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A planície em chamas Título: A Planície em Chamas Autor: Juan Rulfo ISBN: 972-8791-12-7 Cavalo de ferro Tv, da Conceição (à R. do Século), 10 1200-117 Lisboa [email protected] www.cavalodeferro.com Juan Rulfo A planície em chamas Tradução Ana Santos cavalo deferro A planície em chamas Título Original: «El Llano en Llamas» Autor: Juan Rulfo © Heirs of Juan Rulfo, 1953 Tradução: Ana Santos Revisão: Isabel Rodrigues Paginação: João Costa Capa: Gangster Graphik 2003 1.ª Edição, Novembro de 2003 Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa S Filhos, Lda Depósito Legal: 202 119/03 ISBN: 972-8791-12-7

A planície em chamas - University of São Paulo · 2017. 3. 10. · Depois de tantas horas de caminhar sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma semente de árvore, nem uma

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A planície em chamas

Título: A Planície em Chamas

Autor: Juan Rulfo

ISBN: 972-8791-12-7

Cavalo de ferro

Tv, da Conceição (à R. do Século), 10

1200-117 Lisboa

[email protected] www.cavalodeferro.com

Juan Rulfo

A planície em chamas

Tradução

Ana Santos

cavalo deferro

A planície em chamas

Título Original: «El Llano en Llamas»

Autor: Juan Rulfo

© Heirs of Juan Rulfo, 1953

Tradução: Ana Santos

Revisão: Isabel Rodrigues

Paginação: João Costa

Capa: Gangster Graphik 2003

1.ª Edição, Novembro de 2003

Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa S Filhos, Lda

Depósito Legal: 202 119/03

ISBN: 972-8791-12-7

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* Cavalo de Ferro Editores, Lda.

Todos os direitos para publicação em língua portuguesa reservados por: Cavalo de Ferro

Editores, Lda.

Travessa da Conceição (à Rua do Século) n.° 10

1200-177 Lisboa

www.cavalodeferro.com

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sobre qualquer forma ou por qualquer

processo sem a autorização prévia e por escrito do editor. Excepção feita a excertos breves

usados para apresentação e crítica da obra.

Índice

Deram-nos a terra 11

A cuesta de las comadres 17

É que somos muito pobres 27

O homem . . 33

Na madrugada 43

Taipa 49

Macario 59

O llano em chamas 65

Diz-lhes que não me matem! 81

Luvina 89

A noite em que o deixaram sozinho 99

Passagem do norte 103

Lembra-te 111

Não ouves ladrar os cães 115

O dia do desmoronamento 121

A herança de Matilde Arcángel 129

Anacleto Morones 137

A Clara

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DERAM-NOS A TERRA

Depois de tantas horas de caminhar sem encontrar nem uma sombra de árvore, nem uma

semente de árvore, nem uma raiz de nada, ouve-se o ladrar dos cães.

Às vezes chegamos a acreditar, no meio deste caminho sem margens, que depois não

haverá mais nada; que não se poderá encontrar nada do outro lado, no fim desta planura

rachada de gretas e de arroios secos. Mas sim, há algo. Há uma aldeia. Ouvem-se os cães a

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ladrar e sente-se no ar o cheiro do fumo, e saboreia-se esse cheiro de gente como se fosse

uma esperança.

Mas a aldeia está ainda muito para lá. É o vento que a aproxima.

Viemos caminhando desde o amanhecer. Agorinha devem ser para aí umas quatro da tarde.

Alguém se assoma ao céu, estica os olhos para onde o sol está pendurado e diz:

- São para aí umas quatro da tarde.

Esse alguém é o Melitón. com ele vamos o Faustino, o Esteban e eu. Somos quatro. Eu

conto-os: dois à frente, outros dois atrás. Olho mais para trás e não vejo ninguém. Então

digo para mim próprio: «Somos quatro.» Há pouco, aí às onze, éramos vinte e tal; mas

pouco a pouco foram-se dispersando até não ficar mais nada que este novelo que somos

nós.

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Faustino diz:

- Pode ser que chova.

Todos levantamos a cara e olhamos uma nuvem negra e pesada que passa por cima das

nossas cabeças. E pensamos: «Pode ser que sim.»

Não dizemos o que pensamos. Há bastante tempo que se nos acabou a vontade de falar.

Acabou-se com o calor. Uma pessoa conversaria com muito gosto noutro sítio, mas aqui dá

muito trabalho. Uma pessoa põe-se a conversar aqui e as palavras aquecem na boca com o

calor de lá de fora, e secam-se-nos na língua até nos deixarem sem fôlego.

Aqui as coisas são assim. Por isso a ninguém lhe dá para conversar.

Cai uma gota de água, grande, gorda, fazendo um buraco na terra e deixando um empaste

como de uma cuspidela. Cai sozinha. Nós esperamos que continuem a cair mais. Não

chove. Agora, se olharmos para o céu, vê-se a nuvem aguaceira correndo para bem longe,

cheia de pressa. O vento que vem da aldeia arrima-se-lhe empurrando-a contra as sombras

azuis dos cerros. E a gota caída por engano é comida pela terra, que a faz desaparecer na

sua sede.

Quem diabo terá feito esta planície tão grande? Para que é que serve, hã?

Voltámos a caminhar. Tínhamos parado para ver chover. Não choveu. Agora voltamos a

caminhar. E a mim vem-me à cabeça que já caminhámos mais do que aquilo que andámos.

É do que me lembro. Se tivesse chovido talvez me lembrasse de outras coisas. com tudo

isto, eu sei que desde rapaz, nunca vi chover sobre o Llano, aquilo que se chama chover.

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Não, o Llano não é coisa que sirva. Não há aqui nem coelhos nem pássaros. Não há nada. A

não ser umas quantas acácias raquíticas e uma ou outra manchinha de pasto com as folhas

enroscadas; a não ser isso, não há nada.

E por aqui vamos nós. Os quatro a pé. Antes andávamos a cavalo e trazíamos uma carabina

a tiracolo. Agora nem sequer trazemos a carabina.

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Eu sempre pensei que nisso de nos tirarem a carabina fizeram bem. Por aqui é perigoso

andar armado. Matam qualquer um sem o avisar, vendo-o a toda a hora com a «30» às

costas. Mas os cavalos são outro assunto. Se tivéssemos vindo a cavalo já teríamos provado

a água verde do rio e passeado os nossos estômagos pelas ruas da aldeia para que a comida

assentasse. Já o teríamos feito se tivéssemos todos os cavalos que tínhamos. Mas também

nos tiraram os cavalos juntamente com a carabina.

Viro-me para todos os lados e vejo o Llano. Tanta e tamanha terra para nada. Os olhos

escorregam-nos ao não encontrar coisa que os detenha. Só umas quantas lagartixas saem a

assomar a cabeça por cima dos seus buracos e, assim que sentem a calmaria do sol, correm

a esconder-se à sombrinha de uma pedra. Mas nós, quando tivermos que trabalhar aqui, que

faremos para arrefecer do sol, ha? Porque a nós deram-nos esta crosta de calcário para que a

semeássemos.

Disseram-nos:

- Da aldeia para cá é tudo vosso. Nós perguntámos:

- O Llano?

- Sim, o Llano. Todo o Llano Grande.

Mudámos de cara para dizer que o Llano não o queríamos. Que queríamos o que estava

junto do rio. Do rio para lá, pelas várzeas, onde estão essas árvores que se chamam

casuarinas e as forragens e a terra boa. Não este duro couro de vaca que se chama o Llano.

Mas não nos deixaram dizer as nossas coisas. O delegado não vinha para conversar

connosco. Pôs-nos os papéis na mão e disse-nos:

- Não se assustem por terem tanto terreno só para vocês.

- É que o Llano, senhor delegado...

- São milhares e milhares de jugadas.

- Mas não há água. Não há água sequer para fazer um bochecho.

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- E o temporal? Ninguém vos disse que vos íamos dotar

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com terras de regadio? Assim que lá chover, o milho há-de crescer como se o estivessem a

esticar.

- Mas, senhor delegado, a terra está deslavada, dura. Não acreditamos que o arado se enterre

nessa coisa semelhante a uma canteira que é a terra do Llano. Teriam que se fazer buracos

com o enxadão para semear a semente e nem mesmo assim é garantido que nasça nada;

nem milho, nem nada nascerá.

- Isso manifestem-no por escrito. E agora vão-se embora. O latifúndio é que vocês têm que

atacar, não o Governo que vos dá a terra.

- Espere aí, senhor delegado. Nós não dissemos nada contra o Centro. É tudo contra o

Llano... O que não pode ser não pode ser. Foi o que nós dissemos... Espere aí para lhe

explicarmos. Olhe, vamos começar por onde íamos...

Mas ele não nos quis ouvir.

Assim nos deram esta terra. E nesta chapa aquecida querem que semeemos sementes de

qualquer coisa, para ver se brota alguma coisa e se levanta. Mas daqui não se vai levantar

nada. Nem urubus. Vemo-los muito de vez em quando, muito lá em cima, voando a correr;

tentando sair o mais rapidamente possível desta branca poeira endurecida, onde nada se

move e por onde caminhamos como se estivesse a recuar.

O Melitón diz:

- É esta a terra que nos deram. O Faustino diz:

- O quê?

Eu não digo nada. Eu penso: «O Melitón não tem a cabeça no lugar. Deve ser o calor que o

faz falar assim. O calor que lhe atravessou o chapéu e lhe aqueceu a cabeça. Porque senão,

porque diz o que diz? Que terra é que nos deram, Melitón? Aqui não há nem a poucachinha

de que o vento necessitaria para brincar aos remoinhos.»

O Melitón volta a dizer:

- Servirá para algo. Servirá nem que seja para treinar éguas.

- Quais éguas? - pergunta-lhe Esteban.

Eu ainda não tinha reparado bem no Esteban. Agora que

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fala, reparo nele. Traz posto um gabão que lhe chega ao umbigo, e por baixo do gabão deita

a cabeça de fora qualquer coisa parecida com uma galinha.

Sim, é uma galinha vermelha o que o Esteban leva debaixo do gabão. Vêem-se-lhe os olhos

adormecidos e o bico aberto como se bocejasse. Eu pergunto-lhe:

- Ouve lá, Teban, onde conseguiste essa galinha?

- É a minha - diz ele.

- Não a trazias antes. Onde a compraste, hã?

- Não a comprei, é a galinha do meu curral.

- Então trouxeste-a de abastecimento, não?

- Não, trago-a para a cuidar. A minha casa ficou sozinha e sem ninguém para lhe dar de

comer; por isso a trouxe. Sempre que saio para longe carrego com ela.

- Aí escondida ainda se afronta. É melhor que a tires cá para fora para lhe dar o ar.

Ele acomoda-a debaixo do braço e assopra-lhe o ar quente da sua boca. Depois diz:

- Estamos a chegar ao despenhadeiro.

Eu já não ouço o que o Esteban continua a dizer. Pusémo-nos em fila para descer o

barranco e ele vai mesmo à nossa frente. Vê-se que agarrou a galinha pelas patas e a toda a

hora a sacode, para não lhe bater com a cabeça contra as pedras.

Conforme descemos, a terra faz-se boa. Sobe pó a partir de nós como se fosse um atalho de

mulas o que desce por ali; mas gostamos de nos encher de pó. Gostamos. Depois de estar

durante doze horas a pisar a dureza do Llano sentimo-nos muito bem envoltos por aquela

coisa que salta por cima de nós e que sabe a terra.

Por cima do rio, sobre as copas verdes das casuarinas, voam bandos de araquas verdes.

Também gostamos disso.

Agora os ladridos dos cães ouvem-se aqui, junto de nós, e o vento que vem da aldeia

ressalta no barranco e enche-o de todos os seus ruídos.

O Esteban voltou a abraçar a sua galinha quando nos aproximámos das primeiras casas.

Desata-lhe as patas para a

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desentorpecer, e depois ele e a sua galinha desaparecem detrás de uns arbustos.

- Eu vou por aqui! - diz-nos Esteban.

Nós seguimos para a frente, mais para dentro da aldeia.

A terra que nos deram está lá em cima.

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A CUESTA DE LAS COMADRES

Os defuntos Torricos sempre foram bons amigos meus. Talvez em Zapotlán não gostassem

muito deles, mas, no que me diz respeito, sempre foram bons amigos, até bem pouco antes

de morrerem.

Agora isso de não os quererem em Zapotlán não tinha nenhuma importância, porque a mim

tão-pouco me queriam lá, e quer-me parecer que a nenhum dos que vivíamos na Cuesta de

las Comadres nos chegaram a ver com bons olhos os de Zapotlán. Isto vinha de tempos

antigos.

Por outro lado, na Cuesta de las Comadres, os Torricos não se davam bem com toda a

gente. Frequentemente havia desavenças. E, não querendo exagerar, eles eram ali os donos

da terra e das casas que estavam em cima da terra, apesar de que, quando fizeram a partilha,

a maior parte da Cuesta de las Comadres nos ter tocado por igual, aos sessenta que lá

vivíamos, e a eles, aos Torricos, nada mais do que um pedaço de monte, com apenas uma

mescaleira, mas onde estavam dispersas quase todas as casas. Apesar disso, a Cuesta de las

Comadres era dos Torricos. O horto que eu trabalhava também era deles: de Odilon e de

Remigio Torrico, e a dúzia e meia de lombas verdes que se viam lá em baixo eram

igualmente deles. Não havia nada que averiguar. Toda a gente sabia que era assim.

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No entanto, de há alguns dias para cá, a Cuesta de las Comadres tinha-se ido desabitando.

De tempos a tempos, alguém se ia embora; atravessava o aprisco onde está o mastro e

desaparecia entre as azinheiras, e nunca mais voltava a aparecer. Iam-se embora, só isso.

E eu também teria ido de boa vontade ver o que havia mesmo atrás do monte que não

deixava voltar ninguém; mas gostava do terrenozinho da Cuesta, e além do mais era bom

amigo dos Torricos.

O horto onde eu semeava todos os anos um bocadinho de milho para ter maçarocas, e outro

bocadinho de feijão, ficava do lado de cima, lá onde a ladeira desce até esse barranco a que

chamam Cabeza del Toro.

O lugar não era feio, mas a terra tornava-se pegajosa assim que começava a chover, e

depois havia um esparramamento de pedras duras e afiadas como tronchões que pareciam

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crescer com o tempo. No entanto, o milho pegava bem e as maçarocas que lá se davam

eram muito doces. Os Torricos, que para tudo o que comiam precisavam do sal de

tequesquite’1’, para as minhas maçarocas não o usavam; nunca o procuraram nem falaram

em deitar tequesquite às minhas maçarocas, que eram como as que se davam em Cabeza del

Toro.

E com tudo isso, o caso é que as lombas verdes lá de baixo eram melhores, as pessoas

foram-se acabando. Não iam para os lados de Zapotlán, mas sim por este outro rumo, por

onde chega a toda a hora esse vento cheio do cheiro das azinheiras e do barulho do monte.

Iam de boca calada, sem dizer nada nem brigar com ninguém. De certeza que lhes sobrava

vontade de brigar com os Torricos para se desforrarem de todo o mal que lhes tinham feito;

mas não tiveram ânimo.

De certeza que foi isso que aconteceu.

O facto é que, mesmo depois de os Torricos terem morrido, nunca mais ninguém cá voltou.

Eu ainda estive à espera. Mas ninguém regressou. Primeiro cuidei-lhes das casas; remendei

[1] Salitre de terras lacustres. (N. da T.)

19

os tectos e pus ramos nos buracos das suas paredes; mas vendo que tardavam a regressar,

deixei-as em paz. Os únicos que nunca deixaram de vir foram os aguaceiros de meados do

ano, e esses vendavais que sopram em Fevereiro e que estão sempre a destapar-nos a manta.

De vez em quando também vinham os corvos a voar muito baixinho e grasnando alto como

se pensassem que estavam nalgum lugar desabitado.

Assim continuaram as coisas mesmo depois de os Torricos terem morrido.

Antes, daqui sentado onde agora estou, via-se nitidamente Zapotlán. A qualquer hora do dia

ou da noite podia ver-se a manchinha branca de Zapotlán lá longe. Mas agora os jarros

cresceram muito densamente e, por mais que o ar os mova de um lado para o outro, não

deixam ver nada de nada.

Lembro-me de antes, quando os Torricos também vinham aqui sentar-se e ficavam

acocorados horas e horas até ao escurecer, olhando para o longe sem se cansarem, como se

este lugar lhes sacudisse os pensamentos ou a vontade de irem passear a Zapotlán. Só

depois soube que não pensavam nisso. Unicamente se punham a olhar o caminho: aquela

larga azinhaga arenosa que se podia seguir com o olhar desde o começo até que se perdia

entre os pinheiros do cerro da Media Luna.

Eu nunca conheci ninguém que tivesse um alcance de vista como o de Remigio Torrico. Era

zarolho. Mas o olho negro e meio fechado que tinha parecia aproximar tanto as coisas que

quase as trazia para junto das suas mãos. E daí a saber que vultos se mexiam no caminho

não havia nenhuma diferença. Assim, quando o seu olho se sentia confortável tendo em

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quem recarregar o olhar, os dois levantavam-se do seu mirante e desapareciam da Cuesta de

las Comadres por algum tempo.

Eram os dias em que tudo se punha de outra maneira aqui entre nós. As pessoas tiravam das

covas do monte os seus animaizinhos e traziam-nos para os amarrarem nos seus currais.

Então sabia-se que havia borregos e perus. E era fácil ver quantos montões de milho e de

cabaças amarelas amanheciam esturricando-se nos pátios. O vento que atravessava os cerros

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21

era mais frio que outras vezes; mas não se sabia porquê, todos ali diziam que fazia muito

bom tempo. E ouvia-se na madrugada que os galos cantavam como em qualquer lugar

tranquilo, e aquilo parecia como se sempre tivesse havido paz na Cuesta de las Comadres.

Depois os Torricos voltavam. Avisavam que vinham antes de chegarem, porque os seus

cães começavam numa correria e não paravam de ladrar até os encontrarem. E só pelos

ladridos, todos calculavam a distância e o rumo por onde iriam chegar. Então as pessoas

apressavam-se a esconder outra vez as suas coisas.

Sempre foi assim o medo que traziam os defuntos Torricos cada vez que regressavam à

Cuesta de las Comadres.

Mas eu nunca cheguei a ter-lhes medo. Era bom amigo dos dois e às vezes teria querido ser

um pouco menos velho para me meter nos trabalhos em que eles andavam. No entanto, eu

já não servia para muito. Dei-me conta aquela noite em que os ajudei a roubar um arrieiro.

Então dei-me conta de que me faltava algo. Era como se a vida que eu tinha estivesse já

muito desperdiçada e não aguentava mais esticões. Disso me dei conta.

Foi mais ou menos a meio da chuvada quando os Torricos me convidaram para os ajudar a

trazer uns fardos de açúcar. Eu ia um bocadinho assustado. Primeiro porque estava caindo

uma tempestade dessas em que a água parece que nos está a escarvar por baixo dos pés.

Depois, porque não sabia onde ia. De qualquer modo, aí vi o sinal de que já não estava feito

para andar em andanças.

Os Torricos disseram-me que não estava longe o lugar onde íamos. «Em coisa de um quarto

de hora estamos lá», disseram-me. Mas quando alcançámos o caminho da Media Luna

começou a escurecer e quando chegámos onde estava o arrieiro já ia alta a noite.

O arrieiro não parou para ver quem vinha. Seguramente estava esperando os Torricos e por

isso não lhe chamou a atenção ver-nos chegar. Foi o que pensei. Mas todo o tempo que

carregámos de cá para lá com os fardos de açúcar, o arrieiro manteve-se quieto acaçapado

no meio do pasto. Então disse-lhes isso aos Torricos. Disse-lhes:

- Esse que está ali estendido parece estar morto ou algo parecido.

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- Não, só deve estar adormecido - disseram-me eles. Deixámo-lo aqui a tomar conta, mas

deve ter-se cansado de esperar e deixou-se dormir.

Eu fui e dei-lhe uma patada nas costelas para que acordasse; mas o homem continuou

igualmente estendido.

- Está bem morto - voltei a dizer-lhes.

- Não, não acredites, está só um bocadinho atarantado porque Odilon deu-lhe com um lenho

na cabeça, mas depois levanta-se. Vais ver que assim que o sol nascer e ele sinta o

calorzinho, levantar-se-á cheio de pressa e irá de seguida para casa. Agarra esse fardo ali e

vamo-nos! - foi tudo o que me disseram.

Por fim dei uma última patada ao mortozinho e soou como se a tivesse dado a um tronco

seco. Depois atirei a carga para os ombros e vim para a frente. Os Torricos seguiam-me.

Ouvi-os cantar durante bastante tempo, até que amanheceu. Quando amanheceu deixei de

ouvi-los. Esse ar que sopra mesmo antes da madrugada levou os gritos da sua canção e já

não pude saber se me seguiam, até que ouvi passar por todos lados os ladridos encarreirados

dos seus cães.

Foi assim como soube que coisas iam espiar todas as tardes os Torricos, sentados ao pé da

minha casa na Cuesta de las Comadres.

Ao Remigio Torrico matei-o eu.

Nessa altura já havia pouca gente nos ranchos. Primeiro tinham abalado um após outro; mas

os últimos quase foram em manada. Ganharam e abalaram, aproveitando a chegada das

geadas. Em anos passados chegaram as geadas e acabaram com as sementeiras numa só

noite. E este ano também. Por isso abalaram. Certamente acharam que no ano seguinte seria

a mesma

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coisa e parece que já não se sentiram com vontade de continuar a suportar as calamidades

do tempo todos os anos e a calamidade dos Torricos a toda a hora.

Assim, quando eu matei Remigio Torrico, já estavam bem vazias de gente a Cuesta de las

Comadres e as lombas dos arredores.

Isto sucedeu para aí em Outubro. Lembro-me que havia uma lua muito grande e muito cheia

de luz, porque eu sentei-me na soleira da porta da minha casa a remendar um saco todo

esburacado, aproveitando a boa luz da lua, quando chegou o Torrico.

Devia ter estado bêbado. Pôs-se à minha frente e bamboleava-se de um lado para o outro,

tapando-me e destapando-me a luz que eu precisava da lua.

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- Andar com rodeios não é bom - disse-me depois de um bom bocado. - Eu gosto das coisas

direitas, e se tu não gostas, sofres as consequências, porque eu vim aqui para as endireitar.

Eu continuei a remendar o meu saco. Só tinha olhos para lhe coser os buracos, e a agulha de

albarda trabalhava muito bem quando a alumiava a luz da lua. De certeza que foi por isso

que achou que eu não me preocupava com o que ele dizia:

- Estou a falar contigo - gritou-me, agora sim já irritado.

- Bem sabes ao que vim.

Espantei-me um pouco quando se aproximou de mim e me gritou aquilo quase à queima

roupa. No entanto, tentei ver-lhe a cara para saber de que tamanho era a sua fúria e

continuei a fixá-lo, como que a preguntar-lhe a que tinha vindo.

Isso resultou. Já mais calmo, saiu-se com esta: que as pessoas como eu têm que se apanhar

desprevenidas.

- Seca-se-me a boca por te estar falando depois do que fizeste - disse-me; - mas era tão meu

amigo o meu irmão como tu e só por isso vim ver-te, a ver como esclareces a morte de

Odilon.

Eu já o ouvia muito bem. Pus de lado o saco e fiquei a ouvi-lo sem fazer mais nada.

Soube que me culpava de ter matado o irmão. Mas não

23

tinha sido eu. Lembrava-me de quem tinha sido, e ter-lho-ia dito, embora parecesse que ele

não me daria oportunidade para lhe falar como estavam as coisas.

- Odilon e eu chegámos a brigar muitas vezes - continuou a dizer-me. - Era algo duro de

entendimento e gostava de afrontar toda a gente, mas não passava dali. com umas tantas

porradas acalmava-se. E é isso que quero saber: se te disse alguma coisa ou se te quis tirar

alguma coisa ou o que é que se passou. Pode ser que te tivesse querido bater e tu adiantaste-

te. Algo assim deve ter sucedido.

Eu abanei a cabeça para lhe dizer que não, que eu não tinha nada a ver...

- Ouve - atalhou-me o Torrico - o Odilon levava nesse dia catorze pesos no bolso da

camisa. Quando o levantei, revisteio e não encontrei esses catorze pesos. Depois soube que

ontem tinhas comprado uma manta.

E isso estava certo. Eu tinha comprado uma manta. Vi que os frios vinham com muita

pressa e o gabão que eu tinha estava já todo desfiadinho, por isso fui a Zapotlán a conseguir

uma manta. Mas para isso tinha vendido o par de chibos que tinha, e não foi com os catorze

pesos de Odilon que a comprei. Ele podia ver que, se o saco se tinha enchido de buracos,

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isso se devia a que tive que levar o chibozinho pequenino ali metido, porque ainda não

podia andar como eu queria.

- Fica a saber de uma vez por todas que penso cobrar o que fizeram ao Odilon, seja quem

for que o matou. E eu sei quem foi - ouvi que me dizia quase em cima da minha cabeça.

- De maneira que fui eu? - perguntei-lhe.

- E quem mais teria sido? O Odilon e eu éramos sem-vergonhas e tudo o que quiseres, e não

digo que não chegámos a matar ninguém; mas nunca o fizemos por tão pouco. É isso que te

digo.

A lua grande de Outubro batia em cheio sobre o curral e mandava até à parede da minha

casa a sombra longa de Remígio. Vi que se movia em direcção a um medronheiro e que

agarrava o machado que eu tinha sempre pendurado ali. Depois vi que regressava com o

machado na mão.

24

Mas quando ele se tirou da frente, a luz da lua fez brilhar a agulha de albardar que eu tinha

enfiado no saco. E não sei porquê, mas de repente comecei a ter uma grande fé naquela

agulha. Por isso, ao passar Remigio Torrico a meu lado, desenfiei a agulha, e sem esperar

mais nada espetei-a nele, pertinho do umbigo. Enfiei-lha até onde coube. E aí a deixei.

Logo depois encolheu-se todo como quando nos dá uma cólica e logo após ficou inteiriçado

até se dobrar de joelhos e ficar sentado no chão, todo entumescido e com o susto a assomar-

se-lhe pelo olho.

