realidades diferentes. A inteno deste artigo , portanto, apresentar uma ideia clara

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    do que a pena temporal. Deste modo, pode-se tambm dar um ou outro esclarecimento para a compreenso do caminho da vida espiritual como busca constante de ter um corao puro, isto , um corao que, na ordem certa, ama com a totalidade da sua capacidade de amar.

    I. A expresso pena temporal no magistrio da Igreja

    Na linguagem da teologia, do ensino catequtico e do magistrio da Igreja encontra-se a expresso pena temporal quando se fala das conse-quncias do pecado. Para apresentar brevemente a doutrina do magistrio, podemos ver o que diz a respeito o Catecismo da Igreja Catlica.

    Com relao ao incio da vida crist pela recepo do Batismo, o Catecismo afirma, de acordo com a doutrina da Sagrada Escritura e da Tradio: Pelo Batismo, todos os pecados so perdoados: o pecado ori-ginal e todos os pecados pessoais, bem como todas as penas do pecado. E continua, explicando: Com efeito, naqueles que foram regenerados no resta nada que os impea de entrar no Reino de Deus: nem o pecado de Ado, nem o pecado pessoal, nem as sequelas do pecado, das quais a mais grave a separao de Deus.1 No Batismo, de fato, o perdo que recebemos to pleno e to completo que no nos resta absolutamente nada a apagar, seja do pecado original, seja dos pecados cometidos por nossa prpria vontade, nem nenhuma pena a sofrer para expi-los (Cat. 978).

    No acontece o mesmo na recepo do outro sacramento para o perdo dos pecados, que o sacramento da Penitncia. Neste caso, trata-se do perdo dos pecados dos batizados. Segundo o Compndio do Catecismo da Igreja Catlica, entre os efeitos da recepo deste sacramento se en-contram: a remisso da pena eterna merecida por causa dos pecados mortais e, ao menos em parte, das penas temporais que so consequncia do pecado2.

    Igualmente, ao falar do pecado venial, o Catecismo diz que este merece penas temporais (Cat. 1863). O Compndio do Catecismo fala

    1 Catecismo da Igreja Catlica (abreviado: Cat.), n. 1263. O itlico no original. A sequela mais grave a pena principal do Inferno: A pena principal do Inferno consiste na separao eterna de Deus, o nico em quem o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e s quais aspira (Cat. 1035).

    2 Catecismo da Igreja Catlica. Compndio, 310 (cf. Cat. 1496, e a doutrina do Conclio de Trento: DS 1580).

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    de penas purificatrias: merece penas purificatrias temporais (Comp. 396).3

    Finalmente, o conceito pena temporal faz parte da definio das indulgncias: Pelas indulgncias, os fiis podem obter para si mesmos e tambm para as almas do Purgatrio a remisso das penas temporais, consequncias dos pecados (Cat. 1498). Ao explicar a doutrina das in-dulgncias, o Catecismo afirma: O perdo do pecado e a restaurao da comunho com Deus implicam a remisso das penas eternas do pecado. Mas permanecem as penas temporais do pecado (Cat. 1473). Quando, porm, logo a seguir, usa de novo a expresso penas temporais, pa-rece alargar o significado de tal expresso: Suportando pacientemente os sofrimentos e as provas de todo tipo e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte, o cristo deve esforar-se para aceitar, como uma graa, essas penas temporais do pecado (Cat. 1473).

    Em todo caso, a doutrina de tais penas (eterna e temporal) no ob-soleta. O Papa Joo Paulo II afirmou a este respeito:

    Alguns ... tendem a substituir posies exageradas do passado por outros exageros; assim, da atitude de ver o pecado em toda a parte, passa-se a no o vislumbrar em lado nenhum; da demasiada acentuao do temor das penas eternas, pregao dum amor de Deus, que excluiria toda e qualquer pena merecida pelo pecado.4

    Para a compreenso de tais penas, sobretudo da pena temporal, preciso refletir sobre os efeitos do pecado no pecador.

    II. Os efeitos ou consequncias do pecado no pecador

    Em conformidade com a Sagrada Escritura e a Tradio, o Catecismo da Igreja Catlica indica os efeitos do pecado de um cristo, dizendo:

    3 Cf. tambm Joo Paulo II, Reconciliatio et pnitentia, 17: Considerando o pe-cado, ademais, sob o aspecto da pena que implica, Santo Toms com outros doutores, chama mortal ao pecado que, se no for remido, faz contrair uma pena eterna; venial, ao pecado que merece uma simples pena temporal (quer dizer, parcial e expivel na terra ou no Purgatrio).

    4 Ibid., 18.

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    Quem peca fere a honra de Deus e seu amor, sua prpria dignidade de homem chamado a ser filho de Deus e a sade espiritual da Igreja, da qual cada cristo uma pedra viva (Cat. 14875).

    Nesta reflexo, nos restringimos considerao das consequncias do pecado para o prprio pecador, especialmente das penas devidas ao pecado. De fato, o pecado fere e enfraquece o prprio pecador, como tambm suas relaes com Deus e com o prximo (Cat. 1459).

    Para entendermos isso, vejamos o que acontece quando algum peca (1) e quais as consequncias do ato pecaminoso na pessoa que o comete (2).

    1. O ato de pecarNs agimos ou deixamos de agir porque queremos um bem. A vontade

    , por definio, a faculdade de aderir a um bem. Ora, o ato pecaminoso (ou a omisso pecaminosa de um ato) consiste em querer, de modo de-sordenado, um determinado bem criado, isto , um bem inferior a Deus. O ato pecaminoso por causa da desordem no ato de querer tal bem. esta desordem que constitui a pecaminosidade. Quem rouba um carro, quer para si o bem que possuir um carro. A desordem est em que o ladro no respeita a propriedade da outra pessoa; ele quer esse bem de um modo injusto. O homem que comete adultrio quer o bem da unio amorosa com uma mulher. A desordem est em querer esta unio com uma mulher que no sua esposa ou que a esposa de outro homem. Em ambos os casos, o que o pecador quer um verdadeiro bem (o carro, a unio amorosa), mas o quer de um modo desordenado; h uma desordem em querer este carro (ou quer-lo sem compr-lo), em querer a unio amorosa com esta mulher.

    A ordem certa querer acima de tudo como fim ltimo o bem por essncia, o bem infinito, que Deus, e querer os bens particulares (os bens que no so Deus, ou seja, a satisfao obtida por tais bens6) de um

    5 Como o Catecismo tambm diz, existem pecados que prejudicam diretamente o prximo. Nestes casos deve-se por dever de justia reparar o dano tanto quanto pos-svel, p. ex. restituindo as coisas roubadas ou restabelecendo a reputao daquele que foi caluniado (cf. Cat. 1459). Tendo-o dito logo de incio, no precisamos repeti-lo sempre de novo durante a exposio do tema.

    6 Falamos de querer. Este querer amar, conforme a definio de amor: Amar querer algo de bom para algum (cf. Cat. 1766). Uma vez que a causa do querer desor-denadamente um bem criado o amor desordenado a si mesmo, este amor de si mesmo

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    modo que no entre em choque com o querer Deus acima de tudo e com todas as foras. Em outras palavras: a ordem certa amar Deus acima de tudo, por Ele mesmo e com todas as foras, e amar as criaturas por Ele e por causa dEle.7

    Ora, pelo pecado, essa ordem destruda ou perturbada, conforme a gravidade diversa do pecado. Distingue-se, consequentemente, entre pecado grave ou mortal e pecado venial. O pecado grave o pecado no sentido estrito da palavra.8 Quem peca deste modo, quer um bem criado de um modo desordenado, preferindo este bem a Deus; prefere a posse deste bem posse de Deus, isto , comunho com Deus. o no a Deus que est implicado no sim desordenado a um bem inferior a Deus. Voltando-se deste modo para o bem criado, o homem volta as costas a Deus; o primeiro implica necessariamente o segundo. E o segundo, isto , o no a Deus, o aspecto determinante do pecado.

    O outro tipo de pecado , como j mencionamos, o assim chamado pecado venial. Segundo a doutrina comum da Igreja, comete-se um pecado venial quando no se observa, em matria leve, a medida prescrita pela lei moral, ou ento quando se desobedece lei moral em matria grave, mas sem pleno conhecimento ou sem pleno consentimento (Cat. 1862). Ao querer desordenadamente o bem criado, mantm-se, neste caso, o querer Deus acima de tudo.9 A desordem no tal que o querer aquele bem criado signifique preferi-lo a Deus. O pecador continua a querer Deus acima de tudo; mantm-se a virtude do amor, isto , a disposio habitual e firme de amar Deus, mas o ato que a pessoa realiza no um

    a causa de todo pecado (cf. a anlise de So Toms de Aquino: Summa Theologiae I-II, q. 77, a. 4; q. 75, a. 1).

    7 Cf. Cat. 2093. Na verso portuguesa (edio brasileira) precisa riscar as palavras repetidas acima de, que deturpam o sentido da frase, como consta pela comparao com o original e outras tradues.

    8 Segundo So Toms (cf. S.Th. I-II, q. 88, a. 1, ad 1), o pecado grave ou mortal e o pecado venial no so duas espcies do mesmo gnero, mas se trata de dois termos anlogos. A noo de pecado se aplica perfeitamente apenas ao pecado grave. Este a realidade qual se aplica este conceito em primeiro lugar e perfeitamente. O pecado venial, ao invs, realiza o conceito pecado apenas de uma maneira imperfeita e em ordem ao pecado grave.

    9 So Toms (S.Th. II-II, q. 24, a. 10) d como ilustrao a atitude do diabtico que se comporta de um modo desordenado quanto observncia fiel da sua dieta (de vez em quando comendo o que no devia), embora ame muito sua sade.

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    ato de amor a Deus10. O ato no contra o amor de Deus como tal no o exclui, no , portanto, incompatvel com o querer Deus acima de tudo , mas contra o amor de Deus como Ele deve ser amado (e como o prximo deve ser amado por amor de Deus), e precisamente, com todo o corao, com todas as foras, at as ltimas consequncias, no, por-tanto, apenas acima de tudo. O pecado venial ope-se, portanto, no ao amor como tal, mas ao fervor ou ardor do amor.11 O Catecismo da Igreja Catlica o exprime com estas palavras: O pecado venial deixa subsistir a caridade, embora a ofenda e fira (Cat. 1855). O pecado venial enfra-quece a caridade; traduz12 uma afeio desordenada pelos bens criados (Cat. 1863).

    E quais so ento os efeitos ou as consequncias do pecado na pessoa que peca?

