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Diogo Luiz Lima Augusto ( Autor).
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A prudência, o discreto e a morte. A noção de persona nos tratados do jesuíta
aragonês Baltasar Gracián (1601-1658)
O conceito de persona é central nos tratados do jesuíta aragonês Baltasar Gracián,
sendo concebido para fundamentar um modelo de conduta para o homem. Para Gracián,
o homem nasce bruto e vai se aperfeiçoando com o tempo. Este processo, por sua vez,
confunde-se com a própria trajetória da vida humana. A condição de persona é fruto de
um longo processo de aprendizagem, uma ars vivendi, a qual movimenta um conjunto
de virtudes essenciais para esta formação. Nesta pesquisa, procuraremos investigar a
especificidade desse conceito na obra de Baltasar de Gracián. Acreditamos que este
processo de aprendizagem se fundamenta, em diversos aspectos, pelo ideal da ascese
característico da ars moriendi, notadamente a de produção jesuítica, do século XVII.
O conceito de persona aparece pela primeira vez na obra de Gracián no Oráculo
Manual y Arte de Prudencia, não obstante a sua ideia central estar presente,
implicitamente, nas obras iniciais do jesuíta. O Oráculo é publicado em 1647, e consiste
numa reunião de trezentos aforismos, os quais dissertam sobre diversos temas capitais
da obra de Gracián, especialmente a prudência. No primeiro aforismo, Gracián afirma:
“Todo está ya en su punto, y el ser persona en el mayor”1, isto é, o alcance da qualidade
de persona necessita de um caminho progressivo do saber , como elucida o aforismo
sexto do Oráculo: “Hombre en su punto. No se nace hecho: vase de cada día
perficionando en la persona, en el empleo, hasta llegar al punto del consumado
ser, al complemento de prendas, de eminencias.”2.
Como se pode notar, para que o homem possa alcançar a qualidade de persona,
necessita, pois, adquirir algum tipo de sabedoria. Na discussão que procuraremos
enfrentar nesta pesquisa, será crucial a análise da concepção de sabedoria mobilizada
por Gracián em seus tratados. Aurora Egido nos fornece algumas sugestões. Para a
autora, a sabedoria nos tratados de Gracián, consiste, sobretudo, numa arte de viver3.
1 GRACIÁN, Baltasar. Oráculo Manual y Arte de Prudência. Edición crítica y comentada por Miguel Romera-Navarro. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, p.11.2 Idem, p.22.3 EGIDO, Aurora. Humanidades y Dignidad del Hombre en Baltasar Gracián. Salamanca: Ediciones Universidad Salamanca, 2001, p.48.
Com outras palavras, não é objetivo do homem sábio, segundo Gracián, o conhecimento
por si só, mas sim através dele alcançar a condição de persona.
Para melhor compreender o sentido do conceito de persona na obra de Gracián,
é preciso analisar a acepção de homem desenvolvida nos tratados do jesuíta aragonês.
Gracián distingue homem (matéria bruta) de persona (homem substancial)4. Em outras
palavras, segundo Gracián, o homem apresenta duas naturezas: a natureza animal,
caracterizada pelos instintos e apetites, e a natureza racional.5 É possível perceber a
importância desta diferença ao analisarmos a estrutura da obra El Criticón, publicado,
em três partes, entre os anos de 1651 e 1657.
O El Criticón trata da peregrinação rumo à condição de persona de dois
personagens: Critilo e Andrênio. Após ter passado por um naufrágio, Critilo (homem de
juízo equilibrado) encontra Andrênio (homem instintivo, comum) numa ilha distante.
Até o momento do encontro com Critilo, Andrênio nunca havia se relacionado com
outro ser humano e, portanto, era uma espécie de “fera”. Após este fortuito encontro,
Critilo passará a orientar Andrênio em tudo quanto for necessário para o aprendizado da
condição de persona. Este longo aprendizado, com o qual se confunde a própria
trajetória do livro El Criticon, dura uma vida. Como já salientamos, a obra divide-se em
três partes: “En la primavera de la niñez y en el estío de la juventude”; “Judiciosa
cortesana filosofia en el otoño de la varonil edad”; “En el invierno de la vejez”.