Por instantes parecia que se ia a endireitar para me dar uma machadada com o machete;

mas de certeza que se arrependeu ou já nem sabia o que fazia, largou o machado e voltou a

encolher-se. Não fez mais que isso.

Então vi que se lhe ia entristecendo o olhar como se começasse a sentir-se doente. Há muito

que não me tocava ver um olhar assim tão triste e deu-me lástima. Por isso aproveitei para

lhe tirar a agulha de albarda do umbigo e enfiar-lha um bocadinho mais para cima, ali onde

pensei que teria o coração. E sim, ali o tinha, porque apenas deu dois ou três respingos

como um frango decapitado e depois ficou quieto.

Já devia estar morto quando lhe disse:

- Olha, Remígio, vais-me desculpar, mas eu não matei o Odilon. Foram os Alcaraces. Eu

andava por lá quando ele morreu, mas lembro-me bem que eu não o matei. Foram eles, toda

a família inteira dos Alcaraces. Caíram-lhe em cima, e quando me dei conta, o Odilon

estava agonizando. E sabes porquê? Para começar, o Odilon não devia ter ido a Zapotlán.

Tu sabes isso. Mais tarde ou mais cedo tinha que lhe acontecer alguma coisa nessa aldeia,

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onde havia tantos que se lembravam bem dele. E nem sequer os Alcaraces gostavam dele.

Nem tu nem eu podemos saber o que foi ele lá fazer a meter-se com eles.

«Foi uma coisa assim de repente. Eu acabava de comprar a minha manta e já estava de saída

quando o teu irmão escarrou um golo de mescal na cara de um dos Alcaraces. Ele fê-lo a

brincar. Via-se que o tinha feito para se divertir, porque fê-los

25

rir a todos. Mas estavam todos bêbados. Odilon e os Alcaraces e todos. E de repente

caíram-lhe em cima. Sacaram das facas e saltaram-lhe em cima e bateram-lhe até não

deixarem de Odilon nada que servisse. Disso morreu.

«Como vês, não fui eu quem o matou. Gostava que te desses conta que eu não me intrometi

em nada.»

Isso disse ao defunto Remígio.

Já a lua se tinha metido do outro lado das azinheiras quando eu regressei à Cuesta de las

Comadres com o camaroeiro vazio. Antes de voltar a guardá-lo, dei-lhe uns quantos

mergulhos no arroio para lhe enxaguar o sangue. Eu ia precisar dele dentro de pouco tempo

e não ia gostar de ver o sangue do Remígio a toda a hora.

Lembro-me que isso aconteceu para aí em Outubro, na época das festas de Zapotlán. E digo

que me lembro que foi por esses dias, porque em Zapotlán estavam queimando foguetes,

enquanto que do lado para onde atirei o Remígio se levantava um grande bando de urubus a

cada estampido que davam os foguetes.

Disso me lembro.

26

É QUE SOMOS MUITO POBRES

Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta, e no sábado,

quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como

nunca. Ao meu papá isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira.

E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para

esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da

minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água

fria que caía do céu queimava aquela cevada tão recém-cortada.

E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca

que o meu papá lhe ofereceu para o dia do seu aniversário tinha-a levado o rio.

O rio começou a crescer há três noites, lá para a madrugada. Eu estava muito adormecido e,

no entanto, o estrondo que o rio trazia ao arrastar-se fez-me acordar imediatamente e saltar

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da cama com a minha manta na mão, como se tivesse acreditado que se estava

desmoronando o tecto da minha casa. Mas depois voltei a adormecer, porque reconheci o

barulho do rio e porque esse barulho foi-se tornando igual até me trazer outra vez o sono.

Quando me levantei a manhã estava cheia de nuvens escuras e parecia que tinha continuado

a chover sem parar. Notava-se

28

que o barulho do rio era mais forte e ouvia-se mais perto. Cheirava-se como se cheira uma

queimada, o cheiro a podre da água revolta.

À hora em que fui espreitá-lo, o rio já tinha perdido as suas margens. Ia subindo pouco a

pouco pela rua principal, e estava a meter-se a toda a velocidade em casa daquela mulher a

quem chamam o Tambor. O chapiscar da água ouvia-se ao entrar pelo curral e ao sair em

grandes jorros pela porta. O Tambor ia e vinha, caminhando pelo que era já um pedaço de

rio, pondo na rua as suas galinhas para que se fossem esconder nalgum lugar onde não lhes

chegasse a corrente.

E pelo outro lado, por onde se encontra a curva, o rio deve ter levado, quem sabe desde

quando, o tamarindo que estava no solar da minha tia Jacinta, porque agora já não se vê

nenhum tamarindo. Era o único que havia na aldeia, e só por isso as pessoas dão-se conta

de que a cheia que vemos é a maior de todas as que desceram o rio em muitos anos.

A minha irmã e eu voltámos a ir à tarde ver aquele amontoadeiro de água que cada vez se

faz mais espessa e escura e que já passa muito por cima de onde deve estar a ponte. Ali

estivemos horas e horas sem nos cansarmos vendo aquela coisa. Depois subimos pelo

barranco, porque queríamos ouvir bem o que diziam as pessoas, pois lá em baixo, junto do

rio, há uma grande barulheira e só se vêem as bocas de muitos que se abrem e fecham e

parece que querem dizer algo; mas não se ouve nada. Por isso subimos pelo barranco, onde

também há gente olhando o rio e contando os prejuízos que fez. Foi ali que soubemos que o

rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu papá lha

ofereceu no dia do seu aniversário e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e

muito bonitos olhos.

Não consigo perceber por que é que a Serpentina se lembraria de passar o rio, quando sabia

perfeitamente que não era o mesmo rio que ela conhecia de todos os dias. Nunca vi a

Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar

assim sem mais nem menos. A

29

mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por

vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como

se ouvem suspirar as vacas quando dormem.

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E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir

que aquela água pesada lhe batia nas costelas. Talvez então se tenha assustado e tenha

tentado regressar; mas ao virar-se encontrou-se entressachada e inteiriçada entre aquela

água negra e dura como terra corrediça. Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.

Bramou só Deus sabe como.

Eu perguntei a um senhor, que viu quando o rio a arrastava, se não tinha visto também o

bezerrinho que andava com ela. Mas o homem disse que não sabia se o tinha visto. Só disse

que a vaca malhada passou de patas para o ar muito pertinho de onde ele estava e que ali

deu uma reviravolta e depois não voltou a ver nem os cornos nem as patas nem nenhum

sinal de vaca. Pelo rio rodavam muitos troncos de árvores, com raízes e tudo, e ele estava

muito ocupado a tirar lenha, de modo que não podia reparar se eram animais ou troncos o

que a corrente arrastava.

Por isso, não sabemos se o bezerro está vivo, ou se foi atrás da mãe pelo rio abaixo. Se

assim foi, que Deus os ampare aos dois.

O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a

minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha

conseguido a Serpentina, ainda ela era uma vitelinha, para a dar à minha irmã, a fim de que

ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas

irmãs, as maiores.

Segundo o meu papá, elas tinham-se deitado a perder porque éramos muito pobres lá em

casa e elas eram muito respondonas. Desde pequeninas que já eram resmungonas. E assim

que cresceram deu-lhes para andar com homens do piorio, que lhes ensinaram coisas más.

Elas aprenderam depressa

30

e percebiam muito bem os assobios, quando as chamavam a altas horas da noite. Depois

saíam até de dia. Iam a toda a hora buscar água ao rio e às vezes, quando uma pessoa menos

esperava, ali estavam elas no curral, rebolando-se no chão, todas despidas e cada uma com

um homem em cima.

Então o meu papá correu-as às duas. Primeiro aguentou-lhes tudo o que pôde; mas um dia

já não pôde aguentá-las mais e deu-lhes saída para a rua. Elas foram para Ayutla ou não sei

para onde; e aí andam como putas.

Por isso lhe entra a mortificação ao meu papá agora pela Tacha, pois não quer que lhe

aconteça como às suas outras duas irmãs, ao sentir que ficou muito pobre com a falta da sua

vaca, vendo que já não vai ter com que se entreter enquanto lhe dá para crescer e pode ainda

casar-se com um homem bom, que a queira para sempre. E isso agora vai ser difícil. com a

vaca era diferente, pois não havia de faltar quem se animasse a casar-se com ela, só para

levar também aquela vaca tão bonita.

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A única esperança que nos resta é que o bezerro ainda esteja vivo. Oxalá não se tenha

lembrado de passar o rio atrás da mãe. Porque, se assim foi, a minha irmã Tacha está a um

passinho de se fazer puta. E a mamã não quer.

A minha mamã não sabe por que é que Deus a castigou tanto dando-lhe umas filhas assim,

quando na sua família, da sua avó para cá, nunca houve gente má. Todos foram criados no

temor de Deus e eram muito obedientes e não faltavam ao respeito a ninguém. Todos foram

do mesmo estilo. Quem sabe de onde lhes viria, a esse par de filhas suas, aquele mau

exemplo. Ela não se lembra. Dá a volta a todas as suas recordações e não vê bem onde

esteve o seu mal ou o pecado para lhe nascer uma filha atrás de outra com o mesmo mau

hábito. Não se lembra. E cada vez que pensa nelas, chora e diz: «Que Deus as ampare às

duas.»

Mas o meu papá alega que aquilo já não tem remédio. A perigosa é a que fica aqui, a Tacha,

que vai como tronco de pinheiro, cresce e cresce e já tem uns princípios de seios que

prometem ser como os das suas irmãs: pontiagudos e altos e meio alvoraçados para chamar

a atenção.

31

- Sim - diz -, vai encher os olhos a qualquer um em qualquer sítio que a vejam. E acabará

mal; já estou vendo que acabará mal.

Essa é a mortificação do meu papá.

E a Tacha chora ao sentir que a sua vaca não voltará porque lha matou o rio. Está aqui, ao

meu lado, com o seu vestido cor-de-rosa, olhando o rio do barranco e sem parar de chorar.

Pela sua cara correm jorros de água suja como se o rio se tivesse metido dentro dela.

Eu abraço-a tentando consolá-la, mas ela não percebe. Chora ainda com mais vontade. Da

sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta pelas margens do rio, que a faz tremer e

sacudir-se toda, e entretanto, a cheia continua a subir. O sabor a podre que vem de lá salpica

a cara molhada da Tacha e os dois peitinhos dela mexem-se de cima para baixo sem parar

como se de repente começassem a inchar para começarem a trabalhar pela sua perdição.

32

O HOMEM

Os pés do homem afundaram-se na areia deixando uma pegada sem forma, como se fosse a

úngula de algum animal. Treparam pelas pedras, encolheram-se ao sentirem a inclinação da

subida, depois caminharam para cima, procurando o horizonte.

«Pés chatos» disse aquele que o seguia. «E um dedo a menos. Falta-lhe o dedo grande no pé

esquerdo. Não abundam fulanos com estes sinais. Por isso vai ser fácil.»

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A vereda subia, entre ervas, cheia de espinhos e de urtigas. De tão estreita, parecia um

caminho de formigas. Subia sem dar voltas para o céu. Aqui e ali perdia-se e voltava a

aparecer mais longe, sob um céu mais distante.

Os pés seguiram a vereda, sem se desviarem. O homem caminhou apoiando-se nos calos

dos seus calcanhares, raspando as pedras com as unhas dos seus pés, arranhando os braços,

parando em cada horizonte para medir o seu fim: «não o meu, mas sim o dele», disse. E

virou a cabeça para ver quem tinha falado.

Nem uma gota de ar, só o eco do seu ruído entre os ramos partidos. Exausto à força de ir às

apalpadelas, calculando os passos, aguentando até a respiração: «vou ao que vou», voltou a

dizer. E soube que era ele quem falava.

«Subiu por aqui, esterroando o monte» disse aquele que o perseguia. «Cortou os ramos com

um machado. Reconhece-se

34

que era a ânsia que o arrastava. E a ânsia sempre deixa pegadas. Isso o vai perder.»

Começou a perder o ânimo quando as horas se tornaram mais longas e por trás de um

horizonte havia outro e o outeiro por onde subia não acabava. Tirou o machado e cortou os

ramos duros como raízes e ceifou a erva pela raiz. Mascou um escarro gorduroso e lançou-o

à terra com raiva. Chupou os dentes e voltou a cuspir. Lá em cima o céu estava tranquilo,

quieto, transluzindo as suas nuvens entre a silhueta das acácias, sem folhas. Não era o

tempo das folhas. Era esse tempo seco e ranhoso de espinhos e de espigas secas e silvestres.

Golpeava com ânsia os matorrais com o machado: «Vais ficar amolgado com este

trabalhinho, mais te vale deixar as coisas em paz.»

Ouviu lá atrás a sua própria voz.

«Assinalou-o a sua própria raiva» disse o perseguidor. «Ele disse quem era, agora só falta

saber onde está. Acabarei de subir por onde ele subiu, depois descerei por onde ele desceu,

seguindo-lhe o rastro até o cansar. E onde eu me detiver, aí ele estará. Vai ajoelhar-se e vai

pedir-me perdão. E eu deixo-lhe um balázio na nuca... Isso sucederá quando eu te

encontrar.»

Chegou ao fim. Só o puro céu, cinzento, meio queimado pelas nuvens pesadas da noite. A

terra tinha caído para o outro lado. Olhou para a casa à frente dele, da qual saía o último

fumo do rescaldo. Enterrou-se na terra branda, recém-remexida. Tocou à porta sem querer,

com o cabo do machado. Um cão chegou e lambeu-lhe os joelhos, outro correu à sua volta

abanando a cauda. Então ele empurrou a porta somente fechada para a noite.

Àquele que o perseguia disse: «Fez um bom trabalho. Nem sequer os acordou. Deve ter

chegado por volta da uma, quando o sono é mais pesado; quando começam os sonhos;

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depois do ’Descansem em paz’, quando se solta a vida nas mãos da noite e quando o

cansaço do corpo raspa as cordas da desconfiança e parte-as.»

«Não devia tê-los matado a todos» disse o homem. «Pelo menos não a todos.» Foi o que

disse.

35

A madrugada estava cinzenta, cheia de ar frio. Desceu para o outro lado, resvalando pelo

pasto. Largou o machado que ainda tinha apertado na mão quando o frio lhe entorpeceu as

mãos. Deixou-o ali. Viu-o brilhar como um pedaço de cobra sem vida, entre as espigas

secas.

O homem desceu procurando o rio, abrindo uma nova brecha no meio do monte.

Muito lá em baixo o rio corre amolecendo as suas águas entre sabinas floridas; embalando a

sua espessa corrente em silêncio. Caminha e dá voltas sobre si mesmo. Vai e vem como

uma serpentina enroscada sobre a terra verde. Não faz barulho. Poderia dormir-se ali, junto

dele, e qualquer um ouviria a respiração da pessoa, mas não a do rio. A hera desce desde as

altas sabinas e afunda-se na água, junta as mãos e forma teias de aranha que o rio nunca

desfaz.

O homem encontrou a linha do rio pela cor amarela das sabinas. Não o ouvia. Só o via

retorcer-se sob as sombras. Viu chegar os jacus. Na tarde anterior tinham abalado seguindo

o sol, voando em bandos atrás da luz. Agora o sol estava para sair e elas regressavam.

Persignou-se três vezes. «Desculpem-me», disse-lhes. E começou a sua tarefa. Quando

chegou ao terceiro, caíam-lhe jorros de lágrimas. Ou talvez fosse suor. Dá trabalho matar. O

couro é flexível. Defende-se, embora se resigne. E o machado estava amolgado: «Peço-vos

que me desculpem», voltou a dizer-lhes.

«Sentou-se na areia da praia» isso disse aquele que o perseguia. «Sentou-se aqui e não se

mexeu por um longo momento. Esperou que as nuvens se despejassem. Mas nesse dia o sol

não saiu, nem no dia seguinte. Lembro-me. Foi naquele domingo em que me morreu o

recém-nascido e o fomos enterrar. Não tínhamos tristeza, só tenho memória de que o céu

estava cinzento e de que as flores que levámos estavam desbotadas e murchas como se

sentissem a falta do sol.

«O homem ficou aqui, esperando. Ali estavam as suas pegadas: o ninho que fez junto dos

matorrais; o calor do seu corpo abrindo um poço na terra húmida.»

36

«Não devia ter saído da vereda» pensou o homem. «Por ali já teria chegado. Mas é

perigoso caminhar por onde todos caminham, sobretudo carregando este peso que eu

carrego. Este peso deve ver-se por qualquer olho que me olhe; deve ver-se como se fosse

um inchaço estranho. Eu sinto-o assim. Quando senti que tinha cortado um dedo, as

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pessoas viram-no e eu não, só depois. Como agora, mesmo que não queira, devo ter algum

sinal. Assim o sinto, pelo peso, ou talvez fosse o esforço que me cansou.» Depois

acrescentou: «Não devia tê-los matado a todos; ter-me-ia conformado com aquele que

tinha que matar; mas estava escuro e os vultos eram iguais... No fim de contas, sendo

tantos custar-lhes-á menos o enterro.»

«Vais cansar-te primeiro que eu. Chegarei onde queres chegar antes que lá estejas» disse

aquele que ia atrás dele. «Sei de cor as tuas intenções, quem és e de onde és e para onde

vais. Chegarei antes de tu chegares.»

«Mo é este o lugar» disse o homem ao ver o rio. «vou cruzálo aqui e depois mais para lá e

talvez saia na mesma margem. Tenho que estar do outro lado, onde não me conhecem,

onde nunca estive e ninguém sabe de mim; depois caminharei a direito, até chegar. De lá

nunca ninguém me tirará.»

Passaram mais bandos de jacus, grasnando com gritos que ensurdeciam.

«Caminharei mais para baixo. Aqui o rio tem um remoinho e pode devolver-me onde não

quero regressar.»

«Nunca ninguém te fará mal, filho. Estou aqui para te proteger. Por isso nasci antes de ti e

os meus ossos endureceram antes dos teus.»

Ouvia a sua própria voz, saindo devagar da sua boca. Sentia-a soar como uma coisa falsa e

sem sentido.

Porque teria dito aquilo? Agora o seu filho estaria zombando dele. Ou talvez não. «Talvez

esteja cheio de rancor para comigo por tê-lo deixado sozinho na nossa última hora. Porque

era só a minha. Ele veio por mim. Não os procurava a vocês, simplesmente era eu o final da

sua viagem, a cara que ele sonhava ver morta, esfregada contra o lodo, maltratada e

37

espezinhada até à desfiguração. Tal como eu fiz ao seu irmão; mas fi-lo cara a cara, José

Alcancía, à frente dele e à tua frente e tu apenas choravas e tremias de medo. Desde então

soube quem eras e como virias buscar-me. Esperei-te um mês, acordado de dia e de noite,

sabendo que chegarias de rastos, escondido como uma víbora venenosa. E chegaste tarde. E

eu também cheguei tarde. Cheguei atrás de ti. Entreteve-me o enterro do recém-nascido.

Agora percebo. Agora percebo porque é que me murcharam as flores na mão.»

«Não devia tê-los matado a todos» ia pensando o homem. «Não valia a pena pôr esse fardo

tão pesado nas minhas costas. Os mortos pesam mais que os vivos; esmagam-nos. Devia

tê-los tenteado um por um até dar com ele; tê-lo-ia conhecido pelo bigode; embora

estivesse escuro, teria sabido onde lhe bater antes que se levantasse... No fim de contas, é

melhor assim: Ninguém os chorará e eu viverei em paz. A questão é encontrar a passagem

para sair daqui antes que me agarre a noite.»

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O homem chegou ao ponto mais estreito do rio à tarde. O sol não tinha saído em todo o dia,

mas a luz tinha-se torcido, contornando as sombras; por isso soube que já passava do meio-

dia.

«Estás apanhado» disse aquele que ia atrás dele e que agora estava sentado à beira do rio.

«Meteste-te num atoleiro. Primeiro fazendo a tua malfeitoria e agora indo para os caixões,

para o teu próprio caixão. Não preciso de te seguir até lá. Terás que regressar assim que te

vejas cercado. Esperar-te-ei aqui. Aproveitarei o tempo para medir a pontaria, para saber

onde te vou colocar a bala. Tenho paciência e tu não tens, é essa a minha vantagem. Tenho

o meu coração que resvala e dá voltas no seu próprio sangue, e o teu está arruinado, azedo e

cheio de podridão. É essa também a minha vantagem. Amanhã estarás morto, ou talvez

depois de amanhã ou dentro de oito dias. Não importa o tempo. Tenho paciência.»

O homem viu como o rio se encaixava entre altas paredes e deteve-se. «Terei que

regressar», disse.

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Nestes lugares o rio é largo e fundo e não tropeça em nenhuma pedra. Resvala num regueiro

como de azeite espesso e sujo. E de vez em quando engole algum ramo nos seus remoinhos,

sorvendo-o sem que se ouça nenhum queixume.

«Filho» disse aquele que estava sentado esperando «não preciso de te dizer que quem te

matou está morto desde agora. Ganharei alguma coisa com isso? O que se passa é que eu

não estive contigo. De que serve explicar alguma coisa? Não estava contigo. É tudo. Nem

com ela. Nem com ele. Não estava com ninguém; porque o recém-nascido não me deixou

nenhum sinal de recordação.»

O homem percorreu um longo troço rio acima.

Na cabeça ressaltavam-lhe bolhas de sangue. «Pensei que o primeiro ia acordar os outros

com o seu estertor; por isso tentei despachar-me.» «Desculpem o incómodo», disse-lhes. E

depois sentiu que aquele gorgolejo era igual ao ronquido das pessoas adormecidas; por isso

ficou tão calmo quando saiu para a noite lá de fora, para o frio daquela noite nublada.

Parecia que vinha a fugir. Trazia uma porção de lodo nos tamancos, já nem se sabia qual era

a cor das suas calças.

Vi-o desde que mergulhou no rio. Empurrou o corpo com o peito e deixou-se ir corrente

abaixo, sem mexer as mãos, como se estivesse a caminhar pisando o fundo. Depois

alcançou a margem e pôs os seus trapos a secar. Vi que tremia de frio. Fazia fresco e estava

nublado.

Estive espreitando por cima da cerca onde o patrão me deixou o encargo dos seus borregos.

Voltava e olhava aquele homem sem que ele desconfiasse que alguém o estava espiando.

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Apoiou-se nos braços e esteve esticando e encolhendo a sua humanidade, deixando arejar o

corpo para que secasse. Depois vestiu a camisa e as calças esburacadas. Vi que não tinha

nem machado nem arma nenhuma. Só a simples bolsa que lhe pendia da cintura, órfã.

39

Olhou e voltou a olhar para todos os lados e foi-se embora. E já eu me estava a endireitar

para pôr os borregos a andar, quando o vi voltar com o mesmo aspecto de desorientado.

Meteu-se outra vez no rio, no braço do meio, de regresso.

«Que trará este homem?», perguntei-me.

E nada. Atirou-se outra vez ao rio e a corrente começou a abaná-lo como uma bandarilha, e

por pouco que não se afoga. Deu muitas braçadas e por fim não pôde passar e saiu lá em

baixo, deitando água pela boca até se aliviar.

Voltou a fazer a operação de se secar em pelota e depois dirigiu-se rio acima pelo rumo por

onde tinha vindo.

Que mo dessem agora mesmo. Se soubesse o que ele tinha feito tinha-o estraçalhado à

pedrada e nem sequer me entrariam remorsos.

Eu bem dizia que era um fugitivo. Só de olhar-lhe para a cara. Mas, senhor doutor, eu não

sou bruxo. Sou só um guardador de borregos e até, se quiser, um bocadinho medroso se se

der a ocasião. Embora, tal como você diz, pudesse tê-lo apanhado desprevenido e uma

pedrada bem dada na cabeça tê-lo-ia deixado ali teso. Não tenha dúvidas que tem toda a

razão.

O que me conta de todas as mortes que ele tinha a seu cargo e que acabava de efectuar, não

mo perdoo. Gosto de matar matadores, acredite em mim. Não é costume; mas deve ser

saboroso ajudar Deus a acabar com esses filhos do mal.

O que acontece é que as coisas não ficaram por ali. Vi-o vir novamente no dia seguinte.

Mas eu ainda não sabia de nada. Se tivesse sabido!

Vi-o vir mais magro que no dia anterior, com os ossos quase por fora da pele, com a camisa

rasgada. Não pensei que fosse ele, tão demudado estava.

Conheci-o pelo arrasto dos olhos: meio duros, como que magoavam. Vi-o beber água e

depois fazer bochechos como quem está a enxaguar a boca; mas o que se passava era que

tinha engolido um bom punhado de girinos, porque o charco de onde se pôs a sorver era

baixinho e estava infestado de girinos. Devia ter fome.

Vi-lhe os olhos, que eram dois buracos escuros de fundo de

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cova. Aproximou-se e disse-me: «São tuas essas borregas?» E eu disse-lhe que não. «São

daquela que as pariu», isso lhe disse.

Não achou graça. Nem sequer mostrou os dentes. Lançou-se à mais gorda das minhas

borregas e com as mãos como tenazes agarrou-lhe as patas e sorveu-lhe a teta. Até aqui se

ouviam os balidos do animal; mas ele não a soltava, continuava a chupar e chupar até que

se enfastiou de mamar. Posso-lhe dizer que até tive que lhe deitar creolina nas úberes para

que se desinflamassem e não se infectassem com os mordiscos que o homem lhe tinha

dado.

Diz você que matou todinha a família dos Urquidi?

Se o chego a saber acabo com ele à paulada.

Mas uma pessoa é ignorante. Uma pessoa vive isolada no outeiro, sem outra companhia que

os borregos, e os borregos não sabem de mexericos.

No outro dia voltou a aparecer. Ao chegar eu, chegou ele. E até fizemos amizade.

Contou-me que não era daqui, que era de um lugar muito longe; mas que já não podia andar

porque lhe falhavam as pernas: «Caminho e caminho e não ando nada. Dobram-se-me as

pernas da debilidade. E a minha terra está longe, para lá daqueles outeiros.» Contou-me que

tinha andado dois dias a comer somente ervas daninhas. Foi o que me disse.

Diz-me você que nem sequer lhe entrou piedade quando matou os familiares dos Urquidi?

