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revista cia abem numero 6 setembro de 2001 A pereepfao musical sob a atiea da linguagem Virginia Bernardes RESUMO: 0 objeto desse trabalho 6 a Percepyao Musical entendida como uma das disciplinas eixo da formayao musical de graduayao nas escolas de musica das universidades advindas dos antigos conservatorios de musica. Atrav6s de uma abordagem critica explorou-se de forma geral a concepyao de musica e ensino que gera e norteia os curriculos e programas que orientam a formayao musical dos alunos. A pedagogia que serve a tais modelos curriculares privilegia ayoes que se baseiam em atividades repetitivas e que tem no reconhecimento e na reproduyao 0 seu fundamento e principal veiculo metodologico. De forma especifica discute-se, atrav6s da analise do material produzido nas entrevistas semi-estruturadas enos Grupos Focais, questoes pedagogicas e metodologicas aqui consideradas fundantes da Percepyao Musical. Foi constatado que a concepyao de musica que estaria ancorando o ensino e que acaba por determinar 0 enfoque pedagogico que tradicional e preferencialmente 6 empregado, nao da conta de promover a compreensao e 0 dominic da linguagem musical. Aponta-se entao, a criayao aliada a analise auditiva e a interpretayao (execuyao), como sendo um caminho e uma das escolhas pedagogicas possiveis para se atingir tal objetivo. Esta proposta pedagogica, al6m de permitir a socializayao do aprendizado musical de forma mais democratica, mostra-se capaz de propiciar ao aluno a necessaria autonomia de pensamento atrav6s da percepyao consciente e reflexiva do que seja a musica entendida como Iinguagem, resgatando sua dimensao de saber e fonte de conhecimento. a objeto deste texto e a disciplina Percepc;:ao Musical enfocada pelo vies da linguagem. Ao nosso ver 0 modele tradicional de ensino e aprendizagem dessa disciplina nao comporta esse tipo de abordagem, na medida em que se vale de praticas pedag6gicas que alienam a musica entendida como linguagem, como sera oportunamente discutido neste artigo. Entendemos que essa disciplina possa ser considerada como um dos eixos na formac;:ao musical da graduac;:ao, nao s6 pela sua longa durac;:ao (de do is a seis semestres, dependendo de cada escola), mas tambem pelo seu significado para a formac;:ao musical dos alunos. Sendo assim, 0 objetivo principal deste trabalho e contribuir para a discussao e 0 fomento de outras metodologias de ensino (da musica em geral, e da Percepc;:ao em particUlar) na graduac;:ao, que privilegiem 0 enfoque da musica como linguagem, como um saber em si e como fonte geradora de conhecimento. Por isso, uma discussao conceitual acerca do modelo te6rico que sustenta essa disciplina nas escolas parece ser oportuna na medida em que, hoje em dia, estao em curso nas universidades a discussao e a busca de novas direc;:6es curriculares, flexibilizac;:ao de cursos, e as inter e transdisciplinaridades. Pretendemos, tambem, propor uma pratica pedag6gica mais adaptada a realidade brasileira. Ate hoje, tanto os currfculos quanta as pedagogias sao "importados" da Europa e da America do norte, culturas essas notadamente diversas da nossa no que tange aquestao musical e que tem, entre outras coisas, 0 estudo da musica incorporado, de uma ou de outra forma, ao seu cotidiano e ao seu processo escolar. 73

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abemnumero 6

setembro de 2001

A pereepfao musical sob aatiea da linguagem

Virginia Bernardes

RESUMO: 0 objeto desse trabalho 6 a Percepyao Musical entendida como uma dasdisciplinas eixo da formayao musical de graduayao nas escolas de musica dasuniversidades advindas dos antigos conservatorios de musica. Atrav6s de umaabordagem critica explorou-se de forma geral a concepyao de musica e ensino quegera e norteia os curriculos e programas que orientam a formayao musical dos alunos.A pedagogia que serve a tais modelos curriculares privilegia ayoes que se baseiamem atividades repetitivas e que tem no reconhecimento e na reproduyao 0 seufundamento e principal veiculo metodologico. De forma especifica discute-se, atrav6sda analise do material produzido nas entrevistas semi-estruturadas enos GruposFocais, questoes pedagogicas e metodologicas aqui consideradas fundantes daPercepyao Musical. Foi constatado que a concepyao de musica que estaria ancorandoo ensino e que acaba por determinar 0 enfoque pedagogico que tradicional epreferencialmente 6 empregado, nao da conta de promover a compreensao e 0

dominic da linguagem musical. Aponta-se entao, a criayao aliada aanalise auditiva eainterpretayao (execuyao), como sendo um caminho e uma das escolhas pedagogicaspossiveis para se atingir tal objetivo. Esta proposta pedagogica, al6m de permitir asocializayao do aprendizado musical de forma mais democratica, mostra-se capazde propiciar ao aluno a necessaria autonomia de pensamento atrav6s da percepyaoconsciente e reflexiva do que seja a musica entendida como Iinguagem, resgatandosua dimensao de saber e fonte de conhecimento.

a objeto deste texto e a disciplina Percepc;:aoMusical enfocada pelo vies da linguagem. Ao nossover 0 modele tradicional de ensino e aprendizagemdessa disciplina nao comporta esse tipo deabordagem, na medida em que se vale de praticaspedag6gicas que alienam a musica entendida comolinguagem, como sera oportunamente discutidoneste artigo. Entendemos que essa disciplina possaser considerada como um dos eixos na formac;:aomusical da graduac;:ao, nao s6 pela sua longadurac;:ao (de dois a seis semestres, dependendode cada escola), mas tambem pelo seu significadopara a formac;:ao musical dos alunos.

Sendo assim, 0 objetivo principal destetrabalho e contribuir para a discussao e 0 fomentode outras metodologias de ensino (da musica emgeral, e da Percepc;:ao em particUlar) na graduac;:ao,

que privilegiem 0 enfoque da musica comolinguagem, como um saber em si e como fontegeradora de conhecimento. Por isso, umadiscussao conceitual acerca do modelo te6rico quesustenta essa disciplina nas escolas parece seroportuna na medida em que, hoje em dia, estaoem curso nas universidades a discussao e a buscade novas direc;:6es curriculares, flexibilizac;:ao decursos, e as inter e transdisciplinaridades.

Pretendemos, tambem, propor uma praticapedag6gica mais adaptada a realidade brasileira.Ate hoje, tanto os currfculos quanta as pedagogiassao "importados" da Europa e da America do norte,culturas essas notadamente diversas da nossa noque tange aquestao musical e que tem, entre outrascoisas, 0 estudo da musica incorporado, de umaou de outra forma, ao seu cotidiano e ao seuprocesso escolar.

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Deve-se dizer que a origem dessaimporta<;:ao reside no fato de que, no Brasil, asescolas de musica das universidades (bem comoquase a totalidade das escolas de musica formaisou nao) advem dos conservatorios que foram porelas encampados. Os conservatorios brasileiros,por sua vez, basearam-se no modele europeu deensino musical.

Ainda hoje, 0 modele preponderante deensino da Percep<;:ao Musical elege os ditados,solfejos e suas multiplas varia<;:oes, como aspraticas pedagogicas mais eficientes para conduziro aluno a leitura e a escrita musicais. Atente-seaqui para 0 fate de que essas praticas ainda saocostumeiramente realizadas como procedimentosde reconhecimento e reprodu<;:ao, sendoreferendadas e muitas vezes compreendidas, 0 quee mais grave, como a finalidade dessa disciplina.

Ai reside a hipotese que orienta este estudo.Acreditamos que a proposta pedagogica quesustenta e rege a metodologia tradicional de ensinode Percep<;:ao Musical esta alicer<;:ada numaconcep<;:ao de musica e ensino musical quecompromete a forma<;:ao musical e auditiva dosalunos por nao pensar a musica como umatotalidade, algo vivo, fonte de conhecimento e porisso, um saber em si.