    2. As consequncias do pecado na pessoa do pecadorO ato de pecar passageiro, mas tem efeitos que permanecem. Referi-

    mo-nos a efeitos que todo e qualquer pecado tem, ainda que seja um pe-cado totalmente interior e sem perceptvel repercusso em outras pessoas ou em coisas. So efeitos que permanecem at que sejam eliminados por outra ao (a converso por parte do pecador, o perdo por parte de Deus). Tradicionalmente, tais efeitos, ou seja, exatamente, as consequncias do pecado no pecador, so chamados culpa e pena.

    a) A culpa

    Consideramos primeiro a culpa que consequncia do pecado grave ou mortal. Esta culpa tambm chamada metaforicamente mancha da alma, enquanto uma privao da presena da luz divina na alma, isto , do amor, da graa santificante, participao da vida divina, que luz.13 Esta privao da luz (as trevas) consiste na atitude da vontade des-

    10 So Toms o exprime dizendo que os pecados veniais no contradizem o habito (a virtude), mas o ato de amor (non contrariantur habitui, sed actui; S.Th. II-II, q. 24, a. 8, ad 2).

    11 Assim o explica, p. ex., So Toms; cf. S.Th. II-II, q. 54, a. 3, ad 1; III, q. 87, a, 1.

    12 A palavra latina exprimit, exprime.13 Cf. Jo 1,4; 1 Jo 1,5-7; igualmente Is 59,2: so vossos pecados que colocaram uma

    barreira entre vs e vosso Deus. Vossas faltas so o motivo pelo qual a Face se oculta para no vos ouvir.

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    tituda da adeso de amor a Deus, como resultado do ato pecaminoso14 (com seu sim desordenado ao bem criado e seu no a Deus). Com efeito, o pecado grave um ato contrrio ao estado de adeso a Deus pelo amor15, negao concreta, existencial de Deus como fim ltimo. A culpa consiste, portanto, na desordem na vontade, a qual resulta do ato pecaminoso, uma desordem que permanece se o pecador no fizer um ato da vontade contrrio quele com o qual pecou (converso; cf. a parbola do filho prdigo: afastar-se do pai, voltar para o pai; Lc 15,18-20). Em outras palavras ainda: o mal da culpa consiste na desordem da vontade, e precisamente na privao da adeso de amor a Deus (o no em vez do sim a Deus), bem como no apego desordenado ao bem criado (no fundo, o sim desordenado a si mesmo).

    E a culpa do pecado venial? Para reconhec-la, preciso considerar que o pecado venial no um ato contrrio ao estado de adeso a Deus pelo amor, mas certa falta do amor a Deus em um determinado ato concreto: a pessoa que comete um pecado venial traz em si a virtude16 do amor a Deus acima de tudo, mas inconsequente ou incoerente: quem ama, no deveria agir assim; agindo assim, a pessoa no pratica neste momento o amor a Deus (e ao prximo17), mas deixa faltar este amor, ou melhor, no segue plenamente a lgica do amor; com este ato no ama a Deus. Deste ato ato de adeso desordenada a um bem criado resulta, por conseguinte, uma desordem na vontade. Esta est destituda da adeso plena a Deus, que se realiza pelo ato de amor perfeito. Expliquemo-lo. Existe na vontade certo apego desordenado a um bem inferior a Deus, e este apego impede a pessoa de amar a Deus daquele modo como de-veria amar nas condies prprias da sua vida nesta terra (como so os diversos estados de vida e vocaes) e neste momento atual da sua vida (a etapa da sua caminhada espiritual), estando ainda a caminho da comunho perfeita com Deus na vida eterna.

    14 Como os atos pecaminosos podem ser diferentes (os diversos tipos de pecado), tambm naquela privao (a mancha) h diversidade (cf. S.Th. I-II, q. 86, a. 1, ad 3).

    15 E no existe verdadeiro amor a Deus, se no amado acima de tudo.16 A virtude do amor a disposio estvel, firme (habitual) de fazer o bem, no

    nosso caso, de amar Deus e, por amor de Deus, o prximo.17 Em todas estas consideraes devemos lembrar-nos da unidade da virtude do amor:

    uma s virtude, porque o objeto deste amor um s, enquanto se ama Deus por Ele mesmo e o prximo por amor de Deus.

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    Como cada um deve amar a Deus na vida atual? Conforme o manda-mento do amor (cf. Dt 6,5; Mt 22,37; Lc 10,27), o homem deve amar a Deus com todo o corao, com toda a alma, com toda a mente e com todas as foras. Isto significa que deve amar a Deus tanto quanto pode18, em conformidade, portanto, com sua capacidade atual de amar. Ora, por causa daquele apego desordenado, a vontade no est na disposio de amar a Deus com todo o ardor possvel do amor19, ou seja, tanto quanto seria possvel sem esse apego desordenado. Trata-se de um autntico impedimento (causado pelo pecado venial) de amar como, no momento atual, a pessoa deveria amar e, de fato, poderia, se ela mesma no tivesse causado este impedimento.20

    A mancha causada pelo pecado venial no , portanto, a privao da luz divina (amor divino), mas uma privao quanto plenitude desta luz: no treva, mas certa penumbra, isto , a falta da luz plena. Ou, pensando no amor como fogo, podemos dizer: a mancha a falta do ardor do amor. Como diz o Catecismo, o amor ferido, enfraquecido. Esta situao a culpa devida ao pecado venial.

    Podemos usar uma comparao de que se serviu So Toms de Aquino: a culpa como consequncia do pecado grave como a situao do olho que est destitudo totalmente da fora visual (s por um milagre poderia ser restituda), enquanto a culpa do pecado venial como a situao do olho que em si conserva a fora visual, mas por algum impedimento no v bem, no pode usar bem ou plenamente a sua capacidade de viso.21

    18 Cf. S.Th. II-II, q. 27, a. 5: Deus deve ser amado de modo total (totaliter), porque o homem deve amar Deus tanto quanto pode (ex toto posse suo) e ordenar ao amor de Deus tudo que possui. Este o amor perfeito (cf. S.Th. II-IIae q. 24 a. 8).

    19 So Toms diz que pelo pecado venial, o amor do homem impedido de se dirigir prontamente a Deus (retardatur affectus hominis ne prompte in Deum feratur); S.Th. III, q. 87, a. 1. A culpa esta indisposio da vontade, quer dizer: falta a disposio de amar Deus com fervor, am-lO, portanto, assim como deveria ser amado.

    20 So Toms fala de um impedimento do exerccio da virtude teologal do amor, isto , do ato de amor, mas que no um impedimento total (cf. S.Th. II-II, q. 44, a. 4, ad 2: impedit caritatis usum; e S.Th. III, q. 79, a. 4, ad 3: peccata venialia ... non possunt totaliter impedire actum caritatis).

    21 Cf. S.Th. I-II, q. 87, a. 3. Este exemplo indica que, segundo So Toms, no se trata de uma diminuio da virtude teologal do amor, como tal, mas da perfeio dos atos desta virtude (cf. S.Th. II-II, q. 24. a. 10; ibid. ad 3: Unde per impedimentum intensionis motus liberi arbitrii non diminuitur caritas Logo, um impedimento intensidade do movimento do livre arbtrio no diminui a caridade).

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    Portanto, o mal da culpa do pecado venial consiste numa desordem da vontade, efeito do ato pecaminoso. E esta desordem consiste numa adeso desordenada a um bem criado, que implica a impossibilidade da adeso plena ou total a Deus pelo ato de amor; o mal da privao desta adeso plena.

    b) A pena

    Alm da culpa, h tambm aquela consequncia do pecado que a pena, quer dizer: um efeito do pecado que o pecador se torna merece-dor de castigo.22 Falando de modo geral, castigo ou pena a privao de um bem que a pessoa poderia possuir ou ao qual teria direito23 se no tivesse cometido uma ao m. Esta privao imposta, quer dizer, no evitvel, existe sem que a pessoa a tenha assumido voluntariamente.24

    As penas do pecado so divididas em pena eterna e pena temporal. No existe confuso ou falta de compreenso quanto pena eterna.

    O Catecismo da Igreja Catlica diz com clareza: O pecado grave priva-nos da comunho com Deus e, consequentemente, nos torna incapazes da vida eterna; esta privao se chama pena eterna do pecado (Cat. 1472). A pena eterna , portanto, a excluso eterna da comunho com Deus25. Se a culpa no for perdoada isto , se o pecador no se converter, arrependendo-se e sendo perdoado por Deus , se, portanto, no comear a amar de novo a Deus, aquela excluso da comunho com Deus continua sempre e, depois da morte, se torna eterna.

    E o que a pena temporal? Parece que quanto a esta pena existe no pouca necessidade de explicao e esclarecimentos. claro que essa pena temporal no a excluso da comunho com Deus. Quer dizer: no se distingue da pena eterna apenas pelo fato de no ser eterna, mas

    22 Na terminologia da teologia escolstica o reatus poenae.23 Um exemplo: pelo estado, certos crimes so punidos com a priso do criminoso.

    Isto significa que ele privado do direito de se mover livremente para onde quiser. 24 A imposio da pena pode consistir simplesmente no fato de que a ao m traz

    consigo a pena como consequncia inevitvel, devido ordem estabelecida.25 A pena principal do inferno consiste na separao eterna de Deus, o nico em

    quem o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e s quais aspira (Cat. 1057). Dizendo pena principal, o Catecismo no exclui outro tipo de pena que esteja unida principal, em conformidade com o ser integral do homem (unidade de alma e corpo).

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    temporria ou temporal. O que, ento, se designa precisamente com esta expresso: pena temporal?

    III. A pena temporal distinta de outras consequncias do pecado, s vezes tambm chamadas de penas

    1. A pena temporal castigo, consequncia de uma ao m

    A acepo de pena na expresso pena eterna clara, como vimos. Trata-se da acepo de castigo como consequncia de uma ao m. Ora, com a expresso pena temporal, infelizmente, no acontece a mesma coisa. Com efeito, quanto a esta expresso, a palavra pena tem sido usada em diversos sentidos, em conformidade com as diversas acepes que ela pode ter. Quando se consulta um bom dicionrio, se pode encontrar vrias acepes:

    sano aplicada como punio ou como reparao por uma ao jul- gada repreensvel; castigo, condenao, penitncia; profundo sofrimento; aflio; sentimento de pena com relao a algum, a si mesmo ou a alguma coisa; compaixo, d26. Ora, a pena temporal de que estamos falando deve ser entendida na

    acepo de castigo. Do contrrio, a linguagem usada na exposio da f seria bastante defeituosa, pois a pena eterna seria, como vimos, verdadeiramente um castigo, enquanto a pena temporal seria outra coisa. Na verdade, porm, tambm a pena temporal tem de ser uma privao de um bem que a pessoa possuiria ou poderia possuir se no tivesse cometido o pecado.