Se eu o soubesse tinha ficado em sentido e com a boca aberta enquanto bebia o leite das

minhas borregas.

Mas não parecia má pessoa. Falava-me da mulher e dos seus rapazes. E de tão longe que

estavam dele. Sorvia o ranho ao lembrar-se deles.

E estava magríssimo, quase transparente. Ainda ontem comeu um pedaço de animal que

tinha morrido com o relâmpago. Uma parte do bicho amanheceu comida certamente pelas

formigas arrieiras e a parte que ficou assou-a ele nas brasas que eu acendia para aquecer as

tortilhas e deu-lhe fim. Raspou os ossos até os deixar carecas.

«O animalzinho morreu de doença», disse-lhe eu.

Mas era como se nem me ouvisse. Comeu-o inteirinho.

Tinha fome.

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Mas diz você que acabou com a vida dessa gente. Se chego a saber! O que é ser ignorante e

confiado. Eu não sou mais do que borregueiro, e daí para lá não sei nada. Posso dizer-lhe

que comia as minhas próprias tortilhas e que as enrolava no meu próprio prato!

De maneira que agora que lhe venho dizer o que sei, eu saio encobridor? Pois muito bem. E

diz você que me vai meter na cadeia por esconder esse indivíduo? Nem que eu fosse o que

matou essa família. Eu só lhe venho dizer que ali num charco do rio está um defunto. E

você alega-me que desde quando e como é e de que maneira é esse defunto. E agora que lho

estou a dizer, saio encobridor. Pois muito bem.

Acredite em mim, senhor doutor, que se tivesse sabido quem era aquele homem, não me

teria faltado maneira de o tornar perdidiço. Mas o que é que eu sabia? Eu não sou bruxo.

Ele só me pedia de comer e falava-me dos seus rapazes, gotejando lágrimas.

E agora morreu. Eu pensava que tinha posto a secar os seus trapos entre as pedras do rio;

mas era ele, inteirinho, quem estava ali de boca para baixo, com a cara metida na água.

Primeiro achei que se tinha dobrado ao inclinar-se sobre o rio e já não tinha podido

endireitar a cabeça e que depois se tinha posto a resfolegar água, até que vi o sangue

coagulado que lhe saía pela boca e a nuca repleta de buracos como se o tivessem

esburacado.

Eu não vou averiguar isso. Só venho contar-lhe o que se passou, sem tirar nem pôr. Sou

borregueiro e não percebo de outras coisas.

43

NA MADRUGADA

San Gabriel sai do nevoeiro húmido de orvalho. As nuvens da noite dormiram sobre o

povoado procurando o calor das gentes. Agora está para sair o sol e a névoa levanta-se

devagar, enrolando o seu lençol, deixando fios brancos em cima dos telhados. Um vapor

cinzento, apenas visível, sobe das árvores e da terra molhada atraído pelas nuvens; mas

desvanece-se de seguida. E atrás dele aparece o rumo negro das cozinhas, cheiroso a

azinheira queimada, cobrindo o céu de cinzas.

Lá longe os outeiros estão ainda em sombras.

Uma andorinha cruzou as ruas e depois ouve-se o primeiro toque da alvorada.

As luzes apagaram-se. Então uma mancha como de terra envolve o povoado, que continua a

ressonar um pouco mais, adormecido nas cores do amanhecer.

Pelo caminho de Jiquilpan, bordeado por grandes árvores, o velho Esteban vem montado no

lombo de uma vaca, arreando o gado da ordenha. Subiu para ali para que os gafanhotos não

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lhe saltem para a cara. Enxota os mosquitos com o seu chapéu e de vez em quando tenta

assobiar, com a sua boca sem dentes,

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às vacas para que não se deixem ficar para trás. Elas caminham ruminando, salpicando-se

com o orvalho da erva. A manhã está a clarear. Ouve o toque da alvorada em San Gabriel e

desce da vaca, ajoelhando-se no chão e fazendo o sinal da cruz com os braços estendidos.

Uma coruja grasna no buraco das árvores e então ele salta de novo para o lombo da vaca,

despe a camisa, para que o susto lhe abale com o vento, e segue o seu caminho.

«Uma, duas, dez», conta as vacas ao passar o aprisco que há à entrada do povoado. A uma

delas segura-a pelas orelhas e diz-lhe, esticando o nariz: «Agora vão-te desfilhar, mal

encabelada. Chora, se quiseres, mas é o ultimo dia que vês o teu bezerro.» A vaca olha-o

com os seus olhos tranquilos, sacode-o com o rabo e caminha para diante.

Estão a dar o último toque da alvorada.

Não se sabe se as andorinhas vêm de Jiquilpan ou se saem de San Gabriel; só se sabe que

vão e vêm ziguezagueando, molhando o peito no lodo dos charcos sem perder o voo;

algumas levam algo no bico, recolhem o lodo com as penas timoneiras e afastam-se, saindo

do caminho, perdendo-se no sombrio horizonte.

As nuvens estão já sobre as montanhas, tão distantes que só parecem pachos cinzentos

presos às fraldas daqueles outeiros azuis.

O velho Esteban olha as serpentinas de cores que correm pelo céu: vermelhas, alaranjadas,

amarelas. As estrelas vão-se tornando brancas. As últimas faíscas apagam-se e brota o sol,

inteiro, colocando gotas de vidro na ponta da erva.

«Eu tinha o umbigo frio de o trazer ao ar. Já não me lembro porquê. Cheguei ao saguão do

curral e não me abriram. Quebrou-se a pedra com que estive a bater à porta e ninguém saiu.

Então pensei que o meu patrão dom Justo tinha ficado a dormir. Não disse nada às vacas,

nem lhes expliquei nada; aba-

45

lei sem que me vissem, para que não me seguissem. Procurei um sítio onde a sebe estivesse

baixinha e por ali trepei e caí do outro lado, entre os bezerros. Já estava a tirar o trinco da

saguão quando vi o patrão dom Justo, que saía de onde estava o sótão, com a menina

Margarita dormida nos seus braços e que atravessava o curral sem me ver. Eu escondi-me

até me tornar desapercebido encostando-me à parede, e de certeza que ele não me viu. Pelo

menos foi o que pensei.»

O velho Esteban deixou entrar as vacas uma a uma, enquanto as ordenhava. Deixou para

última a desfilhada, que esteve brame e brame, até que por pura lástima a deixou entrar.

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«Pela última vez» disse-lhe «olha-o e lambe-o; olha-o como se fosse morrer. Estás quase a

parir e ainda te afeiçoas a este grandalhão.» E a ele: «Saboreia-as só, que já não são tuas;

deves perceber que este leite é leite terno para um recém-nascido.» E encheu-o de pontapés

quando viu que mamava das quatro tetas. «Vou-te partir as trombas, filho da mãe.»

«E ter-lhe-ia partido o focinho se não tivesse surgido por ali o patrão dom Justo, que me

encheu de pontapés para que me acalmasse. Surrou-me com uma tal enfiada de cacetadas

que até fiquei a dormir entre as pedras, com os ossos a estalar de tão soltos que os tinha.

Lembro-me que permaneci todo esse dia tolhido e sem poder mexer-me pelo inchaço que

me apareceu depois e pela muita dor que ainda me dura.

«Que aconteceu depois? Nunca soube. Não voltei a trabalhar com ele. Nem eu nem

ninguém, porque nesse mesmo dia morreu. Você não sabia? Vieram dizer-mo a casa,

enquanto estava deitado no catre, com a velha ali ao meu lado pondo-me emplastros e

cataplasmas. Chegaram-me com esse aviso. E que se dizia que eu o tinha matado, disseram

os rumores. Bem pode ter sido; mas eu não me lembro. Você não acha que matar o próximo

deixa rastos? Deve deixar, e mais ainda tratando-se do superior de uma pessoa. Mas a partir

do momento em que

46

me têm aqui na cadeia por alguma coisa deve ser, não acha? Embora, olhe, eu bem que me

lembro de tudo até ao momento em que bati no bezerro e de quando o patrão se atirou a

mim, até aí a memória vai muito bem; depois está tudo confuso. Sinto que adormeci de

repente e quando acordei estava no meu catre, com a velha ali ao meu lado, consolando-me

dos meus achaques como se eu fosse uma criancinha e não este velho desdentado que sou.

Até lhe disse: «Cala-te já!» Lembro-me muito bem que lho disse, como não me ia lembrar

de que matei um homem? E, no entanto, dizem que matei dom Justo. com que é que dizem

que o matei? Dizem que com uma pedra, verdade? Vá lá, menos mal, porque se dissessem

que tinha sido com uma navalha estariam chanfrados, porque eu não carrego navalha desde

que era rapaz e de então faz já uma boa fileira de anos.»

Justo Brambila deixou a sua sobrinha Margarita sobre a cama, tentando não fazer ruido. No

quarto contíguo dormia a sua irmã, entrevada há dois anos, imóvel, com o seu corpo feito

de trapos; mas sempre acordada. Só tinha um momento de sono, ao amanhecer; então

adormecia como se se entregasse à morte.

Acordava ao nascer do sol, agora. Quando Justo Brambila deixava o corpo adormecido de

Margarita sobre a cama, ela começava a abrir os olhos. Ouviu a respiração da filha e

perguntou: «Onde estiveste ontem à noite, Margarita?» E antes que começassem os gritos

que acabariam por acordá-lo, Justo Brambila abandonou o quarto em silêncio.

Eram seis da manhã.

Dirigiu-se ao curral para abrir o saguão ao velho Esteban. Pensou também em subir ao

sótão para levantar a cama onde ele e Margarita tinham passado a noite. «Se o senhor padre

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autorizasse isto, casar-me-ia com ela; mas tenho a certeza que armará um escândalo se lho

peço. Dirá que é um incesto e excomungar-nos-á aos dois. Mais vale deixar as coisas em

47

segredo.» Nisso pensava quando encontrou o velho Esteban brigando com o bezerro,

metendo-lhe as mãos como se fossem arame no focinho e dando-lhe pontapés na cabeça.

Parecia que o bezerro já estava derreado porque esfregava as patas no chão sem poder

endireitar-se.

Correu e agarrou o velho pelo pescoço e atirou-o contra as pedras, enchendo-o de pontapés

e gritando-lhe coisas de que ele nunca percebeu o significado. Depois sentiu que se lhe

enevoava a cabeça e caía ressaltando contra o empedrado do curral. Quis levantar-se e

voltou a cair, e à terceira tentativa ficou quieto. Uma grande nuvem negra cobriu-lhe o olhar

quando quis abrir os olhos. Não sentia dor, só uma coisa negra que lhe foi escurecendo o

pensamento até à escuridão total.

O velho Esteban levantou-se já alto o sol. Foi caminhando às apalpadelas, queixando-se.

Não se soube como abriu a porta e saiu para a rua. Não se soube como chegou a sua casa,

levando os olhos fechados, deixando aquele regueiro de sangue por todo o caminho.

Chegou e recostou-se no seu catre e voltou a adormecer.

Seriam onze da manhã quando Margarita entrou no curral, procurando Justo Brambila,

chorando porque a mãe lhe tinha dito, depois de muito a sermonear, que era uma prostituta.

Encontrou Justo Brambila morto.

«Diz-se que eu o matei. Bem pode ter sido. Mas também pode ter sido que ele tenha

morrido de raiva. Tinha muito mau feitio. Tudo lhe parecia mal: que os pesebres estavam

sujos; que as pias não tinham água; que as vacas estavam muito magras. Tudo lhe parecia

mal; até que eu estivesse magro não lhe agradava. E como não ia estar magro se quase não

comia. Andava todo o dia a andar de um lado para o outro com as vacas: levava-as a

Jiquilpan, onde ele tinha comprado um potreiro de pastagem; esperava que comessem e

depois trazia-as de volta para chegar com elas de madrugada. Aquilo parecia uma eterna

peregrinação.

48

«E agora, bem pode ver, têm-me preso na cadeia e que me vão julgar na semana que vai

entrar porque matei dom Justo. Eu não me lembro; mas bem pode ser. Talvez os dois

estivéssemos cegos e não nos demos conta de que nos matávamos um ao outro. Bem pode

ter sido. A memória, nesta idade que tenho, é traiçoeira; por isso eu dou graças a Deus,

porque se acaba com todas as minhas faculdades, já não perco muito, uma vez que já quase

não me resta nenhuma. E, quanto à minha alma, pois também a Ele a encomendo.»

Sobre San Gabriel estava descendo outra vez o nevoeiro. Nos outeiros azuis brilhava ainda

o sol. Uma mancha de terra cobria o povoado. Depois veio a escuridão. Nessa noite não

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acenderam as luzes, de luto, pois dom Justo era o dono da luz. Os cães uivaram até ao

amanhecer. Os vidros de cores da igreja estiveram acesos até ao amanhecer com a luz dos

círios, enquanto velavam o corpo do defunto. Vozes de mulheres cantavam no semi-sono da

noite: «Saiam, saiam, saiam, animas de penas» com voz de falsete. E os sinos estiveram

tocando a morto toda a noite, até ao amanhecer, até que foram cortados pelo toque da

alvorada.

49

TAIPA

Natália meteu-se nos braços da mãe e chorou longo tempo ali com um choro quietinho. Era

um pranto aguentado durante muitos dias, guardado até agora que regressamos a Zenzontla

e viu a sua mãe e começou a sentir-se com vontade de consolo.

No entanto, antes, entre os trabalhos de tantos dias difíceis, quando tivemos que enterrar o

Tanilo num poço da terra de Taipa, sem que ninguém nos ajudasse, quando ela e eu, os dois

sozinhos, juntámos as nossas forças e nos pusemos a escavar a sepultura, desenterrando os

terrões com as nossas mãos apressando-nos para esconder rapidamente o Tanilo dentro do

poço e que não continuasse a assustar mais ninguém com o cheiro do seu ar cheio de morte

-, então não chorou.

Nem depois, no regresso, quando viemos caminhando de noite sem conhecer o sossego,

andando às apalpadelas como adormecidos e pisando com passos que pareciam pancadas

sobre a sepultura do Tanilo. Nessa altura, Natália parecia estar endurecida e trazer o coração

apertado para não o sentir ferver dentro dela. Mas dos seus olhos não saiu nem uma

lágrima.

Veio para chorar aqui, encostada à mãe; só para a afligir e para que soubesse que sofria, de

caminho afligindo-nos a todos, porque eu também senti o pranto dela dentro de mim como

se estivesse espremendo o trapo dos nossos pecados.

50

Porque o que se passa é que a Tanilo Santos, entre Natália e eu, matámo-lo. Levámo-lo a

Taipa para que morresse. E morreu. Sabíamos que não aguentaria tanto caminho; mas

mesmo assim levámo-lo, empurrando-o entre os dois, pensando em acabar com ele para

sempre. Foi o que fizemos.

A ideia de ir a Taipa saiu do meu irmão Tanilo. Ele é que se lembrou antes de ninguém. Há

anos que andava pedindo que o levassem. Há anos. Desde aquele dia em que amanheceu

com umas ampolas roxas distribuídas pelos braços e pelas pernas. Depois as ampolas

converteram-se em chagas, por onde não saía nada de sangue mas sim uma coisa amarela

como seiva de copal que destilava água espessa. Desde então lembro-me muito bem que

nos disse quanto medo sentia de já não ter remédio. Para isso queria ir ver a Virgem de

Taipa; para que Ela, com o seu olhar, lhe curasse as chagas. Embora soubesse que Taipa

estava longe e que teríamos que caminhar muito debaixo do sol dos dias e do frio das noites

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de Março, mesmo assim queria ir. A Virgenzinha dar-lhe-ia o remédio para se aliviar de

todas aquelas coisas que nunca secavam. Ela sabia fazer isso: lavar as coisas, começar tudo

de novo como um campo recém-chovido. Já ali, à frente dela, acabar-se-iam os seus males;

nada lhe doeria nem voltaria a doer mais. Era o que ele pensava.

E a isso nos agarrámos, a Natália e eu, para o levar. Eu tinha que acompanhar o Tanilo

porque era meu irmão. A Natália teria que ir também, de todas as maneiras, porque era sua

mulher. Tinha que o ajudar dando-lhe o braço, carregando-o à ida e talvez à volta sobre os

seus ombros, enquanto ele arrastava a sua esperança.

Eu já sabia de antes o que havia dentro de Natália. Algo conhecia dela. Sabia, por exemplo,

que as suas pernas redondas, duras e quentes como pedras ao sol do meio-dia, estavam sós

há algum tempo. Eu já conhecia isso. Tínhamos estado juntos muitas vezes; mas sempre

nos separava a sombra de Tanilo:

51

sentíamos que as suas mãos empoladas se metiam entre nós e levavam a Natália para que o

continuasse a cuidar. E sempre assim seria enquanto ele estivesse vivo.

Sei agora que a Natália está arrependida do que aconteceu. E eu também estou; mas isso

não nos salvará dos remorsos nem nos dará nenhuma paz, nunca jamais. Não poderá

tranquilizar-nos saber que o Tanilo teria morrido de qualquer maneira porque já lhe tocava,

e que de nada tinha servido ir a Taipa, tão para lá, tão longe; pois é quase certo que teria

morrido tanto lá como cá, ou talvez pouco depois aqui, porque tudo aquilo com que se

mortificou pelo caminho, e o sangue que perdeu a mais, e a raiva e tudo, todas essas coisas

juntas foram as que o mataram mais depressa. O pior é que a Natália e eu levámo-lo aos

empurrões, quando ele já não queria continuar, quando sentiu que era inútil continuar e nos

pediu que regressássemos. Aos esticões levantávamo-lo do chão para que continuasse a

caminhar, dizendo-lhe que já não podíamos voltar para trás.

«Já está mais perto Taipa que Zenzontla.» Era o que lhe dizíamos. Mas Taipa ainda estava

longe; mais para lá muitos dias.

O que queríamos era que morresse. Não é demais dizer que isso era o que queríamos

mesmo antes de sair de Zenzontla e em cada uma das noites que passámos no caminho de

Taipa. É uma coisa que agora não podemos compreender; mas então era o que queríamos.

Lembro-me muito bem.

Lembro-me muito bem dessas noites. Primeiro alumiávamo-nos com ocotes’2. Depois

deixávamos que a cinza escurecesse a labareda e depois procurávamos, Natália e eu, a

sombra de qualquer coisa para nos esconder da luz do céu. Assim nos encostávamos à

solidão do campo, longe dos olhos de Tanilo e desaparecidos na noite. E aquela solidão

empurravanos um para o outro. A mim punha-me nos braços o corpo de Natália e a ela isso

servia-lhe de consolo. Sentia que descansava; esquecia-se das coisas e depois adormecia

com o corpo sumido num grande alívio.

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[2] Lasca de madeira impregnada em resina para dar luz. N. da T.)

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Sempre acontecia que a terra sobre a qual dormíamos estava quente. E a carne de Natália, a

esposa do meu irmão Tanilo, aquecia-se de seguida com o calor da terra. Depois aqueles

dois calores juntos queimavam e faziam com que qualquer um acordasse do seu sono.

Então as minhas mãos iam atrás dela; iam e vinham por cima desse rescaldo que ela era;

primeiro suavemente, mas depois apertavam-na como se lhe quisessem espremer o sangue.

Assim uma e outra vez, noite após noite, até que a madrugada chegava e o vento frio

apagava o lume dos nossos corpos. Isso fazíamos Natália e eu numa parte do caminho de

Taipa, quando levávamos o Tanilo para que a Virgem o aliviasse.

Agora já passou. Tanilo ficou aliviado até de viver. Já não poderá dizer nada do enorme

trabalho que lhe custava viver, tendo aquele corpo peçonhento, cheio por dentro de água

apodrecida que lhe saía por cada uma das rachas das pernas ou dos braços. Umas chagas tão

grandes, que se iam abrindo devagarinho, muito devagarinho, para depois deixarem sair aos

borbulhões um cheiro de qualquer coisa estragada que nos assustava a todos.

Mas agora que está morto as coisas vêem-se de outra maneira. Agora a Natália chora por

ele, talvez para que ele veja, lá onde está, os grandes remorsos que carrega na alma. Ela diz

que sentiu a cara de Tanilo nos últimos dias. Era a única coisa que lhe servia; a cara do

Tanilo, sempre humedecida pelo suor em que o deixava o esforço para aguentar as suas

dores. Sentiu-a aproximando-se até à sua boca, escondendo-se entre os seus cabelos,

pedindo-lhe, com um fiozinho de voz, que o ajudasse. Diz que lhe disse que já se tinha

curado finalmente; que já não o molestava nenhuma dor. «Já posso estar contigo, Natália.

Ajuda-me a estar contigo», diz que lhe disse isso.

Acabávamos de sair da Taipa, de o ter deixado ali enterrado bem fundo naquela espécie de

sulco profundo que fizemos para o sepultar.

E Natália esqueceu-se de mim desde então. Eu sei como lhe brilhavam antes os olhos como

se fossem charcos alumiados pela lua.

53

Mas de repente desbotaram, apagou-se-lhe o olhar como se o tivesse espojado na terra. E

parecia que já não via nada. Para ela só existia o Tanilo dela, que ela tinha cuidado

enquanto esteve vivo e tinha-o enterrado quando teve que morrer.

Demorámos vinte dias a encontrar a rua principal de Taipa. Até então tínhamos vindo os

três sozinhos. A partir daí começámos ajuntar-nos com gente que saía de todos os lados;

que tinham desembocado tal como nós naquele caminho largo parecido com a corrente de

um rio, que nos fazia andar de rastos, empurrados por todos os lados como se nos levassem

amarrados com farrapos de pó. Porque da terra levantava-se, com o bulir das pessoas, um

pó branco como o cotão do milho que subia muito alto e voltava a cair; mas os pés ao

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caminhar devolviam-no e faziam-no subir novamente; assim constantemente estava aquele

pó por cima e por baixo de nós. E por cima desta terra estava o céu vazio, sem nuvens, só o

pó; mas o pó não dá nenhuma sombra.

Tínhamos que esperar pela noite para descansar do sol e daquela luz branca do caminho.

Depois os dias foram-se fazendo mais longos. Tínhamos saído de Zenzontla em meados de

Fevereiro e, agora que começava Março, amanhecia muito cedo. Mal tínhamos fechado os

olhos ao escurecer, quando nos voltava a acordar o sol, o mesmo sol que parecia que se

tinha acabado há momentos.

Nunca tinha sentido que a vida fosse tão lenta e violenta como ao caminhar entre um

amontoadeiro de gente; tal como se fôssemos um fervedoiro de vermes a formar pelotões

sob o sol, retorcendo-nos entre a escuridão do pó que nos encerrava a todos na mesma

vereda e nos levava encurralados. Os olhos seguiam a poeirada; batiam no pó como se

tropeçassem contra algo que não se podia trespassar. E o céu sempre cinzento, como uma

mancha cinzenta e pesada que nos esmagava a todos lá de cima. Só às vezes, quando

cruzávamos algum rio,

54

o pó era mais alto e mais claro. Mergulhávamos a cabeça acalorada e enegrecida na água

verde, e por momentos, de todos nós saía um fumo azul, parecido ao vapor que sai da boca

com o frio. Mas pouco depois desaparecíamos outra vez misturados no pó, cobrindo-nos

uns aos outros do sol, daquele calor do sol dividido entre todos.

Algum dia chegará a noite. Pensávamos nisso. Chegará a noite e pôr-nos-emos a descansar.

Agora do que se trata é de cruzar o dia, de o atravessar seja como for para fugir do calor e

do sol. Depois deter-nos-emos. Depois. O que temos que fazer neste momento é esforço

atrás de esforço para ir depressa atrás de tantos como nós e à frente de outros muitos. É do

que se trata. Já descansaremos bem por bem quando estivermos mortos.

Nisso pensávamos Natália e eu e talvez também Tanilo, quando íamos pelo caminho

principal de Taipa, entre a procissão; querendo ser os primeiros a chegar à Virgem, antes

que se lhe acabassem os milagres.

Mas o Tanilo começou a pôr-se mais doente. Chegou um momento em que já não queria

continuar. A carne dos seus pés tinha rebentado e por aquele arrebentamento começou a

sair-lhe o sangue. Tratámos dele até que se pôs bom. Mas, mesmo assim, já não queria

continuar:

«Ficarei aqui sentado um dia ou dois e depois voltarei para Zenzontla.» Foi o que nos disse.

Mas a Natália e eu não quisemos. Havia alguma coisa dentro de nós que não nos deixava

sentir nenhuma lástima por Tanilo. Queríamos chegar com ele a Taipa, porque nessas

alturas, assim como estava, ainda lhe sobrava vida. Por isso enquanto Natália lhe enxaguava

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os pés com aguardente para que desinchassem, ia-o animando. Dizia-lhe que só a Virgem

de Taipa o curaria. Ela era a única que podia fazer com que ele se aliviasse para sempre. Ela

e mais nada. Havia muitas outras Virgens; mas só a de Taipa é que era boa. Era o que

Natália lhe dizia.

E então o Tanilo punha-se a chorar com lágrimas que faziam sulco entre o suor da sua cara

e depois amaldiçoava-se por ter

55

sido mau. Natália limpava-lhe os jorros de lágrimas com o seu rebuço, e entre ela e eu

levantávamo-lo do chão para que caminhasse mais um bocado, antes que chegasse a noite.

Assim, aos puxões, foi como chegámos com ele a Taipa.

Já nos últimos dias também nós nos sentíamos cansados. Natália e eu sentíamos que o

corpo se nos ia dobrando cada vez mais. Era como se alguma coisa nos detivesse e

carregasse um pesado vulto sobre nós. O Tanilo caía-nos mais amiúde e tínhamos que o

levantar e às vezes carregá-lo, aos ombros. Talvez por isso estávamos como estávamos:

com o corpo frouxo e cheio de preguiça para caminhar. Mas as pessoas que iam ali junto de

nós faziam-nos andar mais depressa.

À noite, aquele mundo desbocado acalmava-se. Dispersas por todo o lado brilhavam as

fogueiras e à roda do lume as pessoas da peregrinação rezavam o terço, com os braços em

cruz, olhando para o céu de Taipa. E ouvia-se como o vento levava e trazia aquele sussurro,

revolvendo-o, até fazer dele um só mugido. Pouco depois tudo ficava quieto. Aí pela meia-

noite podia ouvir-se que alguém cantava muito longe de nós. Depois fechavam-se os olhos

e esperava-se sem dormir que amanhecesse.