Assim sendo, a pergunta principal destetrabalho e: ouvir para escrever, ou compreenderpara criar e interpretar? Entende-se que 0 criar,aqui, vai alem da propria cria<;:ao em si mesma,expandindo-se as dimensoes da audi<;:ao e daexecu<;:ao, 0 que estaria estabelecendo um outroenfoque, de cunho qualitativo, a discussao daquestao pedagogica da Percep<;:ao Musical.Entende-se, tambem, que a musica deva sersempre vivenciada e que a reflexao esteja a servi<;:odessa experiencia, para que, dessa maneira, elapossa ser realmente compreendida.

Nas escolas de musica, de modo geral, sabermusica e saber ler e escrever musica. Tanto que ano<;:ao de erro esta vinculada a "correta"representa<;:ao grafica do som. Evidencia disso saoas formas de avalia<;:ao mais correntes naPercep<;:ao Musical. Em provas ou concursos, ossolfejos e ditados sao os instrumentos privilegiadospara verifica<;:ao e avalia<;:ao da leitura e escutamusicais, que, por sua vez, sao os indicadorespreferenciais de aprendizado. Busca-se a correta

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entona<;:ao das notas e a precisao ritmica como asformas mais eficientes, quase absolutas, damedi<;:ao do "saber" e, por conseqOencia, do"talento". Essas questoes sao de importanciafundamental pois estao, por certo, ancorando asconcep<;:oes de musica, ensino e percep<;:ao musicalque vigoram nas escolas.

Segundo Freire (1992), existe prevalencia euma supervaloriza<;:ao dos procedimentos tecnicose dos aspectos visuais da leitura e escrita. EmconseqOencia, restringe-se a fun<;:ao de comunica­<;:13.0 da musica. Estando restrita essa sua dimensao,estaria tambem comprometido 0 seu entendimentocomo linguagem. Sendo assim, a reprodu<;:aoestaria significando a restri<;:ao das atividadescriativas, que seriam comunicadoras porexcelencia, e, mais grave, assim se estaria tentandocristalizar a linguagem, "...desprovendo-a de seupotencial dinamico, de sua recria<;:ao permanente,de sua atualiza<;:ao...". (p.123).

E preciso que, neste momento, seapresentem ao leitor, mesmo que de modo sintetico,as concep<;:oes de musica, Iinguagem musical,ensino e Percep<;:ao Musical que estarao norteandoeste trabalho. Tomo a Koellreutter (1990) osconceitos de linguagem: "Sistema de signos,estabelecido naturalmente ou por conven<;:ao, quetransmite informa<;:oes ou mensagens de umsistema [...] a outro... " e de musica: "... sistema designos sonoros, ou seja, linguagem" (p. 90). Entao,a musica e uma linguagem.

Desdobrando-se essa ideia, tem-se alinguagem musical como um sistema de signos queestabelecem rela<;:oes entre si e com 0 todo e que,fundamentalmente, nao tem (necessariamente)representa<;:ao fora de si mesma. A significa<;:ao naoextrapola 0 fate musical e pode variar a partir doate de aprecia<;:ao, quando sao articulados edoados os sentidos que transcendem a estrutu­ra<;:ao logica da Iinguagem.1

A partir dessa compreensao do que sejammusica e linguagem, entendemos que 0 ensinomusical deveria, necessariamente, considerar amusica como esse objeto multifacetado, inteligivelem varios nfveis inter-relacionados, e que, por Iheser inerente esta natureza complexa, demanda umaabordagem globalizante e contextual. Nesseenfoque, compreendemos a Percep<;:ao como adisciplina que vai trabalhar no aluno sua capaci-

, Esse conceito de linguagem musical aplica-se amusica que preferencialmente se estuda nas escolas de musica, ou seja, a musicaocidental, de origem europeia, e entendida como arte, mas nao corresponde, por exemplo, ao conceito que os povos orientais ouindigenas tem de musica.

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dade de, nao necessariamente nessa ordem,perceber auditivamente, refletir e agir criativamentesobre a musica.

Lembramos que as escolas de musica, naqualidade de instituiyoes, surgiram e seconstitufram depois do advento da escrita. 0escrever musica tornou-se fundamento do sabermusica e 0 representante tornou-se mais importanteque 0 representado, gerando uma primeiradeformayao. Uma outra deformayao, decorrente dacrenya de que quem escreve musica sabe musica,ea confusao que se cria entre 0 escrever musica ea efetiva aprendizagem e 0 conseqQente domfnioda linguagem. Antonio Jardim (1988) explicita comclareza essa questao:

... A maior parte do que, nas escolas de musica, eapontado como erro esta vinculado as formas derepresentar 0 som. 0 escrever e, dessa forma, convertidoem fundamento do saber musica. Assim, 0 representantepassa a ter maior importancia que 0 representado, 0 quee, certamente, uma deformatyao. (p.131)

E ainda comum a iniciayao musical se darde uma forma na qual a musica e divorciada desua realidade, isto e, nao se ouve, nao se faz. Lida­se com um amontoado de conceitos ditos "te6ricos",que pretendem introduzir 0 aluno no "reino musical".A maioria dos Iivros de "teoria musical", inicia 0

aluno definindo 0 que e isto ou aquilo.

Ora, nada pode ser mais alienante edeformante que esse tipo de iniciayao musical, quetira do aluno a possibilidade de vivenciar a musicade forma global e sensfvel. Cai-se numa raciona­lizayao que Ihe esvazia 0 sentido, ao mesmo tempoque em que se reduz a capacidade imaginativa ecriativa do aluno. Este se ve enredado por uma seriede dados que, longe de Ihe permitirem a percepyaomusical, constrangem-no e roubam-Ihe 0 prazer deexperimentar.

Fica evidente a dificuldade criada a partir doaprendizado descontextualizado da musica.Exercfcios musicais, quando nada tem a ver comuma realidade musical que os contextualize, daouma falsa dimensao da linguagem. Ao contrario,quando estes se apresentam contextualizados, acompreensao da linguagem se realiza, propiciandoo aprendizado e 0 fazer organico da musica.Parece-nos estar af a diferenya. Assim e a musica,esse todo, essa globalidade complexa, porem plenade sentido. Essa metodologia que separa e trabalha

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os elementos musicais antes de percebe-Iosintegradamente no todo, sem se dar conta de suasrelayoes, deforma a musica, 0 musico e compro­mete seu aprendizado em varios nfveis.2

Verticalizando um pouco essa questao, 0 quee um ditado musical na concepyao pedag6gicatradicional? Seria 0 professor tocar, geralmente aopiano, para serem escritos pelo aluno, melodias auma, duas ou mais vozes, intervalos mel6dicos e/ou harmonicos, acordes isolados ou encadeados,enfim, toda sorte de signos musicais isolados ouna forma de fragmentos musicais geralmentecriados por ele ou tomados ao repert6rio musical eque apresentem determinadas questoes quenecessitam sertrabalhadas auditivamente. Quandoum professor faz (toea) um ditado espera que 0

aluno escreva exatamente aquilo que ele tocou.Normalmente 0 que nao e literalmente decodificado,de acordo com a versao que 0 professor tem emmaos, econsiderado errado. Cada nota, ritmo, cifra,enfim, 0 que for objeto do ditado, vale pontos.

o que ocorre muito comumente nessapratica sao os ditados "batidos" de compasso emcompasso, de dois em dois compassos ou porfrases, na melhor das hip6teses. Muitas vezes asnotas sao separadas dos ritmos no intuito depossibilitar uma melhor compreensao e memoriza­yao. Desse modo cria-se uma especie de aUdiyaoque discrimina, seleciona arbitrariamente, deforma,reduz e desqualifica a linguagem, alem de dificultar(senao impedir) sobremaneira sua compreensao.

o treinamento auditivo e visto como umaespecie de "ginastica auditiva", na qual 0 ouvidomusical e formado a partir do adestramento paraouvir, reconhecer e reproduzir. Assim, exercfciossao "criados" sem criterios composicionais clarosou apresentam uma dificuldade de leitura eexecuyao que os remete a categoria de "malaba­rismos musicais" sem sentido, pseudo-virtuosfs­ticos, e que, na verdade, estariam impedindo 0

musico de perceber e apreender 0 significado realdo fenomeno musical.