Em verdade, podemos afirmar que Andrênio e Critilo, alegoricamente,
representam as duas partes da alma, a instintiva e a racional. Nesse sentido, os dois
personagens são, na verdade, uma mesma pessoa. Com efeito, como podemos notar na
seguinte passagem, Critilo se refere à Andrênio como a si próprio: “... que por eso
vengo a ti, ¡oh gran remediadora de desdichas!, solicitando tu favor y tu poder para
rescatar este otro yo, que queda mal cautivo, sin saber de quién ni como.”6. Dito de
outra forma, Critilo é a razão personificada, o qual procura orientar os apetites, os
instintos humanos, representados por Andrênio. Nota-se que o processo de formação de
homem idealizado por Gracián, o qual encontra na condição de persona o seu fim, é
4 GRACIÁN, Baltasar. El Criticón. Madrid: Ediciones Catedra, 2001, p.105: “... cuidaban más mis padres fuese hombre que persona”.5 IVENTOSCH, Herman. "Los nombres alegórico-morales en El Criticón de Gracián", en Cuaderno Gris (Madrid), III, 1 (1994-95), pp. 88-106, p. 91.6 GRACIÁN, Baltasar. El Criticón, p.176.
desenvolvido segundo o modelo clássico da psicomaquia7, isto é, da batalha da alma
pela afirmação das virtudes e superação dos vícios. De fato, na discussão que
empreende acerca da persona, Gracián encena o tópico “literário” da psicomaquia. Tais
proposições são fundamentais para estabelecermos as relações entre o conceito de
persona exposto nos tratados de Gracián e o decoro proposto nas ars moriendi.
A categoria de persona conheceu algumas variações ao longo da história.
Alguns autores afirmam que há duas possíveis origens do conceito de persona8. A
primeira seria de raiz etrusca oriunda da palavra phersu, a qual significa um personagem
mascarado ou a própria máscara. A segunda derivada da palavra grega πρόσωπον
(prósopon), a qual significa a face de um homem.9 Historicamente, podemos destacar
duas acepções do termo persona: uma de sentido jurídico e sociológico e outra de
caráter ontológico. Foi Cícero o responsável, pelo menos de modo mais categórico, pela
introdução de um significado jurídico e sociológico ao termo persona10.
Fundamentalmente, aqui, persona é atinente à condição jurídico-social de um homem
possuidor de direitos sociais. Trata-se, notadamente, dos direitos sociais que o homem
possui. Quanto à dimensão ontológica do termo persona, devemos relacioná-la às
disputas trinitárias e cristológicas dos primeiros séculos da igreja cristã. Nesta
concepção, persona significa o indivíduo concreto, e não apenas a condição jurídico-
social do indivíduo. Tratava-se, sobretudo, de resolver as controvérsias teológicas dos
primeiros séculos da igreja cristã. Com efeito, segundo os dogmas estabelecidos nos
concílios de Nicéia (325 d.C.) e de Calcedônia (451 d.C.), Cristo unia duas naturezas, a
humana e a divina, em uma pessoa, ou seja, tratava-se de atribuir unidade singular a
dupla natureza de Cristo.
Em verdade, foi Boécio (480-524) que, do ponto de vista teológico, introduziu o
conceito de persona. Boécio, nas obras Liber contra Eutychen et Nestorium e De
Consolatione Philosophiae, definia persona da seguinte forma: rationalis natura
7 O tópico da psicomaquia, fundamental nas práticas letradas religiosas ibéricas seiscentistas, refere-se aos textos de Prudêncio, poeta hispanolatino (348-405?).8 JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e Casuística. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p.104.9ARAÚJO, Alexandre Madruga da Costa. O conceito de pessoa na metafísica tomista como fundamento ontológico das relações jurídicas. AQUINATE, n°. 13 (2010), 3-15, p. 4. 10 JUNGES, José Roque, op.cit, p.105.
individua substantia11. Em poucas palavras, Boécio diferencia natureza (propriedade
específica de uma substância) de persona (substância individual de natureza racional).12
Isto é, nem toda a natureza assume a condição de persona, como em Cristo que possuía
duas naturezas, a humana e a divina, porém não se constituíam em duas pessoas.13
Como é possível notar, na definição de Boécio, a ideia de persona caracteriza a natureza
possuidora de racionalidade.