Entrámos em Taipa cantando o «Louvado Seja o Senhor».

Tínhamos saído em meados de Fevereiro e chegámos a Taipa nos últimos dias de Março,

quando muita gente já vinha de regresso. Tudo devido a que o Tanilo se pôs a fazer

penitência.

Assim que se viu rodeado de homens que traziam folhas de cactos penduradas como

escapulários, ele também pensou em levar as suas. Deu-lhe para amarrar os pés um ao outro

com as mangas da sua camisa para que os seus passos se tornassem mais desesperados.

Depois quis levar uma coroa de espinhos. Logo a seguir vendou os olhos e, mais tarde, nos

últimos trechos do caminho, fincou-se na terra e assim, andando sobre os ossos dos seus

joelhos e com as mãos cruzadas atrás, chegou a Taipa aquela coisa que era o meu irmão

Tanilo

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Santos; aquela coisa cheia de cataplasmas e de escuros fios de sangue que deixavam no ar,

ao passar, um cheiro azedo como de animal morto.

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E assim que acordámos vimo-lo metido entre as danças. Quase nem nos demos conta e ele

já lá estava, com a longa soalha na mão, dando fortes pancadas no chão com os seus pés

arroxeados e descalços. Parecia completamente enfurecido, como se estivesse a sacudir a

raiva que tinha em cima faz tempo; ou como se estivesse fazendo um último esforço para

conseguir viver um pouco mais.

Talvez ao ver as danças se tenha lembrado de quando ia todos os anos a Tolimán, na

novena do Senhor, e bailava a noite inteira até que os seus ossos se afrouxavam, mas sem se

cansar. Talvez se tenha lembrado disso e quis reviver a sua antiga força.

Natália e eu vimo-lo assim um momento. De seguida vimo-lo alçar os braços e açoitar o seu

corpo contra o chão, ainda com a soalha repenicando entre as suas mãos salpicadas de

sangue. Tiramo-lo de rastos, esperando defendê-lo das pisadelas dos dançarinos; de entre a

fúria daqueles pés que rodavam sobre as pedras e saltavam esmagando a terra sem saber

que algo tinha caído no meio deles.

Escarranchado, como se estivesse entrevado, entrámos com ele na igreja. Natália ajoelhou-o

junto dela, mesmo à frente daquela figurinha dourada que era a Virgem de Taipa. E o

Tanilo começou a rezar e deixou cair uma lágrima grande, saída de muito dentro, apagando

a vela que Natália lhe tinha posto entre as mãos. Mas nem se deu conta disto; a luminária de

tantas velas acesas que ali havia cortou-lhe essa coisa com a qual nos apercebemos do que

acontece junto a si. Continuou a rezar com a sua vela apagada. Rezando aos gritos para

ouvir que rezava.

Mas de nada lhe serviu. Morreu na mesma.

«... dos nossos corações sai para Ela uma súplica igual, rodeada de dor. Muitas lamentações

misturadas com esperança. A sua ternura não ensurdece nem perante os lamentos nem

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perante as lágrimas, pois Ela sofre connosco. Ela sabe apagar essa nódoa e deixar que o

coração se faça brando e puro para receber a sua misericórdia e a sua caridade. A Virgem

nossa, nossa mãe, que não quer saber nada dos nossos pecados; que se culpabiliza pelos

nossos pecados; a que quereria carregar-nos nos braços para que a vida não nos lastime, está

aqui junto de nós, aliviando-nos o cansaço e as doenças da alma e do corpo lacerado, ferido

e suplicante. Ela sabe que a cada dia a nossa fé é melhor porque é feita de sacrifícios... »

Era o que o senhor padre dizia lá de cima do púlpito. E, depois de deixar de falar, as

pessoas começaram a rezar todas ao mesmo tempo, com um ruído igual ao de muitas vespas

espantadas pelo fumo.

Mas o Tanilo já não ouviu o que o senhor padre tinha dito. Tinha ficado quieto, com a

cabeça encostada aos joelhos. E quando Natália o moveu para que se levantasse, já estava

morto.

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Lá fora ouvia-se o ruído das danças; os tambores e a charanga; o repique dos sinos. E foi

então que a mim me deu tristeza. Ver tantas coisas vivas; ver a Virgem ali, mesmo em

frente de nós, dando-nos o seu sorriso, e por outro lado ver o Tanilo, como se fosse um

estorvo. Deu-me tristeza.

Mas nós levámo-lo lá para que morresse, é disso que não me esqueço.

Agora estamos os dois em Zenzontla. Voltámos sem ele. E a mãe de Natália não me

perguntou nada; nem o que fiz com o meu irmão Tanilo, nem nada. Natália pôs-se a chorar

nos seus ombros e dessa maneira contou-lhe tudo o que aconteceu.

E eu começo a sentir como se não tivéssemos chegado a lado nenhum, que estamos aqui de

passagem, para descansar, e que depois continuaremos a caminhar. Não sei para onde; mas

teremos que continuar, porque aqui estamos muito perto dos remorsos e da recordação de

Tanilo.

Talvez até comecemos a ter medo um do outro. O facto de

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não nos dizermos nada desde que saímos de Taipa talvez queira dizer isso. Talvez os dois

tenhamos muito perto o corpo de Tanilo, estendido na esteira, enrolado; cheio por dentro e

por fora de um fervedoiro de moscas azuis que zumbiam como se fosse um grande ronco

que saísse da boca dele; daquela boca que não se pôde fechar apesar dos esforços de Natália

e dos meus, e que parecia querer respirar ainda sem encontrar fôlego. Daquele Tanilo a

quem já nada doía, mas que estava como dorido, com as mãos e os pés entorpecidos e os

olhos muito abertos como se olhassem a sua própria morte. E por aqui e por ali, todas as

suas chagas gotejando uma água amarela, cheia daquele cheiro que se espalhava por todos

os lados e se sentia na boca, como se se estivesse a saborear um mel espesso e amargo que

se derretia no sangue a cada golfada de ar.

Talvez seja disso que mais nos lembramos aqui: daquele Tanilo que nós enterrámos no

Cemitério de Taipa; ao qual Natália e eu deitámos terra e pedras por cima para que não o

desenterrassem os animais do cerro.

59

MACARIO

Estou sentado junto do esgoto esperando que as rãs saiam. Ontem à noite, enquanto

jantávamos, começaram a armar um grande alvoroço e não pararam de cantar até que

amanheceu. A minha madrinha também diz isso: que a gritaria das rãs lhe espantou o sono.

E agora ela bem que gostaria de dormir. Por isso mandou-me sentar aqui, junto do esgoto, e

que ficasse atento, com uma tábua na mão para que cada rã que saísse a saltar cá para fora,

a esmagasse às reguadas... As rãs são verdes em todos os lados, menos na pança. Os sapos

são pretos. Também os olhos da minha madrinha são pretos. As rãs são boas para fazer de

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comer com elas. Os sapos não se comem; mas eu também já os comi, embora não se

comam, e sabem ao mesmo que as rãs. A Felipa é que diz que é mau comer sapos. Felipa

tem os olhos verdes como os olhos dos gatos. É ela que me dá de comer na cozinha de cada

vez que é a minha hora de comer. Ela não quer que eu prejudique as rãs. Mas, em tudo isto,

é a minha madrinha que me manda fazer as coisas... Eu gosto mais da Felipa do que da

minha madrinha. Mas é a minha madrinha que tira o dinheiro do seu bolso para que Felipa

compre tudo o que há na dispensa. A Felipa está só na cozinha arranjando a comida dos

três. Não faz outra coisa desde que eu a conheço. Lavar a louça toca-me a mim.

60

Acarretar lenha para acender o fogão também me toca a mim. Depois é a minha madrinha

que nos reparte a comida. Depois de ela comer, faz com as mãos dois montinhos, um para a

Felipa e outro para mim. Mas às vezes a Felipa não tem vontade de comer e então são para

mim os dois montinhos. Por isso é que eu gosto da Felipa, porque eu sempre tenho fome e

nunca fico cheio, nem mesmo comendo a comida dela. Mesmo que digam que se fica cheio

comendo, eu bem sei que não me encho por mais que coma tudo o que me derem. E a

Felipa também sabe isso... Dizem na rua que eu estou louco porque nunca se me acaba a

fome. A minha madrinha ouviu que dizem isso. Eu não ouvi. A minha madrinha não me

deixa sair sozinho para a rua. Quando me leva a dar uma volta é para me levar à igreja a

ouvir missa. Ali me acomoda bem juntinho dela e amarra-me as mãos com as franjas do seu

rebuço. Eu não sei por que me amarrará as mãos; mas ela afirma que é porque dizem que eu

faço loucuras. Um dia inventaram que eu andava a enforcar alguém; que apertei o pescoço a

uma senhora sem mais nem menos. Eu não me lembro. Mas, continuando, é a minha

madrinha que diz o que eu faço e ela não é de mentiras. Quando me chama para comer, é

para me dar a minha parte da comida, e não como outras pessoas que me convidavam para

comer com eles e, assim que me aproximava, apedrejavam-me até me fazerem correr sem

comida nem nada. Não, a minha madrinha trata-me bem. Por isso estou contente em sua

casa. Além disso, a Felipa vive aqui. A Felipa é muito boa para mim. Por isso gosto dela...

O leite da Felipa é doce como as flores do obelisco. Eu já bebi leite de chiba e também de

porca recém-parida; mas não, não é tão bom como o leite de Felipa... Agora já há muito

tempo que não me dá para chupar daqueles vultos que ela tem onde só temos as costelas, e

de onde lhe sai, sabendo tirá-lo, um leite melhor que o que nos dá a minha madrinha no

pequeno-almoço dos domingos... Antes a Felipa ia todas as noites ao quarto onde eu durmo,

e arrimava-se comigo, deitando-se em cima de mim ou estendendo-se mesmo ao meu lado.

Depois amanhava-se para que eu pudes-

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se chupar aquele leite doce e quente que se deixava vir em jorros pela língua... Muitas vezes

comi flores de obelisco para entreter a fome. E o leite da Felipa era desse sabor, só que eu

gostava mais, porque ao mesmo tempo que me passava os sorvos, Felipa fazia-me cócegas

por todos os lados. Depois acontecia que quase sempre ficava adormecida junto de mim, até

de madrugada. E isso servia-me de muito; porque eu não me afligia com o frio nem com

nenhum medo de ser condenado no Inferno se morresse ali sozinho, numa destas noites...

Às vezes não tenho tanto medo do Inferno. Mas outras sim. Depois, gosto de apanhar

grandes sustos com essa história de que vou para o Inferno um dia destes, por ter a cabeça

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tão dura e por gostar de dar cabeçadas contra a primeira coisa que encontro. Mas vem a

Felipa e espanta-me os medos. Faz-me cócegas com as suas mãos como ela sabe fazer e

atalha-me esse medo que tenho de morrer. E por um bocadinho até me esqueço... A Felipa

diz, quando tem vontade de estar comigo, que ela contará ao Senhor todos os meus pecados.

Que irá para o céu muito depressa e que falará com Ele pedindo-lhe que me perdoe toda a

muita maldade que me enche o corpo de cima abaixo. Ela dir-lhe-á que me perdoe, para que

eu não me preocupe mais. Por isso se confessa todos os dias. Não porque ela seja má, mas

sim porque eu estou repleto por dentro de demónios, e tem que me tirar esses tinhosos do

corpo confessando-se por mim. Todos os dias. Todas as tardes de todos os dias. Por toda a

vida ela me fará esse favor. É o que diz a Felipa. Por isso eu gosto tanto dela... No entanto,

o ter a cabeça assim tão dura é o grande problema. Dá-se pancadas contra os pilares do

corredor horas inteiras e não nos acontece nada à cabeça, aguenta sem se quebrar. E uma

pessoa dá pancadas no chão; primeiro devagarinho, depois mais rijo e aquilo soa como um

tambor. Igual ao tambor que anda com a charanga, quando a charanga vem para a acção do

Senhor. E então uma pessoa está na igreja, amarrado à madrinha, ouvindo lá fora o tum tum

do tambor... E a madrinha diz que, se no meu quarto há percevejos e baratas e lacraus é

porque vou arder no Inferno se continuo

62

com o meu vício de bater com a cabeça no chão. Mas o que eu quero é ouvir o tambor. Isso

é que ela devia saber. Ouvi-lo, como quando uma pessoa está na igreja, esperando sair

depressa para a rua para ver como é que aquele tambor se ouve de tão longe, até ao fundo

da igreja e por cima das condenações do senhor padre... : «O caminho das coisas boas está

cheio de luz. O caminho das coisas más é escuro.» Isso diz o senhor padre... Eu levanto-me

e saio do meu quarto quando ainda está escuro. Varro a rua e meto-me outra vez no meu

quarto antes que me agarre a luz do dia. Na rua acontecem coisas. Não falta quem nos

escalavre com pedradas assim que nos vêem. Chovem pedras grandes e afiadas de todos

os lados. E depois tem que se remendar o pijama e esperar muitos dias até que se remendem

as rachaduras da cara ou dos joelhos. E aguentar outra vez com as mãos amarradas, porque

senão elas correm a arrancar a crosta à ferida e volta a sair o jorro de sangue. E o sangue

também tem bom sabor embora não se pareça com o sabor do leite da Felipa... Eu, por isso,

para que não me apedrejem, vivo sempre metido na minha casa. Logo a seguir a darem-me

de comer encerro-me no meu quarto e tranco bem a porta para que os pecados não dêem

comigo vendo que está tudo às escuras. E nem sequer acendo o ocote para ver por onde me

sobem as baratas. Agora estou quietinho. Deito-me sobre as minhas sacas e, assim que sinto

alguma barata a caminhar com as suas patas ásperas pelo meu pescoço dou-lhe uma

palmada e esmago-a. Mas não acendo o ocote. Não vá acontecer que os pecados me

encontrem desprevenido por andar com o ocote aceso procurando as baratas que se metem

por baixo do meu cobertor... As baratas rebentam como bombinhas de Carnaval quando

uma pessoa as estripa. Os grilos não sei se rebentam. Aos grilos nunca os mato. A Felipa

diz que os grilos fazem sempre barulho, sem pararem nem para respirar, para que não se

ouçam os gritos das almas que estão penando no Purgatório. No dia em que os grilos se

acabarem, o mundo encher-se-á dos gritos das almas santas e todos começaremos a correr,

espantados com o susto. Além disso, eu gosto muito

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de estar de orelha quieta ouvindo o barulho dos grilos. No meu quarto há muitos. Talvez

haja mais grilos do que baratas aqui entre as dobras das sacas onde eu me deito. Também há

lacraus. A todo o momento caem do tecto e temos que esperar sem resfolegar até que eles

façam o seu caminho por cima de nós até chegar ao chão. Porque se algum braço se mexe

ou os ossos de uma pessoa começam a tremer, imediatamente se sente o ardor da picadela.

Isso dói. À Felipa picou-lhe uma vez um numa nalga. Pôs-se a chorar e a gritar com gritos

mansinhos à Virgem Santíssima para que a nalga não lhe apodrecesse. Eu untei-lhe saliva.

Passei toda a noite untando-lhe saliva e rezando com ela, e houve um momento, quando vi

que não ficava aliviada com o meu remédio, em que eu também a ajudei a chorar com os

meus olhos tanto quanto pude... De qualquer maneira, sinto-me melhor no meu quarto do

que se andasse na rua, chamando a atenção dos que gostam de aperrear a gente. Aqui

ninguém me faz nada. A minha madrinha não me ralha por me ver a comer as flores do seu

obelisco, ou as suas murtas ou as suas romãs. Ela sabe da vontade que sempre tenho de

comer. Que não se me ajusta nenhuma comida para encher as minhas tripas mesmo que

ande a todo o momento beliscando aqui e ali coisas de comer. Ela sabe que como o grão

demolhado que dou aos porcos gordos e o milho seco que dou aos porcos magros. Assim

que ela já sabe com quanta fome ando desde que amanhece até que anoitece. E enquanto

encontrar de comer aqui nesta casa, aqui estarei. Porque eu acho que no dia em que deixar

de comer vou morrer, e então irei com toda a certeza direitinho para o Inferno. E daí já

ninguém me tirará, nem a Felipa, mesmo sendo tão boa para mim, nem o escapulário que a

minha madrinha me ofereceu e que trago enredado no pescoço... Agora estou junto do

esgoto esperando que as rãs saiam. E ainda não saiu nenhuma em todo este tempo que estou

a falar. Se demoram mais a sair, pode acontecer que adormeça, e depois já não há maneira

de as matar, e à minha madrinha não lhe chegará o sono de nenhum lado se as ouve cantar,

e encher-se-á de raiva. E então

64

pedirá, a algum de toda a fileira de santos que tem no seu quarto, que mande os diabos à

minha procura, para me levarem de rastos para a condenação eterna, direitinho, sem sequer

passar pelo Purgatório, e então eu não poderei ver nem o meu paizinho nem a minha

mãezinha, que é lá que estão... O melhor é continuar a falar... Do que mais vontade tenho é

de voltar a provar alguns sorvos do leite da Felipa, aquele leite bom e doce como o mel que

sai por baixo das flores do obelisco...

O LLANO EM CHAMAS

Já mataram a cadela,

Mas ficaram os cachorros...

SEGUIDILHA POPULAR

«Viva Petronilo Flores!»

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O grito veio ressaltando pelos paredões do barranco e subiu até onde nós estávamos. Depois

desfez-se.

Por um momento, o vento que soprava de baixo trouxe-nos um tumulto de vozes

amontoadas, fazendo um ruído igual ao que faz a água crescida quando corre sobre

pedregais.

De seguida, saindo à mesma de lá, outro grito virou a curva do barranco, voltou a ressaltar

nos paredões e chegou ainda com força junto de nós:

«Viva o nosso general Petronilo Flores!»

Olhámo-nos.

O Cadela levantou-se devagar, tirou o cartucho do cano da carabina e guardou-o no bolso

da camisa. Depois encostou-se onde estavam os Quatro e disse-lhes: «Sigam-me, rapazes,

vamos ver que touritos toureamos!» Os quatro irmãos Benavides foram atrás dele,

agachados; só o Cadela ia bem firme, assomando metade do seu corpo magro por cima da

sebe.

66

Nós continuámos ali, sem nos mexermos. Estávamos alinhados ao pé da fachada, deitados

de barriga para o ar, como iguanas aquecendo-se ao sol.

A sebe de pedra serpenteava muito, ao subir e descer pelas lombas, e eles, o Cadela e os

Quatro, iam também serpenteando como se tivessem os pés travados. Assim os vimos

perderem-se dos nossos olhos. Depois virámos a cara para olhar outra vez para cima e

olhámos os ramos baixos das saponárias que nos davam tanta sombra.

Cheirava a isso: a sombra requentada pelo sol. A saponárias podres.

Sentia-se o sono do meio-dia.

O barulho que vinha lá de baixo saía a toda a hora do barranco e sacudia-nos o corpo para

que não adormecêssemos. E, embora quiséssemos ouvir, apurando a orelha, só nos chegava

o barulho: um remoinho de murmúrios, como se se estivesse ouvindo de muito longe o

sussurro que as carroças fazem ao passar por um beco pedregoso.

De repente soou um tiro. O barranco ecoou-o como se se estivesse a derrubar. Isso fez com

que as coisas acordassem: voaram os pardais, esses pássaros coloridos que tínhamos estado

a ver brincar entre as saponárias. De seguida as cigarras, que tinham adormecido por volta

do meio-dia, também acordaram enchendo a terra de rechinos.

- Que se passa? - perguntou Pedro Zamora, ainda meio amodorrado pela sesta.

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Então o Chihuila levantou-se e, arrastando a sua carabina como se fosse um lenho,

caminhou atrás dos que se tinham ido.

- Vou ver o que é que aconteceu - disse, sumindo-se também com os outros.

O chilrar das cigarras aumentou de tal maneira que nos deixou surdos e nem nos

apercebemos da hora em que eles apareceram por ali. Assim que acordámos lá estavam já

eles, mesmo à nossa frente, todos desmazelados. Parecia que estavam de passagem,

vestidos para outros apuros e não para este de agora.

67

Demo-nos conta e olhámo-los pela mira das troneiras.

Passaram os primeiros, depois os segundos e outros mais, com o corpo atirado para a frente,

corcovados de sono. A cara reluzia-lhes do suor, como se a tivessem mergulhado na água

ao passar pelo riacho.

Continuaram a passar.

Chegou o sinal. Ouviu-se um assobio longo e começou o tiroteio lá longe, para onde tinha

ido o Cadela. Depois continuou aqui.

Foi fácil. Quase tapavam o buraco da troneira com o seu vulto, de maneira que aquilo era

como atirar-lhes à queima-roupa e fazê-los dar um safanão da vida para a morte quase sem

que se apercebessem.

Mas isto durou muito pouco. Talvez a primeira e a segunda descarga. Depressa ficou vazio

o buraco da troneira por onde, quando nos assomávamos, só se via os que estavam deitados

a meio do caminho, meio torcidos, como se alguém os tivesse vindo despejar ali. Os vivos

desapareceram. Depois voltaram a aparecer, mas assim de repente já ali não estavam.

Para a seguinte descarga tivemos que esperar.

Um de nós gritou: «Viva Pedro Zamora!»

Do outro lado responderam, quase em segredo: «Salva-me patrãozinho! Salva-me! Santo

Menino de Atocha, socorre-me!»

Passaram os pássaros. Bandos de tordos cruzaram por cima de nós em direcção aos cerros.

A terceira descarga chegou-nos por trás. Brotou deles, fazendo-nos saltar até ao outro lado

da sebe, mais para lá dos mortos que tínhamos matado.

Depois começou a correria entre os matorrais. Sentíamos as balas palmando-nos os

calcanhares, como se tivéssemos caído sobre um enxame de gafanhotos. E de vez em

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quando, e cada vez mais, acertando mesmo no meio de algum de nós, que se quebrava com

um estalido de ossos.

Corremos. Chegámos à borda do barranco e dependurámo-nos por ali como se nos

tivéssemos despenhado.

Eles continuavam a disparar. Continuaram a disparar

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mesmo depois de termos subido até ao outro lado, de gatas, como texugos espantados pelo

lume.

«Viva o nosso general Petronilo Flores, filhos desta e daquela!», gritaram-nos outra vez. E o

grito abalou, rebombando como o trovão de uma trovoada, barranco abaixo.

Ficámos acaçapados atrás de umas pedras grandes e arredondadas, ainda a ofegar por causa

da corrida. Só olhávamos para Pedro Zamora, perguntando-lhe com os olhos o que é que

nos tinha acontecido. Mas ele também nos olhava sem nos dizer nada. Era como se se nos

tivesse acabado a fala a todos ou como se a língua se nos tivesse enrolado como a dos

periquitos e nos desse muito trabalho soltá-la para dizer alguma coisa.

Pedro Zamora continuava a olhar-nos. Fazia as suas contas com os olhos; com aqueles

olhos que ele tinha, todos avermelhados, como se os trouxesse sempre desvelados.

Contava-nos um a um. Já sabia quantos éramos os que estávamos ali, mas parecia não ter

ainda a certeza; por isso nos tornava a contar uma e outra vez.

Faltavam alguns: onze ou doze, sem contar o Cadela e o Chihuila e os que tinham ido com

eles. O Chihuila bem poderia estar escarranchado em cima de alguma saponária deitado

sobre a sua retrocarga esperando a que os federais se fossem embora.

Os Joseses, os dois filhos do Cadela, foram os primeiros a levantar a cabeça, depois o

corpo. Por fim, caminharam de um lado para o outro, esperando que Pedro Zamora lhes

dissesse alguma coisa. E disse:

- Outro combate como este e acabam connosco. De seguida, engasgando-se como se

engolisse um sorvo de raiva, gritou aos Joseses: «Já sei que falta o vosso pai, mas

aguentem-se, aguentem-se mais um pouco! Iremos à procura dele!»

Uma bala disparada de lá fez voar uma ninhada de rolas na ladeira em frente. Os pássaros

caíram sobre o barranco e esvoaçaram até perto de nós; depois, ao verem-nos, assustaram-

se,

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deram meia volta, reluzindo contra o sol, e voltaram a encher de gritos as árvores da ladeira

em frente.

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Os Joseses voltaram ao lugar de antes e acocoraram-se em silêncio.

Assim estivemos toda a tarde. Quando a noite começou a descer chegou o Chihuila

acompanhado por um dos Quatro. Disseram-nos que vinham lá de baixo, da Piedra Lisa,

mas não nos souberam dizer se os federais já se tinham retirado. O certo é que parecia estar

tudo calmo. De vez em quando ouviam-se os uivos dos coiotes.

- É pá tu, Pombinho ! - disse-me Pedro Zamora. - vou dar-te o encargo de ires com os

Joseses até Piedra Lisa e vejam o que aconteceu ao Cadela. Se está morto, então enterrem-

no. E façam o mesmo com os outros. Aos feridos, deixem-nos em cima de alguma coisa

para que os vejam os soldados; mas não tragam ninguém.

- Assim faremos.

E fomo-nos embora.

Os coiotes ouviam-se mais perto quando chegámos ao curral onde tínhamos fechado a

cavalada. Já não havia cavalos, só lá estava um burro esquelético que já vivia ali desde

antes de nós chegarmos. De certeza que os federais tinham levado os cavalos.

Encontrámos o resto de os Quatro mesmo atrás de umas matas, os três juntos,

encarrapitados uns em cima dos outros como se os tivessem empilhado ali. Levantámos-

lhes a cabeça e abanámo-la um pouco para ver se algum dava ainda sinais de vida; mas não,

já estavam bem defuntos. No bebedoiro estava outro dos nossos com as costelas de fora,

como se o tivessem morto à machadada. E, percorrendo a sebe de cima a baixo,

encontrámos um aqui e outro acolá, quase todos com a cara denegrida.

- A estes despacharam-nos, não há dúvidas - disse um dos Joseses.

Pusemo-nos a procurar o Cadela; a não fazer caso de mais nada a não ser de encontrar o

famoso Cadela. Não demos com ele.