Dessa forma, 0 professor cria solfejos quenada mais sao que "charadas musicais"; exercfcioslabirfnticos, cuja compreensao e toldada pela faltade criterios composicionais claros. 0 mesmo se dacom 0 estudo da rftmica; com 0 intuito de trabalhara precisao e a coordenayao motora, sao feitosestudos rftmicos desprovidos de qualquer sentido

2 A despeito de toda a polemica que possa existir em torno dessa questao, ea partir da 6tica que considera a musica como linguagem,um todo articulado e relacional, um saber em si, e par isso, uma forma de arte capaz de produzir conhecimento, ea partir desse olhar,que se constr6i este estudo.

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musical, 0 que, por conseguinte, os tornamesteticamente descomprometidos da concepc;:ao demusica como linguagem artistica.

Pode-se depreender desse quadro quenotas, ritmos e harmonia ainda sao consideradosos parametros musicais mais importantes e, por sis6s, eficientes e suficientes para 0 desenvolvimentoadequado do ouvido e aprendizado musicais.

Cabe aqui perguntar: 0 que sente, pensa efaz um aluno que experimenta tal abordagemmusical, em confronto com 0 que ele ouve, toca,canta, rege ou compoe? 0 que ele faz com 0 queaprendeu na aula de Percepc;:ao Musical? Onde equando vai fazer a musica assim concebida, se amusica que ele vivencia no seu dia a dia e outra?

Uma das premissas basicas da disciplinaPercepc;:ao Musical diz respeito ao desenvolvimentoda leitura e da escrita musicais. E de fato, 0

treinamento auditivo leva os alunos a ouvirem, alerem e a escreverem. Mas a grande questao, e aqualidade dessa audic;:ao e dessa leitura, ou seja,ate que ponto a linguagem musical estaria sendointrojetada, assimilada e compreendida at ravesdesse treinamento? Ditados e solfejos, quandotrabalhados assim, de modo restrito, sao essencial­mente atividades de reconhecimento e reproduc;:ao,que nao aprofundam nem abrangem as possiveissignificac;:oes e sentidos articulados pela linguagem.Estariam entao sendo suficientes para garantir suacompreensao e dominio?

Ehrenzweig (1977) diz que a nossa percep­c;:ao se processa em dois niveis distintos: 0 da mentede superffcie, onde percebemos os eventosmusicais claramente articulados - as gestalten ouunidades estruturais - que seriam, por exemplo, assequencias escalares, acordes cadenciais,sequencias ritmicas, dinamicas. 0 outro nivel seriao da mente profunda, onde se registra 0 que nao ecaptado pela percepc;:ao de superffcie. Saoocorrencias nao evidentemente articuladas,chamadas por ele de transitivas, tipo os glissandose vibratos entre uma nota e outra, acordes efragmentos mel6dicos de passagem ou osprocedimentos como inversoes, espelhamento,retrogradac;:oes ou ainda as ideias e motivosmusicais, suas variac;:oes e elaborac;:oes existentesno decorrer da pec;:a.

Essa mente, que "supera em sua realizac;:aopuramente tecnica as func;:oes articuladas emGestalt da mente de superffcie [... ] pode, portanto,ter utilidades que a mente racional de superffcie e

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incapaz de tern (p.163). Essa mente profunda seriamuito mais criativa e flexivel que a mente desuperficie que tende a ser mais rigida e estatica.

As alternancias entre uma e outra podemser vistas como "...mudanc;:as dinamicas entrediferentes camadas de percepc;:ao" (p.168). Em vistadisso, pode-se pensar a percepc;:ao como sendoum processo de multiplas entradas conscientes einconscientes de informac;:ao. "...Podemos dizerquenovos elementos das escalas, dos sistemasritmicos, ou harmonicos ocorreriam primeiro escon­didos em passagens transitivas e inarticuladas e apartir dai, seriam gradualmente escolhidos pornossa audic;:ao consciente". (p.169) Dar. pretenderque solfejos e ditados deem conta da apreensao ecompreensao dessas relac;:oes estruturais edesconhecer a gama significativa de possibilidadesde articulac;:ao entre essas duas instanciasperceptivas, privilegiando e elegendo a audic;:ao desuperficie como instancia competente naapreensao e domfnio da linguagem.

As notas musicais podem ser vistas comoilhas, icebergs. Ha um vasto mundo de relac;:oessubmersas, nao aparentes na escrita musical. Istoe, essas relac;:oes podem nao estar presentes deforma codificada ou "mapeada" nas partituras. 0musico, ao "fazer a musica" e quem vai explicita­las, mais ou menos, de acordo com sua percepc;:ao,criatividade, reflexao e saber musicais. Enfim, bemou mal, as notas serao Iidas de acordo com amusicalidade e com 0 conhecimento do musico.Portanto, saber ouvir, ler e escrever notas, ritmos,compassos, acordes, sinais de dinamica,indicac;:oes de andamento etc. nao garante neces­sariamente a compreensao das relac;:oes musicaisimplicitas nas partituras.

Os diversos parametros musicais e todos osdemais aspectos que formam a complexa rede deinter-relac;:oes musicais nao sao captados e muitomenos compreendidos pela pratica usual desolfejos e ditados. Ler e cantar, ouvir e grafar notase ritmos nos lugares e durac;:oes certos e comoavistar essas ilhas. 0 que vemos, reconhecemos ereproduzimos sao, como ja foi dito, os cumesdessas grandes montanhas submersas, cuja maiorparte esta escondida. Para bem conhece-Ias,precisamos explorar 0 que esta abaixo da suasuperffcie e mergulhar nas aguas profundas.Acreditamos que ditados ou solfejos, objetivandoassuntos especificos do treinamento auditivo,apenas condicionam, adestram e, por isso, saopraticas superficiais e alienantes. Nao formammusicos conscientes da linguagem.

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Geralmente, como ja foi dito, quando se fazum ditado ou um solfejo numa aula tradicional,deve-se escrever estritamente 0 que foi tocado(notas, ritmos ou 0 que for que estiver sendo feito).Escrever algo semelhante e errar; 0 objetivo e fazera "c6pia" do que se ouviu ou leu. As notas devemser as mesmas que foram tocadas, os ritmostambem (apesar da pr6pria nota9ao musical naodar conta de tanta precisao). Normalmente, nasavalia90es, para cada nota ou ritmo, e atribufdoum valor em pontos. Entende-se que isso sejareduzir a musica e 0 seu estudo, a um sistemaestreito e perverso de avaliayao. Eimputar-Ihe umaobjetividade inexistente na realidade de sua praxis.Nao se quer dizer com isso que a afina9ao ou aprecisao rftmica sejam dispensaveis; ha que serelativizar tambem essa questao; em determinadoscontextos musicais sao mais que desejaveis, ateimprescindfveis. Sabemos que a musica e maiorque notas, ritmos e harmonias e que estes naopodem continuar a ser os parametros de avalia9aodo aprendizado musical na PerceP9ao Musical. Amusica esta estruturada sobre a ordem dalinguagem, ela e uma linguagem. Uma vez que estaseja compreendida, as notas e os ritmos se afinaraoe serao precisos pela necessidade da sua pr6priaexpressao.

A musica e complexa e rica de potenciaissignifica90es e sentidos. Tudo acontece ao langedo tempo, simultaneamente, de forma articulada erelacional ao contrario do que acontece na "musica"dos ditados e solfejos. Parece-nos ser um caminhomais interessante partir do todo, da percep9aoglobal, para daf perceber as rela90es desse todocom suas partes e, nessas partes, buscar asestruturas que as sustentam e, por conseguinte,sustentam 0 todo. Ir "adentrando 0 universe damusica", desconstruindo-o para compreende-Io.Fazer isso no tempo do ouvinte, respeitar edirecionar 0 processo de escuta de acordo com ademanda de quem ouve e valida-Io da forma comoele acontece. Ao contrario, nos ditados, solfejos ecoisas do genero, quando empregados da maneirausual, parte-se do pressuposto de que todos ouveme leem a mesma coisa, da mesma forma, no mesmotempo. Sao procedimentos pedag6gicos quesubentendem um movimento de cima para baixo ede fora para dentro, portanto, de alguma formaautoritarios e que excluem tanto quem se senteinibido ou ansioso por nao dar conta do que sepropoe naquele momento, quanta quem ja deu ese refugia no sono enquanto espera.