Outro passo, acerca do significado do conceito de persona, fora dado por Tomás
de Aquino, o qual está em confluência com a concepção de Boécio, embora tenha
empreendido novas considerações. Aquino considerou três elementos fundamentais para
se analisar o conceito de persona, a saber: a incomunicabilidade, a subsistência e a
intelectualidade14. A incomunicabilidade se refere à propriedade de irredutibilidade da
persona, isto é, as características de uma persona não podem ser transferidas a outra
persona.15 Em verdade, ao atribuirmos à persona a característica da incomunicabilidade,
estamos dissertando acerca da subsistência. Com efeito, através do conceito de
incomunicabilidade e subsistência, Tomás de Aquino acrescenta ao conceito de persona
o princípio da individualidade. Em outros termos, subsistência significa aquilo que
independe da existência de outro16. A partir de tais proposições, Tomás de Aquino
argumenta que não é qualquer indivíduo que possui o título de persona. De fato, apenas
os indivíduos dotados de natureza racional são considerados persona, isto é, aqueles que
subsistem com plena autonomia do ponto de vista racional.
Baltasar Gracián, em certo sentido, parece subverter as definições de Boécio e
Tomás de Aquino quanto ao significado do conceito de persona. Isto não quer dizer,
contudo, que Gracián tenha se afastado completamente das premissas de Boécio e
Tomás. Em verdade, assim como os dois filósofos citados, Gracián concede o título de
persona à individualidade possuidora de razão. No entanto, afirma que a função racional
não é fruto apenas da natureza, ou seja, um dado natural, mas sim da longa
11 “substancia individual de natureza racional”. BOECIO. Escritos — Opuscula Sacra. Tradução, estudos introdutórios e notas de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005, p. 165.12 Idem, pp.166-168.13 JUNGES, José Roque, op.cit, p.106.14 Idem, p.107.15 AQUINO, São Tomás. Suma de Teología. Edición dirigida por los regentes de estúdios de las províncias dominicanas en España. Madrid. Biblioteca de Autores Cristianos, 2001,p.321. 16 Idem, p.327.
aprendizagem de uma sabedoria específica. Em Tomás, por exemplo, é possível
observar, em seus diversos escritos, a discussão acerca das virtudes que aperfeiçoam o
intelecto e dos vícios que prejudicam o exercício da razão. Todavia, o título de persona
não é medido, em Tomás, pela maneira como o indivíduo racional se dispõe em relação
às virtudes e aos vícios, pois se trata de uma qualidade natural, a qual independe do
modo como foi exercida esta qualidade. Diferentemente, no Oráculo e no El Criticón,
Gracián afirma que alguns homens não chegam a alcançar o posto de ser persona17.
Nesta pesquisa, procuraremos compreender a concepção de homem empreendida nos
tratados do jesuíta aragonês, e, por seu turno, analisar as condições necessárias para o
homem tornar-se persona.