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«Devem tê-lo levado» pensámos. «Devem tê-lo levado para o mostrar ao governo». Mesmo

assim, continuámos a procurálo por todos os lados, entre o restolho. Os coiotes

continuavam a uivar.

Continuaram a uivar toda a noite.

Poucos dias depois, no Armeria, ao ir atravessando o rio, voltámos a encontrar-nos com

Petronilo Flores, Fizemos marcha atrás, mas já era tarde. Foi como se nos fuzilassem. Pedro

Zamora passou pela frente, fazendo galopar aquele macho pardo e rechonchudo que era o

melhor animal que eu tinha conhecido. E atrás dele, nós, em manada, agachados sobre o

pescoço dos cavalos. De qualquer maneira a matança foi grande. Não me apercebi logo,

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porque me afundei no rio debaixo do meu cavalo morto, e a corrente arrastou-nos aos dois,

para longe, até um remanso de água, baixinho e cheio de areia.

Aquele foi o último recontro que tivemos com as forças de Petronilo Flores. Depois já não

brigámos. Para dizer melhor as coisas, já tinha passado algum tempo sem brigarmos, só

andávamos a fugir; por isso resolvemos concentrar os poucos que tínhamos sobrado e

lançámo-nos para o cerro, a fim de nos escondermos da perseguição. E acabámos por ser

uns grupinhos tão ralos que já ninguém tinha medo de nós. Já ninguém corria gritando: «Aí

vêm os de Zamora!»

A paz tinha voltado ao Llano Grande.

Mas não por muito tempo.

Há coisa de oito meses que estávamos metidos no esconderijo do desfiladeiro do Tozín, ali

onde o rio Armeria se encaixa durante muitas horas para se deixar cair sobre a costa.

Tencionávamos deixar passar os anos para depois voltar ao mundo, quando já ninguém se

lembrasse de nós. Tínhamos

71

começado a criar galinhas e de vez em quando subíamos à serra à procura de veados.

Éramos cinco, praticamente quatro, porque a um dos Joseses tinha-lhe gangrenado uma

perna por causa do balázio que lhe deram mesmo por baixo da nalga, lá, quando nos

dispararam por trás.

Estávamos ali, começando a sentir que já não servíamos para nada. E, se não soubéssemos

que nos enforcariam a todos, teríamos ido entregar-nos.

Mas, entretanto, apareceu um tal Armando Alcalá, que era quem fazia os recados e as cartas

ao Pedro Zamora.

Foi de manhãzinha, enquanto estávamos ocupados a esquartejar uma vaca, que ouvimos o

assobio do corno. Vinha de muito longe, pelo rumo do Llano. Passado um momento voltou

a ouvirse. Era como o bramido de um touro: primeiro agudo, depois rouco, depois outra vez

agudo. O eco alongava-o mais e mais e trazia-o aqui para perto, até que o ronronear do rio o

apagava.

E já estava quase a sair o sol quando o tal Alcalá se deixou ver, assomando-se por entre as

sabinas. Trazia à bandoleira duas cartucheiras com cartuchos de «44» e nas ancas do cavalo

vinha atravessado um monte de espingardas, como se fosse uma mala.

Apeou-se do macho. Repartiu as carabinas entre nós e voltou a fazer a mala com aquelas

que lhe sobravam.

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- Se não tiverem nada urgente para fazer de hoje para amanhã, aprontem-se para sair para

San Buenaventura. Aí vos espera Pedro Zamora. Entretanto, eu vou um bocadinho lá mais

abaixo a buscar os Tordos. Depois voltarei.

No dia seguinte voltou, já à tardinha. E sim, com ele vinham os Tordos. Via-se-lhes a cara

preta entre a cor parda da tarde. Também vinham outros três que não conhecíamos.

- No caminho conseguiremos cavalos - disse-nos. E seguimo-lo.

Muito antes de chegarmos a San Buenaventura demo-nos conta de que os ranchos estavam

a arder. Das tulhas da fazenda alçava-se mais alta a labareda, como se se estivesse a

queimar um charco de aguarrás. As faíscas voavam e enroscavam-se na escuridão do céu,

formando grandes nuvens alumiadas.

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Continuámos caminhando em frente, encandeados pela luminária de San Buenaventura,

como se alguma coisa nos dissesse que o nosso trabalho era estar ali, para acabar com o que

restasse.

Mas ainda não tínhamos conseguido chegar quando encontrámos os primeiros a cavalo, que

vinham a trote, com a soga amarrada na cabeça da sela e puxando uns homens com os pés

atados que, de vez em quando, até caminhavam sobre as mãos, e outros homens aos quais já

tinham caído as mãos e que traziam a cabeça dependurada.

Vimo-los passar. Mais atrás vinham Pedro Zamora e muita gente a cavalo. Muito mais

gente do que nunca. Deu-nos gosto.

Dava gosto olhar aquela longa fila de homens atravessando o Llano Grande outra vez, como

nos bons tempos. Como no princípio, quando nos tínhamos levantado da terra como cardos

maduros arejados pelo vento, para encher de terror todos os arredores do Llano. Houve um

tempo em que assim foi. E agora parecia voltar.

Dali encaminhámo-nos para San Pedro. Deitámos-lhe fogo e depois dirigimo-nos rumo ao

Petacal. Era a época em que o milho já estava quase a beliscar-se e os milheirais viam-se

secos e dobrados pelos vendavais que sopram nesta altura sobre o Llano. Por isso era tão

bonito ver caminhar o fogo nos potreiros; ver transformado numa pura brasa quase todo o

Llano, uma fogueira imensa, com o fumo ondulando por cima; e aquele fumo cheirava a

carriço e a mel, porque o lume tinha chegado também aos caniçais.

E de entre o fumo íamos saindo nós, como espantalhos, com a cara tisnada, arreando gado

daqui e dali para o juntar nalgum lugar e limpar-lhe o couro. Era esse agora o nosso

negócio: o couro de gado.

Porque, como nos disse Pedro Zamora: «Esta revolução vamos fazê-la com o dinheiro dos

ricos. Eles pagarão as armas

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e os gastos que custar esta revolução que estamos fazendo. E, embora não tenhamos agora

mesmo nenhuma bandeira pela qual lutar, devemos apressar-nos e amontoar dinheiro, para

que, quando cheguem as tropas do governo, vejam que somos poderosos.» Foi o que nos

disse.

E quando por fim voltaram as tropas, começaram a matarnos outra vez como antes, embora

não com a mesma facilidade. Agora via-se a léguas que nos tinham medo.

Mas nós também lhes tínhamos medo. Era digno de se ver como se nos engasgavam os

tomates na garganta só com ouvir o barulho das suas guarnições ou as ferraduras dos seus

cavalos a golpearem as pedras de algum caminho, onde os esperávamos para lhes armar

alguma emboscada. Ao vê-los passar, quase sentíamos que nos olhavam de esguelha como

dizendo: «Já os farejámos, apenas nos estamos a fazer dissimulados.»

E assim parecia ser, porque sem mais nem menos deitavam-se ao chão, escondidos atrás

dos seus cavalos e resistiam-nos ali, até que outros nos iam cercando pouco a pouco,

agarrando-nos como galinhas encurraladas. Desde então soubemos que assim não íamos

durar muito, embora fôssemos muitos.

E é que já não se tratava daquela gente do general Urbano, que nos tinham lançado ao

princípio e que se assustava só com os gritos e chapeladas; esses homens arrancados à força

dos seus ranchos para nos combaterem e que só quando viam que éramos poucos se

atiravam a nós. Esses já se tinham acabado. Depois vieram outros; mas estes últimos eram

os piores. Agora era um tal Olachea com gente aguentadora e intrometida; com

montanheses trazidos de Teocaltiche, misturados com índios tepehuanes: uns índios

cabeludos, acostumados a não comer durante muitos dias e que por vezes estavam horas

inteiras espiando-nos com o olhar fixo e sem pestanejarem, esperando que nos assomasse a

cabeça para deixar ir, direitinha a nós, uma dessas balas compridas de «30-30» que nos

quebrava o espinhaço como se partissem um ramo apodrecido.

Não há a mínima dúvida de que era mais fácil cair sobre os ranchos em vez de estar

emboscando as tropas do governo. Por

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isso nos dispersámos, e com um punhado aqui e outro mais adiante, fizemos mais prejuízos

do que nunca, sempre a fugir, dando uma patada e correndo como mulas bravas.

E assim, enquanto nas faldas do vulcão se estavam queimando os ranchos do Jasmin, outros

descíamos de repente sobre os destacamentos, arrastando ramos de acácia e fazendo crer às

pessoas que éramos muitos, escondidos entre a poeirada e a gritaria que armávamos.

Os soldados, o melhor que tinham a fazer era ficarem quietos, esperando. Estiveram um

tempo indo de um lado para o outro, e ora iam para a frente ora vinham para trás, como

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atarantados. E daqui viam-se as fogueiras na serra, grandes incêndios como se estivessem

queimando os restolhos. Daqui víamos arder dia e noite as quadrilhas e os ranchos e às

vezes alguma aldeia maior, como Tuzamilpa e Zapotitlán, que iluminavam a noite. E os

homens de Olachea corriam para lá, forçando a marcha; mas, quando chegavam, começava

a arder Totolimispa, muito para cá, muito atrás deles.

Era bonito ver aquilo. Sair de repente do emaranhado dos arbustos quando os soldados já

abalavam com a sua vontade de lutar, e vê-los atravessar o Llano vazio, sem inimigo à

frente, como se mergulhassem numa água sem fundo que era aquela grande ferradura do

Llano, fechada entre montanhas.

Queimámos o Cuastecomate e ali brincámos aos touros. Pedro Zamora gostava muito deste

jogo do touro.

Os federais tinham abalado pelo rumo de Autlán, à procura de um lugar a que chamam La

Purificacion, onde, segundo eles, estava a ninhada de bandidos de onde nós tínhamos saído.

Abalaram e deixaram-nos sós em Cuastecomate.

Ali houve maneira de brincar ao touro. Tinham-se esquecido de oito soldados, para além do

administrador e do capataz da fazenda. Foram dois dias de touros.

Tivemos que fazer um curralzinho redondo como esses que se

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utilizam para encerrar chibos, para que servisse de praça. E nós sentámo-nos sobre as

trancas para não deixar os toureiros, que corriam rapidamente assim que viam o estoque

com que os queria cornear Pedro Zamora.

Os oito soldadinhos serviram para uma tarde. Os outros dois para a outra. E o que deu mais

trabalho foi aquele capataz magro e comprido como garrocha de cana que escorria o vulto

desviando-se só um bocadinho. Pelo contrário, o administrador morreu logo logo. Estava

rechonchudo e indolente e não usou nenhuma manha para fazer frente ao estoque. Morreu

muito calado, quase sem se mexer e como se ele próprio tivesse querido ser atravessado

pelo estoque. Mas o capataz sim, custou trabalho.

Pedro Zamora tinha-lhes emprestado uma manta a cada um, e essa foi a razão de pelo

menos o capataz se ter defendido tão bem dos estoques com aquela pesada e grossa coberta;

pois assim que soube ao que ia sujeitar-se, dedicou-se a abanar a manta contra o estoque

que ia direito a ele, e assim o capeou até cansar Pedro Zamora. Via-se claramente o quão

cansado estava ele de andar correndo o capataz, sem poder dar-lhe senão uns pespontes. E

perdeu a paciência.

Deixou as coisas como estavam e, de repente, em vez de ir direito como fazem os touros,

procurou-lhe ao de Cuastecomate as costelas com o estoque, afastando-lhe a manta para o

lado com a outra mão. O capataz pareceu não se aperceber do que tinha acontecido, porque

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ainda andou um bom bocado sacudindo o cobertor de cima para baixo como se estivesse

espantando as vespas. Só quando viu o seu sangue dando-lhe voltas pela cintura deixou de

se mexer. Assustou-se e tentou tapar com os seus dedos o buraco que lhe tinham feito nas

costelas, por onde lhe saía num só jorro daquela coisa colorida que o fazia pôr-se mais

descolorido. Depois ficou deitado no meio do curral olhando-nos a todos. E ali esteve até

que o enforcámos, porque de outro modo teria demorado muito a morrer.

Desde então, Pedro Zamora brincou ao touro mais amiúde, enquanto houve maneira.

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Nesse tempo quase todos éramos gente da planície, desde Pedro Zamora para baixo; depois

juntou-se-nos gente de outros sítios: os índios louros de Zacoalco, patudos e com caras

como de requeijão. E aqueles outros da terra fria, que se diziam de Mazamiila e que sempre

andavam agasalhados como se a toda a hora estivessem a cair água e neve.

Estes últimos perdiam a fome com o calor, e por isso Pedro Zamora mandou-os tratar do

porto dos Volcanes, lá em cima, onde não havia senão areia e rochas lavadas pelo vento.

Mas os índios louros depressa se afeiçoaram a Pedro Zamora e não quiseram separar-se

dele. Andavam sempre colados a ele, fazendo-lhe sombra e todos os mandados que ele

queria que fizessem. Às vezes até roubavam as melhores raparigas que havia nas aldeias

para que ele se encarregasse delas.

Lembro-me muito bem de tudo. Das noites que passávamos na serra, caminhando sem fazer

barulho e com muita vontade de dormir, quando as tropas já nos seguiam de muito pertinho

o rasto. Ainda vejo o Pedro Zamora com a sua manta roxa enrolada nos ombros,

preocupado com que nenhum se atrasasse:

- É pá, tu, Pitasio, mete esporas nesse cavalo! E você não adormeça, Reséndiz, que preciso

de si para falar!

Sim, ele cuidava-nos, íamos caminhando mesmo a meio da noite, com os olhos atordoados

de sono, e com as ideias idas; mas ele, que nos conhecia a todos, falava-nos para que

levantássemos a cabeça. Sentíamos aqueles seus olhos bem abertos, que não dormiam e que

estavam acostumados a ver de noite e a conhecer-nos na escuridão. Contava-nos a todos,

um a um, como quem está a contar dinheiro. Depois vinha para o nosso lado. Ouvíamos as

pisadas do seu cavalo e sabíamos que os seus olhos estavam sempre alerta; por isso todos,

sem nos queixarmos do frio nem do sono que fazia, calados, seguíamo-lo como se

estivéssemos cegos.

77

Mas a coisa descompôs-se por completo desde o descarrilamento do comboio na encosta de

Sayula. Se isso não tivesse acontecido, talvez ainda estivessem vivos Pedro Zamora e o

Chinês Árias e o Chihuila e tantos outros, e a revolta teria seguido pelo bom caminho. Mas

Pedro Zamora espicaçou o governo com o descarrilamento do comboio de Sayula.

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Ainda vejo as luzes das labaredas que se levantavam ali onde empilharam os mortos.

Juntavam-nos com pás ou faziam-nos rodar como troncos até ao fundo da encosta, e quando

o montão se fazia grande, empapavam-no com petróleo e deitavam-lhe fogo. O fedor era

levado pelo ar para muito longe, e muitos dias depois ainda se sentia o cheiro a morto

chamuscado.

Pouco antes, ainda não sabíamos muito bem o que ia acontecer. Tínhamos regado com

cornos e ossos de vaca um tramo longo da via e, como se isto não chegasse, tínhamos

aberto os carris ali onde o comboio iria entrar na curva. Fizemos isso e esperámos.

A madrugada começava a dar luz às coisas. Viam-se quase claramente as pessoas apinhadas

no tecto das carruagens. Ouviam-se alguns a cantar. Eram vozes de homens e de mulheres.

Passaram à nossa frente ainda meio ensombrados pela noite, mas pudemos ver que eram

soldados com as suas concubinas. Esperámos. O comboio não se deteve.

Se tivéssemos querido tê-lo-íamos alvejado, porque o comboio caminhava devagar e

ofegava como se lamentosamente quisesse subir a encosta. Até poderíamos ter falado com

eles um momento. Mas as coisas eram de outra maneira.

Eles começaram a aperceber-se do que lhes estava a acontecer quando sentiram bambolear

as carruagens e o comboio vergar-se como se alguém o estivesse a sacudir. Depois a

máquina veio para trás, arrastada para fora dos carris pelas carruagens pesadas e cheias de

gente. Dava uns assobios roucos e tristes e muito longos. Mas ninguém a ajudava.

Continuava a ir para trás,

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arrastada por aquele comboio que não tinha fim, até que lhe faltou terra e de lado caiu no

fundo do barranco. Então as carruagens seguiram-na, uma atrás da outra, a toda a pressa,

deitando-se cada uma no seu lugar lá em baixo. Depois tudo ficou em silêncio, como se

todos, até nós, tivéssemos morrido. Assim aconteceu aquilo.

Quando os vivos começaram a sair de entre os estilhaços dos carros, nós retiramo-nos dali,

inteiriçados pelo medo.

Estivemos escondidos vários dias; mas os federais foram arrancar-nos do nosso esconderijo.

Nunca mais nos deram paz; nem sequer para mascar um pedaço de carne seca em paz.

Fizeram com que se nos acabassem as horas de dormir e de comer, e que os dias e as noites

fossem iguais para nós. Quisemos chegar ao canhão do Tozín; mas o governo chegou

primeiro do que nós. Escalámos as faldas do vulcão. Subimos às montanhas mais altas e ali,

nesse lugar a que chamam o Camino de Dios, encontrámos outra vez o governo atirando a

matar. Sentíamos como as balas desciam ao nosso encontro, em rajadas apertadas,

aquecendo o ar que nos rodeava. E as pedras atrás das quais nos escondíamos

transformavam-se em migalhas uma atrás da outra como se fossem torrões. Depois

soubemos que eram metralhadoras aquelas carabinas com que agora disparavam sobre nós e

que deixavam feito num passador o corpo de qualquer um; mas então pensávamos que eram

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muitos soldados, aos milhares, e tudo o que queríamos era fugir deles. Corremos tudo o que

podíamos. No Camino de Dios ficou o Chihuila, acaçapado atrás de um medronheiro, com

a manta enrolada no pescoço, como se estivesse a defender-se do frio. Ficou a olhar-nos

quando corríamos cada um para seu lado para dividirmos a morte. E ele parecia rir-se de

nós, com os seus dentes descarnados, coloridos de sangue.

Aquele desconcerto que nos aconteceu foi bom para muitos; mas a outros correu-lhes mal.

Era raro que não víssemos pendurado pelos pés algum dos nossos em qualquer pau de

algum caminho. Ali permaneciam até que se faziam velhos e se retorciam como couros por

curtir. Os urubus comiam-nos por

79

dentro, tirando-lhe as tripas, até deixar só a casca. E como os penduravam alto, ali estavam

eles bamboleando-se ao sopro do ar durante muitos dias, às vezes meses, às vezes já só as

tiras penduradas das calças meneando-se ao vento, como se alguém as tivesse posto a secar

ali. E uma pessoa sentia que as coisas agora eram a sério, ao ver aquilo.

Alguns foram para o Cerro Grande e, arrastando-nos como víboras, passámos o tempo

olhando na direcção do Llano, para aquela terra lá em baixo onde tínhamos nascido e vivido

e onde agora nos esperavam para nos matarem. Às vezes até nos assustava a sombra das

nuvens.

Teríamos ido de boa vontade dizer a alguém que já não éramos gente de combate e que nos

deixassem ficar em paz; mas, de tanto dano que fizemos num lado e outro, as pessoas

tornaram-se astutas e a única coisa que tínhamos conseguido era criarmos inimigos. Até os

índios cá de cima já não nos queriam. Disseram que lhes tínhamos morto os seus bichinhos.

E agora carregam armas que o governo lhes deu e mandaram-nos dizer que nos matarão

assim que nos virem.

«Não queremos ver-vos; mas se vos virmos matamos-vos», mandaram dizer-nos.

Desta forma foi-se-nos acabando a terra. Quase não nos restava nem o pedaço de que

poderíamos necessitar para nos enterrarem. Por isso decidimos separar-nos, éramos já os

últimos, cada qual indo por diferente rumo.

Com Pedro Zamora andei coisa de cinco anos. Dias bons, dias maus, juntaram-se cinco

anos. Depois já não o voltei a ver. Dizem que foi para a cidade do México atrás de uma

mulher e que por lá o mataram. Alguns estivemos esperando que ele regressasse, que

qualquer dia aparecesse de novo para voltar a levantar-nos em armas; mas cansámo-nos de

esperar. A estas horas ainda não voltou. Mataram-no por lá. Um que esteve comigo na

cadeia foi quem me contou que o tinham morto.

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Eu saí da cadeia há três anos. Castigaram-me ali por muitos delitos; mas não por ter andado

com Pedro Zamora. Isso eles não souberam. Apanharam-me por outras coisas, entre outras

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pelo mau hábito que eu tinha de roubar raparigas. Agora vive comigo uma delas, talvez a

melhor e mais carinhosa de todas as mulheres que há no mundo. A que estava lá, à porta da

prisão, esperando quem sabe desde quando que me soltassem.

- Pombinho, estou a tua espera! - disse-me. - Estou à tua espera há muito tempo.

Eu então pensei que me esperava para me matar. Como em sonhos, lembrei-me de quem ela

era. Voltei a sentir a água fria da trovoada que estava caindo sobre Telcampana, nessa noite

em que entrámos ali e arrasámos a aldeia. Quase tinha a certeza de que o seu pai era aquele

velho que amansámos quando já estávamos de saída; ao qual um de nós disparou um tiro na

cabeça enquanto eu atirava a filha sobre a sela do meu cavalo e lhe dava uns quantos

coscorrões para que se acalmasse e não continuasse a morder-me. Era uma rapariguinha de

uns catorze anos, de olhos bonitos, que me deu muita guerra e tive muito trabalho a

amansá-la.

- Tenho um filho teu - disse-me depois. - Ali está.

E apontou com o dedo para um rapaz comprido com os olhos assustados:

- Tira o chapéu, para que o teu pai te veja!

E o rapaz tirou o chapéu. Era igualzinho a mim e com algo de maldade no olhar. Algo disso

tinha que ter herdado do pai.

- Também a ele lhe chamam o Pombinho - voltou a dizer a mulher, aquela que agora é a

minha mulher. - Mas ele não é nenhum bandido nem nenhum assassino. Ele é gente boa.

Eu agachei a cabeça.

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DIZ-LHES QUE NÃO ME MATEM!

- Diz-lhes que não me matem, Justino! Anda, vai dizer-lhes isso. Que por caridade. Diz-

lhes assim. Diz-lhes que o façam por caridade.

- Não posso. Há ali um sargento que nem quer ouvir falar de ti.

- Faz com que te ouça. Usa as tuas manhas e diz-lhe que para sustos já chega. Diz-lhe que o

faça pela caridade de Deus.

- Não se trata de sustos. Parece que te vão matar de verdade. Eu já não quero voltar lá.

- Vai outra vez. Só mais uma vez, a ver o que consegues.

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- Não. Não tenho vontade de ir. É evidente que eu sou teu filho. E, se vou muitas vezes ter

com eles, acabarão por saber quem sou e pode dar-lhes para me fuzilarem a mim também. É

melhor deixar as coisas tal como estão.

- Anda, Justino. Diz-lhes que tenham só um bocadinho de lástima de mim. Diz-lhes só isso.

Justino apertou os dentes e moveu a cabeça, dizendo:

- Não.

E continuou a abanar a cabeça durante muito tempo.

- Diz ao sargento que te deixe ver o coronel. E conta-lhe quão velho estou. O pouco que

valho. Que lucro terá por matar-me? Nenhum lucro. Ao fim e ao cabo ele deve ter uma

alma. Diz-lhe que o faça pela bendita salvação da sua alma.

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Justino levantou-se do monte de pedras em que estava sentado e caminhou até à porta do

curral. Depois voltou-se para dizer:

- Vou, então. Mas se por acaso me fuzilam a mim também, quem cuidará da minha mulher

e dos filhos?

- A Providência, Justino. Ela se encarregará deles. Preocupa-te em ir lá e ver que coisas

fazes por mim. Isso é que urge.

Tinham-no trazido de madrugada. E agora já ia avançada a manhã e ele continuava ainda

ali, amarrado a uma estaca, esperando. Não conseguia estar quieto. Tinha feito a tentativa

de dormir um pouco para se apaziguar, mas o sono tinha abalado. Também tinha abalado a

fome. Não tinha vontade de nada. Só de viver. Agora que sabia bastante bem que o iam

matar, tinha-lhe entrado uma vontade tão grande de viver como só a pode sentir um recém-

ressuscitado.

Quem lhe haveria de dizer que havia de voltar àquele assunto tão velho, tão rançoso, tão

enterrado como pensava que estava. Aquele assunto de quando teve que matar dom Lupe.

Não foi sem mais nem menos, como lhe quiseram fazer crer os de Alima, mas sim porque

teve as suas razões. Ele lembrava-se:

Dom Lupe Terreros, o dono da Puerta de Piedra, ainda por cima seu compadre. Ao qual ele,

Juvêncio Nava, teve que matar por isso mesmo; por ser o dono da Puerta de Piedra e

porque, sendo também seu compadre, lhe negou o pasto para os seus animais.

Primeiro aguentou-se por mero compromisso. Mas depois, quando da seca, em que viu

como lhe morriam um atrás do outro os seus animais fustigados pela fome e que o seu

compadre dom Lupe continuava a negar-lhe a erva dos seus pastos, foi então que se pôs a

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partir a cerca e a empurrar a massa de animais magros até ao capim para que se fartassem

de comer. E o dom Lupe não tinha gostado disso, tanto que man-

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dou tapar outra vez a cerca para que ele, Juvêncio Nava, lhe voltasse a abrir outra vez o

buraco. Assim, de dia tapava-se o buraco e de noite voltava a abrir-se, enquanto o gado

estava ali, sempre colado à cerca, sempre esperando; aquele seu gado que antes só vivia

cheirando o pasto sem o poder provar.

E ele e dom Lupe discutiam e voltavam a discutir sem chegarem a acordo.

Até que uma vez dom Lupe lhe disse:

- Olha, Juvêncio, outro animal mais que tu metes no pasto e eu mato-to.

E ele respondeu-lhe:

- Olhe, dom Lupe, eu não tenho a culpa que os animais procurem o seu conforto. Eles são

inocentes. Você verá as consequências, se mos matar.

«E matou-me um novilho.