Democratizar esses procedimentos seria 0

mesmo que torna-Ios socializaveis, 0 que significatorna-Ios mais includentes, respeitando as

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diferen9as e ate mesmo buscando-as como um fatorde cresci mento, nao de exclusao. Acreditamostambem que a intera9ao propicie a expansao dasfronteiras da percep9ao musical em si, porque acada troca 0 painel perceptivo se amplia.

o desafio do conhecimento musical passapela escolha consciente de tudo 0 que possaprepicia-Io de forma abrangente e aberta a todosque queiram busca-Io. A Percepyao deixa de ser 0

territ6rio de uns poucos privilegiados possuidoresdo "ouvido absoluto", para ser possfvel a qualquerum que se habilite a desenvolver um bemtrabalhado ouvido relativo. Essa possibilidade deconstruir 0 conhecimento, a partir da pr6priacapacidade e dos pr6prios recursos, democratizao saber e torna 0 aprendizado vivo e interessante,alem de estabelecer 0 sentimento de inclusao.

o recurso pedag6gico da analise auditiva,por exemplo, trabalha sempre com a inteiridade dofen6meno musical, isto e, tendo como foco detrabalho 0 objeto sonore (a musica realizada) e naoa sua representa9ao (a partitura), possibilitando quea musica nao se fragm~nte: todos os elementosmusicais percebidos mantem sempre rela9ao entresi e com esse todo. A experiencia auditiva eintegradora e nisso se diferencia da visual. Daf aperceP9ao do contexto. Essa forma de perceP9ao,dita sistatica (Koellreutter, 1990, p.120), buscaintegrar e inter-relacionar as partes e 0 todo,evidenciando a estrutura da linguagem, e aindapermite que a musica seja compreendida como umobjeto vivo, portador de tantos sentidos quantosforem os percebidos e articulados pelo ouvinte oupelo interprete.

Essa forma de percep9ao e muito diferenteda que separa, discrimina, fragmenta e lineariza amusica tal como nos ditados e solfejos. SegundoMoraes (1989), "...a musica e feita de sons que seencadeiam - horizontalmente, verticalmente etransversalmente..." (p.79). Extrapole-se isso paraos diversos parametres, elementos, ocorrencias esuas rela90es e teremos uma ideia aproximada dacomplexidade do fen6meno musical. Acreditamosque essa forma de apreensao passe, de formadeliberada, pela interayao das "duas mentes" e quepossa ser intentada pela analise auditiva, seguidada criayao e execuyao.

Ficar 0 tempo todo ligado na pr6priasensayao. "Sentir" e assim "perceber"; nao escutaras notas mas ouvir a musica. Mas, como ouvir amusica sem escutar as notas, saber quais foram equanta cada uma durou? A princfpio isso podeparecer impossfvel ou nada plausfvel na 6tica dapedagogia tradicional.

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Obviamente, altura e durayao saofundamentais, essenciais amusica; mas nao sao amusica. Nao reconhece-Ias, reproduzi-Ias ou anota­las de imediato nao significa necessariamente naoa ter percebido. Antes disso, questoes estruturaiscomo as relayoes entre os materiais, 0

reconhecimento dos gestos, dos motivos, aorganizayao micro e macro formal, os procedimen­tos de elaborayao, gerayao de tensoes, conduyaode foryas e toda sorte de articulayoes entre vozes,timbre, movimento mel6dico, rftmica, movimentoharmonico, ritmo harmonica precisam estarcompreendidas. Assim, a musica fara sentido e naose dependera tanto das inumeras repetiyoes paraforyar a memorizayao dos trechos. A fluencia, 0

nexo do que foi ouvido se faraD presentes e amusica sera percebida e compreendida semdesgastes. Como num tear, onde cad a fio,sustentado pela estrutura, tem seu lugar pr6prio es6 faz sentido e expressa sua beleza quando juntodos demais.

Quando 0 trabalho de percepyao musicalparte do todo e busca saber como esse todo foiengendrado, urdido, a musica assume sua realdimensao de existencia no mundo e passa a serpercebida tal qual e ouvida na vida: na dimensaodesse tecido complexo feito de sons e silencioscontinuos e/ou descontinuos; cuja trama comportadensidades e intensidades variadas; cujas coressao dadas pelos timbres; onde 0 jogo das durayoese dos gestos estabelecem 0 tempo do fluir e doestancar que se estrutura e articula em partes quese expandem na inteireza da forma. Essa cadeiade pensamentos, sentimentos e ayoes, vivenciadana analise auditiva, e a sfntese de um processo deaprendizado que leva ao conhecimento. Isso passa,necessariamente, pela curiosidade e essa, por suavez, desperta 0 interesse que e motivador de umaatitude ativa diante do objeto investigado.

Para que ocorra a apreensao e acompreensao desse "mosaico" a ser construfdocomo se se estivesse jogando, onde se tem queligar e inter-relacionar as muitas coisas ouvidas epercebidas, e usada a audiopartitura. 0 usa daaudiopartitura como recurso didatico-pedag6gicofaz dela uma ferramenta que possibilita aconcretizayao do que foi percebido atraves daanalise auditiva. Assim, a partir da criayao de umaescrita que pode congregar elementos da notayaomusical tradicional com uma grafia que sugere por

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analogia, cria-se 0 roteiro grafico do que foianalisado auditivamente. Por exemplo, se foipercebida uma serie descendente de segundasmaiores e teryas menores, em staccato e piano, 0

aluno pode notar esse evento utilizando uma grafiaque sugira a seqOencia dos intervalos, 0 perfildescendente da Iinha mel6dica e sua dinamica.Continuando, se esse fate e uma elaborayao domotive da peya, pode-se registrar essa relayaoevidenciando tambem 0 procedimento usado nessaelaborayao, bem como sua localizayao na estruturaformal. Esse trabalho perceptivo e reflexivo serarealizado com todos os estratos que integrarem aobra de modo a explicita-Ios e interrelaciona-Iosem diversos nfveis.

A aUdiopartitura sera tanto mais eficazquanta mais claras forem as indicayoes dasocorrencias e eventos musicais de qualquer ordeme natureza e deve explicitar e esclarecer asrelayoes percebidas entre essas ocorrencias eeventos. Pode-se dizer que a audiopartitura e umesboyo, uma especie de "mapa multidimensional"da percepyao musical onde 0 aluno podera adquirir,trabalhar e desenvolver a percepyao sistatica queleva asinerese. 3

Resumidamente, a analise auditiva promovea desconstruyao do objeto musical, permitindo,assim, 0 reconhecimento estrutural de seuselementos e sua inter-relayao alem de propiciar suacompreensao funcional. Na analise auditiva, reflete­se sobre 0 processo de criayao, revivendo-o erecriando-o. E importante salientar que essetrabalho e realizado coletivamente, isto e, todosouvem a mesma musica ao mesmo tempo e cadaum pode expor sua versao sobre 0 que foi ouvido.Essa troca possibilita-nos alargar e aprofundarnossos horizontes de percepyao, descobrir edesenvolver outras possibilidades de realizayaomusical. 0 professor sai do lugar de "quem tem averdade e 0 saber" e passa a ocupar 0 papel doorientador, daquele que aponta possibilidades einterage com 0 aluno, respeitando e validando suaaptidao, hist6ria, capacidade e ritmos deaprendizagem e, enfim, ocupa 0 lugar daquele queeduca.

o pas so seguinte, a criayao, permiteconstruir uma musica a partir de elementosrecolhidos e escolhidos a partir dos dados daanalise auditiva. Ao final, a execuyao possibilitara

3 Sinerese - (do gregG sinai reo = juntar, agrupar, unir, integrar varios elementos) e 0 resultado de um processo de perceP9ao arracional(que nao e contrario nem conforme ao racional) que causa a sensa9ao de unidade, integrando os elementos em um todo; sensa9ao deunidade causada por um processo al6gico de relacionamento dos signos musicais; integra9ao de varios elementos por todos os lados eao mesmo tempo. (Koellreutter, 1990, p.121)

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a vivencia e a compreensao real, fatual da musicapor meio de sua realizagao a luz do que foi antesapreendido e compreendido.