Para tanto, será fundamental analisar os diversos conceitos mobilizados por
Gracián em seus tratados, como, por exemplo, os conceitos de genio e ingenio. No El
discreto, Gracián argumenta que a dualidade harmônica entre genio e ingenio é a
maneira pela qual o homem obtém a condição de discreto. Na verdade, esta harmonia é
o fundamento básico do ser persona. Em poucas palavras, genio18 significa a capacidade
racional do homem, isto é, a potência natural do homem para a razão. Como se pode
notar, Gracián reservou à caracterização do conceito de persona de Boécio e Tomás os
atributos do conceito de genio. Desse modo, é possível compreender o motivo pelo qual
nos tratados de Gracián o ser persona não se limita à natureza racional do homem. Com
efeito, para o jesuíta, a potencialidade natural da razão precisa ser colocada em prática,
tarefa cumprida pelo ingenio. O conceito de ingenio19 caracteriza tudo aquilo que é
adquirido pelo homem em prol da aplicação das potências da razão. Quando o genio e
ingenio estão presentes no homem de um modo harmônico, este adquiriu, para Gracián,
o entendimento necessário para ser persona. Para o jesuíta, esta tarefa dura uma vida e
somente na velhice pode o homem alcançar este entendimento. Nossa hipótese é que
este entendimento, esta sabedoria necessária ao alcance da condição de persona,
caracteriza-se pelo aprendizado do bem morrer, conforme presente nas artes moriendi.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o caminho traçado pelo jesuíta aragonês a respeito
da transformação do homem em persona estrutura-se, em última instância, como uma
17 GRACIÁN, Baltasar. El Criticón: “Advertid —dijo Quirón— que los más de los mortales, en vez de ir adelante en la virtud, en la honra, en el saber, en la prudencia y en todo, vuelven atrás. Y así, muy pocos son los que llegan a ser personas.”.18 CANTARINO,Elena (org). Diccionario de conceptos de Baltasar Gracián. Madrid: Cátedra, 2005, p.164.19 Idem, p.181.
arte de bem morrer, ou seja, concernente à ascese das artes moriendi do século XVII,
especialmente a de produção jesuítica.
Este gênero passou, ao longo dos séculos XIV ao XVII, por importantes
mudanças. Com efeito, nas artes moriendi dos séculos XIV e XV a preparação para a
morte concentrava-se, notadamente, no momento da iminência da morte. Em
contrapartida, nas artes moriendi do final do século XVI e no XVII, o foco se voltava
para a preparação necessária ao longo da vida, tornando-se, por seu turno, uma ars
vivendi20. Assim, atento a esta perspectiva histórica, procuraremos relacionar os
dispositivos discursivos mobilizados nas artes de bem morrer jesuíticas seiscentistas
com a concepção de formação do homem desenvolvido nos tratados de Baltasar
Gracián. No que se refere mais precisamente à ars moriendi produzida pelos jesuítas no
século XVII, examinaremos, minuciosamente, suas estruturas argumentativas a fim de
melhor compreender este corpus letrado.
Pode-se afirmar, de uma maneira geral, que nas artes de bem morrer jesuíticas
seiscentistas, a condição precípua para a boa morte é uma vida orientada no cultivo das
virtudes cristãs. Em outros termos, no habitus dos religiosos inacianos, o bem morrer é
fruto de uma morte voluntária em vida. Trata-se do estado de indiferença apregoado nos
Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, que orienta as estratégias discursivas das
artes moriendi produzidas pelos Jesuítas. É desnecessário falar que Baltasar Gracian,
como jesuíta, é profundamente marcado por tais questões. Inclusive no prólogo do El
Comungatorio, obra produzida em 1653, o jesuíta parece ter tido a intenção de
contribuir com uma obra do gênero das artes de bem morrer21. Ademais, em diversas
passagens dos seus tratados, Gracián afirmou, explicitamente, a sua preocupação com o
20 Cf. SILVA, Paulo José Carvalho da. A ars moriendi jesuítica: história de uma prática psicológica. Historia Unisinos, v. 11, n 2 (maio/agosto) de 2007.21 GRACIÁN. Baltasar. El Comungatorio. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2005: “Entre varios libros que se me han prohijado, éste sólo reconozco por mío, digo legítimo, sirviendo esta vez al afecto más que al ingenio. Hice voto en un peligro de la vida de servir al Autor de ella con este átomo, y lo cumplo delante todo su pueblo, pues se estampa brindando a las devotas almas con el cáliz de la salud eterna. LIámole El Comulgatorio, empeñándole en que te acompañe siempre que vayas a comulgar, y tan manual, que le pueda llevar cualquiera o en el seno o en la manga. Van alternadas las consideraciones sacadas del Testamento Viejo con las del Nuevo, para la variedad y la autoridad; y en cada una el primer punto sirve a la preparación; el segundo, a la Comunión; el tercero, para sacar los frutos, y el cuarto, para dar gracias. El estilo es el que pide el tiempo. No cito los lugares de la Sagrada Escritura, porque para los doctos fuera superfluo y para los demás prolijo. Si este te acertare el gusto, te ofrezco otro de oro, pues de la preciosa muerte del justo, con afectuosos coloquios, provechosas consideraciones y devotas oraciones para aquel trance.”.