«Isto aconteceu há trinta e cinco anos, em Março, porque em Abril eu já andava no monte,

fugindo da precatória. De nada me serviram as dez vacas que dei ao juiz, nem a penhora da

minha casa para lhe pagar a minha saída da prisão. Ainda depois se pagaram com o que

restava, só para não me perseguirem, embora de toda a maneira me tenham perseguido. Por

isso vim viver com o meu filho neste outro terrenozinho que eu tinha e que se chama Paio

de Venado. E o meu filho cresceu e casou-se com a minha nora Ignacia e já teve oito filhos.

Assim como assim a coisa já vai para velha, e por isso deveria estar esquecida. Mas, pelos

vistos, não está.

«Eu então calculei que com uns cem pesos ficava tudo arrumado. O defunto dom Lupe era

sozinho, vivia só com a mulher e os dois rapazinhos ainda de gatas. E a viúva depressa

morreu também, dizem que de tristeza. E aos rapazinhos levaram-nos para longe, para casa

de uns parentes. Assim que, pela parte deles, não havia que ter medo.

«Mas os demais insistiam em que eu andava com a precatória

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e em julgamento para me assustarem e continuarem a roubar-me. Cada vez que alguém

chegava à aldeia avisavam-me:

«Andam por aí uns forasteiros, Juvêncio.»

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«E eu fugia para o monte, emaranhando-me entre os medronheiros e passando os dias a

comer só beldroegas. Às vezes tinha que sair à meia-noite, como se me estivessem

perseguindo os cães. Isso durou a vida toda. Não foi um ano nem dois. Foi a vida toda.»

E agora tinham ido à sua procura, quando já não esperava ninguém, confiado no

esquecimento em que as pessoas o tinham; acreditando que pelo menos os seus últimos dias

os passaria tranquilo. «Pelo menos isto» pensou «conseguirei com estar velho. Deixar-me-

ão em paz.»

Tinha-se entregado a esta esperança por inteiro. Era por isso que lhe custava trabalho

imaginar que ia morrer assim de repente, nesta altura da sua vida, depois de tanto lutar para

se livrar da morte; de ter passado o seu melhor tempo andando de um lado para o outro

arrastado pelos sobressaltos e quando o seu corpo tinha acabado por ser um simples couro

duro, curtido pelos maus dias em que teve que andar a esconder-se de todos.

Não tinha ele, por acaso, deixado até que a mulher lhe abalasse? Naquele dia que

amanheceu com a novidade de que a mulher se tinha ido embora, nem sequer lhe passou

pela cabeça a intenção de sair a procurá-la. Deixou que abalasse sem perguntar nem com

quem nem para onde, para não ter de descer à aldeia. Deixou que se fosse como se lhe tinha

ido tudo o resto, sem mexer uma palha. A única coisa que lhe restava para cuidar era a vida,

e esta conservá-la-ia fosse como fosse. Não podia deixar que o matassem. Não podia. Muito

menos agora. Mas para isso o tinham trazido de lá, de Paio de Venado. Não precisaram de

amarrá-lo para que os seguisse. Ele andou sozinho, unicamente manietado pelo medo. Eles

deram-se conta de que ele não podia correr com aquele corpo velho, com aquelas pernas

fracas como cordas secas, inteiriçadas, com o medo de morrer. Porque ia para isso. Para

morrer. Disseram-lho.

85

Soube-o desde então. Começou a sentir essa comichão no estômago, que lhe chegava de

repente sempre que via a morte de perto e que lhe puxava a ânsia pelos olhos, e que lhe

inchava a boca com aqueles goles de água azeda que tinha que engolir sem querer. E essa

coisa que lhe fazia os pés pesados enquanto a cabeça lhe amolecia e o coração lhe batia com

todas as suas forças nas costelas. Não, não se podia acostumar à ideia que o matassem.

Tinha que haver alguma esperança. Em algum lugar poderia ainda restar alguma esperança.

Talvez eles se tivessem enganado. Talvez procurassem outro Juvêncio Nava e não o

Juvêncio Nava que ele era.

Caminhou entre aqueles homens em silêncio, de braços caídos. A madrugada era escura,

sem estrelas. O vento soprava devagar, levava consigo a terra seca e trazia mais, cheio desse

cheiro como de urina que tem o pó dos caminhos.

Os seus olhos, que com os anos se tinham encarquilhado, vinham vendo a terra, aqui,

debaixo dos seus pés, apesar da escuridão. Ali na terra estava toda a sua vida. Sessenta anos

a viver dela, contendo-a entre as suas mãos, depois de a ter provado como se prova o sabor

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da carne. Veio durante longo tempo esmiuçando-a com os olhos, saboreando cada pedaço

como se fosse o último, quase sabendo que seria o último.

Depois, como querendo dizer alguma coisa, olhava os homens que iam junto dele. Ia dizer-

lhes que o soltassem, que o deixassem abalar: «Eu não fiz mal a ninguém, rapazes», ia

dizer-lhes, mas ficava calado. «Mais adiante digo-lhes», pensava. E só os olhava. Podia até

imaginar que eram seus amigos; mas não o queria fazer. Não eram. Não sabia quem eram.

Via-os a seu lado inclinando-se e agachando-se de vez em quando para ver por onde seguia

o caminho.

Tinha-os visto pela primeira vez ao empardecer da tarde, nessa hora desbotada em que tudo

parece chamuscado. Tinham atravessado os sulcos pisando o milho tenro. E ele tinha

descido para isso: para lhes dizer que ali estava a começar a crescer o milho. Mas eles não

se detiveram.

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Tinha-os visto bastante tempo. Sempre teve a sorte de ver tudo com bastante tempo. Podia

ter-se escondido, caminhar umas quantas horas pelo cerro enquanto eles não abalavam e

depois voltar a descer. Ao fim e ao cabo, o milho não cresceria de maneira nenhuma. Já era

tempo de terem chegado as águas e as águas não apareciam e o milho começava a murchar.

Não tardaria em estar completamente seco.

Assim nem merecia a pena ter descido; ter-se metido entre aqueles homens como num

buraco, para já não voltar a sair.

E agora continuava junto deles, aguentando a vontade de lhes dizer que o soltassem. Não

lhes via a cara; só via os vultos que se juntavam ou se separavam dele. De tal maneira que,

quando se pôs a falar, não soube se o tinham ouvido. Disse:

- Eu nunca fiz mal a ninguém - disse isso. Mas nada mudou. Nenhum dos vultos pareceu

aperceber-se. As caras não se viraram para o ver. Continuaram na mesma, como se tivessem

vindo a dormir.

Então pensou que não tinha mais nada para dizer, que teria de procurar a esperança em

qualquer outro lugar. Deixou cair outra vez os braços e entrou nas primeiras casas da aldeia

no meio daqueles quatro homens escurecidos pelo negro calor da noite.

- Meu coronel, aqui está o homem.

Tinham parado à frente da ombreira da porta. Ele, com o seu chapéu na mão, por respeito,

esperando ver sair alguém. Mas só saiu a voz:

- Qual homem? - perguntaram.

- O de Paio de Venado, meu coronel. O que o senhor nos mandou buscar.

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- Pergunta-lhe se alguma vez viveu em Alima - voltou a dizer a voz de lá de dentro.

- Eh, tu! O coronel pergunta se habitaste em Alima? repetiu o sargento que estava à

frente dele. .

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- Sim. Diz-lhe ao coronel que sou mesmo de lá. E que lá vivi até há pouco tempo.

- Pergunta-lhe se conheceu Guadalupe Terreros.

- Está a perguntar se conheceste Guadalupe Terreros.

- Ao dom Lupe? Sim. Diz-lhe que sim que o conheci. Já morreu.

Então a voz lá de dentro mudou de tom:

- Já sei que morreu - disse. E continuou a falar como se conversasse com alguém, do outro

lado da parede de carriços:

- Guadalupe Terreros era meu pai. Quando cresci e o procurei disseram-me que estava

morto. É um bocado difícil crescer sabendo que a coisa a que podemos agarrar-nos para

criar raízes está morta. Connosco, aconteceu isso.

«Depois soube que o tinham matado à machadada, cravando-lhe depois uma vara de ferrão

no estômago. Contaram-me que ele sobreviveu mais de dois dias perdido e que, quando o

encontraram, atirado num arroio, ainda estava agonizando e pedindo que se encarregassem

de lhe cuidar da família.

«Isto, com o tempo, parece que se esquece. Uma pessoa tenta esquecer. Aquilo que não se

esquece é chegar a saber que quem fez aquilo ainda está vivo, alimentando a sua alma podre

com a ilusão da vida eterna. Não poderia perdoar-lhe, embora não o conheça; mas o facto

de se ter posto no lugar onde eu sei que está, dá-me ânimo para acabar com ele. Não lhe

posso perdoar que continue a viver. Não devia ter nascido nunca.»

Daqui, de cá de fora, ouviu-se claramente tudo o que disse. Depois ordenou:

- Levem-no e amarrem-no um bocado, para que padeça, e depois fuzilem-no!

- Olha para mim, coronel! - pediu ele. - Já não valho nada. Não tardarei em morrer sozinho,

derreado de velho. Não me mates!

- Levem-no! - voltou a dizer a voz lá de dentro.

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- ... Já paguei, coronel. Paguei muitas vezes. Tiraram-me tudo. Castigaram-me de

muitas formas. Passei coisa de quarenta anos escondido como um pestilento, sempre

com o palpite de

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que a qualquer momento me matariam. Não mereço morrer assim, coronel. Deixa que, pelo

menos, o Senhor me perdoe. Não me mates! Diz-lhes que não me matem!

Estava ali, como se lhe tivessem batido, sacudindo o seu chapéu contra a terra. Gritando.

De seguida a voz lá de dentro disse:

- Amarrem-no e dêem-lhe alguma coisa para beber até que se embebede para não lhe

doerem os tiros.

Agora, por fim, tinha-se apaziguado. Estava ali encostado ao pé da estaca. Tinha vindo o

seu filho Justino e o seu filho Justino tinha abalado e tinha voltado e agora vinha outra vez.

Pô-lo em cima do burro. Amarrou-o bem amarrado aos arreios para que não caísse pelo

caminho. Meteu-lhe a cabeça dentro de um saco para que não desse má impressão. E depois

deu um puxão na crina do burro e abalaram, lançados, depressa, para chegar a Paio de

Venado ainda com tempo para organizar o velório do defunto.

- A tua nora e os teus netos vão ter saudades tuas - ia-lhe dizendo. - Olhar-te-ão na cara e

pensarão que não és tu. Vai parecer-lhes que foi o coiote que te comeu, quando te virem

com essa cara tão cheia de buracos por causa de tanto tiro de misericórdia que te deram.

89

LUVINA

Dos cerros altos do sul, o de Luvina é o mais alto e o mais pedregoso. Está amaldiçoado por

essa pedra cinzenta com a qual fazem a cal, mas em Luvina não fazem cal com ela nem dela

tiram nenhum proveito. Ali chamam-lhe pedra crua, e à lomba que sobe para Luvina

chamam-lhe Cuesta de la Piedra Cruda. O ar e o sol encarregaram-se de esmiuçá-la, de tal

maneira que a terra por ali é branca e brilhante como se estivesse sempre molhada pelo

orvalho do amanhecer; embora isto seja falar por falar, porque em Luvina os dias são tão

frios como as noites e o orvalho coalha no céu antes de cair sobre a terra. ... E a terra é

empinada. Desgarra-se para todos os lados em barrancos fundos, de uma profundidade que

se perde de tão distante. Dizem os de Luvina que daqueles barrancos sobem os sonhos; mas

eu, a única coisa que vi subir foi o vento, em tremolina, como se lá em baixo o tivessem

encanado em tubos de caniço. Um vento que não deixa crescer nem as dulcamaras: essas

plantinhas tristes que só podem viver um bocadinho untadas à terra, agarradas com todas as

suas mãos ao despenhadeiro dos montes. Só às vezes, onde houver um pouco de sombra,

escondida entre as pedras, floresce a argemona com as suas papoilas brancas. Mas a

argemona depressa murcha. Então, uma pessoa ouve-a arranhando o ar com os seus ramos

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espinhosos, fazendo um barulho parecido com o de uma navalha sobre uma pedra de afiar.

- Logo verá esse vento que sopra sobre Luvina. É pardo. Dizem que é porque arrasta areia

de vulcão; mas a verdade é que é um ar negro. Você logo verá. Fixa-se em Luvina

agarrando-se às coisas como se as estivesse a morder. E são demasiados os dias em que leva

consigo os tectos das casas como se levasse um chapéu de palha, deixando as paredes lisas,

desabrigadas. Depois arranha como se tivesse unhas: ouvimo-lo de manhã à tarde, hora

após hora, sem descanso, raspando as paredes, arrancando coalhos de terra, cavando com a

sua pá bicuda por baixo das portas, até o sentirmos ferver dentro de nós como se se pusesse

a remover as dobradiças dos nossos próprios ossos. Vai ver.

Aquele homem que falava calou-se por um momento, olhando lá para fora.

Até eles chegava o barulho do rio passando as suas águas da cheia pelos ramos das

figueiras; o rumor do ar abanando suavemente as folhas das amendoeiras, e os gritos das

crianças brincando no pequeno espaço iluminado pela luz que saía da taberna. Os carunchos

entravam e ressaltavam contra a lâmpada de petróleo, caindo no chão com as asas

chamuscadas.

E lá fora a noite avançava.

- Ouve, Camilo, manda-nos mais duas cervejas! - voltou a dizer o homem. Depois

acrescentou:

- Outra coisa, senhor. Nunca verá um céu azul em Luvina. Lá, todo o horizonte está

desbotado; nublado sempre por uma nódoa caliginosa que não se apaga nunca. Toda a

cumeada careca, sem uma árvore, sem qualquer coisa verde para descansar os olhos; tudo

envolto na caligem cinzenta. Verá isso: aqueles cerros apagados como se estivessem

mortos, e Luvina no mais alto, coroando-o com o seu branco casario, como se fosse uma

coroa dos mortos...

Os gritos das crianças aproximaram-se até se meterem dentro da taberna. Isso fez com que o

homem se levantasse, fosse até à porta e lhes dissesse: «Vão para mais longe! Não

interrompam! Continuem a brincar, mas sem fazerem alvoroço.»

Depois, dirigindo-se outra vez para a mesa, sentou-se e disse:

- Pois sim, como lhe dizia. Lá chove pouco. Em meados do ano chegam umas quantas

tempestades que açoitam a terra e a arranham, deixando somente o pedregal a flutuar em

cima do calcário. E bom ver então como as nuvens se arrastam, como andam de um cerro

para o outro dando tombos como se fossem bexigas assopradas; ressaltando e estoirando em

trovões como se se quebrassem por cima dos barrancos. Mas, após dez ou doze dias, vão-se

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embora e não regressam senão no ano seguinte, e às vezes dá-se o caso de não regressarem

em vários anos.

«... Sim, chove pouco. Pouco ou quase nada, tanto que a terra, para além de estar ressequida

e mirrada como couro velho, encheu-se de rachadelas e dessas coisas que ali chamam

passagens de água, que não são mais do que torrões endurecidos como pedras afiadas, que

se cravam nos pés de uma pessoa ao caminhar, como se ali até à terra tivessem nascido

espinhos. Como se fosse assim.»

Bebeu a cerveja até deixar só borbulhas de espuma na garrafa e continuou a dizer:

- Por qualquer ângulo que se olhe, Luvina é um lugar muito triste. Você, que vai para lá,

dar-se-á conta. Eu diria que é o lugar onde aninha a tristeza. Onde não se conhece o sorriso,

como se tivessem entabuado a cara a toda a gente. E você, se quiser, pode ver essa tristeza à

hora que quiser. O ar que ali sopra remexe-a, mas nunca a leva. Está ali como se ali tivesse

nascido. E até se pode provar e sentir, porque está sempre em cima da gente, apertada

contra nós, e porque é oprimente como um grande cataplasma sobre a carne viva do

coração.

«... Dizem os de lá que, quando a lua se enche, vêem de raspão a figura do vento

percorrendo as ruas de Luvina, levando de rastos uma manta negra; mas eu o que sempre

cheguei a ver, quando havia lua em Luvina, foi a imagem do desconsolo... sempre.

«Mas tome a sua cerveja. Vejo que nem sequer lhe deu um sorvinho. Beba-a. Ou talvez não

goste dela assim morna como

92

está. É que aqui não há outra. Eu sei que assim sabe mal; que agarra um sabor a mijo de

burro. Aqui uma pessoa acostuma-se. Vai uma aposta como lá nem isto se arranja. Quando

for a Luvina vai sentir a falta. Ali não poderá provar senão um mescal que eles fazem com

uma erva chamada alcaçuz e que aos primeiros sorvos começa logo a dar cambalhotas

como se estivesse bêbado. É melhor beber a sua cerveja. Eu sei o que lhe digo.»

Lá fora continuava a ouvir-se o batalhar do rio. O rumor do ar. As crianças brincando.

Parecia que ainda era cedo, na noite.

O homem tinha assomado mais uma vez à porta e regressado.

Agora vinha dizendo:

- É fácil ver as coisas daqui, somente trazidas pela lembrança, onde não têm nenhuma

semelhança. Mas a mim não me custa nada continuar a falar-lhe daquilo que sei, tratando-se

de Luvina. Vivi lá. Lá deixei a vida... Fui a esse lugar com as minhas justas ilusões e voltei

velho e acabado. E agora você vai para lá... Está bem. Penso que me lembro do princípio.

Ponho-me no seu lugar e penso... Olhe, quando eu cheguei pela primeira vez a Luvina...

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Mas permite-me que antes beba a sua cerveja? Vejo que você não faz caso dela. E a mim

serve-me de muito. Alivia-me. Sinto como se me enxaguassem a cabeça com óleo

canforado... bom, contava-lhe que, quando cheguei pela primeira vez a Luvina, o arrieiro

que nos levou nem sequer quis deixar que as bestas descansassem. E, quando nos pôs no

chão, deu meia volta:

«Eu vou voltar» disse-nos.

«Espera, não vais deixar os teus animais descansar? Estão muito estafados.

«Aqui estafavam-se mais» disse-nos. «É melhor regressar.»

«E abalou, deixando-se cair pela Cuesta de la Piedra Cruda, metendo esporas aos seus

cavalos, como se se afastasse de algum lugar endemoninhado.

«Nós, a minha mulher e os meus três filhos, ficámos ali, parados no meio da praça, com

todo o nosso enxoval nos braços. No meio daquele lugar onde só se ouvia o vento…

93

«Uma praça sozinha, sem uma só erva para deter o ar. Ali ficámos.

«Então eu perguntei à minha mulher:

«Em que país estamos, Agripina?»

«E ela encolheu os ombros.

«bom, se não te importas, vai procurar onde poderemos comer e onde poderemos passar a

noite. Esperamos-te aqui» disse-lhe.

«Ela agarrou no mais pequeno dos seus filhos e foi. Mas não regressou.

«Ao entardecer, quando o sol alumiava somente as pontas dos cerros, fomos procurá-la.

Andámos pelos boqueirões de Luvina, até que a encontrámos metida na igreja: sentada

mesmo no meio daquela igreja solitária, com a criança adormecida entre as suas pernas.

«Que fazes aqui, Agripina?»

«Entrei para rezar» disse-nos.

«Para quê?» perguntei-lhe eu.

«E ela encolheu os ombros.

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«Ali não havia a quem rezar. Era um telheiro vazio, sem portas, só com umas socavas

abertas e um tecto rachado, por onde passava o ar como por uma peneira.

«Onde está a taberna?»

«Não há nenhuma taberna.»

«E a estalagem?»

«Não há nenhuma estalagem.»

«Viste alguém? Alguém vive aqui?» perguntei-lhe.

«Sim, ali à frente... Umas mulheres... Continuo a vê-las. Olha, ali atrás das frinchas dessa

porta vejo brilhar os olhos que nos olham... Têm estado a espreitar para cá... Olha-as. Vejo

as bolas brilhantes dos seus olhos... Mas não têm nada para nos dar de comer. Disseram-me,

sem mostrar a cabeça que nesta aldeia não havia de comer... Então entrei aqui a rezar, a

pedir a Deus por nós.»

«Porque não regressaste ali? Estivemos à tua espera.»

«Entrei aqui para rezar. Ainda não acabei.»

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«Que país é este, Agripina?» «E ela voltou a encolher os ombros. «Naquela noite

acomodámo-nos para dormir num canto da igreja, atrás do altar desmantelado. O vento

chegava até lá, embora menos forte. Estivemos a ouvi-lo passar por cima de nós, com os

seus longos uivos; estivemos a ouvi-lo entrar e sair pelos buracos socavões das portas;

batendo com as suas mãos de ar nas cruzes da via sacra: umas cruzes grandes e duras, feitas

com pau de acácia, despenduradas das paredes a todo o comprimento da igreja, amarradas

com arames que rechinavam a cada sacudidela do vento como se fosse um ranger de dentes.

«As crianças choravam porque o medo não as deixava dormir. E a minha mulher, a tentar

retê-los a todos nos seus braços. Abraçando o seu molho de filhos. E eu ali sem saber o que

fazer.

«Pouco antes do amanhecer o vento acalmou. Depois voltou. Mas houve um momento

nessa madrugada em que tudo ficou tranquilo, como se o céu se tivesse juntado com a terra,

esmagando os barulhos com o seu peso... Ouvia-se a respiração das crianças já descansada.

Ouvia o ofegar da minha mulher ali ao meu lado:

«O que é?» disse-me. «O que é o quê?» perguntei-lhe. «Isso, esse barulho.»

«É o silêncio. Dorme. Descansa, mesmo que seja pouco, que está quase a amanhecer.»

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«Mas, passado pouco tempo, eu também ouvi. Era como um esvoaçar de morcegos na

escuridão, muito perto de nós. De morcegos de grandes asas que roçavam o chão. Levantei-

me e ouviu-se o esvoaçar ainda mais forte, como se o bando de morcegos se tivesse

espantado e voasse para os buracos das portas. Então caminhei em bicos dos pés para lá,

sentindo à minha frente aquele surdo sussurro. Detive-me na porta e vi-as. Vi todas as

mulheres de Luvina com o seu cântaro ao ombro, com o rebuço pendurado da sua cabeça e

as suas figuras negras sobre o fundo negro da noite.

95

«Que querem?» perguntei-lhes. «Que procuram a estas horas?»

«Uma delas respondeu:

«Vamos buscar água.»

«Vi-as paradas à minha frente, olhando-me. Depois, como se fossem sombras, começaram a

caminhar rua abaixo com os seus cântaros negros.

«Não, nunca me esquecerei dessa primeira noite que passei em Luvina.

«... Não acha que isto merece outro copo? Mesmo que seja só para tirar o mau sabor da

lembrança.»

- Parece-me que você me perguntou quantos anos estive em Luvina, não é verdade... ? A

verdade é que não sei. Perdi a noção do tempo desde que as febres me baralharam; mas

deve ter sido uma eternidade... É que lá o tempo é muito longo. Ninguém leva a conta das

horas, ninguém tão pouco se preocupa como se vão amontoando os anos. Os dias começam

e acabam. Depois vem a noite. Só o dia e a noite, até ao dia da morte que, para eles, é uma

esperança.

«Você deve pensar que estou a dar voltas e mais voltas à mesma ideia. E assim é, sim

senhor... Estar sentado na ombreira da porta, olhando o nascer e o pôr do sol, levantando e

baixando a cabeça, até que acabam por afrouxar as molas e então tudo fica quieto, sem

tempo, como se se vivesse sempre na eternidade. É o que os velhos fazem ali.

«Porque em Luvina só vivem os que são mesmo velhos e os que ainda não nasceram, como

quem diz... E mulheres sem forças, quase entrevadas de tão magras. As crianças que

nasceram ali, abalaram... Apenas os aclara a alva e já são homens. Como quem diz, dão um

salto do peito da mãe para o enxadão e desaparecem de Luvina. Assim são ali as coisas.

«Só restam os mesmo velhos e as mulheres sozinhas, ou com um marido que anda onde só

Deus sabe... Vêm de vez em

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quando como as trovoadas de que lhe falava; Ouve-se um sussurro em toda a aldeia quando

eles regressam e uma coisa parecida com um grunhido quando abalam... Deixam o saco do

abastecimento para os velhos e plantam outro filho no ventre das suas mulheres, e já

ninguém volta a saber deles a não ser no próximo ano e, às vezes, nunca mais... É o

costume. Ali chamam-lhe a lei, mas é a mesma coisa. Os filhos passam a vida trabalhando

para os pais como eles trabalharam para os seus e como, sabe-se lá, quantos atrás deles

cumpriram a sua lei...

«Entretanto os velhos esperam por eles e pelo dia da morte, sentados às suas portas, de

braços caídos, movidos só por essa graça que é a gratidão do filho... Sós, naquela solidão de

Luvina. «Um dia tentei convencê-los que fossem para outro lugar, onde a terra fosse boa.

«Vamo-nos embora daqui!» disse-lhes. «Não faltará maneira de nos acomodarmos em

qualquer parte. O governo ajudar-nos-á.»

«Eles ouviram-me sem pestanejar, olhando-me do fundo dos olhos, dos quais só espreitava

uma luzinha lá muito para dentro. «Dizes que o governo nos ajudará, professor? Tu não

conheces o governo?»

«Disse-lhes que sim.

«Também nós o conhecemos. E essa a coincidência. De quem não sabemos nada é da mãe

do governo.»

«Eu disse-lhes que era a pátria. Eles abanaram a cabeça dizendo que não. E riram-se. Foi a

única vez que vi rir as pessoas de Luvina. Mostraram os dentes tortos e disseram-me que

não, que o governo não tinha mãe.

«E têm razão, sabe? Esse senhor só se lembra deles quando algum dos seus rapazes fez

alguma malfeitoria cá em baixo. Então manda-o procurar em Luvina e matam-no. Para mais

do que isso não sabem se existe.

«O que tu nos queres dizer é que deixemos Luvina porque, segundo tu, já chega de aguentar

fomes sem necessidade - disseram-me. «Mas, se nós abalarmos, quem levará os nossos

mortos? Eles vivem aqui e não os podemos deixar sozinhos.» «E lá continuam. Como

você vai para lá, vai vê-los.