Essas atividades musicais realizadas assim,sempre de forma interativa, tendem a aumentar ea qualificar 0 espectro do conhecimento musicaldos alunos. Costumam trazer aconsciencia muitossaberes ainda nao nominados ou dominados, masde alguma forma ja vivenciados e acabam porressignifica-Ios. Dessa maneira, pela aplicagaorepetida desse processo num repert6rio variado, apercepgao vai ampliando-se e aprofundando-se,tornando a escuta musical cada vez mais viva eabrangente.

A criagao, enquanto ferramenta pedag6gica,abre a possibilidade de se Iidar com a musica deuma forma mais aberta, experimental e concreta.o que e imaginado, agora pode ser manipulado,dissecado, improvisado, composto e recomposto,tanto em pensamento quanta no concreto, ou seja,as instancias do pensar e do fazer musical estariamsendo contempladas. A criagao permite 0

manipular, 0 "par a mao na massa"; constr6i-se 0

aprendizado e 0 conhecimento e gerado a partirdessa construgao. Se a rede de inter-relagoes ecompreendida e realizada, 0 sentido musical edado, percebido e flui como que "naturalmente".Nesse momento, acredito que se de a compreensaoda linguagem musical. 0 seu domfnio vira dotrabalho consciente e constante na busca doentendimento e da realizagao das relagoesmusicais em seus diversos nfveis. Na busca dofazer desvela-se 0 saber, 0 "ter gosto, ter sabor"imanentes amusica. Essa ea diferenga entre ouvirpara escrever ditados e ouvir para compreender eentao criar.

o pensar de quem cria ediferente do pensarde quem toca. 0 interprete, geralmente, naoconcebe nem manipula a obra no sentido que 0

criador 0 faz. 0 criador, como foi visto, torna-semais livre e autanomo para lidar com amaterialidade da musica. Nesse sentido, diz Freire(1992) que "...a recriayao, que se da na pratica deinterpretar obras alheias e tambem arte, mas naoesgota, nao atinge a totalidade do fazer artfstico."isto porque "... A realizagao plena do fazer artfsticoesta na criagao, na expressao dos sentimentos, oude significados, ou de sentidos ..." (p.148).

Entao, propiciar ao interprete 0 pensamentode quem cria abriria a possibilidade de expandir­se a recriagao que ocorre na interpretagao, ou seja,a recriagao poderia extrapolar a interpretagao dasideias do compositor. 0 interprete seria ele mesmo

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um co-autor apto e instrumentado a penetrar naobra e dela fazer saltarem seus outros sentidosainda insuspeitos e nao articulados. Dessa forma,a interpretagao seria sempre uma possibilidade deum fazer musical originario, provinda de umaaudigao musical profundamente engajada napercepgao e compreensao da linguagem.

A linguagem deve ser compreendida porque:

Apreender da conta da captayao da totalidade enquantototalidade, e um tipo de relayao imediata, indispensavelao conhecimento. Apreende-se 0 sentido de algo mesmoquando nao se e capaz de saber 0 que significa [... j noapreender 0 movimento e simultaneo, de dentro para forae de fora para dentro e nessa tensao se apreende. 0apreender nao e quantificavel nem tampouco qualificavel;nao e redutfvel nem ampliavel; nao e, portanto,dimensionavel no espayo e, nem tampouco, no tempo.(Jardim, 1988, p.47)

As atividades de analise auditiva e criagaotraduziriam esse movimento simultaneo daapreensao, na medida em que a analise alimentao processo criativo e este subsidia novas analises.o aprendizado nao seria apenas adquirido, masconstrufdo, assim como 0 conhecimento. Osprocessos de apreensao da linguagem musical, poressa via, sao muito vivos e dinamicos. Acomplexidade do que foi apreendido se revelarana proporgao da aptidao, capacidade econhecimento do aluno. A novidade, 0 aindadesconhecido vai sendo informado pela pr6priamusica que esta sendo analisada ou criada. Dessaforma, a apreensao se aprofunda e a pratica permiteque 0 conceito seja mais que entendido, vivenciado,e por fim, compreendido.

o compositor Pierre Schaeffer (1993)estabelece quatro modos de audigao que seriamordenados num grau crescente de complexidadedessa forma:

Escutar e prestar atenyao (dirigir os ouvidas), seinteressar por. Eu me dirijo ativamente para alguem oualguma coisa que me e descrita ou assinalada por umsom.

Ouvir e perceber atraves dos ouvidos. Por oposiyao aescutar que correspande a uma atitude mais ativa, aquilaque eu oUyo e aquilo que me e dado apercepyao.

Entender, nos reteremos 0 sentido etimologico: 'ter umaintenyao'. Aquilo que eu entendo, aquilo que me emanifesto, e funyao desta intenyao.

Compreender, trazer consigo, esta em uma duplarela980 com escutar e entender. Eu compreendo aquiloque eu visa em minha escuta, gra9as aquilo que euescolhi entender. Mas, reciprocamente, 0 que eu jacompreendi dirige minha escuta, informa 0 que euentendo (p.90,91). (grifos nossos)

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Atente-se para 0 fato de que todos essesnfveis seriam interligados e complementares.Quando se ouve algo, ouve-se 0 que e dado a ouvir:seria 0 perceber fisiologico do som, comum a todosque tenham essa func;:ao ativa. 0 que se escuta,escuta-se porque se quer, e ate voluntario. Af ja setem a percepc;:ao do sentido ou a possibilidade dele.No entender, ha deslocamentos temporais; relac;:6essao estabelecidas entre experiencias passadas einteresses atuais. Selecionar, apreciar e qualificarsao as ac;:6es empreendidas quando se entende.Nesse momenta quem ouve atribui significado epercebe 0 sentido ou sua ausencia. Sendo assim,o compreender estaria englobando os demais.Nesse estagio, 0 ouvinte e capaz de orientar aspercepc;:6es que foram qualificadas no entender,sabendo conscientemente 0 por que do sentido oude sua falta.

Entao, ainda segundo Jardim (1988),"... nesse nfvel [...] 0 ouvinte e capaz de apreenderuma linguagem sonora, nao verbal, comolinguagem" (p.92). Portanto, pode-se ter alinguagem como sendo constitufda ao modo de umamatriz potencial de relac;:6es e articulac;:6es, a partirdas quais seriam constitufdos pontos de escuta,sistemas ou "idiomas musicais". No ocidente,seriam tres esses grandes sistemas: Modal, Tonale Nao-Tonal. Os compositores, quando enquadra­dos nos diferentes estilos de epoca, estariam assim,construindo-os e servindo-se deles. Contudo, nessemovimento, a linguagem musical pode ser sempretransformada.

Cabe concordar com Moraes (1989) quandodiz que

... 0 tenomeno musical eextremamente complexo de serdetinido, tantasticamente variado ao ponto de rejeitarabordagens estreitas. Como a vida, a musica esta emcontinuo movimento, areas inteiras suas mudam deaspecto a cada dia que passa, propondo-nosconstantemente intormac;:6es desconhecidas, provenhamelas do presente ou do passado. E diante desses signosnovos, e precise recalibrar-nos continuamente a tim detrui-Ios, a tim de trocar informac;:6es com eles nessereciclar. (p.56)

Isso nos da a ideia de que a musicademandaria uma atitude aberta e agil ao se lidarcom sua linguagem. A estagnac;:ao do modo depensa-Ia, cria-Ia e executa-Ia seria a cristalizac;:aode sua existencia ou a criac;:ao e a manutenc;:ao depontos de escuta absolutizantes (Jardim, 1988).