    26 Cf. Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa, verbete pena. Tambm na lngua latina, a palavra poena significa, alm de indenizao dada oir uma falta cometida ou crime, resgate; expiao, castigo, punio; vingana, tambm pena, so-frimento, dor (cf. E. FarIa, Dicionrio Escolar Latino Portugus, Rio de Janeiro 1982, 421).

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    2. A pena temporal uma consequncia da prpria natureza do pecado

    Ao mesmo tempo, porm, preciso esclarecer o seguinte: tanto a pena eterna como a temporal no devem ser concebidas como uma espcie de vingana infligida por Deus do exterior, mas, antes, como uma consequ-ncia da prpria natureza do pecado (Cat. 1472). Como a culpa, assim tambm as duas penas decorrem da prpria essncia do pecado. Portanto, a pena no cada vez que algum peca uma reao de Deus que impe o castigo, porque, do contrrio, o pecador iria ficar impune. Na verdade, o pecador sofre em si mesmo as consequncias do seu pecado, porque o pecado o que (a negao ou destruio da adeso a Deus ou, respectivamente, o impedimento da adeso plena a Deus pelo amor perfeito, como explicado acima), e Deus o que , a saber, o bem infinito, o nico em quem qualquer pessoa criada pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criada e s quais aspira.27

    3. Todas as penas do pecado so perdoadas pelo BatismoPara distinguir a pena temporal de outras realidades, comecemos com a

    doutrina sobre o Batismo, como apresentada pelo Magistrio da Igreja. Este ensina que pelo Batismo so perdoados todos os pecados com todas as penas do pecado (cf. Cat. 1263). O perdo recebido to pleno e to completo que no nos resta absolutamente nada a apagar, seja do pecado original, seja dos pecados cometidos por nossa prpria vontade, nem nenhuma pena a sofrer para expi-los (Cat. 978).

    Tornemos concreta a reflexo: um homem no batizado que cometeu pecados muito graves, p. ex. matou cruelmente muitas pessoas, comea a crer em Cristo, se converte e pede o Batismo. Ora, pelo Batismo, no somente o pecado original, mas tambm todos estes pecados lhe so totalmente perdoados, com todas as penas devidas a eles. Se ele morrer depois de ter sido batizado, nada o impede de entrar logo no Cu; ab-

    27 Esta explicao est longe de apoiar aquela estranha ideia de pensar que Deus, sendo Amor, no pudesse ou no devesse punir as criaturas culpadas. Uma vez que a ordem, da qual decorre como consequncia a pena (eterna ou temporal), foi estabelecida e mantida por Deus, essa consequncia castigo de Deus. Punir os culpados faz parte da justia, e Deus justo, no injusto, tambm neste aspecto da justia. Quando, ento, Ele usa de misericrdia, perdoando, isto no contra a justia, mas vai alm da justia.

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    solutamente nada resta a apagar, nenhuma pena a sofrer.28 Jesus Cristo pagou toda a dvida por ele.

    4. O Batismo manifesta: h consequncias do pecado que no so propriamente penas do pecado

    Outro exemplo pode nos ajudar a dar um passo adiante na nossa re-flexo: um homem viciado em lcool pede o Batismo, arrependendo-se sinceramente dos seus pecados, tambm, portanto, do seu vcio. Ele batizado, com todos os efeitos dos quais falamos: perdo total de culpa e penas (eterna e temporal). Porm, a sua tendncia a beber lcool (em demasia) no ou pelo menos no totalmente eliminada. Esta eliminao no garantida pela recepo do Batismo, no faz parte dos efeitos que o Batismo sempre tem. Ora, esta sua tendncia ao vcio de que se arrependeu, mas que precisa combater eventualmente com forte e constante empenho pessoal , no uma pena que lhe ficou. Certamente no a pena eterna, mas tambm no uma pena temporal, uma vez que pelo Batismo todas as penas do pecado foram perdoadas.

    Aqui se trata, portanto, de uma verdadeira consequncia dos pecados cometidos e, no entanto, no propriamente uma pena do pecado. O mesmo vale para certas consequncias do pecado original. Citemos de novo o Catecismo da Igreja Catlica. Aps ter afirmado que pelo Batismo somos de tal modo purificados que no resta absolutamente nada a apagar, nenhuma pena a cumprir, o Catecismo (n. 978) continua, explicando: Contudo, a graa do Batismo no livra ningum de todas as fraquezas da natureza. Pelo contrrio, ainda temos de combater os movimentos da concupiscncia, que no cessam de arrastar-nos para o mal.29

    Em outro trecho, o Catecismo explica ainda mais detalhadamente de que se trata, falando de consequncias temporais do pecado que per-manecem no batizado:

    No batizado, porm, certas conseqncias temporais do pecado permane-cem, tais como os sofrimentos, a doena, a morte ou as fragilidades inerentes vida, como as fraquezas de carter etc., assim como a propenso ao peca-do, que a Tradio chama de concupiscncia ou, metaforicamente, o in-centivo do pecado (fomes peccati): Deixada para os nossos combates,

    28 Por isso, aos batizados, ainda que tivessem sido os piores pecadores do mundo, no se impe e no se deve impor alguma penitncia por seus pecados cometidos antes do Batismo.

    29 Trata-se de uma citao do Catecismo Romano (1,11,3). O itlico no original.

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    a concupiscncia no capaz de prejudicar aqueles que, no consentindo nela, resistem com coragem pela graa de Cristo. Mais ainda: um atleta no recebe a coroa se no lutou segundo as regras (2Tm 2,5)30.

    Digamo-lo mais uma vez: essas consequncias temporais do pecado no se devem identificar com a pena temporal ou as penas temporais, uma vez que o Batismo elimina todas as penas do pecado (Cat. 1263); no fica nenhuma pena a cumprir para expiar o pecado (cf. Cat. 978). E notemos igualmente que a afirmao no se refere unicamente ao pecado original, mas tambm aos pecados cometidos pelo batizado em sua vida anterior ao Batismo.

    Certamente, trata-se de consequncias do pecado, aquilo que no have-ria se no tivesse acontecido o pecado, o pecado original dos nossos pri-meiros pais ou os pecados pessoais cometidos antes do Batismo. Trata-se do que decorre da prpria natureza do pecado.

    Assim, pelo pecado original foi perdida para toda a humanidade a santidade e justia original31, isto , a maravilhosa harmonia do homem com Deus (comunho com Deus, participao da vida divina), consigo mesmo (harmonia interior, domnio de si mesmo, estando intacto e orde-nado em todo o seu ser), com as outras pessoas humanas (harmonia entre o homem e a mulher, harmonia da sociedade humana) e com toda a cria-o infra-humana.32 Rompendo a aliana com Deus, pecando, rompeu-se tambm toda aquela harmonia garantida pela harmonia com Deus, ou seja, pela participao da vida divina. Agora a natureza humana lesada em suas prprias foras naturais, submetida ignorncia, ao sofrimento

    30 Conc. de Trento: DS 1515.31 Cf. Cat.375: Interpretando de maneira autntica o simbolismo da linguagem bblica

    luz do Novo Testamento e da Tradio, a Igreja ensina que nossos primeiros pais, Ado e Eva, foram constitudos em um estado de santidade e de justia original (Conc. de Trento: DS 1511). Esta graa da santidade original era uma participao da vida divina (cf. LG 2).

    32 Cf. Cat. 376-377: Pela irradiao desta graa, todas as dimenses da vida do homem eram fortalecidas. Enquanto permanecesse na intimidade divina, o homem no devia nem morrer (cf. Gn 2,17; 3,19) nem sofrer (cf. Gn 3,16). A harmonia interior da pessoa humana, a harmonia entre o homem e a mulher (cf. Gn 2,25) e, finalmente, a harmonia entre o primeiro casal e toda a criao constituam o estado denominado justia original. O domnio do mundo que Deus havia outorgado ao homem desde o incio realizava-se antes de tudo no prprio homem como domnio de si mesmo. O homem estava intacto e ordenado em todo o seu ser, porque livre da trplice concupiscncia (cf. 1Jo 2,16) que o submete aos prazeres dos sentidos, cobia dos bens terrestres e auto-afirmao contra os imperativos da razo.

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    e ao imprio da morte, e inclinada ao pecado (Cat. 405). Os pecados pessoais podem enfraquecer ainda mais as foras da natureza humana na pessoa do pecador; particularmente, podem reforar a propenso ao mal (a trplice concupiscncia; cf. 1 Jo 2,16).

    Ora, se o Batismo, apagando o pecado original e todos os pecados pes-soais, toda a culpa e toda a pena devida pelos pecados, deixa permanecer as consequncias do pecado sobre a natureza (especialmente sobre as suas faculdades ou potncias), enfraquecida e inclinada ao mal, para incitar o homem ao combate espiritual33, dando-lhe assim tambm, durante a sua vida terrena, uma maneira de se unir a Cristo em Sua paixo redentora, a qual Seu ato supremo de amor a Deus e aos homens.

    Do que vimos at agora podemos e devemos tirar esta concluso: Dever-se-ia evitar aquela linguagem equvoca que no distingue en-

    tre aquelas consequncias temporais do pecado (pecado original ou pecados pessoais) que permanecem depois do batismo, e as penas temporais no sentido prprio da palavra. Aquelas consequncias temporais do pecado no tm para o batizado

    o carter de pena no sentido de castigo. Apenas so penas no sen-tido de que

    so algo que contraria a inclinao natural da vontade humana (e esta uma caracterstica da pena-castigo), uma vez que ningum gosta de sofrer; igualmente, exigem combate, expem ao perigo.no as haveria, se o pecado no tivesse acontecido; so, portanto, consequncias do pecado. No tm, porm, o sentido de pena-castigo. No desgnio da sabedoria

    e do amor de Deus (providncia divina) no tm este sentido. Podem at

    33 Cf. Cat. 405; 407-409.

  • 71

    mesmo ser aceitas como uma graa34. So, no dizer de So Toms de Aquino, remdios penais (medicinae poenales35), isto ,

    so remdio, porque so para o bem do homem (ad salutem hominum36), e so penais, porque sem o pecado no precisava deste remdio. 37 Por conseguinte, conclui o santo Doutor, no se pode cham-las, em

    sentido prprio, de penas (poenae)38.

    IV. O que a pena temporal manifesta-se na vida do batizado que peca e se arrepende

    1. A converso dos batizadosO apelo converso, parte essencial do anncio do Reino de Deus por

    parte de Jesus, dirige-se, em primeiro lugar, aos que ainda no conhecem a Jesus Cristo e Seu Evangelho, sendo o Batismo o principal lugar da primeira e fundamental converso.39 Mas o apelo do Senhor converso continua a soar na vida dos batizados, pois tambm os batizados podem pecar e pecam de fato. O Catecismo da Igreja Catlica resume esta ver-dade com as seguintes palavras:

    34 Cf. Cat. 1473: Suportando pacientemente os sofrimentos e as provas de todo tipo e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte, o cristo deve esforar-se para aceitar, como uma graa, essas penas temporais do pecado. Infelizmente, neste nmero, o Catecismo se presta, na formulao da doutrina, quela compreenso equvoca da expresso penas temporais que se deveria evitar. A pena temporal no sentido exata da palavra certamente no como veremos para se aceitar como uma graa.