bem morrer na construção do “eu” como persona. Tais asserções nos levam a acreditar
que Gracián, de um modo peculiar, construiu um modelo ideal de homem preparado
para bem morrer. Em outros termos, no curso da formação do homem até o alcance da
posição de persona, cabe ao homem preparar-se continuamente para bem morrer.
Este gradual caminho do estado natural ao ser persona segue uma estratégia
específica, expressa, resumidamente, no prólogo do El Criticón: “comienzo por la
hermosa naturaliza, passo a la primorosa arte y para en la útil moralidade”22. Cada
parte do El Criticón corresponde a um estágio da vida do indivíduo, conforme a
corrente tópica das três idades do homem presente nas práticas letradas ibéricas
seiscentistas. Estes estágios da vida humana, por sua vez, acompanham,
respectivamente, o processo de formação da persona, isto é, da natureza à moral. Esse
caminho será caracterizado, fundamentalmente, pelo aprendizado, paulatino, de diversas
virtudes. Com efeito, o lugar ideal da persona, para Gracián, é aquele que une todas as
virtudes aprendidas ao longo da peregrinação da vida. Consequentemente, o homem
rumo à condição de persona alcança a qualidade de discrição e a virtude da prudência.
Com outras palavras, é apanágio do ser persona o domínio dos códigos da discrição e da
ação prudente. Desse modo, nesta pesquisa, procuraremos examinar, nos tratados de
Gracián, a qualidade da discrição e a virtude da prudência conforme os lugares comuns
das ars moriendi do século XVII.
Na cultura ibérica dos séculos XVI e XVII, discrição significa a capacidade ética
de discernimento23. Socialmente, a ação discreta se estrutura pelos princípios da
cortesania. Nesse sentido, Baltasar Gracián constrói, em seus tratados, um modelo de
cortesão discreto. Neste modelo ético de Gracián, o cortesão deve, acima de tudo, ter
domínio de si. Em outras palavras, cumpre ao cortesão discreto reconhecer o caráter
transitório da vida e, portanto, procurar controlar os seus apetites para aprender a bem
morrer a cada dia.
Como nos aponta Norbert Elias, o ethos do cortesão, nas sociedades de corte na
Europa, especialmente entre os séculos XVI ao XVIII, assenta-se na moderação das
emoções e na regulação da sua conduta24. Com efeito, como nos elucida Norbert Elias, o
indivíduo, nas práticas sociais das cortes, era fundamentalmente considerado em suas
22 GRACIÁN, Baltasar. El Criticón, p.61. 23 HANSEN, João Adolfo. Educando Príncipes no Espelho. In: Floema Especial. Ano II, n. 2 A, out. 2006, p.03.24 ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, v. II, p.215.
relações sociais, isto é, cumpria a cada cortesão um ato de prudência e reserva em
relação aos seus pares25. Tratava-se do cálculo preciso das ações, do qual necessitava a
auto-observação e a observação dos outros membros da corte. Nesse sentido, o elenco
necessário dos modelos de conduta previstos na “racionalidade da corte”, deriva de uma
avaliação cuidadosa do cortesão, na maneira de se dispor nas disputas de status e
prestígio na corte.