A partitura e a representac;:ao grafica dosistema de signos que foi estabelecido para amusica. Como diria Koellreutter, "a partitura eapenas 0 mapa, nao 0 territorio". A notac;:ao musical,como foi dito anteriormente nesse trabalho, e

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incapaz de dar conta da linguagem; existe, natentativa de organizac;:ao e socializac;:ao das ideiasmusicais do compositor. Confundi-Ia com aIinguagem e dar-Ihe uma dimensao equivocada,reduzir 0 significado, a compreensao e aimportancia do domfnio da propria linguagem. E 0

que nos confirma 0 professor Jardim (1988):

...Ocone com as instituic;:6es de ensino musical umtenomeno semelhante ao que ocorre as demaisinstituic;:6es de ensino, isto e: tomar a representagao dacoisa pela coisa. No caso da musica e do moderno ensinode musica isso se da corn a escrita e com a impressaomusical, que passaram a ter urna importancia tao grandepara 0 desenvolvimento da musica que saber musica setornou sinonimo de, ao menos no que diz respeito asescolas de musica, saber ler, e as vezes escrever musica[... ] Em conseqOencia, as quest6es relativas a linguagemmusical acabam por serem reduzidas a problemas deescrita... (p.131)

De fato, a esc rita ou a leitura de umapartitura apenas no sentido de codificar oudecodificar como ja vimos nao garantem acompreensao da linguagem. Quando se reduz aIinguagem musical apartitura, 0 que se tem e umaconcepc;:ao equivocada e reduzida de linguagem ede musica. Isto por sua vez estaria levando 0 alunoao entendimento de que os ditados seriamsuficientemente eficazes para dotarem-no dacompreensao dessa linguagem concebida dessaforma, ja que fazer ditados e, na maioria das vezes,escrever notas, ritmos e talvez, harmonias.

Uma escrita competente para se notar 0 quefoi criado parece ser importante para 0 fechamentode uma etapa da criac;:ao: a feitura e a concepc;:aoda partitura, das ideias musicais colocadas nopapel. Essa etapa e importante. Escrever musicapode nao ser simples em muitos casos .

A notac;:ao musical e muitas vezes muitolimitada para dar conta do pensamento, ideia egesto criativos. Por isso, a escrita da musica quese cria assume uma dimensao pedagogicaimportante. A busca da melhorforma de escrita parao que se quer comunicar, poderia levar acompreensao mais aprofundada do que foi criado.

A escrita musical pode ser vista como atentativa da representac;:ao musical, tornandocompartilhavel e socializavel a ideia de um autor.A nota, a "bolinha", a ponta do iceberg, meraconvenc;:ao, nao da conta das relac;:6es nem dasarticulac;:6es em qualquer nfvel. Pretender que, aoouvi-Ia e grafa-Ia na clave, espac;:o ou linhaadequados e com a durac;:ao certa 0 aluno estejacompreendendo a musica, e desconhecer 0

significado de Iinguagem musical. Oaf, a formaestereotipada de se lidar com a musica e suarepresentac;:ao escrita.

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A musica quando vista e concebida de formaestreita impede a transformac;:ao do musico e delapropria. Acreditamos mesmo que as relac;:6esmusicais possam acontecer em outros nfveis, maisinconscientes ainda; tanto isso 8 verdade que 8notorio 0 grande numero de pessoas que nao leemou escrevem; "tocam de ouvido". Se 0 fazem 8porque, de alguma maneira, assimilaram alinguagem e lidam com ela de forma nao conscienteou nao racional, como quem aprende a falar umaIfngua estrangeira sem nunca ter lido ou escrito umasentenc;:a. Dessa forma, "... a infra-estrutura da arte8 modulada por processos profundamenteinconscientes e pode expor uma organizac;:aocomplexa superior a estrutura logica dopensamento consciente." (Ehrenzweig, 1977, p.30).De outra maneira, como explicar a formac;:ao degrupos musicais os mais diversos, cujos integrantesnao leem nem escrevem uma so nota, ou oscompos ito res de musica popular quereiteradamente declaram nao saberem ler nemescrever musica e mesmo assim comp6em ou,ainda, os arranjadores que "montam" seus arranjosnos estudios de gravac;:ao?

Assim sendo, pode-se dizer que aconstituigao da linguagem musical 8 anterior eindepende do processo de alfabetizagao. E dadade forma inconsciente e, a rigor, nao necessita danotagao, da escrita ou da leitura para que se realize.o processo de escolarizagao da musica necessita,sem duvida, te-Ia representada sob a forma deescrita, para que possa, entre outras coisas, sersocializada. Mas daf a tomar a partitura pelalinguagem ou 0 processo de decodificac;:ao por suacompreensao e aprendizado, 8, como ja dissemos,ignorar ou desconhecer 0 que significa linguagem,bem como os processos que a constituem eestruturam.

Para Moraes (1989), ha pelo menos trescategorias no ouvir musica: com 0 corpo, com aemogao e com 0 c8rebro. Por certo, a terceira, 0

ouvir intelectual, engloba as duas anteriores, ja quesomos uma integragao. Complementarfamosdizendo que essas tres categorias se estenderiamtamb8m ao fazer. No caso dos musicos, parece­nos que esse ouvir/fazer racional, que investiga,procura, pergunta e inter-relaciona, executa e frui,8 fundamental para desvendar e compreender alinguagem.

Mas para que desvendar a Iinguagem? Paradomina-Ia e, a partir daf, recria-Ia, emprestando amusica (um objeto que so se consuma de fate nomomenta da execugao) novas trajetorias epossibilidades.

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A linguagem nao 8 mecanica. Nao pode se­10 na medida em que possibilita a articulagao e adoac;:ao de sentidos a musica, como disse Jardim(1988). Interrompe-Ia de compasso em compasso8 mecaniza-Ia al8m de, obviamente, fragmenta-Ia,tornando-a incompreensfvel. Segundo Langer(1989) "... a melodia se iguala ao pensamento, sedetidos ao meio, no transcurso, perdem 0 sentido..."(p.94). Seria como se 0 bela verso de Gertrud Stein,"...Uma rosa... 8 uma rosa ...8 uma rosa... "pudesseser melhor percebido e apreendido, soletrando-seU ma ro s 0 movimento do todo aparte eda parte ao todo, sem que se percam aorganicidade, a sensac;:ao de inteireza e asreferencias contextuais 8 um dos caminhos quepodem levar acompreensao e ao aprendizado, semque se percam nesse percurso, as dimens6esest8tica e simbolica imanentes a musica.

Se para Langer (1989), "... a linguagem 8 0

unico meio de pensamento articulavel, e [... ] tudoque nao 8 falavel, 8 sensagao." (p.95) Para nos aIinguagem musical pode ser apreendida porque 8articulada; 8 possfvel sobre ela, de suas estruturase relag6es. A musica em si nao 8 falavel, porquenao tem representagao fora dela; 8 da ordem dosensfvel, e do simbolico, portanto, nao 8 "dizfvel".Segundo Langer (1989), a musica 8 "FormaSignificante", 0 que quer dizer que pode serapreendida e sentida, mas nao definida, "... aarticulagao 8 sua vida, mas nao a assergao; aexpressividade, nao a expressao." (p.238).