    35 S.Th. I-II, q. 87, a. 7. O Catecismo da Igreja Catlica assumiu tambm esta pers-pectiva (cf. 1609: As penas que acompanham o pecado, as dores da gravidez e de dar luz, o trabalho com o suor de teu rosto (Gn 3,19) constituem tambm remdios que atenuam os prejuzos do pecado).

    36 S.Th. I-II, q. 87, a. 7, ad 1. Ele ainda precisa a afirmao dizendo que, segundo a providncia divina, so para o bem daqueles que sofrem tais coisas (no caso concreto, fala de diversos tipos de sofrimento), como tambm daqueles para os quais elas servem de admoestao.

    37 Cf. S.Th. I-II, q. 87, a. 7. So Toms argumenta: No estado de inocncia no seria necessrio que algum fosse levado ao progresso da virtude atravs de exerccios penosos (ibid.).

    38 Ibid.39 Cf. Cat. 1427.

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    Esta segunda converso uma tarefa ininterrupta para toda a Igreja, que rene em seu prprio seio os pecadores e que ao mesmo tempo santa e sempre, na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitncia e a renovao40. Este esforo de converso no apenas uma obra huma-na. o movimento do corao contrito41 atrado e movido pela graa42 a responder ao amor misericordioso de Deus que nos amou primeiro43. (Cat. 1428)

    Este esforo de converso dos batizados necessrio porque, em-bora feitos santos e irrepreensveis diante dEle (Ef 1,4; cf. 5,27) pelo Batismo, permaneceram neles a fragilidade e a fraqueza da natureza hu-mana e a propenso ao pecado (concupiscncia). Estas continuam nos batizados para prov-los no combate da vida crist, auxiliados pela graa de Cristo (Cat. 1426). o combate da converso para chegar santi-dade e vida eterna, para a qual somos incessantemente chamados pelo Senhor (ibid.).

    Quando o cristo peca gravemente44, no existe para ele um retorno ao Batismo, mas o recurso ao sacramento da Penitncia. Neste sacramento unem-se, numa unidade sacramental (formando juntos um sinal eficaz da graa),

    a prtica pessoal da virtude da penitncia (os atos pessoais de arrepen- dimento, confisso dos pecados e satisfao, tambm chamada obra de penitncia) e a ao de Cristo atravs do Seu representante, o bispo ou sacerdote (sendo tambm representante da Igreja).Deste modo, o esforo pessoal de converso consagrado pelo sa-

    cramento da Penitncia45.O que acontece quando o cristo pecador se converte? Com a graa de

    Cristo, Ele se arrepende sinceramente do pecado cometido. Isto significa que realiza um ato contrrio ao ato pecaminoso. O ato pecaminoso foi querer desordenadamente um bem criado, sendo a desordem to grande

    40 LG 8. 41 Cf. Sl 51,19. 42 Cf. Jo 6,44; 12,32. 43 Cf. 1Jo 4,10. 44 Note-se que a exposio que segue trata do pecado grave do cristo.45 Cf. Cat. 1423: Chama-se sacramento da Penitncia porque consagra um esforo

    pessoal e eclesial de converso, de arrependimento e de satisfao do cristo pecador.

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    que este sim ao bem criado implicava um no a Deus, preferindo, portanto, o bem criado a Deus. Esta opo preferencial no por Deus, mas pelo bem criado constitui o no a Deus, o afastamento de Deus, o virar as costas a Deus. O ato contrrio (a converso) deve, por conseguinte, ser um sim a Deus que pressupe a rejeio do apego desordenado ao bem criado: agora, a pessoa est pronta a desapegar-se do bem criado para aderir a Deus; prefere Deus ao bem criado, embora isto exija uma renncia.

    Ora, esta adeso a Deus se realiza pelo amor, amando Deus de novo acima de tudo, com o amor de Deus derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo que nos foi dado (Rm 5,5). Por isso, somente o ar-rependimento motivado pelo amor a Deus (infinitamente amvel em Si mesmo e por Si mesmo) obtm o perdo do pecado, o que pode acontecer j em vista da recepo do sacramento da Penitncia46 ou somente na hora da recepo do mesmo. Neste ltimo caso, trata-se do arrependimento imperfeito, no motivado pelo amor, que apenas predispe a obter o perdo na hora da recepo do sacramento.47 A graa do sacramento da Penitncia consiste ento em fazer o pecador chegar a ter o amor. De fato, como se realiza o perdo do pecado grave seno pelo dom da graa santificante e do amor? Deste modo, com efeito, eliminada, na vontade do pecador, a falta da adeso de amor a Deus (o no a Deus) e pelo menos at em uma medida mnima absolutamente necessria o apego desordenado ao bem criado.

    Quando, ento, o batizado adere de novo a Deus pelo amor (o sim a Deus), quando, por conseguinte, a comunho com Deus restabelecida, o pecado est perdoado. Uma vez que no possvel eliminar o ato pe-caminoso em si o que aconteceu, aconteceu, ningum pode fazer com que no tenha acontecido , o perdo significa a eliminao das conse-quncias do pecado dos quais falamos: culpa e pena. o que precisa ser examinado mais detalhadamente.

    Antes disso, porm, necessrio completar esta considerao da con-verso dos batizados. Na verdade, no existe apenas a converso do cristo que cometeu um pecado grave, mas tambm aquela que podemos chamar

    46 A doutrina da Igreja a este respeito a seguinte: Quando brota do amor de Deus, amado acima de tudo, a contrio perfeita (contrio de caridade). Esta contrio perdoa as faltas veniais e obtm tambm o perdo dos pecados mortais, se incluir a firme resoluo de recorrer, quando possvel, confisso sacramental (Cat. 1452).

    47 Cf. Cat. 1453.

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    de converso diria. Neste sentido, o Conclio de Trento falou da re-misso dos pecados que cometemos cada dia48, e o Catecismo da Igreja Catlica diz que temos de nos converter cada dia (Cat. 2630). aquela converso que o empenho dirio para progredir na vida espiritual (vida de comunho com Deus) pela purificao do corao. A meta a ser alcanada, sempre de novo, o corao totalmente puro.

    Refletindo sobre as duas converses converso a partir do pecado mortal e converso diria , poderemos reconhecer a verdadeira identidade da pena temporal, excluindo tudo aquilo que ela no .

    2. O perdo da culpa sem perdo de toda a pena temporalDissemos que o perdo do pecado consiste na eliminao da culpa e

    da pena, duas consequncias inevitveis do ato pecaminoso. Ora, a culpa est na vontade; consiste na desordem da vontade, precisamente na pri-vao da adeso de amor a Deus por causa de um apego desordenado a um bem que no Deus. Para a eliminao da culpa , por conseguinte, necessrio que o pecador chegue a amar de novo a Deus (ato contrrio ao ato de pecar). Isto, porm, s possvel se ele no mantiver o apego desordenado ao bem que desejou no ato de pecar. Ele deve, portanto, desapegar-se com um ato livre da sua vontade que contrrio ao ato pecaminoso.

    Ora, como mostra com evidncia a possibilidade do pecado venial, possvel que exista um apego desordenado a um bem criado que no implique necessariamente na negao da adeso de amor a Deus. Por isso, possvel que haja uma converso autntica, mas incompleta. Isto quer dizer: o pecador se volta de novo para Deus, ama de novo Deus, entra de novo em comunho com Ele, pois se desapega de tal modo daquele bem criado que o apego desordenado no mais to grande que seja incompatvel com o amor a Deus (amor a Deus acima de tudo e por Ele mesmo). Porm, o desapego no total; continua a haver algum apego desordenado quele bem.

    Neste caso, pode-se dizer que a culpa est perdoada? Sim, pois se deu a mudana fundamental e decisiva na vontade: no existe mais o no a Deus. Seguindo a argumentao de So Toms49, podemos dizer: no pecado mortal, o aspecto determinante o no a Deus (aversio a

    48 Conc. de Trento: DS 1740 (citado em Cat. 1366).49 S.Th. III, q. 86, a. 4, ad 1.

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    Deo, virar as costas a Deus), no o sim desordenado ao bem criado (conversio ad bonum creatum, voltar-se ao bem criado). So Toms diz que o primeiro o aspecto formal, enquanto o segundo o mate-rial. Tomemos para exemplificao o ser humano. O aspecto formal no homem a racionalidade, isto : ele tem uma alma espiritual, racional. Por isso, o homem um ser vivo sensitivo racional. Que ele um ser vivo sensitivo, este o aspecto material; o aspecto formal que ele racional. Ora, tire o racional, e j no existe um ser humano. O animal tambm um ser vivo sensitivo, mas no racional. Da, conclui So Toms: tire o no a Deus, e j no existe a culpa.

    Se no existe mais o no a Deus, se, portanto, de novo existe o amor a Deus, a comunho com Deus, tambm no pode mais existir a pena eterna, que a privao eterna da comunho com Deus. Para o dizermos com exatido: no existe mais o fato de que este pecador merece a excluso eterna da comunho com Deus, pois a excluso no era j eterna, mas ia tornar-se eterna depois da morte.

    Porm, deve se considerar tambm o outro aspecto, o do sim desor-denado ao bem criado. Para uma converso no apenas autntica, mas completa, necessrio que o pecador se desapegue de tal modo desse bem que em sua vontade no exista mais apego desordenado algum. Pois um apego deste tipo, por menor que seja, sempre prejudicial. que impossibilita a adeso a Deus pelo amor perfeito a Ele, com todo o corao, com todas as foras. Impossibilita o cumprimento perfeito do mandamento do amor.

    Importa reconhecer que a converso completa possvel. Uma con-verso que procede de uma ardente caridade pode chegar total purifi-cao do pecador, de tal modo que no haja mais nenhuma pena50 (Cat. 147251). Isto significa que no apenas no h mais a pena eterna, mas tambm extinta a pena temporal, como acontece pelo Batismo. No

    50 Cf. Conc. de Trento: DS 1712-1713; 1820. 51 O itlico no corresponde ao original, mas importante para indicar a qualidade

    decisiva. So Toms escreveu a este respeito: O amor a Deus basta para firmar a mente do homem no bem, sobretudo se for forte (ou ardente: vehemens); mas o desagrado da culpa passada, quando for intenso, traz grande dor. Da que pela fora (ou ardor: vehementia) do amor de Deus e do dio do pecado passado exclui-se a necessidade de penas satisfatrias ou purificatrias; e se a fora no for to grande que exclua totalmente a pena, todavia, quanto mais forte for, tanto menos pena j ser suficiente (Summa contra Gentiles, lib. III, c. 158). O uso da palavra pena, neste texto, significativo para a polivalncia desta palavra, como vamos ainda esclarecer.