Este regramento do cortesão pressupõe um ato de dissimulação, como nos
aponta Norbert Elias: “cada um tem que conhecer suas paixões a fim de dissimulá-
las”26. Trata-se, aqui, fundamentalmente, da oposição entre simulação maquiavélica e
dissimulação católica, corrente nas práticas letradas seiscentistas ibéricas. O ponto
central da questão está no conceito de fingimento: o fingimento da simulação (produção
do falso) e o fingimento da dissimulação (encobrimento da verdade). Em seus tratados,
Gracián forneceu receitas da dissimulação necessária ao cortesão discreto, o qual se
configurava, doutrinariamente, como dissimulação honesta27. Sugeriu, por exemplo, que
a dissimulação é um exercício de razão de Estado mobilizada pelo homem discreto.
Como propõe Elena Cantarino, a razão de Estado em Gracián: “no es outro que la
adquisición, conservación y aumento del E/estado, es decir, del domínio o senõrio de
um príncipe ( Estado) o del domínio o senõrio de sí mismo en um individuo ( estado)”28.
Nesse sentido, a dissimulação honesta, como exercício de prudência e de discrição, é
um ato em prol de um bem maior: o governo do Estado e do estado. Desta feita, pode-se
afirmar que a dissimulação também é um ato de bem morrer. Com efeito, nos tratados
de Gracián, manter a honestidade pela dissimulação, segundo esta perspectiva, é
assumir uma ação virtuosa e, portanto, caminhar para a condição de persona, homem
preparado para bem morrer.
No primeiro capítulo desta dissertação, analisaremos exatamente este modelo de
cortesão discreto concebido nos tratados de Baltasar Gracián. Desse modo,
privilegiaremos a análise da obra El discreto. Acreditamos que a análise das práticas e
25 ELIAS, Norbert. A Sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001,p.121.26 Idem.27 Cf. MÍSSIO, Edmir. Acerca do conceito de Dissimulação Honesta de Torquato Accetto. Tese de Doutorado, Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2004.28 CANTARINO, ELENA. Gracián y el Oráculo manual: de los medios del arte de la prudencia y de la ocasión. Eikasia. Revista de Filosofía, año V, 37 (Marzo 2011),p.166.
representações do mundo cortês referido acima, é crucial para se compreender o modelo
de discreto esposado nos tratados do jesuíta aragonês e, por extensão, à construção do
“eu” como persona. Desta feita, situaremos a obra do El discreto em relação à
“literatura” áulica do século XVI, notadamente, ao Il Cortegiano de Baldassare
Castiglione, publicado em 1528, e Il Galateo de Giovanni Della Casa, publicado
postumamente em 1558. Trata-se, sobretudo, de compreender os principais conceitos
mobilizados por Gracián na construção de seu modelo de homem discreto. Isto não quer
dizer, contudo, que o modelo de discreto esposado nos tratados de Gracián deva ser
analisado, exclusivamente, a partir das práticas e representações da cortesania. Em
verdade, é possível encontrar, por exemplo, notáveis diferenças entre o modelo de
discrição de Gracián e os manuais de cortesania de Castiglione e Giovanni Della Casa.
Decerto, a própria necessidade do cortesão discreto de Gracián ser instruído a bem
morrer, nos indica uma diferença notória entre Gracián e os manuais de cortesania
indicados. A tese principal que atravessará este capítulo será a de que o tipo gracianesco
do discreto é bem preparado para morrer.
Nesse sentido, aqui, defendemos, em concordância com João Adolfo Hansen29, a
concepção segundo a qual o modelo de discreto mobilizado por Baltasar Gracián
configura-se a partir do decoro presente nas artes moriendi. O próprio Baltasar Gracián
expõe no último realce do El Discreto a relação entre a discrição e a reflexão sobre a
morte: “... corona de la discreción el saber filosofar, sacando de todo, como solícita
abeja, o la miel del gustoso provecho o la cerca para la luz del desengano. La misma
Filosofía no es outro que meditación de la muerte”30. A discrição consiste, neste
sentido, num ato de meditação da morte, para acertar fazer bem no momento derradeiro
da vida. Com outras palavras, a discrição assenta-se numa perspectiva prudente da visão
de vida pelo horizonte da morte, assim como nas artes moriendi, especialmente as
produzidas no século XVII. Pode-se afirmar, portanto, que o discreto deve ter a
capacidade de discernir o que é importante para a salvação de sua alma. Isto é, o tipo de
cortesão mobilizado por Gracián é caracterizado nuclearmente pela prudência. Trata-se
da adequação da ação e da representação, à qual o discreto assume, em função de um
objetivo determinado, qual seja: preparar-se para bem morrer.