Talvez seja na escrita que a musica alcanceo seu mais alto grau de racionalidade. Por isso,um trabalho desse tipo esbarra nessa questao que8 polemica para a area. Uma musica totalmenteracional seria baseada em escolhas puramenteintelectuais. Evidentemente, ha uma dimensao deracionalidade que 8 intrfnseca ao fazer musica eque nao ha como ter sua existencia negada, apesarde muitos musicos assim 0 afirmarem. Aindasegundo Langer (1989):

A musicalidade eamiude considerada uma caracteristicaessencialmente nao intelectual [... ] Por isso, tatvez, osmusicos [...] sentem-se tao freqCJentemente levados adesprezar as formas mais 6bvias de entendimento [... ]Mas, na realidade, 0 entendimento musical nao eestorvado pela posse de um intelecto ativo, nem mesmopor aquele amor a razao pura conhecido comoracionalismo [... ] e vice-versa, 0 bom senso e a agudezacientificos nao precisam defender-se contra qualquer'emocionalismo' que se sup5e ser inerente ao que dizrespeito amusica. (p.l 08)

Ebastante comum ouvir-se, nas escolas, quea "musica 8 para se fazer, nao para se falar sobre".

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Mas, ter ideias musicais, pensa-Ias e imagina-Iassoando organizadas e ao mesmo tempo da ordemdo racional, do sensfvel e do musical. Falar sabreelas e mesmo discuti-las nao torna a musica menosmusical, ao contrario, acrescenta-Ihe uma outradimensao de existencia, qual seja, a do plano dasideias, onde pode-se construir as referenciaisesteticos que Ihe trarao solidez, convicc;:ao e umoutro nfvel de fruic;:ao.

Sintetizando as ideias ate aqui discutidas,pode-se dizer que a analise auditiva propicia aoaluno a compreensao das relac;:oes, articulac;:oes eestruturas, das micro e macro formas af presentese dos procedimentos composicionais realizados apartir da identificac;:ao dos materiais escolhidos pelocompositor. Todo esse movimento de desconstru­c;:ao gera conhecimento, alem de permitir-Iheexperimentar a emoc;:ao estetica ao fruir a obra paresse vies.

o conhecimento expresso par essacompreensao vai ser organizado na forma daaudiopartitura, um "mapa auditivo" que registra deforma gratica todas as ocorrencias musicaispercebidas pelo aluno e suas inter-relac;:oes. Aaudiopartitura nao esta, necessariamente,comprometida com a notac;:ao musical tradicional(mesmo porque nesse momenta nao hanecessidade nem interesse pelo registro absolutodas alturas e durac;:oes) ha, sim, a busca dodesenvolvimento da audic;:ao que relativiza,interrelaciona e articula as ocorrencias musicais.A escritura de uma audiopartitura e um sinalevidente de que a linguagem esta sendoapreendida na medida da possibilidade de quem aesta realizando. A notac;:ao da partitura tradicionalvira a seguir, como exercfcio de tornar exeqOfvel esocializavel a que foi compreendido.

Quando se propoe um exercfcio de criac;:ao,da-se aos alunos a oportunidade de, com asproprios meios somados aos conhecimentosgerados na analise auditiva, construir a propriamusica alem de instrumenta-Ios para perceberem,estruturalmente, a Iinguagem musical. Nesta fase,sao vivenciadas as quest6es percebidas eapreendidas. E uma forma de materializa-Ias, detorna-Ias passfveis de serem pensadas,manipuladas e estruturadas de acordo com asideias musicais dos alunos.

Ao se analisar a pec;:a musical compostapelos alunos, nota-se com clareza a nfvel decompreensao musical. A pratica desse processotem evidenciado que a exercfcio de criac;:ao traz,em si, a que de alguma maneira ja estava sedimen­tado como conhecimento. 0 ato de escrever a

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musica (colocar a ideia sonora no papel, fazer umapartitura) denota a existencia de ideias musicaisconsolidadas. Na criac;:ao, expande-se a capaci­dade de apreender, atinge-se a compreensao eexercita-se a domfnio da Iinguagem que vai seconcretizar na execuc;:ao.

o fazer a musica que se criou e a expressaoculminante desse processo, que se pretende inteiro:ouvir, criar, interpretar. Nesse momenta, as alunosfecham para si um cicio de aprendizado construfdopar eles mesmos a partir de seus conhecimentosanteriores, dos estfmulos dados e da troca deinformac;:oes possibilitada pela interac;:ao, provocadapela discussao acerca de uma mesma questaopercebida de maneiras diferentes. Esse cicio serepete, noutro nfvel, a cada nova proposta. Cadacicio realimenta outro e novas patamares vao sendoalcanc;:ados. 0 aluno como que desvela da pr6priamusica todo a saber inerente a ela mesma e, daf,pode alc;:ar seus proprios veos.

Acreditamos que as trabalhos de analiseauditiva/criac;:ao/interpretac;:ao sejam vitais para adesenvolvimento do musico. Sao, em essencia, averdadeiro sentido de todo esse percurso. Sem elesse correria a risco de cair mais uma vez notreinamento auditivo vazio e divorciado daquilo quejulgamos ser essencial - a aprendizado como umaexperiencia enriquecedora no sentido de despertar,de propiciar a conhecimento maior daindividualidade que existe em cada um de nos.

A compreensao da linguagem e fundamentalporque e libertadora e propicia a pensar e serautenomos. Uma vez percebidas, compreendidase assimiladas as relac;:oes musicais nos diversosnfveis em que ocorrem, a musico pode "ter a chave"de qualquer musica, nao importando se e grafadaau nao; se feita par Cage, Bach au par uma tribodo Xingu; se e popular, erudita, folclorica; se foicomposta no sec.XV au no sec.XXI. Nao se tratamais de se ensinar au privilegiar este au aquelerepertorio, mas sim de possibilitar a compreensaoe a conhecimento dos diversos "idiomas" e ate"dialetos" musicais. Essa autonomia auditiva estariacontribuindo para que, independentemente dosrepertorios propostos, a aluno se visse estimuladoe em condic;:oes de ouvir e interagir analftica, crfticae criativamente com qualquer musica produzida parqualquer cultura.

Mais do que um trabalho que promova aaluno a estar apto a ouvir, reconhecer, ler aureproduzir qualquer coisa, aqui busca-se aformac;:ao de um ouvido musical aberto e atento.Acredita-se que esse seja um caminho para aformac;:ao de um ouvido relativo, vista aqui como

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um instrumento flexfvel e pronto a interagir com asmais diversas manifestar;:oes musicais, capaz deperceber nao s6 as estruturas e suas relar;:oes, mas,por causa, atraves e alem delas, apreender alinguagem, permitindo entao, como ja foi dito, acompreensao das musicas.

ere-se tambem que quanta mais apercepr;:ao sistatica for desenvolvida tanto maiorsera a capacidade de analisar e sintetizar do aluno,possibilitando 0 transite cada vez mais fluente entreas multiplas relar;:oes (sucessivas e/ou simultaneas)que constituem 0 todo, concretizando, assim, acompreensao da linguagem.

Aponta-se,entao, este como um caminho quedemocratiza a questao da audir;:ao, visto quecontempla a todos que tenham interesse e potencialmusical. a aluno tendera a sentir-se mais inclufdoe responsavel pelo seu pr6prio processo deaprendizagem, visto que vai depender dele e dasinterar;:oes que ele for capaz de fazer 0 seudesenvolvimento musical.

A recorrencia dessa pratica significa umaampliayao express iva da capacidade de analiseauditiva estrutural 0 que levaria ao conhecimentoe domfnio progressivos das leis internas ou dosprincfpios organizadores da musica. a treinamentoauditivo seria outro aspecto a ser construfdo. Nisso,a audir;:ao se modifica; sai do corredor estreito doabsoluto e desvela a sua pr6pria potencialidadeem articular novos sentidos. Da mesma forma, acriayao consciente e embasada vai conduzindo 0

aluno a autonomia de pensamento, a condiyao deser perceptivo, reflexivo e ativo com Iiberdade.Liberdade esta que sera construfda e conquistadaatraves do saber e do conhecimento, por sua veztambem produzidos nos limites pr6prios de cadaum.

a professor nesse caso, nao traz 0 "ponto"pronto de casa, traz, quando muito, a proposta, istoe, apenas sugere, aponta e deixa que 0 aluno Ihede 0 feedback. Ele, 0 aluno, e quem vai dar amedida do que Ihe e possfvel naquele momento. aprofessor acompanha, orienta, e mostra outraspossibilidades. Deixa de ser 0 instrutor e ocupa 0

lugar do educador.