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    Batismo, tal purificao total garantida, independentemente do ardor do amor, ou seja, da perfeio do arrependimento; basta que seja um arrependimento sincero, autntico. Mas no sacramento da Penitncia se requer a colaborao do batizado de tal modo que o arrependimento no apenas uma condio Deus no fora a vontade livre do homem! , mas faz parte do sinal sacramental. A extenso da eficcia do sacramento depende, por isso, tambm da qualidade do arrependimento.

    Eis, portanto, a razo por que na converso do cristo em concreto na recepo do sacramento da Penitncia pode tantas vezes acontecer que a culpa perdoada, ficando ainda alguma pena temporal.

    3. O perdo do pecado venialPerdo da culpa, mas permanncia de alguma pena temporal. Isto

    possvel na converso do batizado aps ter cometido um pecado grave. Vale tambm para os pecados veniais?

    Para o caso dos pecados veniais no se pode aplicar a mesma argu-mentao como para os pecados graves. O pecado venial, com efeito, no constitui um no a Deus; permanece o estado de adeso de amor a Deus, a comunho com Ele. Por isso, a pena que o pecado venial acarreta no pode ser a pena eterna, mas apenas uma pena temporal.

    Sendo assim, como se vai poder falar de um perdo apenas da culpa, mas no de toda a pena devida pela culpa? Isto possvel, como vimos, quando existem dois tipos de penas claramente distintos entre si: uma das penas devida enquanto o pecado um no a Deus, e a outra, enquanto um sim desordenado a um bem inferior a Deus. Uma vez que pode acontecer que o no a Deus esteja eliminado52, mas a retratao do sim desordenado ainda seja incompleta, possvel a permanncia de alguma pena, e se pode dizer, sem cair em contradio, que a culpa foi perdoada, apesar de permanecer ainda alguma pena a sofrer. No pecado venial, porm, existe alguma possibilidade de tal distino? Voltemos ento anlise do pecado venial.

    O que o pecado venial causa na alma, na vontade, uma falta da plenitude ou totalidade na adeso a Deus pelo ato de amor, a falta do fervor do amor a Deus, certo impedimento de amar Deus com fervor, quer dizer: de am-lO como deveria ser amado, isto , com todo o corao,

    52 A respeito deste no no existe uma eliminao incompleta, parcial. Ou elimi-nado ou existe ainda; no existe a possibilidade de meio termo.

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    com toda a capacidade de amar de que a pessoa dispe. Este impedimento constitudo pelo apego prejudicial53 a um bem criado, apego causado pelo pecado venial como ato. apego prejudicial, porque prejudica o amor devido a Deus.

    Note-se, porm, que no falamos de uma falta de disposio ou de um impedimento de amar a Deus acima de tudo, isto , de am-lO verdadeiramente, realmente. Na pessoa que est apenas com a culpa do pecado venial existe, de fato, a disposio habitual e firme de amar Deus acima de tudo. Esta disposio (a virtude do amor) no propriamente ou diretamente enfraquecida pelo pecado venial54, uma vez que este no contraria o amor a Deus como tal, ou seja, o amor acima de tudo (Deus permanece o fim ltimo que o homem quer, permanece o bem que ele quer acima de tudo). Pelo pecado venial existe a indisposio ou o im-pedimento de realizar os atos de amor (e das outras virtudes animadas pelo amor) com a devida intensidade ou totalidade, em conformidade com a capacidade de amor que a pessoa atualmente tem por graa de Deus (a virtude teologal do amor).

    A situao do homem aps o pecado venial como aquela do motorista que dirige o carro com o freio de mo puxado. O motor existe e tem sua fora, mas no pode produzir os resultados que seriam conformes ao seu potencial. E isto vale tanto para um motor de muitos cavalos como para um de poucos, ou seja, vale para a virtude de amor mais perfeita ou menos perfeita (o grau maior ou menor do amor).

    Ora, o que podemos chamar de culpa, a culpa do pecado venial, o mal da falta de adeso plena a Deus pelo amor, ou seja, o impedimento de amar Deus com todo o corao, com todas as foras, impedimento que consiste no apego prejudicial da vontade a um bem criado.

    Como que esta culpa pode ser perdoada?

    53 Cf. Cat. 1472: Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial s criaturas que exige purificao.

    54 No entanto, pode-se dizer como o diz tambm So Toms (S.Th. II-II, q. 24, a. 10) que a virtude do amor indiretamente enfraquecida ou diminuda, enquanto pelos pecados veniais causada uma predisposio sua perda. Cf. Cat. 1863: O pecado venial enfraquece a caridade; traduz uma afeio desordenada pelos bens criados; impede o progresso da alma no exerccio das virtudes e a prtica do bem moral [...] O pecado venial deliberado e que fica sem arrependimento dispe-nos pouco a pouco a cometer o pecado mortal.

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    Tambm neste caso, precisa da virtude da penitncia, isto , do arre-pendimento. O arrependimento o ato da vontade contrrio ao ato de pecar. No caso do pecado venial, o ato de pecar no um no a Deus: o homem quer desordenadamente um bem criado, sem que isto implique o virar as costas a Deus. No entanto, deste modo, o amor impedido de dirigir-se com fervor a Deus. Neste sentido, um arrefecimento do amor a Deus.55

    Esta situao somente pode ser eliminada pelo fervor ou ardor com que o pecador realiza atos de amor a Deus, capacitado e movido para isso pela graa divina56. No entanto, s possvel vencer assim a privao da plena adeso de amor a Deus, vencer assim o arrefecimento do amor, quando tambm se realiza o desapego do bem criado que o objeto do pecado venial. O pecador deve arrepender-se do seu pecado: o pecado lhe desagrada, ele o detesta57; ele rejeita a desordem no seu amor ao bem criado, o que significa que ele se desapega deste bem.

    Mas , de fato, pelo ato de amor fervoroso com a graa de Deus que essa desordem eliminada. Pelo fervor da caridade ... se realiza o perdo dos pecados veniais58. A razo que este fervor do amor traz em si, virtualmente, o arrependimento, a rejeio dos pecados veniais.59

    55 Como j explicamos, o arrefecimento se refere ao amar concreto, aos atos de amor, perfeio destes atos, que no esto altura da capacidade de amar que a pessoa tem, por graa de Deus (e a colaborao livre da pessoa).

    56 Cf. Cat. 1432: A converso antes de tudo uma obra da graa de Deus que reconduz nossos coraes a ele.

    57 Eis a dor do arrependimento. Esta dor essencial para o ato de amor penitente, quer dizer, o ato de amor pelo qual eliminado o pecado venial (culpa e pena).

    58 S.Th. III, q. 87, a. 1, arg. 1.59 Cf. S.Th. III, q. 87, a. 1. Temos de acrescentar que, tambm segundo So Toms, a

    eliminao da culpa do pecado venial pode acontecer sempre pressupondo o arrepen-dimento ao menos virtual no somente por um ato de amor fervoroso, realizado com a graa de Deus, mas tambm pela infuso ou o aumento da graa santificante e da virtude do amor pelos sacramentos (cf. S.Th. III, q. 87, a. 2; a. 3, ad 3), particularmente pelos sacramentos da Penitncia e da Eucaristia (cf. Cat. 1496, 1366, 1393s).

    No decorrer dos sculos, a Igreja veio reconhecendo os grandes benefcios do sa-cramento da Penitncia para o progresso de todos os fiis no caminho da santificao. Apesar de no ser estritamente necessria, a confisso das faltas cotidianas (pecados veniais) vivamente recomendada pela Igreja (Cat. 1458).

    Quanto ao sacramento da Eucaristia, o Catecismo da Igreja Catlica ensina: Como o alimento corporal serve para restaurar a perda das foras, a Eucaristia fortalece a caridade que, na vida diria, tende a arrefecer; e esta caridade vivificada apaga os pecados veniais.

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    Pois quem realiza tal ato de amor a Deus rejeita tudo aquilo que lhe um impedimento neste movimento fervoroso para Deus. Isto vale no somente para os pecados veniais nos quais atualmente pensa, mas de todos que de fato constituem um impedimento e que ele rejeitaria explicitamente se estivessem presentes sua mente.

    No entanto, possvel que a pessoa no se arrependa de um ou de alguns pecados veniais, embora se arrependa verdadeiramente de outros. Deste modo, o supramencionado ato de amor fervoroso enfraquecido ou retardado em seu mpeto para Deus e, evidentemente, a eliminao do apego prejudicial no pode ser completa. Tambm pode acontecer que esse ato de amor penitente no seja suficientemente perfeito para eliminar totalmente o apego prejudicial causado por um pecado venial de que a pessoa, de fato, se arrepende. Em todo caso, ficam, pelo menos, os apegos desordenados causados por aqueles pecados dos quais a pessoa no se arrepende.

    A grande ajuda pelos sacramentos da Penitncia e da Eucaristia

    No entanto, a eliminao da culpa do pecado venial pode acontecer sempre pressupondo o arrependimento ao menos virtual no somente por um ato de amor fervoroso, realizado com a graa de Deus, mas tambm pela infuso ou o aumento da graa santificante e da virtude do amor pelos sacramentos60, particularmente pelos sacramentos da Penitncia e da Eucaristia.61

    Quanto ao sacramento da Eucaristia, o Catecismo da Igreja Catlica ensina:

    Como o alimento corporal serve para restaurar a perda das foras, a Eu-caristia fortalece a caridade que, na vida diria, tende a arrefecer; e esta caridade vivificada apaga os pecados veniais. Ao dar-se a ns, Cristo rea-viva nosso amor e nos torna capazes de romper as amarras desordenadas com as criaturas e de enraizar-nos nele. (Cat. 1394)

    No decorrer dos sculos, a Igreja veio reconhecendo os grandes bene-fcios do sacramento da Penitncia para o progresso de todos os fiis no caminho da santificao. Apesar de no ser estritamente necessria, a

    Ao dar-se a ns, Cristo reaviva nosso amor e nos torna capazes de romper as amarras desordenadas com as criaturas e de enraizar-nos nele (Cat. 1394).

    60 Cf. S.Th. III, q. 87, a. 2; a. 3, ad 3.61 Cf. Cat. 1496, 1366, 1393s.

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    confisso das faltas cotidianas (pecados veniais) vivamente recomendada pela Igreja (Cat. 145862). notvel que so exatamente aqueles cristos que mais fervorosamente buscam a perfeita comunho com Deus os que tambm mais frequentemente recebem o sacramento da Penitncia.63

    Agora poderamos retornar nossa pergunta: possvel o perdo da culpa do pecado venial sem o perdo tambm da pena temporal devida pela culpa? Para isso, porm, preciso dar um passo adiante, chegando a identificar a pena temporal como uma consequncia do pecado que se distingue da culpa do pecado venial.