97

Mastigando bagaços de acácia seca e engolindo a sua própria saliva para enganarem a fome.

Vê-los-á passar como sombras, colados às paredes das casas, quase arrastados pelo vento.

«Não ouvem esse vento?» acabei por lhes dizer. «Ele acabará convosco.»

«Dura o que tiver que durar. É o mandamento de Deus» responderam-me. «Mau é quando

deixa de fazer ar. Quando isso acontece, o sol arrima-se muito a Luvina e chupa-nos o

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sangue e a pouca água que temos no couro. O ar faz com que o sol esteja lá em cima. É

melhor assim.

«Não voltei a dizer-lhes nada. Saí de Luvina e nunca mais voltei nem penso regressar.

«... Mas olhe as voltas que o mundo dá. Você vai para lá agora, dentro de poucas horas.

Talvez já tenham passado quinze anos desde que a mim me disseram a mesma coisa: ”Você

vai para San Juan Luvina.”

«Nessa época eu ainda tinha as minhas forças. Estava carregado de ideias... Você sabem

que a todos nós nos impingem ideias. E uma pessoa vai com essa praga em cima para a

plasmar em todo o lado. Mas em Luvina isso não coalhou. Fiz a experiência e desfez-se...

«San Juan Luvina. Aquele nome soava-me a nome de céu. Mas aquilo é o purgatório. Um

lugar moribundo onde até os cães morreram e já não há nem quem ladre ao silêncio; pois

assim que uma pessoa se acostuma ao vendaval que ali sopra, não se ouve senão o silêncio

que há em todas as solidões. E isso acaba com uma pessoa. Olhe para mim. Acabou

comigo. Você que vai para lá depressa compreenderá o que lhe digo...

«Qual é a sua opinião de pedirmos a este senhor que nos matize uns mescalinhos? com a

cerveja uma pessoa levanta-se a todo o momento e isso interrompe muito a conversa. Ouve,

Camilo, manda-nos agora uns mescais! «Pois sim, como eu lhe estava dizendo... »

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Mas não disse nada. Ficou a olhar um ponto fixo sobre a mesa onde os carunchos já sem as

suas asas rondavam como vermes nus.

Lá fora continuava a ouvir-se como avançava a noite. O chapisco do rio contra os troncos

das figueiras. A gritaria já longínqua das crianças. Pelo pequeno céu da porta assomavam as

estrelas.

O homem que olhava os carunchos recostou-se sobre a mesa e adormeceu.

99

A NOITE EM QUE O DEIXARAM SOZINHO

- Por que vão tão devagar? - perguntou Feliciano Ruelas aos da frente. - Assim acabaremos

por adormecer. Acaso não vos urge chegar cedo?

- Chegaremos amanhã ao amanhecer - responderam-lhe.

Foi a última coisa que os ouviu dizer. As suas últimas palavras. Mas disso lembrar-se-ia

depois, no dia seguinte.

Ali iam os três, com o olhar no chão, tentando aproveitar a pouca claridade da noite.

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«É melhor que esteja escuro. Assim não nos verão.» Também tinham dito isso, um pouco

antes, ou talvez na noite anterior. Não se lembrava. O sono enevoava-lhe o pensamento.

Agora, na subida, viu-o vir de novo. Sentiu quando dele se aproximava, rodeando-o como

se lhe procurasse a parte mais cansada. Até que o teve em cima, sobre as costas, onde tinha

as espingardas à bandoleira.

Enquanto o terreno esteve liso, caminhou depressa. Ao começar a subida, atrasou-se; a sua

cabeça começou a mexer-se devagar, mais lentamente conforme se encurtavam os seus

passos. Os outros passaram ao lado dele, agora iam muito à frente e ele continuava

balançando a sua cabeça adormecida.

Foi ficando para trás. Tinha o caminho à frente, quase à altura dos seus olhos. E o peso das

espingardas. E o sono trepado lá onde as suas costas se encurvam.

100

Ouviu quando se lhe perdiam os passos: Aquelas passadas ocas que vinha ouvindo quem

sabe desde quando, durante quem sabe quantas noites: «De Magdalena para cá, a primeira

noite; depois de lá para cá, a segunda, e esta é a terceira. Não seriam muitas - pensou -, se

pelo menos tivéssemos dormido de dia. Mas eles não quiseram: ”Podem agarrar-nos a

dormir” disseram. ”E isso seria o pior”.»

- O pior para quem?

Agora o sono fazia-o falar. «Disse-lhes que esperassem: vamos deixar este dia para

descansar. Amanhã caminharemos de seguida e com mais vontade e com mais forças, se

tivermos que correr. Pode acontecer.»

Deteve-se com os olhos fechados. «É muito.» disse «Que ganhamos com ter pressa? Uma

jornada. Depois de tantas que já perdemos, não vale a pena.» De seguida gritou: «Onde

andam?»

E quase em segredo: «Vão, pois. Vão!»

Encostou-se ao tronco de uma árvore. Ali a terra estava fria e o suor convertido em água

fria. Esta devia ser a serra de que lhe tinham falado. Lá em baixo o tempo morno e, agora,

cá em cima, este frio que se lhe metia por baixo do gabão: «Como se me levantassem a

camisa e me apalpassem a pele com mãos geladas.»

Foi-se sentando sobre o musgo. Abriu os braços como se quisesse medir o tamanho da noite

e encontrou uma cerca de árvores. Respirou um ar que cheirava a terebintina. Depois

deixou-se resvalar pelo sono, sobre o cacto, sentindo como o corpo se lhe ia entorpecendo.

Acordou-o o frio da madrugada. A humidade do orvalho.

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Abriu os olhos. Viu estrelas transparentes no céu claro, por cima dos ramos escuros.

«Está escurecendo», pensou. E voltou a adormecer.

Levantou-se ao ouvir gritos e o apertado golpear de cascos sobre o seco calcário do

caminho. Uma luz amarela bordeava o horizonte.

101

Os arrieiros passaram por ele, olhando-o. Saudaram-no: «bom dia», disseram-lhe. Mas ele

não respondeu.

Lembrou-se do que tinha que fazer. Já era de dia. E ele devia ter atravessado a serra de noite

para evitar os sentinelas. Esta passagem era a mais resguardada. Tinham-lho dito.

Pegou na carga de carabinas e pô-las às costas. Tomou um dos lados do caminho e

atravessou em direcção ao monte, para onde estava saindo o sol. Subiu e desceu, cruzando

lombas cheias de torrões.

Parecia-lhe ouvir os arrieiros, que diziam: «Vimo-lo lá em cima. É assim e assado, e traz

muitas armas.»

Deitou fora as espingardas. Depois desfez-se das cartucheiras. Então sentiu-se levezinho e

começou a correr como se quisesse ganhar aos arrieiros a descida.

Tinha que «encumear, rodear a meseta e depois descer». Era o que estava a fazer. «Obra de

Deus!» Estava a fazer o que lhe disseram que fizesse, embora não às mesmas horas.

Chegou à beira dos barrancos. Olhou lá longe a grande planura cinzenta.

«Eles devem estar ali. Descansando ao sol já sem nada pendente», pensou.

E deixou-se cair barranco abaixo, rebolando e correndo e voltando a rebolar.

«Obre Deus» dizia. E rodava cada vez mais na sua corrida.

Parecia-lhe continuar a ouvir os arrieiros quando lhe disseram: «bom dia!» Sentiu que os

seus olhos eram enganosos. Chegarão à primeira sentinela e dir-lhe-ão: «Vimo-lo em tal e

tal parte. Não demorará a aparecer por aqui.»

De repente ficou quieto.

«Cristo!», disse. E já ia gritar: «Viva Cristo Rei!», mas conteve-se. Sacou a pistola do

coldre e acomodou-a a si por dentro, debaixo da camisa, para a sentir pertinho da sua carne.

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Isso deu-lhe coragem. Foi-se aproximando dos ranchos da Agua Zarca em passos curtos e

silenciosos, olhando o bulício dos soldados que se aqueciam junto de grandes fogueiras.

Chegou até ao tapume do curral e pôde vê-los melhor;

102

reconhecer-lhes a cara: eram eles, O seu tio Tanis e o seu tio Librado. Enquanto os soldados

davam voltas em torno do lume, eles abanavam-se, pendurados de uma acácia, no meio do

curral. Já não pareciam aperceber-se do fumo que subia das fogueiras, que lhes enevoava os

olhos vidrados e lhes enegrecia a cara.

Não quis continuar a vê-los. Arrastou-se ao longo da barda e acantonou-se numa esquina,

descansando o corpo, embora sentisse que um verme lhe retorcia o estômago.

Por cima dele ouviu que alguém lhe dizia:

- Que esperam para tirar esses da forca?

- Estamos à espera que chegue o outro. Dizem que eram três, por isso têm que ser três.

Dizem que o que falta é um rapazinho; mas mesmo rapazinho e tudo foi ela quem armou a

emboscada ao meu tenente Parra e acabou com a sua gente. Tem que cair por aqui, como

caíram os outros, que eram mais velhos e mais sabidos. O meu major diz que, se ele não

vier de hoje para amanhã, completamos a conta com o primeiro que apareça e assim se

cumprirão as ordens.

- E por que não o vamos procurar? Assim até nos abalaria um bocadinho o aborrecimento.

- Não é preciso. Tem que vir. Todos estão a dirigir-se para a serra de Comanja para se

juntarem com os cristeros do Catorze. Estes já são dos últimos. O ideal seria deixá-los

passar para que dessem guerra aos companheiros dos Altos.

- Isso seria o melhor. A ver se, como consequência, não nos enfiam também a nós por

aquele rumo.

Feliciano Ruelas esperou ainda um bocado para que se lhe acalmasse o bulício que sentia

fazer-lhe cócegas no estômago. Depois sorveu tanto ar como se fosse mergulhar na água e,

agachado até se arrastar pelo chão, foi caminhando, empurrando o corpo com as mãos.

Quando chegou ao leito do arroio, endireitou a cabeça e desatou a correr, abrindo caminho

entre o restolho. Não olhou para trás nem deixou de correr até que sentiu que o arroio se

dissolvia na planura.

Então deteve-se. Respirou fundo, a tremer.

103

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PASSAGEM DO NORTE

- Vou para longe, pai; Por isso venho avisá-lo.

- E pra onde te vais, se é que se pode saber?

- Vou pró Norte.

- E pra lá, pra quê? Não tens aqui o teu negócio? Não estás metido na compra de porcos?

- Estava. Agora já não. Não dá nada. Na semana passada não conseguimos nem pra comer e

na anterior só comemos ervas. Há fome, pai; a si nem lhe dá o cheiro porque vive bem.

- O que estás para aí a dizer?

- Pois, que há fome. Você nem a sente. Você vende os seus foguetes e as suas bombinhas e

a pólvora e com isso vai-se arranjando. Enquanto houver funções, chover-lhe-á o dinheiro;

Mas não, pai. Já ninguém cria porcos nesta altura. E se os cria, pois então, come-os. E, se os

vende, vende-os caros. E não há dinheiro para os comprar, ainda por cima. Acabou-se o

negócio, pai.

- E que diabo vais fazer ao Norte?

- Pois ganhar dinheiro. Bem vê, o Carmelo voltou rico, até trouxe um gramofone e

cobra a música a cinco centavos. É o mesmo, desde uma habanera até a Anderson, essa

que canta canções tristes; de tudo, por igual; e ganha o seu bom dinheirinho e até fazem

fila para a ouvir. Assim que já vê; é só ir e voltar. Por isso vou.

104

- E onde vais guardar a tua mulher com os rapazes?

- Pois por isso venho avisá-lo, pra que você se encarregue deles.

- E quem pensas que sou eu, a tua ama? Se vais, pois que Deus se arranje com eles. Eu já

não estou pra criar rapazes; com ter-te criado a ti e à tua irmã, que Deus tenha, com isso já

tive de sobra. De hoje em diante não quero ter compromissos. E, como diz o ditado: «Se o

sino não toca, é porque não tem badalo.»

- Não encontro que dizer, pai, até o desconheço. O que é que ganhei com o facto de você

me ter criado? Só trabalhos. Só me trouxe ao mundo e desenrasca-te como puderes. Nem

sequer me ensinou o ofício de fogueteiro, pra que não lhe fizesse sombra. Vestiu-me uns

calções e uma camisa e lançou-me nos caminhos pra que aprendesse a viver por minha

conta e quase me punha na rua de sua casa com uma mão à frente e outra atrás. Olhe, o

resultado é este: estamos a morrer de fome. A nora e os netos e este seu filho, como quem

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diz, toda a sua descendência, estamos quase a desistir e cair bem mortos. E a raiva que dá é

que é de fome. Você acha que isto é legal e justo?

- E eu que diabo tenho a ver com isso? Pra que te casaste? Abalaste de casa e nem sequer

me pediste autorização.

- Fiz isso porque a si nunca lhe pareceu boa a Trânsito. Maltratou-a sempre que lha trouxe

e, lembre-se, nem sequer virou a cara para a ver da primeira vez que ela veio: «Olhe, papá,

esta é a rapariguinha com quem me vou juntar». Você saiu-se falando em verso e dizendo

que a conhecia do íntimo, como se ela fosse uma mulher da rua. E disse uma tal

barbaridade de coisas que nem eu o entendi. Por isso nem lha voltei a trazer. Por isso você

não me deve guardar rancor. Agora só quero que me cuide dela, porque vou a sério. Aqui já

não há nada que fazer, nem como procurar.

- Isso são rumores. Trabalhando, come-se e comendo vive-se. Aprende a minha

sabedoria. Eu estou velho e nem me queixo. Em rapaz, nem se fala; até tinha pra

arranjar mulheres pra passar o tempo. O trabalho dá pra tudo, quanto mais prás

105

urgências do corpo. O que se passa é que és tonto. E não me digas que fui eu que te ensinei

isso.

- Mas você fez-me nascer. E você tinha que me ter encaminhado, não me ter soltado como

um cavalo entre as maçarocas.

- Já eras bem crescido quando te foste. Ou querias que eu te mantivesse sempre? Só as

lagartixas é que procuram a mesma covinha até quando morrem. Podes dizer que tiveste

sorte e que conheceste mulher e que tiveste filhos; outros nem sequer isso tiveram na vida,

passaram como as águas dos rios, sem comerem nem beberem.

- Você nem sequer me ensinou a fazer versos, já que os sabia. Só com isso teria eu ganho

alguma coisa divertindo as pessoas como você faz. E no dia em que lho pedi disse-me: «Vai

vender ovos, isso dá mais.» E no princípio tornei-me oveiro e depois galinheiro e depois

negociei em porcos e, até que nisso, não me dava mal se se pode dizer. Mas o dinheiro

acaba-se; vêm os filhos e sorvem-no como água e depois não fica nada pró negócio e

ninguém nos quer fiar. Já lhe digo, na semana passada comemos ervas, e nesta, nem isso.

Por isso me vou. E vou entristecido, pai, mesmo que você não queira acreditar, porque eu

gosto dos meus filhos, não sou como você que criou os seus e os pôs a andar.

- Aprende isto, filho: no ninho novo tem que se deixar um ovo. Quando a velhice te rondar,

aprenderás a viver, saberás que os filhos abalam, que não te agradecem nada; que comem

até a tua lembrança.

- Isso são só versos.

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- Talvez, mas é a verdade.

- Eu de si não me esqueci, como vê.

- Vens procurar-me na necessidade. Se estivesses bem, esquecias-te de mim. Desde que

a tua mãe morreu que me sinto só; Quando morreu a tua irmã, mais só; quando tu te

foste vi que já estava só pra sempre. Agora vens e queres moer-me o sentimento; mas

não sabes que é mais difícil ressuscitar um morto que dar vida de novo. Aprende

alguma coisa. Andar pelos caminhos ensina muito. Esfrega-te com o teu próprio

esfregão, é isso que deves fazer.

106

- Então não mos vai cuidar?

- Deixa-os aí, ninguém morre de fome.

- Diga-me se me guarda o encargo, não quero ir sem ter a certeza.

- Quantos são?

- São só três rapazes e duas raparigas e a nora que está muito jovem.

- Muito fodida, queres dizer.

- Eu fui o seu primeiro marido. Era nova. É boa. Queira-a, pai.

- E quando voltarás?

- Depressa, pai. É só juntar dinheiro e regresso. Pagar-lhe-ei o dobro do que você fizer por

eles. Dê-lhes de comer, é tudo o que lhe encomendo.

Dos ranchos as pessoas desciam às aldeias; as pessoas das aldeias iam para as cidades. Nas

cidades as pessoas perdiam-se; dissolviam-se entre as pessoas. «Não sabe onde me darão

trabalho?» «Sim, vai para Ciudad Juarez. Eu passo-te por duzentos pesos. Procura fulano de

tal e diz-lhe que sou eu que te mando. Não digas nada a mais ninguém.» «Está bem, senhor,

amanhã lhos trago.»

- Senhor, aqui lhe trago os duzentos pesos.

- Está bem. Vou dar-te um papelinho pró nosso amigo de Ciudad Juarez. Não o percas.

Ele te passará na fronteira e tens a vantagem de levar até o contrato. Aqui vai a morada

e o telefone para que o localizes mais depressa. Não, não vais para o Texas. Já ouviste

falar de Oregón? Bom, diz-lhe que queres ir para Oregón. A colher maçãs, é isso, nada

de algodoais. Vê-se que és um rapaz esperto. Lá te apresentas ao Fernandez. Não o

conheces? Bom, perguntas por ele. E, se não queres colher maçãs, pões-te a pregar as

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travessas da via férrea. Isso dá mais e é mais duradouro. Voltarás com muitos dólares.

Não percas o cartão.

107

- Pai, mataram-nos.

- A quem?

- A nós. Ao passar o rio. Crivaram-nos de balas até que nos mataram a todos.

- Onde?

- Lá, na Passagem do Norte, enquanto nos encandeavam com as lanternas, quando

estávamos cruzando o rio.

- E porquê?

- Não o soube, pai. Lembra-se do Estanislado? Foi ele que me convenceu pra irmos pra lá.

Disse-me como estavam as trocas baldrocas do assunto e fomos primeiro para a cidade do

México e de lá para El Paso. E estávamos atravessando o rio quando nos fuzilaram com as

mausers. Voltei para trás, porque ele me disse: «Tira-me daqui, patrício, não me deixes.» E

então estava já de pança para cima, com o corpo todo esburacado, sem músculos. Arrastei-o

como pude, aos puxões, colocando-me no lado contrário ao das lanternas que nos

alumiavam procurando-nos. Disse-lhe: «Estás vivo?», E ele respondeu-me: «Tira-me daqui,

patrício.» E depois disse-me: «Acertaram-me.» Eu tinha um braço partido por causa de uma

bala e o osso tinha-se ido dali de onde foge do cotovelo. Por isso agarrei-o com a mão que

estava boa e disse-lhe: «Agarra-te aqui com força.» E morreu na margem, à frente de um

lugar a que chamam a Ojinaga, já deste lado, entre os juncos que continuavam a pentear o

rio como se não tivesse acontecido nada.

«Subi-o para a margem e falei-lhe: «Ainda estás vivo?» E ele não me respondeu. Lutei para

chamar o Estanislado à vida até que amanheceu; dei-lhe esfregas e sovei-lhe os pulmões

para que respirasse, mas nem pio voltou a soltar.

«O da migração chegou-se-me à tarde.

«Eh, tu!, que fazes aqui?»

«Pois estou a guardar este mortinho.»

«Mataste-o tu?»

108

«Não, meu sargento» disse-lhe.

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«Não sou nenhum sargento. Então quem foi?»

«Como o vi fardado e com essas aguiazinhas, pensei que era do exército, e trazia tal

pistolão que nem duvidei.

«Continuou a perguntar-me: «Então quem, hã?» E assim esteve dá-lhe e dá-lhe até que me

puxou pelos cabelos e eu nada fazia, por causa do cotovelo magoado nem sequer me pude

defender.

«Disse-lhe: - Não me bata, que estou aleijado.

«E só então deixou de me bater.

«Que aconteceu? Conta» disse-me.

«Pois iluminaram-nos ontem à noite, íamos bem dispostos, assobiando pelo gosto de já

irmos para o outro lado quando mesmo no meio da água começaram os balázios. E não

havia quem acabasse com aquilo. Este e eu fomos os únicos que conseguimos sair e a

meias, porque olhe, ele até já afrouxou o corpo.»

«E quem é que disparou sobre vocês?»

«Pois nem sequer os vimos. Só nos alumiaram com as suas lanternas, insistentemente, e

ouvimos o espingardeio, até que eu senti que se me virava o cotovelo e ouvi este que me

dizia: «Tira-me da água, patrício.» Ainda que de nada nos tivesse servido tê-los visto.

«Então devem ter sido os apaches.»

«Quais apaches?»

«Pois uns a quem chamam assim e que vivem do outro lado.»

«Pois não estão as Tejas do outro lado?»

«Sim, mas está cheia de apaches, não fazes a mínima ideia. Vou falar com o Ojinaga pra

que recolham o teu amigo e tu prepara-te pra regressares à tua terra. De onde és? Não

devias ter saído de lá. Tens dinheiro?»

«Tirei ao morto este pouquinho. A ver se me governo.»

«Tenho ali uma conta para os repatriados. Vou-te dar o da passagem; mas se te volto a deter

por aqui, deixo-te para que rebentes. Não gosto de ver uma cara duas vezes. Andando, vai!»

«E eu vim e aqui estou, pai, para lhe contar.»

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- Vês o que ganhaste por ser convencido e tonto. E já verás quando espreitares a tua casa; já

verás o proveito que tiveste com abalar.

- Aconteceu alguma coisa de mal? Morreu-me algum gaiato?

- A Trânsito abalou-te com um arrieiro. Dizias que era muito boa, não é verdade? Os teus

rapazes estão lá atrás a dormir. E tu vai procurando onde passar a noite, porque vendi a tua

casa pra me pagar dos gastos. E ainda me ficas a dever trinta pesos do valor das escrituras.

- Está bem, pai, não vou fazer arrenegá-lo. Talvez amanhã encontre aqui algum trabalhinho

pra lhe pagar tudo o que lhe devo. Em que direcção diz você que se dirigiu o arrieiro com a

Trânsito?

- Pois por aí. Não reparei.

- Então agorinha mesmo venho, vou buscá-la.

- E por onde vais?

- Pois por ali, pai, por onde você diz que ela se foi.

111

LEMBRA-TE

Lembra-te de Urbano Gómez, filho de dom Urbano, neto de Dimas, aquele que dirigia as

pastoreias e que morreu recitando o «rezinga anjo maldito» na época da influenza. Já faz

bastantes anos, talvez quinze, que isto aconteceu. Mas deves lembrar-te dele. Lembra-te que

lhe chamávamos o Avô por causa do seu outro filho, Fidencio Gòmez, ter duas filhas muito

brincalhonas: uma escura e rechonchudinha, que por maldade, chamavam a Arregaçada, e

outra que era muito alta e tinha os olhos zarcos e até se dizia que não era dele e que dava

sinais de estar doente dos soluços. Lembra-te do escândalo que ela armava quando

estávamos na missa e mesmo à hora da Elevação soltava o seu ataque de soluços, que

parecia estar a rir e a chorar ao mesmo tempo, até que a levavam lá para fora e lhe davam

tanta água com açúcar que se acalmava. Essa acabou por se casar com o Lúcio Chico, dono

de uma mescaleira que antes foi do Librado, rio acima, por onde está o moinho de linaça

dos Teódulos.

Lembra-te que à sua mãe lhe chamavam a Beringela porque sempre andava metida em

complicações e de cada complicação saía com uma criança. Diz-se que teve bom

dinheirinho, mas estafou-o nos enterros, pois todos os filhos lhe morriam recém-nascidos e

ela sempre lhes mandava cantar louvores, levando-os para o jazigo entre músicas e meninos

do coro, que cantavam

112

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«hossanas» e «glórias» e essa canção do «Ai te mando, Senhor, outro anjinho». Por isso

ficou pobre, porque lhe ficava caro cada funeral, por causa das iguarias que dava aos

convidados do velório. Só sobreviveram dois, o Urbano e a Natália, que já nasceram pobres

e os quais ela não viu crescer, porque morreu no último parto que teve, já mais velha, perto

dos cinquenta anos.

Deves tê-la conhecido, pois era muito discutidora e a todo o momento andava a brigar com

as vendedoras na praça do mercado, porque lhe queriam vender muito caro os tomates, dava

gritos e dizia que a estavam a roubar. Depois, já pobre, viam-na rondando o lixo, juntando

rabos de cebola, feijões já cozidos e um ou outro canudo de cana «para adoçar a boca dos

filhos». Tinha dois, como já te disse, que foram os únicos que vingaram. Depois nada mais

se soube dela.

Esse Urbano Gómez era mais ou menos da nossa idade, apenas uns meses mais velho,

muito bom para o jogo do galo e para as tramóias. Lembra-te que nos vendia cravinas e nós

comprávamos-lhas, quando o mais fácil era ir cortá-las ao cerro. Vendia-nos mangas

verdes, que roubava da mangueira que estava no pátio da escola, e laranjas com malagueta,

que comprava no porto a dois centavos e que depois nos revendia a cinco. Rifava toda a

porcaria que trazia no bolso: berlindes, piões e zumbidores e até escaravelhos verdes,

desses a que se amarra um fio numa pata para que não voem para muito longe.

Intrujava-nos a todos, lembra-te.

Era cunhado de Nachito Rivero, aquele que se tornou néscio poucos dias depois de casado.

E Inês, a sua mulher, para se manter, teve que montar uma banca de tepache[3) na guarita

da rua principal, enquanto o Nachito vivia cantando canções todas desafinadas num

bandolim que lhe emprestavam no cabeleireiro de dom Refugio.

E nós íamos com o Urbano ver a sua irmã, beber o tepache que sempre lhe ficávamos a

dever e que nunca lhe pagávamos,

[3] Bebida fermentada que se prepara com o sumo e com a casca de vários frutos,

principalmente ananás e açúcar.

113

porque nunca tínhamos dinheiro. Depois até ficou sem amigos, porque todos, ao vê-lo, lhe

dávamos a volta para que não nos cobrasse as dívidas.

Talvez então se tenha tornado mau, ou talvez já o fosse de nascimento.