Para que isso aconter;:a, e preciso haver umapratica que seja reflexiva, alimentada por umaconcepr;:ao de musica que compreenda ser elamesma fonte de conhecimento e um saber em si, 0

que quer dizer que ela nao e estatica, pronta eacabada, nem que exista uma unica ou melhormaneira de realiza-Ia. No entender de Moraes(1989) isso significa que a musica "percebida por

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esse prisma [...J e labirinto, enigma a ser decifradoa cada instante..." (p.92) Mas um labirinto que acada escuta nos mostra novos percursos a seremseguidos, novas safdas para que, de fora, se tenhadela uma visao diferente, depois de percorrido cadanovo itinerario." (p. 93).

Essa plasticidade, esse movimento podemtrazer de volta amusica 0 que Ihe foi subtrafdo aoser escolarizada nas bases do modele dosconservat6rios, ou seja, a vida pulsante, plena depossibilidades de sentidos, algo muito distantedesse carater reprodutivo que Ihe rouba apossibilidade da verdadeira existencia.

A concepr;:ao de musica, ensino e percepyaomusical que orienta essa proposta metodol6gicaabarca essa compreensao, ou seja, a de que naoexistiria uma s6 concepyao de musica quereferende seu ensino. Partindo-se do pressupostode que ela e linguagem, estariam abertas as variaspossibilidades de compreensao e leitura de umaobra, bem como seriam diversos os entendimentossobre as relayoes musicais e extra-musicais que aengendram. Essa seria a fonte da criayao, aquientendida pelo vies pedag6gico, que estarialevando 0 aluno a vivenciar a linguagemexperimentando-Ihe a materialidade e construindoe conquistando sua autonomia de pensamento eayao.

Acredita-se, por isso, que a criayao sejaimprescindfvel a formayao do musico. No atecriativo, tomado como pedag6gico, estariamcontempladas todas as instancias do fazer musical.au seja, na atividade de criar;:ao trabalha-se 0

ouvido interne e 0 externo, tem-se a oportunidadede improvisar sobre 0 material 0 que significa, alemda pratica instrumental, 0 treinamento auditivo feitode forma ativa e reflexiva, uma vez que escolhasterao que ser feitas e para se escolher necessita­se reconhecer e saber reproduzir.

A criar;:ao, como ja se disse, e umaoportunidade de mar,ipular signos, diferentesmaneiras de estruturar;:ao, formas de articular;:ao esobretudo, de vivenciar concretamente conceitosabstratos como a necessidade intrfnseca demateriais, adequayao das ideia ao sistema,unidade, coesao e coerencia. Enfim, a criar;:aomusical permite ao aluno experenciarconcretamente a linguagem. Acredita-se que 0 fazerreflexivo propiciado pela criayao proporcione umacompreensao musical mais profunda do que aexperienciada na recriayao ou interpretar;:ao. Aexperiencia da criayao teria em si a totalidade dofazer artfstico, daf, sua importancia.

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Como decorrencia, 0 ensino personalistaexistente nas escolas de musica poderia ser revistoja que se apoia numa visao paternalista de ensinoque faz 0 aluno dependente dos pensamentos eescolhas dos professores. Isso seria possfvel namedida em que os alunos se sentissem sustentadose motivados por essa autonomia de pensamento eac;:ao musicais conquistada e embasada numconhecimento que foi conjuntamente construfdo,que nao se arvora em ser definitivo, muito menosabsoluto. Ao contrario, "os pontos de escuta"estariam sendo criados, superados e recriados deconformidade com os posicionamentos, escolhase processos vividos por alunos e professores.

o professor, por sua vez, teria que se dispora vivenciar, ele proprio, todo esse processo, sendoao mesmo tempo um participante e um orientadoraberto e disponfvel para 0 desconhecido e aincerteza que disto advem. Essa nova postura 0

levaria a sair desse lugar de quem tem 0 saber eesta ali para transmiti-Io ad infinitum.

Entao se instalaria uma necessidadesaudavel de constante reciclagem do corpodocente, uma vez que esse processo, por ser elemesmo aberto, demandaria uma posturacondizente, isto e, uma disponibilidade atenta econstante para interagir e reagir as demandas queviessem a ser criadas. Seria uma concretizac;:ao daproposta de ensino pre-figurativo, proposto porKoellreutter (1997). Dessa forma, a Percepc;:aoMusical estaria pari e passu com um processo deentrosamento disciplinar, 0 que e ha muitopretendido.

Talvez assim a "sensac;:ao de conservatorio"pudesse ser enfim substitufda pela sensac;:ao deUniversidade, lugar do "...pensar transitivo e do criaroriginario ...", como disse Jardim (1988, p.126).

No rastro dessa transformac;:ao, poderia estartambem 0 infcio de uma mudanc;:a muitosignificativa, qual seja, a ruptura de um modele deensino musical que e secular e que se baseia nacisao entre 0 fazer do interprete e 0 fazer docompositor. 4 Cisao essa que teve infcio a partir dosurgimento da notac;:ao musical e acirrou-se com 0

seu desenvolvimento, criando um tipo de interpreteque recriaria a ideia do compositor na interpretac;:ao,mas que, por isso, ficaria limitado a uma realizac;:aoartfstica parcial.

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Sabe-se que a musica existe plenamente,quando e feita, executada. Por isso, a praticainterpretativa precisa ser densa, embasada numacompreensao que Ihe de substancia e identidade,para que deixe de ser repetitiva e reprodutora. Tocarcomo 0 professor diz ou sugere, fazer tudo 0 que 0

editor prescreve na partitura ou mesmo tentar imitaro que 0 "grande" interprete faz no palco ou no CDpremiado sao escolhas que repetem e reproduzem.Dialogar e argumentar com 0 professor, questionara visao dos editores, produtores fonograticos ecrfticos de musica sao escolhas que denotamautonomia e identidade. Assim, a praticainterpretativa, seja ela qual for, seria 0 "estuario"desse processo pedagogico.

Aqui, 0 que se aventa e a possibilidade desseinterprete acrescer ao seu pensamento de recriadoro de criador e assim ver-se embasado a ser co­autor. Dessa forma, a repetic;:ao e a reproduc;:aoseriam substitufdas por recriac;:6es vivas,impregnadas de identidade e novos sentidos. Amusica passaria a ser domfnio de todos quequisessem desvendar-Ihe e compreender-Ihe alinguagem e nao mais dos poucos "iluminados".

Essa proposta pedagogica nao efundamentada em praticas ocasionais ou ligeiras.Ao contrario, construiu-se a partir da praticacotidiana na disciplina Percepc;:ao Musical, dadiscussao com os pares, da troca de impressoes,informac;:6es e sentimentos com os alunos, alemdas varias leituras. Da mesma forma como seconstituiu, encontra-se agora: aberta a questiona­mentos e ao dialogo.

Na verdade, a questao fundante dessetrabalho, encontra-se no papel social da musica,das escolas de musica das universidades e dosmusicos por elas formados. E evidente que asnossas escolas, nos moldes em que hoje existem,nao cumprem um papel social relevante ou justapara com a sociedade que as sustenta.

. Caberia, entao, a nos professores, alunos,musicos e artistas e a propria sociedade apontarcaminhos que abrissem as "portas dos corac;:oes ementes" dessas instituic;:6es para que a musicafosse 0 seu real objeto de trabalho e os musicospor nos formados tivessem, nos olhos, 0 brilho dosque veem a musica como um patrim6nio da criac;:aohumana, fsto e, um bem de todos para todos.

4 Ebom que se esclaret;:a que nao se entende, nem aqui se pretende, que todos os alunos venham a ser compositores na estritacompreensao do termo, mas sim, que os estudantes de musica, futuros musicos profissionais, possam vivenciar 0 processo da criatyao,que em si, traz toda essa riqueza. Isto sem duvida, Ihes garantiria, como foi visto aqui, uma outra dimensao e qualidade de saber musical.

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