    4. A verdadeira identidade da pena temporal, distinta da culpa do pecado venial e ligada com esta

    O que verdadeiramente a pena temporal? O que aquilo que pelo Batismo, mas no pelo sacramento da Penitncia, sempre perdoado completamente (pressuposto um verdadeiro arrepen-dimento dos pecados pessoais por parte do batizando)?aquilo que se distingue de certas consequncias temporais do pecado (pecado original e pecados pessoais), como so os sofrimentos, a do-ena, a morte ou as fragilidades inerentes vida (p. ex. as fraquezas de carter), e como a propenso ao pecado, seja ao pecado em geral, seja a determinados pecados (propenso causada por determinados pecados pessoais), ou, na linguagem de So Toms, o enfraquecimento do bem

    62 Cf. Cat. 1496. Veja-se tambm a respectiva doutrina do Papa Pio XII em sua encclica Mystici Corporis (29.06.1943), no captulo sobre erros relativos confisso sacramental e orao: O mesmo sucede com a falsa opinio dos que pretendem que no se deve ter em conta a confisso freqente das faltas veniais; [...] verdade [...] que h muitos modos e todos muito louvveis, de obter o perdo dessas faltas; mas para progredir mais rapidamente no caminho da virtude, recomendamos vivamente o pio uso, introduzido pela Igreja sob a inspirao do Esprito Santo, da confisso freqente.

    63 Certos Santos entre os quais tambm se encontra So Toms de Aquino, no perodo final da sua vida (cf. J.A. WeIsheIPl, Thomas von Aquin: sein Leben und seine Theolo-gie, Graz, Wien, Kln 1980, 293) chegaram at mesmo a se confessarem diariamente. Quanto frequncia da recepo do sacramento da Penitncia, Guilherme de Auxerre, Alexandre de Hales e So Boaventura falaram de trs graus de perfeio: 1) os cristos que se contentam com o mnimo confessam-se uma vez por ano; 2) os mais perfeitos (perfectiores) confessam-se trs vezes por ano; 3) os perfeitssimos (perfectissimi) confessam-se todos os dias (cf. H. VorgrImler, Bue und Krankensalbung (HDG IV,3), Freiburg 1978, 106).

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    natural, enquanto o homem, pecando, se torna mais propenso a pecar e mais lento para agir bem64?aquilo que se distingue da culpa do pecado mortal e do pecado ve-nial?Podemos dar a resposta se sabemos qual o bem de que esta pena priva

    o pecador. Sabemos que o bem de que a pena eterna o priva a comunho com Deus (com cada uma das trs Pessoas divinas). Ora, pelo que vimos, ficou esclarecido que o bem de que a pena temporal priva o pecador no outra coisa; tambm a comunho com Deus, mas no a comunho como tal e, sim, uma determinada perfeio desta comunho, uma perfeio que a sua comunho poderia ter e de fato teria se no tivesse pecado ou se, tendo pecado, sua converso fosse completa. Vimos que a culpa do pecado venial consiste na falta de adeso plena a Deus pelo amor perfeito: na vontade da pessoa existe algo que a impede de amar Deus com todo o corao, com todas as foras, e este impedimento consiste no apego desordenado, prejudicial da vontade a um bem criado. Devido a esta culpa, a comunho da pessoa com Deus no pode ter aquela perfeio que s possvel quando ama Deus assim como diz o mandamento do amor: Amars o Senhor, teu Deus, de todo o corao, de toda a alma e de todo o entendimento (Mt 22,37)65. Portanto, a pena temporal a privao daquele bem que essa perfeio da comunho com Deus.

    Alguns esclarecimentos

    Importa frisar que no se trata do fato de que a pessoa no possui um determinado grau de amor. Assim, p. ex., a perfeio de amor da Me de Jesus muito maior do que aquela de So Francisco, e o grau de amor do Santo de Assis maior do que o grau deste ou daquele Santo. Mas So Francisco no est privado da perfeio de amor de Nossa Senhora. O pecador, porm, com a culpa do pecado venial, est privado da perfeio de sua comunho com Deus, pois ele poderia e deveria ter esta perfeio. o apego desordenado a um bem criado que o priva desta comunho perfeita. Por isso, o Catecismo da Igreja Catlica o chama de apego prejudicial.

    Quanto percepo desta privao, pode-se constatar o seguinte. Durante a sua vida sobre esta terra, o homem pode distrair-se com muitos

    64 Summa contra Gentiles, lib. IV, c. 72.65 Cf. Lc 10,27: ...e com todo o teu esprito.

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    bens ao seu alcance, encontrar muitas satisfaes com os bens criados, que podem fazer com que, de alguma maneira, esse tipo de privao da comunho com Deus lhe passe despercebido; o homem no sente esta privao, ou seja, no a sente como um castigo, uma pena. Mas isto mudar totalmente depois da morte, se a pena temporal no estiver j perdoada. Ento, a alma no ter mais nenhuma dessas satisfaes ou distraes e, por isso, sentir muito a falta da comunho perfeita com Deus, isto , sofrer muito por estar privada da viso beatfica de Deus, pois esta ser ento aquela comunho perfeita com Deus que poderia e deveria possuir. No a possui porque ainda existe aquele apego desorde-nado como impedimento.

    Quanto determinao exata do tipo de impedimento de que estamos falando, convm considerar o seguinte. Falamos de pecado (mortal e venial) e daquelas consequncias do pecado que so a culpa e a pena. O pecado mortal um ato contrrio Lei de Deus, que uma lei de amor66, enquanto o pecado venial uma inconsequncia culpvel no seguimento desta lei do amor (cf. Cat. 1862). Ora, a Lei de Deus prescreve o amor a Deus acima de tudo e com todo o corao; prescreve amar a Deus tanto quanto cada um pode, com a graa de Deus. Porm, o apego desordenado a um bem criado, causado pelo pecado venial (ou que fica ainda aps o perdo da culpa do pecado mortal), impede o pecador de amar a Deus com a perfeio prescrita pela Lei de Deus. desta perfeio de amor ou da falta desta perfeio que estamos falando nestas reflexes.

    Na Nova Lei, no entanto, no existem apenas os mandamentos re-sumidos no mandamento do amor a Deus e ao prximo , mas tambm os conselhos evanglicos. Ora, a distino entre os mandamentos de Deus e os conselhos evanglicos se estabelece em relao ao amor, que a perfeio da vida crist (cf. Cat. 1973).

    Qual a diferena entre os mandamentos e os conselhos em relao ao amor?

    Os mandamentos se destinam a afastar tudo o que incompatvel com o amor (cf. Cat. 1973). Porm, no se trata somente daquilo que incompatvel com a existncia do amor no corao humano (a alter-nativa, neste caso, ter o amor ou no o ter), mas tambm do que

    66 A Nova Lei lei de amor no somente porque prescreve o amor (o mandamento do amor), mas tambm porque leva a agir pelo amor infundido pelo Esprito Santo e no pelo temor (cf. Cat. 1972).

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    incompatvel com aquela perfeio do amor que a pessoa pode e deve ter no momento atual e nas condies prprias da sua vida (conforme os diversos estados de vida e vocaes). E, em concreto e no fundo, esta perfeio no impedida seno pelo apego desordenado a qual-quer bem inferior a Deus. Tambm importante ter presente que a perfeio da Nova Lei consiste essencialmente nos preceitos do amor a Deus e ao prximo (Cat. 1974): amar a Deus acima de tudo e com todo o corao e amar o prximo como a si mesmo um mandamento, no apenas um conselho.Os conselhos evanglicos, ao invs, tm como meta afastar o que pode constituir um obstculo para o desenvolvimento do amor, mesmo sem ser contrrio ao amor (cf. Cat. 1973). O Catecismo da Igreja Cat-lica, que explica deste modo a relao dos conselhos com o amor, faz referncia doutrina de So Toms de Aquino67. Para este, claro que a perfeio da vida crist no consiste essencialmente nos conselhos, mas nos mandamentos, isto , no cumprimento do mandamento do amor a Deus e ao prximo. O amor de Deus e do prximo no so prescritos segundo certa medida, de tal modo que uma medida mnima de amor pertena ao mandamento e a medida maior, ao conselho. O prprio mandamento prescreve de amar Deus com todo o corao. Ora, todo e perfeito so a mesma coisa, quer dizer: o mandamento prescreve de amar Deus com perfeio.68 Portanto, a perfeio con-siste nos conselhos apenas secundariamente e instrumentalmente, no essencialmente; a perfeio consiste nos conselhos exatamente enquanto estes tm como meta remover os obstculos ao ato de cari-dade69, embora eles no a contrariem, como o matrimnio, a ocupao com os negcios seculares e coisas semelhantes70

    Ora, ao falar do afastamento de obstculos ou impedimentos, evidente que estes so de tipo muito diverso quando se trata

    daqueles impedimentos para os atos de amor que so consequncia do pecado, isto , o apego desordenado a bens criados, e quando se trata

    67 S.Th. II-II, q. 184, a. 3.68 Cf. S.Th. II-II, q. 184, a. 3.69 A caritas o amor enquanto virtude teologal.70 S.Th. II-II, q. 184, a. 3: ordinantur ad removendum impedimenta actus caritatis,

    quae tamen caritati non contrariantur, sicut est matrimonium, occupatio negotiorum saecularium, et alia huiusmodi.

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    daqueles impedimentos que a prtica dos conselhos evanglicos afasta. Os primeiros, com efeito, so incompatveis com o amor ou com o

    amor perfeito71, enquanto os segundos so compatveis no somente com o amor, mas tambm com o amor perfeito.

    Por isso, o Catecismo da Igreja Catlica diz: A perfeio da Nova Lei consiste essencialmente nos preceitos do amor a Deus e ao prximo. Os conselhos indicam caminhos mais diretos, meios mais fceis, e devem ser praticados conforme a vocao de cada um (Cat. 1974). Tomemos como exemplo a virtude da castidade ou o amor casto. Todos os cristos so chamados a levar uma vida casta. De fato, no momento do Batismo, o cristo se comprometeu a viver sua afetividade na castidade. Mas existem diversos caminhos ou maneiras de viver castamente, segundo o especfico estado de vida de cada um.