29 HANSEN, João. Práticas Letradas Seiscentistas. DISCURSO, v. 25, p. 153-183, 1995, p.166:”Entrando-se no grande teatro do mundo, máxima discrição é saber morrer; meditando-se a morte muitas vezes, talvez se possa acertar fazê-la bem uma só”.30 GRACIÁN, Baltasar. El Discreto. Edição, introdução e notas: Aurora Egido. Alianza Editorial: Madri, 1997, p. 366.
O conhecimento prudencial caracteriza-se, para Gracián, na capacidade do ajuste
da norma universal à ocasião concreta. Trata-se da aplicação do juízo da sindérese ao
ato particular. Escolasticamente, a sindérese31 é conhecida como a centelha da
consciência, luz da graça divina, fundamento do discernimento entre o bem e o mal. Lei
natural, imanente na alma, partícipe da lei divina, a sindérese estabelece uma ética, à
qual determina o que é adequado à natureza humana. Como propõe Gracián, no El
Discreto, a capacidade de se ajustar os atos concretos à sindérese é fruto da trajetória de
aprendizado do homem rumo à condição de persona, ou seja, da natureza à moral: “ sin
duda que esto mismo sucede en los hombres, que no de repente se hallan hechos. Vanse
cada día perficionando, al passo que en lo natural, en lo moral, hasta llegar al deseado
complemento de la sindéresis”32. Desse modo, o exercício de prudência, nos tratados de
Gracián, adequa-se ao decoro da ars moriendi. Com efeito, cumpre aplicar,
prudencialmente, o juízo da sindérese, para que o homem possa morrer bem em cada
ocasião particular.
A partir de tais premissas, analisaremos, no segundo capítulo da dissertação, a
obra Oráculo Manual y Arte de Prudencia. Estabeleceremos, primeiramente, os
desdobramentos históricos do conceito de prudência, para posteriormente analisarmos a
maneira pela qual Gracián estruturou a virtude da prudência no Oráculo. Também será
de suma importância investigar as semelhanças e diferenças do conceito de prudência
mobilizada por Gracián no Oráculo e em outras obras do próprio autor. Ademais,
examinaremos as relações dos conceitos de discrição e de prudência para a formação do
homem em persona. Ademais, tal qual a discrição, analisaremos a virtude da prudência,
desenvolvida nos tratados de Gracián, em suas relações com a ascese das artes de bem
morrer jesuíticas produzidas no século XVII.
Já no terceiro capítulo, estudaremos, especialmente, o El Criticón. Aqui, cumpre
investigarmos como os conceitos de discrição, prudência e persona, os quais estão
profundamente encadeados nos tratados de Gracián, se coadunam para formar a visão
gracianesca de homem preparado para bem morrer. No El Criticón, Gracián oferece,
alegoricamente, uma representação viva de um homem discreto, prudente e, por sua vez,
uma persona. Com efeito, Andrênio e Critilo são exemplos dessa formação do homem
almejada nos tratados de Gracián. Inicialmente, analisaremos o conceito de persona em
31 HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas da ekphrasis. Revista USP, São Paulo, SP, n. 71,, p. 85-105, set./nov, 2006,p.97.32 GRACIÁN, Baltasar. El Criticón, p, 294.
sua perspectiva histórica. Feito isto, para melhor compreendermos as relações do
conceito de persona com a ascese das ars moriendi, examinaremos algumas artes de
bem morrer produzidas por jesuítas no século XVII. Por fim, investigaremos os
aspectos centrais do conceito de persona e relacionaremos as artes de bem morrer
examinadas anteriormente.