    A castidade h de distinguir as pessoas de acordo com seus diferen-tes estados de vida: umas na virgindade ou no celibato consagrado, maneira eminente de se dedicar mais facilmente a Deus com um corao indiviso; outras, da maneira como a lei moral determina, conforme forem casados ou celibatrios.72 As pessoas casadas so convidadas a viver a castidade conjugal; os outros praticam a cas-tidade na continncia. (Cat. 2349)

    O obstculo que a virgindade ou o celibato consagrado afasta no impede, portanto, o exerccio do amor perfeito. As pessoas casadas no so impedidas de viverem o amor perfeito. Um marido, p. ex., pode amar muito sua esposa sem que este amor constitua um apego desordenado que impea este marido a amar Deus com a devida perfeio. O carter de obstculo ideia presente na expresso paulina do corao dividido (cf. 1 Cor 7,33-34) origina-se da limitao da pessoa humana: deste modo, o marido no pode concentrar toda a sua capacidade de amar (com aquele amor caracterizado pela totalidade, como o amor esponsal e o amor a Deus) a um s objeto de seu amor, isto , a Deus. Por isso, os conselhos evanglicos (concretamente, a virgindade ou o celibato consa-

    71 Referimo-nos, obviamente, ao apego desordenado causado pelo pecado grave (incompatvel com a existncia do amor no corao) e ao apego desordenado causado pelo pecado venial ou quele grau de apego que ainda pode subsistir aps o perdo da culpa do pecado grave (apego incompatvel com o amor perfeito).

    72 CDF, decl. Persona humana, 11: AAS 68 (1976), 77-96.

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    grado, a pobreza voluntria e a obedincia alm daquela exigida pela lei divina) indicam caminhos mais diretos, meios mais fceis (Cat. 1974) ou mais aptos para o desenvolvimento do amor. De fato, os conselhos evanglicos manifestam a plenitude viva da caridade que jamais se mostra satisfeita, por no poder dar mais. Atestam seu dinamismo e solicitam nossa prontido espiritual (Cat. 1974). No entanto, sempre permanecem conselhos, no so mandamentos.

    Por isso, tambm verdade que ningum est obrigado (pela lei do amor) a escolher sempre o que objetivamente o melhor. Todos, porm, so chamados perfeio do amor. Alm disso, o grau de amor que cada um alcanar at o final de sua vida nesta terra depender da sua generosidade em seguir as inspiraes do Esprito do amor, que conduz a cada um no seu caminho pessoal, segundo a sbia e amorosa providncia divina.

    Aps estes esclarecimentos, podemos agora responder pergunta a respeito da conexo entre o perdo da culpa e da pena do pecado venial. A culpa no pode ser perdoada a no ser que o pecador se arrependa do pecado, pelo menos virtualmente.

    Agora levantamos a questo: a culpa pode ser perdoada s parcial-mente? No caso da culpa do pecado mortal, isto impossvel, pois a culpa est no no a Deus, na falta da adeso de amor a Deus. Este o aspecto determinante. Neste caso, s existe a alternativa: perdo ou no perdo (e tambm: perdo de todos os pecados mortais ou de nenhum deles). A culpa perdoada pela nova unio com Deus (graa santificante, amor). Portanto, ou existe de novo a adeso de amor a Deus ou no existe; no h meio termo.

    No caso da culpa do pecado venial a situao diferente. A culpa con-siste na falta da adeso plena a Deus (pelos atos de amor) por causa de um impedimento, e este impedimento o apego desordenado a um bem criado, ou tambm se pode dizer: a culpa consiste neste impedimento. Neste apego, porm, pode haver diversos graus ou intensidades. Por conseguinte, a culpa s plenamente perdoada quando esse apego de-sordenado totalmente eliminado, pois apenas ento possvel a adeso plena de amor a Deus.

    Da se conclui logicamente que, no caso do pecado venial, no existe perdo completo da culpa sem o perdo completo tambm da pena tem-poral. Ora, como no caso do pecado grave pode haver um arrependimento (converso) to perfeito que no somente a culpa e a pena eterna so

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    perdoadas, mas tambm toda a pena temporal, assim tambm no caso do pecado venial, o arrependimento (o fervor do amor com a correspondente detestao do pecado) pode ser to perfeito que no subsiste mais nenhum apego desordenado quele bem procurado no ato de pecar. Mas tambm possvel que o desapego no seja total e, por conseguinte, tambm o perdo no pleno (pois no pode ser pleno; no se trata, de modo algum, de uma restrio ou limitao por parte de Deus).

    Em vista desse perdo pleno, a Igreja tomou conscincia do seu poder de ajudar seus filhos a libertarem-se das penas temporais, concedendo as assim chamadas indulgncias. conhecida a definio do que uma indulgncia:

    A indulgncia a remisso, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados j perdoados quanto culpa, (remisso) que o fiel bem-disposto obtm, em condies determinadas, pela interveno da Igreja que, como dispensadora da redeno, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfaes (isto , dos mritos) de Cristo e dos santos. (Cat. 1471)

    A formulao pena temporal devida pelos pecados j perdoados quanto culpa baseia-se na considerao da possibilidade do perdo da culpa sem o perdo de toda a pena temporal, que propriamente o caso do pecado grave ou mortal. Como vimos, existe uma grande diferena entre a culpa do pecado mortal e a do pecado venial. A diferena no ape-nas aquela de uma gravidade maior e menor.73 Da tambm a diferena entre os dois tipos de pecado quanto ao perdo da culpa em relao ao perdo da pena temporal. No caso do pecado mortal, a culpa pode estar perdoada inteiramente e, no entanto, pode permanecer a pena temporal (maior ou menor), a cuja remisso se destina a indulgncia. No caso do pecado venial, dever-se-ia, a nosso ver, falar de perdo da pena temporal devida por pecados dos quais o pecador j se arrependeu realmente, mas no de tal modo que ficou eliminado todo apego desordenado e assim houve j um perdo da culpa, bem como da pena temporal, mas no um perdo total.

    73 So Toms chega a dizer que propriamente falando, o pecado venial no produz uma mancha na alma. E se, s vezes, se diz que a produz, a afirmao deve ser entendida em sentido imprprio (secundum quid), isto , no sentido de que o pecado venial impede a beleza prpria dos atos virtuosos (S.Th. I-II, q. 89, a. 1).

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    V. A distino e a conexo entre a pena temporal e penas satisfatrias e purificatrias

    1. O perdo da pena temporal pela satisfao e purificaoAcabamos de reconhecer que a pena temporal a privao temporal

    daquela perfeio da comunho com Deus que a pessoa poderia e deveria ter atualmente. uma consequncia direta da culpa do pecado venial; castigo pelo pecado cometido.

    O cristo que se encontra nesta situao fica devendo o amor perfeito a Deus. Ele poderia e deveria ter este amor perfeito; um dever que tem para com Deus e que no est cumprindo por causa do apego desordenado a um bem criado. Este apego prejudicial significa uma impureza do cora-o, impede o amor puro; exige, portanto, purificao. Por conseguinte, este cristo

    deve oferecer a Deus uma satisfao por isso74, bem como necessita ainda de alguma purificao75: deve chegar ao amor per-feito, puro, cem por cento, isto , amando tanto quanto pode, em conformidade com o dom de amar recebido de Deus (o grau atual da virtude teologal do amor).S assim pode ter a comunho perfeita com Deus; s assim poder,

    aps a morte, entrar no Cu.Ora, importa frisar que os dois elementos de satisfao e purificao

    encontram-se unidos. So como os dois lados da mesma medalha: quando a satisfao completa, tambm a purificao est completamente rea-lizada e vice-versa.

    E como podemos oferecer essa satisfao? Como podemos alcanar a necessria purificao? S pode ser pelo amor; nunca sem o amor. um amor com determinadas qualidades ou caractersticas. Podemos sintetiz-las com o adjetivo sofredor: o amor sofredor.

    74 Cf. Cat. 1459: Deve, portanto, fazer alguma coisa a mais para reparar seus pecados: deve satisfazer de modo apropriado ou expiar seus pecados. Esta satisfao chama-se tambm penitncia.

    75 Cf. Cat. 1472: O pecado grave priva-nos da comunho com Deus e, conseqen-temente, nos torna incapazes da vida eterna, esta privao se chama pena eterna do pecado. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial s criaturas que exige purificao, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado cha-mado purgatrio. Esta purificao liberta da chamada pena temporal do pecado.

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    o amor penitente. Isto significa que a pessoa ama, padecendo a dor do arrependimento, ou vice-versa: sofre a dor do arrependimento porque ama, amando sofre, pois detesta o seu pecado, que a razo por que se encontra atualmente nesta situao de ficar devendo o amor perfeito a Deus e isto lhe causa desgosto, exatamente porque ama a Deus, sabe que Ele infinitamente amvel, que merece ser amado verdadeiramente de todo o corao, com todas as foras.

    Igualmente, amor sofredor, penitente, porque amor que assume a renncia, o desapego do bem criado. Ora, este bem exerce certa fora de atrao sobre a vontade (e esta fora pode ser grande), pois promete satisfao imediata, sendo um bem mais acessvel ao homem. Alm disso, existe no homem a concupiscncia ou propenso ao mal (devida ao pecado original e reforada ainda por pecados pessoais), isto , a inclinao ao gozo dos bens criados sem considerar a devida ordem e medida. Trata-se, portanto, do sofrimento da luta de resistncia trplice concupiscncia (cf. 1 Jo 2,16).

    Aqui se pode tratar diretamente do desapego do bem desejado76 no ato de pecar (para eliminar o apego desordenado) ou, em geral, de renncias a bens criados, isto , a satisfaes pela posse destes bens, p. ex. o prazer de comer um bolo delicioso, mas tambm o que mais valioso ainda para a obteno do amor perfeito , p. ex., a renncia ao tempo de lazer para ajudar um irmo necessitado ou a renncia a fazer a vontade prpria, realizar a ideia prpria, para acolher a ideia de outra pessoa ou da comunidade. Estas so dimenses do amor sofredor que so, por assim dizer, da

    prpria iniciativa da pessoa que deseja plenamente satisfazer a Deus e purificar o corao. Outra dimenso desse amor sofredor satisfatrio e purificatrio so os sofrimentos que no dependem da livre vontade do homem, mas que ele pode suportar com amor paciente, como so as mais diversas doenas (fsicas e psquicas), injustias, incompreenses, adversidades, dificuldades e insucessos na realizao dos projetos da vida, e, em geral, os esforos necessrios no cumprimento das tarefas de cada dia, enfim, as provas de todo tipo e, afinal, a prpria morte.

    76 Este bem , no fundo, a satisfao que a posse de um determinado bem d ao pecador; da o amor desordenado a si mesmo como motivo do pecado, enquanto o amor a Deus o motivo do desapego.

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    2. A clara distino entre pena temporal-castigo e pena satisfatria e purificatria

    Todos estes sofrimentos ou alguns deles so penas do pecado no sentido de castigo? A resposta : nem todos nem alguns o so. Para o cristo, para aquele que traz em si o amor de Deus, no tm o signi-ficado de castigo, embora sejam, de um ou outro modo, consequncias do pecado.

    Vale aqui o que j dissemos a respeito daquelas consequncias do pecado (original ou pessoal) que o Batismo no elimina. No podem ser chamadas propriamente penas do pecado, uma vez que o Batismo apaga todas as penas do pecado (cf. Cat. 1263). Tambm para o batizado que, tendo pecado gravemente, se arrependeu e recebeu o perdo divino (pelo sacramento da Penitncia ou j em vista do mesmo), bem como aquele que somente cometeu pecados veniais, dos quais se arrependeu, sem, nos dois casos, o arrependimento ser perfeito (no tendo como motivo um amor ardente), para este batizado todos aqueles diversos tipos de sofrimento no tm carter de pena, castigo. So um meio escolhido ou aceito por ele para livrar-se da pena temporal que ainda restou. Em outras palavras: so o meio como, sempre em unio com Cristo, oferecer satisfao a Deus pelos pecados cometidos e no ainda perfeitamente arrependidos e como ser purificado totalmente. So o que se tem chamado de penas satisfatrias e penas purificatrias, mas no so a pena temporal ou as penas temporais dos quais o cristo arrependido, no caso indicado, precisa ainda livrar-se e para cuja libertao pode tambm ganhar as indulgncias.

    destas penas temporais que o cristo precisa e quer libertar-se, no das penas satisfatrias e purificatrias, as quais so um meio para libertar-se das penas temporais do pecado.77 por isso mesmo e neste sentido que as penas-sofrimento (em contraposio s penas-castigo) podem e deveriam verdadeiramente ser consideradas uma graa, como diz expressamente o Catecismo da Igreja Catlica:

    O perdo do pecado e a restaurao da comunho com Deus implicam a remisso das penas eternas do pecado. Mas permanecem as penas tempo-rais do pecado. Suportando pacientemente os sofrimentos e as provas de todo tipo e, chegada a hora, enfrentando serenamente a morte, o cristo deve esforar-se para aceitar, como uma graa, essas penas temporais do pecado. (Cat. 1473)

    77 So este meio, se a pessoa que as sofre ama de verdade.

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    Digamo-lo mais uma vez: quando o Catecismo usa neste trecho a expresso penas temporais do pecado para tais sofrimentos a serem aceitos como uma graa, favorece infelizmente a confuso, pois d o mesmo nome a duas realidades bem diferentes.78 Quando se relacionam entre si algumas afirmaes do Catecismo, pode-se reconhecer que com a mesma expresso o Catecismo designa duas realidades diferentes.79

    Como j dissemos, estas duas realidades so to diferentes que de uma se quer livrar-se, enquanto a outra um meio para se livrar da primeira. Esta outra (pena-sofrimento) pode at mesmo continuar, ainda que algum tenha atingido a plena purificao do corao e se mantenha sempre nesta absoluta pureza do corao80. Pois neste caso, embora tais sofrimentos no tenham mais a finalidade e eficcia da purificao do prprio corao81, podem ter por finalidade a purificao ou, mais profundamente, a con-verso de outras pessoas. De fato, como escreveu o Papa Paulo VI:

    Seguindo as pegadas de Cristo, os fiis sempre procuraram ajudar-se uns aos outros no caminho que conduz ao Pai celeste pela orao, pela apresen tao de bens espirituais e pela expiao penitencial; e quanto mais seguiam o fervor da caridade, tanto mais tambm

    78 So Toms, ao falar de pena satisfatria (S.Th. I-II, q. 87, a. 6), diz que esta no pena no sentido verdadeiro e prprio da palavra (simpliciter), mas apenas sob certo aspecto (secundum quid). A razo que ela no contra a vontade do homem (o que uma caracterstica essencial da pena, isto , do castigo). Apenas sob certo aspecto, ela contra a vontade, pois o sofrimento contraria naturalmente a vontade do homem; por inclinao natural da vontade, ningum quer sofrer.

    79 Ver Cat. 978 e 1263, comparados com 1264. No nmero 2427, o Catecismo fala da pena do trabalho, em latim: poena laboris, e no nmero 378 usa a palavra: pe-nalidade, em latim: poena. Nas edies em outras lnguas, esta expresso traduzida conforme o sentido, que no o de pena-castigo (ingls: the hardship of work e bur-den; italiano: la penosa fatica e fatica penosa; espanhol: el peso del trabajo e el trabajo no le es penoso; alemo: die Mhen der Arbeit e Fron).

    80 A Virgem Maria o exemplo perfeito a este respeito, sendo que ela nem precisou de purificao alguma em momento algum da sua vida. Todos os outros cristos precisavam e precisam sempre de novo de purificao.

    81 Evidentemente, falamos de purificao no sentido exato da palavra. Eventual-mente, se pode entender o conceito purificao no sentido amplo de transformao ou de dilatao do corao para disp-lo a acolher uma maior abundncia do amor divino e amar com um grau maior de amor. Igualmente, purificao se poder enten-der no sentido de que o motivo do amor a Deus mais forte e profundamente a infinita amabilidade de Deus.

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    imitavam a Cristo sofredor, levando sua cruz em expiao de seus pecados e dos outros.82

    Se se pode dizer que Jesus praticou a penitncia, isto possvel apenas no sentido de que Ele o modelo supremo dos penitentes: quis sofrer a pena pelos pecados no seus, mas dos outros83, entregou Sua vida como vtima de expiao no por um pecado Seu (cf. Jo 8,46; 1Jo 3,5), mas pelos pecados de todos os homens. Participar neste ato de amor a Deus e aos outros verdadeiramente o pice da imitao de Cristo.

    Ora, evidente que Jesus no assumiu a pena-castigo do pecado (nem a pena eterna nem pena temporal alguma) teria sido incompatvel com Sua perfeita santidade , mas assumiu aquelas consequncias do pecado dos homens que eram compatveis com Sua absoluta santidade de Filho de Deus. Assim levou Seu amor ao Pai e aos homens pecadores ao ponto culminante, ao extremo (cf. Jo 13,1).

    E Jesus fez aos Seus o dom de poderem participar no Seu amor, viv-lo concretamente em sua vida84. E h duas maneiras de participar neste amor sofredor (expiatrio, satisfatrio, penitente) de Jesus: uma atravs da penitncia (expiao) pelos nossos prprios pecados85; a outra pela expiao por outros.86

    82 Paulo VI, Constituio Apostlica Indulgentiarum doctrina, 5. O itlico nosso. Cf. tambm a afirmao de so Toms de aquIno, Summa contra Gentiles, lib. III, c. 158 (ed. Marietti: n. 3311).

    83 Paulo VI, Constituio Apostlica Paenitemini, I.84 Cf. Cat. 618: Chama seus discpulos a tomar sua cruz e a segui-lo, pois sofreu

    por ns, deixou-nos um exemplo, a fim de que sigamos seus passos. Quer associar a seu sacrifcio redentor aqueles mesmos que so os primeiros beneficirios dele. Isto realiza-se de maneira suprema em sua Me, associada mais intimamente do que qualquer outro ao mistrio de seu sofrimento redentor.

    85 Cf. Cat. 1460: Essas penitncias nos ajudam a configurar-nos com Cristo, que, sozinho, expiou nossos pecados uma vez por todas. Permitem-nos tambm tornar-nos co-herdeiros de Cristo ressuscitado, pois sofremos com ele.

    86 Cf. N. Thanner, Deus amou tanto o Mundo que enviou-nos Seu Filho como Vtima de Expiao pelos nossos Pecados. Para uma Compreenso e Vivncia da Expiao Crist, em: Sapientia Crucis 8 (2007) 92-106.

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    3. O papel do amor sofredor (penitente)Falamos do amor sofredor como caminho ou meio para se livrar da

    pena temporal, alcanando a plena purificao do corao, e igualmente para participar no amor expiatrio, redentor de Jesus Cristo.

    De fato, o amor de quem se converte do pecado cometido, bem como de quem no pecou, mas ama a Deus em nome dos pecadores, tem de ser um amor sofredor. A converso, a satisfao, expiao, a purificao no possvel sem um sofrimento que sofrimento por causa do peca-do.87 Mas o sofrimento s tem esse papel positivo ou pode exerc-lo em conexo com o amor.

    O que o sofrimento? O sofrimento a privao de um bem, sendo esta percebida. E de onde vem o sofrimento? Quando formos at os fun-damentos ltimos do sofrimento, podemos reconhecer que ele est ligado ao estado de caminhada do homem rumo unio bem-aventurada com Deus na vida eterna. Nesta situao, o homem est, de alguma maneira, privado do bem dessa bem-aventurada unio consumada com Deus, que o objeto final do seu desejo de felicidade. uma privao no sentido de ainda no possuir o nico bem que o pode fazer plenamente feliz. a situao de provao, na qual o homem pode livremente decidir-se a amar Deus em resposta ao Seu amor por ele.88

    Com o pecado, comea a existir outro tipo de sofrimento: o sofrimento que consequncia do pecado. a privao percebida de bens que o ho-mem poderia j possuir, se no tivesse pecado, ou seja, bens que possua e os perdeu.

    Ora, entre essas consequncias do pecado89 h aquelas que so incompa-tveis com o amor como tal ou com o amor perfeito. Estas so a culpa do pecado mortal e a do pecado venial, com as correspondentes penas (pena eterna e temporal). E h as outras consequncias que so compatveis. Estas so as diversas desordens ou faltas de harmonia, que no dependem da vontade livre do homem ou que precedem a sua livre deciso, mas no so assumidas na deciso. Assim, a doena uma desordem no corpo ou na psique, no na vontade; igualmente, a morte. Em geral, h as diversas

    87 Cf. o artigo indicado na nota de rodap anterior, pp. 53-62, 81-88.88 Cf. N. Thanner, O Porqu da Cruz (I), em: Sapientia Crucis 1 (2000) 73-85.89 Estas consequncias so um sofrimento para o homem na medida em que ele per-

    cebe essas privaes do bem. Outra medida do sofrimento a grandeza do bem de que se est privado.

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    fraquezas e fragilidades da vida humana que no implicam necessaria-mente uma desordem na vontade livre (no sentido do pecado).

    Isto vale igualmente para as fraquezas de carter, como tambm para a propenso geral ao pecado (a concupiscncia), quer como consequ-ncia do pecado original, quer tambm como consequncia de pecados pessoais, isto , como uma inclinao particular a determinados pecados. Como disse o Conclio de Trento: Deixada para os nossos combates, a concupiscncia no capaz de prejudicar aqueles que, no consentindo nela, resistem com coragem pela graa de Cristo.90 Sem dvida, a con-cupiscncia e particularmente a propenso ao pecado que resultado de muitos atos pecaminosos (vcio) est, por assim dizer, no limite para o pecado, mas fica aqum, no pecado; a concupi