Expulsaram-no da escola antes do quinto ano, porque o encontraram com a prima, a

Arregaçada, brincando aos maridos e mulheres detrás dos lavadouros, metidos num algibe

seco. Puxaram-no pelas orelhas pela porta grande entre as gargalhadas de todos, e desfilou

pelo meio de uma fila de rapazes e raparigas para o envergonharem. E ele passou por ali,

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com a cabeça levantada, ameaçando-nos a todos com a mão, como dizendo: «Vão pagar-

mas caro.»

E depois ela, que saiu aos soluços e com o olhar raspando os ladrilhos, até que, já na porta,

soltou o choro; um guincho que se esteve ouvindo toda a tarde como se fosse um uivo de

coiote.

Só se te falhar muito a memória é que não te hás-de lembrar disso.

Dizem que o seu tio Fidencio, o do moinho, lhe deu uma sova que por pouco não o deixou

paralítico e que ele, de raiva, abalou da aldeia.

O certo é que não o voltámos a ver senão quando apareceu de volta por aqui, convertido em

polícia. Estava sempre na praça de armas, sentado num banco com a carabina entre as

pernas e olhando-nos a todos com muito ódio. Não falava com ninguém. Não

cumprimentava ninguém. E, se olhávamos para ele, ele fazia-se desentendido, como se não

conhecesse as pessoas. Foi então que matou o cunhado, o do bandolim. O Nachito lembrou-

se de lhe ir fazer uma serenata, já de noite, pouco depois das oito e quando ainda estavam

tocando os sinos pelas Almas. Então ouviram-se os gritos e as pessoas que estavam na

igreja rezando o terço desataram a correr e lá os viram: o Nachito defendendo-se, de pernas

para o ar, com o bandolim, e o Urbano dando-lhe pancadas uma atrás de outra com a culatra

da mauser, sem ouvir o que as pessoas lhe gritavam, raivoso, como um cão maldito. Até

que um fulano que

114

não era daqui se soltou da multidão e foi e tirou-lhe a carabina e bateu-lhe com ela nas

costas, dobrando-o sobre o banco do jardim, onde ficou estendido.

Ali o deixaram passar a noite. Quando amanheceu foi-se embora. Dizem que antes esteve

na paróquia e que até pediu a bênção ao padre cura, mas ele não lha deu.

Detiveram-no no caminho. Ia coxeando e, quando se sentou a descansar, chegaram ao pé

dele. Não se opôs. Dizem que ele próprio amarrou a soga ao pescoço e que até escolheu a

árvore de que mais gostava para que o enforcassem.

Deves lembrar-te dele, pois fomos companheiros de escola e conheceste-o como eu.

115

NÃO OUVES LADRAR OS CÃES

- Tu que vais aí em cima, Ignacio, diz-me se não ouves algum sinal de algo ou se vês

alguma luz nalgum sítio.

- Não se vê nada.

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- Já devemos estar perto.

- Sim, mas não se ouve nada.

- Olha bem.

- Não se vê nada.

- Pobre de ti, Ignacio.

A sombra longa e negra dos homens continuou a mexer-se de cima abaixo, trepando pelas

pedras, diminuindo e crescendo conforme avançava pela margem do arroio. Era uma só

sombra, cambaleante.

A lua vinha saindo da terra, como uma labareda redonda.

- Já devemos estar a chegar a essa aldeia, Ignacio. Tu que tens as orelhas de fora, repara, vê

se ouves ladrar os cães. Lembra-te que nos disseram que Tonaya estava mesmo atrás do

monte. Lembra-te, Ignacio.

- Sim, mas não vejo rasto de nada.

- Estou a ficar cansado.

- Ajuda-me a descer.

O velho foi recuando até encontrar o paredão e ajustou ali a carga, sem a soltar dos seus

ombros. Embora se lhe dobrassem

116

as pernas, não queria sentar-se, porque depois não poderia levantar o corpo do filho, que lá

atrás, horas antes, o tinham ajudado a carregar às costas. E assim o tinha trazido desde

então.

- Como te sentes?

- Mal.

Falava pouco. Cada vez menos. Às vezes parecia dormir. Outras vezes parecia ter frio.

Tremia. Sabia quando o tremor se agarrava ao filho pelas sacudidelas que lhe dava e porque

os pés se lhe encaixavam nas ilhargas como esporas. Depois as mãos do filho, que trazia

agarradas ao seu pescoço, abanavam-lhe a cabeça como se fosse uma pandeireta.

Ele apertava os dentes para não morder a língua e, quando aquilo acabava, perguntava-lhe:

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- Dói-te muito?

- Alguma coisa - respondia ele.

Primeiro tinha-lhe dito: «Desce-me aqui... Deixa-me aqui... Vai tu sozinho. Eu alcançar-te-

ei amanhã ou quando me refizer um bocadinho.» Tinha-lho dito para aí umas cinquenta

vezes. Agora já nem isso dizia.

Ali estava a lua. À frente deles. Uma lua grande e corada que lhes enchia de luz os olhos e

que esticava e escurecia mais a sua sombra sobre a terra.

- Já nem vejo por onde vou - dizia ele. Mas ninguém lhe respondia.

O outro ia lá em cima, todo iluminado pela lua, com a sua cara descolorida, sem sangue,

reflectindo uma luz opaca. E ele cá em baixo.

- Ouviste-me, Ignacio? Estou a dizer-te que não vejo bem. E o outro ficava calado.

Continuou a caminhar, aos tropeções. Encolhia o corpo e depois endireitava-se para voltar a

tropeçar de novo.

- Este não é nenhum caminho. Disseram-nos que por trás do cerro estava Tonaya. Já

passámos o cerro. E Tonaya não se vê, nem se ouve nenhum ruído que nos diga que está

perto. Por que não queres dizer-me o que vês, tu que vais aí em cima, Ignacio?

117

- Ajuda-me a descer, pai.

- Sentes-te mal?

- Sinto.

- Levar-te-ei a Tonaya seja como for. Aí encontrarei quem cuide de ti. Dizem que há lá um

doutor. Levar-te-ei até ele. Carrego-te há horas e não te deixarei abandonado aqui para que

alguém acabe contigo.

Cambaleou um pouco. Deu dois ou três passos de lado e voltou a endireitar-se.

- Levar-te-ei a Tonaya.

- Ajuda-me a descer.

A sua voz tornou-se sossegadinha, apenas murmurava:

- Quero deitar-me um pouco.

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- Dorme aí em cima. Ao fim e ao cabo, levo-te bem agarrado. A lua ia subindo, quase azul,

sobre um céu claro. A cara do velho, encharcada em suor, encheu-se de luz. Escondeu os

olhos para não olhar de frente, já que não podia agachar a cabeça engarrotada, entre as mãos

do filho.

- Tudo isto que faço, não o faço por si. Faço-o pela sua defunta mãe. Porque você foi seu

filho. Por isso o faço. Ela recriminar-me-ia se eu o tivesse deixado para ali caído, onde o

encontrei, e não o tivesse recolhido para o trazer, para que o curem, como estou fazendo. É

ela que me dá ânimo, não você. Começando pelo facto de que a si não lhe devo senão puras

dificuldades, puras mortificações, puras vergonhas.

Suava ao falar. Mas o vento da noite secava-lhe o suor. E, sobre o suor seco, voltava a suar.

- Derrear-me-ei, mas chegarei consigo a Tonaya, para que lhe aliviem essas feridas que

lhe fizeram. E estou certo de que, assim que você se sentir bem, voltará aos seus erros.

Isso já não me importa. Contanto que vá para longe, para onde eu não volte a saber de

si. Contanto que isso aconteça... Porque para mim você já não é meu filho. Amaldiçoei

o sangue que você tem de mim. A parte que a mim me tocava, amaldiçoei-a. Disse:

«Que lhe apodreça nos rins o sangue que eu lhe dei!» Disse-o desde que soube que você

andava traficando pelos

118

caminhos, vivendo do roubo e matando gente... E gente boa. E se não, aí está o meu

compadre Tranquilino. O que o baptizou a si. O que lhe deu o seu nome. A ele também lhe

tocou a pouca sorte de se encontrar consigo. Desde então eu disse: «Esse não pode ser meu

filho.»

«Olha a ver seja vês alguma coisa. Ou se ouves alguma coisa. Tu que o podes fazer aí de

cima, porque eu sinto-me surdo.»

- Não vejo nada.

- Pior para ti, Ignacio.

- Tenho sede.

- Aguenta-te! Já devemos estar perto. O que se passa é que já é muito de noite e devem ter

apagado as luzes da aldeia. Mas, pelo menos, devias ouvir se os cães ladram. Faz por ouvir.

- Dá-me água.

- Aqui não há água. Não há mais do que pedras. Aguenta-te. E, mesmo que houvesse água,

não te desceria para a beberes. Ninguém me ajudaria a carregar-te outra vez e eu sozinho

não consigo.

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- Tenho muita sede e muito sono.

- Lembro-me de quando nasceste. Assim eras então. Acordavas com fome e comias para

voltar a adormecer. E a tua mãe dava-te água, porque já tinhas acabado com o leite dela.

Não tinhas vazão. E eras muito raivoso. Nunca pensei que com o tempo aquela raiva te

subisse à cabeça... Mas assim foi. A tua mãe, que em paz descanse, queria que te criasses

forte. Acreditava que, quando crescesses, serias o seu sustento. Só te teve a ti. O outro filho

que ia ter matou-a. E tu tê-la-ias morto outra vez se ela estivesse viva a estas alturas.

Sentiu que aquele homem que carregava sobre os seus ombros deixara de apertar os joelhos

e tinha começado a soltar os pés, balanceando-os de um lado para o outro. E pareceu-lhe

que a cabeça, lá em cima, se sacudia como se soluçasse.

Sobre o seu cabelo sentiu que caíam grossas gotas, como se fossem lágrimas.

- Choras, Ignacio? Fá-lo chorar a si a recordação da sua mãe, não é verdade? Mas você

nunca fez nada por ela. Sempre

119

nos pagou mal. Como se, em vez de carinho, lhe tivéssemos enchido o corpo de maldade. E

já vê? Agora feriram-no. O que aconteceu com os seus amigos? Mataram-nos a todos. Mas

eles não tinham ninguém. Eles bem poderiam ter dito: «Não temos a quem causar pena.»

Mas você, Ignacio?

Ali estava já a aldeia. Viu brilhar os telhados sob a luz da lua. Teve a impressão que o

esmagava o peso do filho ao sentir que os joelhos se lhe dobravam no último esforço. Ao

chegar ao primeiro cobertiço encostou-se sobre o lancil do passeio e soltou o corpo, frouxo,

como se o tivessem desconjuntado.

Desprendeu com dificuldade os dedos com que o filho tinha vindo a segurar-se ao seu

pescoço e, ao ficar livre, ouviu como por todo o lado ladravam os cães.

- E tu não os ouvias, Ignacio? - disse - Não me ajudaste nem sequer com esta esperança.

121

O DIA DO DESMORONAMENTO

- Isto aconteceu em Setembro. Não em Setembro deste ano mas sim no do ano passado. Ou

foi no ano anterior, Melitón?

- Não, foi no ano passado.

- Sim, eu bem me lembrava. Foi em Setembro do ano passado, pelo dia vinte e um. Ouve-

me, Melitón, Não foi a vinte e um de Setembro o dia do tremor de terra?

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- Foi um pouco antes. Quer-me parecer que foi a dezoito.

- Tens razão. Eu por esses dias andava em Tuxcacuesco. Até vi quando se desmoronavam

as casas como se fossem feitas de mel, simplesmente, retorciam-se assim, fazendo trejeitos,

e vinham as paredes inteiras para o chão. E as pessoas saíam dos escombros todas

aterrorizadas, correndo direitinhas para a igreja aos gritos. Mas esperem. Ouve, Melitón,

parece-me que em Tuxcacuesco não existe nenhuma igreja. Tu não te lembras?

- Não há. Ali não restam senão umas paredes feitas em quatro bocados que dizem que foi a

igreja há coisa de duzentos anos; mas ninguém se lembra dela, nem de como era; aquilo

mais parece um curral abandonado infestado de figueirinhas.

- Dizes bem. Então não foi em Tuxcacuesco que me apanhou o tremor de terra, deve ter

sido no El Pochote. Mas El Pochote é um rancho, não é?

122

- É, mas tem uma capelinha a que chamam igreja; está um pouco para lá da fazenda dos

Alcatraces.

- Então foi lá, nem mais nem menos, que me agarrou esse tremor de terra que vos digo, e

quando a terra se bandeava todinha como se por dentro a estivessem a ferver. Bom, uns

poucos dias depois, porque me lembro que ainda estávamos firmando paredes, chegou o

governador, vinha ver que ajuda podia dar com a sua presença. Todos vocês sabem que

basta a presença do governador, desde que as pessoas o vejam, para que tudo fique

arranjado. Mas é preciso pelo menos que ele venha ver o que sucede, e não que esteja lá

metido na sua casa, só a dar ordens. Vindo ele, tudo se resolve e as pessoas, mesmo que a

casa lhes tenha caído em cima, ficam muito contentes por tê-lo conhecido. Ou não é assim,

Melitón?

- É isso mesmo, e mais nada.

- Bom, como lhes dizia, em Setembro do ano passado, pouco depois dos tremores de terra,

apareceu por cá o governador para ver como nos tinha tratado o terramoto. Trazia geólogo e

gente conhecedora, não pensem que vinha sozinho. Ouve, Melitón, mais ou menos quanto

dinheiro nos terá custado dar de comer aos acompanhantes do governador?

- Qualquer coisa como mil pesos.

- E isso porque só estiveram um dia e, assim que se fez noite, abalaram; se não, quem

sabe até onde teríamos saído desfalcados, embora, isso sim, tivéssemos ficado muito

contentes: as pessoas estavam que lhes rebentava o pescoço de tanto o esticarem para

poderem ver o governador e fazendo comentários sobre como tinha ele comido o peru e

que tinha chupado os ossos e como era rápido a tirar uma tortilha atrás de outra,

regando-as com molho de abacate; repararam em tudo. E ele tão tranquilo, tão sério,

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limpando as mãos às meias para não sujar o guardanapo, que só lhe serviu para de vez

em quando espanar o bigode. E depois, quando o ponche de romã lhes subiu à cabeça,

começaram todos a cantar em coro. Ouve, Melitón, qual foi a canção que estiveram

todos a repetir e repetir, como disco riscado?

123

- Foi uma que dizia: «Não sabes da alma as horas de luto.»

- És bom para essas coisas da memória, Melitón, não há dúvida. Sim, foi essa. E o

governador só se ria; pediu para saber onde era a casa de banho. Depois sentou-se

novamente no seu lugar e cheirou os cravos que estavam sobre a mesa. Olhava os que

cantavam, e mexia a cabeça, acompanhando o compasso, sorrindo. Não há dúvida que se

sentia feliz, porque o seu povo era feliz, até se lhe podia adivinhar o pensamento. E na hora

dos discursos apoiou-se num dos seus acompanhantes, que tinha a cara alçada, um pouco

torcida para a esquerda. E falou. E não há dúvida que tinha que dizer. Falou de Juarez, que

nós tínhamos erguido na praça e só então soubemos que era a estátua de Juarez, pois nunca

ninguém nos tinha podido dizer quem era o indivíduo que estava encarrapitado naquele

monumento. Sempre pensámos que poderia ser Hidalgo ou Morelos ou Venustiano

Carranza, porque em cada aniversário de qualquer deles, ali lhes fazíamos a sessão. Até que

aquele janota nos veio dizer que se tratava de dom Benito Juarez. E as coisas que disse!

Não é verdade, Melitón? Tu que tens tão boa memória deves lembrar-te bem do que recitou

aquele fulano.

- Lembro-me muito bem; mas já o repeti tantas vezes que até se torna enfadonho.

- Bom, não é necessário. Só que estes senhores perdem uma coisa boa. Já lhes dirás melhor

o que disse o governador.

«O facto é que aquilo, em vez de ser uma visita aos doentes e aos que tinham perdido as

suas casas, converteu-se numa bebedeira das boas. E já nem se fala de quando entrou na

aldeia a música de Tepec, que chegou atrasada porque todos os camiões estavam ocupados

com o transporte das pessoas do governador e os músicos tiveram que vir a pé; mas

chegaram. Entraram com a música da harpa e do tambor, fazendo tatachum, chum, chum,

com os pratos, dando-lhe forte e com vontade ao Urubu molhado. Aquilo era para se ver,

até o governador despiu o capote e desapertou a gravata, e a coisa continuou por aí fora.

Trouxeram mais garrafas de ponche e apressaram-se a assar mais carne de veado, porque,

embora

124

vocês não queiram acreditar e eles não se apercebessem, estavam comendo carne de veado,

daquele que por aqui abunda. Nós ríamo-nos quando eles diziam que estava muito bom o

barbecue, não é, Melitón?, quando aqui nem sabemos o que é isso de barbecue. O certo é

que assim que lhes servíamos um prato já queriam outro e não havia maneira, ali estávamos

para os servir; porque, como disse o Libório, o fiscal dos impostos, que entre parênteses

sempre foi muito agarrado, «Não importa que esta recepção nos custe um balúrdio, para

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alguma coisa há-de servir o dinheiro» e depois tu, Melitón, que nesse tempo eras presidente

do município, até te desconheci quando disseste: «Que corra o ponche, uma visita destas

tem de ter uma recepção à altura». E sim, correu o ponche, essa é a pura verdade; até as

toalhas estavam coradas. E aquela gente parecia não ter vazão. Mas reparei que o

governador não se mexia do seu lugar; nem sequer esticava a mão, só comia e bebia tudo o

que lhe davam; mas a cambada de lambe-botas matava-se a encher-lhe a mesa de tal modo

que já nem lá cabia o saleiro que ele tinha na mão e quando dele se servia metia-o no bolso

da camisa. Até eu lhe fui dizer: «É servido de sal, meu general?», e ele mostrou-me, rindo,

o saleiro que tinha no bolso da camisa, por isso me apercebi.

«O melhor foi quando ele começou a falar. Até nos arrepiámos todos de emoção. Foi-se

endireitando, devagar, muito devagar, até que o vimos empurrar a cadeira para trás com o

pé; pôr as suas mãos na mesa; agachar a cabeça como se fosse levantar voo e depois

ouvimos a sua tosse, que nos pôs a todos em silêncio. O que é que ele disse, Melitón?»

«Concidadãos» disse. «Rememorando a minha trajectória, vivificando o único proceder das

minhas promessas. Perante esta terra que visitei como anónimo companheiro de um

candidato à Presidência, cooperador omnímodo de um homem representativo, cuja

honradez não esteve nunca desligada do contexto das suas manifestações políticas e que,

pelo contrário, é firme glosa de princípios democráticos no supremo vínculo da união com

o povo, confederando à austeridade de que deu

125

mostras a síntese evidente de idealismo revolucionário, nunca até agora pleno de

realizações e de certeza.»

- Aí houve aplausos, ou não, Melitón?

- Sim, muitos aplausos. Depois continuou:

«O meu estilo é o mesmo, concidadãos. Fui parco em promessas como candidato, optando

por prometer unicamente o que podia cumprir e que ao cristalizar-se, se traduzisse em

benefício colectivo e não em subjuntivo, nem particípio de uma família genérica de

cidadãos. Hoje estamos aqui presentes, neste caso paradoxal da natureza, não previsto

dentro do meu programa de governo...»

«Exacto, meu general!» gritou um que estava por lá. «Exacto! É isso mesmo.»

«... Neste caso, digo, quando a natureza nos castigou, a nossa presença receptiva no centro

do epicentro telúrico que devastou lares que podiam ter sido os nossos, que são os nossos;

concorremos com o auxílio, não com o desejo neroniano de disfrutar da desgraça alheia,

mais ainda, eminentemente dispostos a utilizar munifícamente o nosso esforço na

reconstrução dos lares destruídos, fraternalmente dispostos ao consolo dos lares

menoscabados pela morte. Este lugar que visitei há anos, longínquo então de qualquer

ambição de poder, antanho feliz, ogano enlutado, dói-me. Sim, concidadãos, laceram-me as

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feridas dos vivos pelos seus bens perdidos e a sonora dolência dos seres pelos seus mortos

insepultos sob estes escombros, que estamos presenciando.»

- Aí também houve aplausos, não é verdade, Melitón?

- Não, aí voltou a ouvir-se o gritador de antes: «Exacto, senhor governador! É isso mesmo.»

E depois outro, mais para cá, que disse: «Calem esse bêbado!»

- Ah, sim. E até parecia que ia haver um tumulto na cauda da mesa, mas todos se

apaziguaram quando o governador falou de novo.

«Tuxcacuenses, volto a insistir: dói-me a vossa desgraça, pois, apesar do que dizia Bernal, o

grande Bernal Díaz del Castillo: ”Os homens que morreram tinham sido contratados

126

para a morte”, eu, nos considerandos do meu conceito ontológico e humano, digo: dói-me!,

com a dor que me causa ver derruída a árvore na sua primeira inflorescência. Ajudar-vos-

emos com o nosso poder. As forças vivas do Estado, lá do seu faldistório clamam por

socorrer os danificados desta hecatombe nunca prognosticada nem desejada. A minha

regência não terminará sem o ter cumprido. Por outro lado, não acredito que a vontade de

Deus tenha sido causar-vos detrimento, desaposentar-vos... »

- E terminou aí. O que disse depois não o aprendi, porque a bulha que se desatou nas mesas

de trás cresceu e tornou-se muito difícil acompanhar o que ele continuava a dizer.

- É bem verdade, Melitón. Aquilo esteve digno de se ver. com isto digo-lhes tudo. E é que o

mesmo sujeito da comitiva pôs-se a gritar outra vez: «Exacto! Exacto!», com uns guinchos

que até se ouviam na rua. E quando o quiseram calar, sacou da pistola e começou a dar-lhe

voltas e saltos por cima da sua cabeça, enquanto a descarregava contra o tecto. E as pessoas

que estavam ali como mirones começaram a correr na hora dos balázios. E derrubaram as

mesas, levando-as pela frente, e ouviu-se o partir de pratos e de vidros e as pancadas com as

garrafas que davam ao fulano da pistola, para que se acalmasse, e que só se estilhaçavam na

parede. E o outro ainda teve tempo de meter outro carregador na arma e já o descarregava

de novo, enquanto andava de cá para lá, esquivando o vulto às garrafas voadoras que lhe

aventavam de todos os lados.

«Deviam ter visto o governador ali de pé, muito sério, com a cara franzida, olhando para

onde estava mais forte o tumulto, como se o quisesse acalmar com o seu olhar.

«Sabe Deus quem terá ido dizer aos músicos que tocassem qualquer coisa, o certo é que

desataram a tocar o Hino Nacional com todas as suas forças, até quase rebentavam as

bochechas ao do trombone, de tão rijo que soprava; mas aquilo continuou igual. E depois

aconteceu que lá fora, na rua, também se tinha atiçado o pleito. Vieram avisar o governador

de que por lá havia uns que andavam às machadadas; e, vendo bem, era verdade, porque até

aqui se ouviam vozes de mulheres que diziam:

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”Separem-nos que se vão matar!” E depois outro grito que dizia: ”Já mataram o meu

marido! Agarrem-no!”

«E o governador nem se mexia, continuava de pé. Ouve, Melitón, como é essa palavra que

se costuma dizer... »

- Impávido.

- É isso, impávido. Bom, com o sarilho lá de fora a coisa aqui pareceu acalmar-se. O

bêbado do «exacto» estava a dormir; tinham-lhe acertado com a garrafa e tinha ficado de

pernas abertas, deitado no chão. O governador chegou-se então ao fulano e tirou-lhe a

pistola que ainda tinha agarrada numa das suas mãos, inteiriçadas pelo desmaio. Deu-a a

outro e disse-lhe: «Encarrega-te dele e toma nota de que fica proibido de usar armas.» E o

outro respondeu: «Sim, meu general.»

«A música, não sei porquê, continuou a tocar o Hino Nacional, até que o janota que tinha

falado de começo levantou os braços e pediu silêncio pelas vítimas. Ouve, Melitón, por que

vítimas pediu ele que todos nos silenciássemos?»

- Pelas do efipouco.

- Bom, pois por essas. Depois todos se sentaram, endireitaram outra vez as mesas e

continuaram a beber ponche e a cantar essa canção das «horas de luto».

«Agora me lembro que sim, foi por volta de vinte e um de Setembro a confusão: porque a

minha mulher teve nesse dia o nosso filho Merêncio, e eu cheguei já muito tarde à minha

casa, mais bêbado do que sóbrio. E ela não me falou durante muitas semanas,

argumentando que a tinha deixado sozinha com o seu compromisso. Já depois de se

acalmar, disse-me que eu não tinha servido nem para chamar a parteira e que teve que

resolver a situação como Deus lhe deu a entender.»

129

A HERANÇA DE MATILDE ARCÁNGEL

Em Corazón de Maria viviam, não faz muito tempo, um pai e um filho conhecidos como os

Eremites; se calhar porque os dois se chamavam Euremios. Um, Euremio Cedillo; outro,

Euremio Cedillo também, embora não custasse nada distingui-los, já que um era mais velho

do que o outro vinte e cinco anos bem contados.

A conta certa estava no alto e vigoroso, o Euremio grande, assim o tinha dotado a

benevolência de Deus Nosso Senhor. Pelo contrário, ao pequeno tinha-o feito todo

arrevesado, e até se diz que de entendimento. E, como se fosse pouco ser tão magro, vivia,

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se é que ainda vive, esmagado pelo ódio como por uma pedra; e é justo dizê-lo, a sua

desventura foi ter nascido.

Quem mais o desprezava era o pai, ainda por cima meu compadre; porque eu baptizei-lhe o

rapaz. E parece que para fazer o que fazia atinha-se à sua estatura. Era um homenzarrão tão

grande que até dava raiva estar junto dele e sopesar a sua força, mesmo que só fosse com o

olhar. Ao vê-lo, sentíamo-nos como se nos tivessem feito de má vontade ou com

desperdícios. Foi em Corazón de Maria, abarcando os arredores, o único caso

130

de um homem que cresceu tanto para cima, sendo que os desse sítio crescem em largura e

são baixinhos; até se diz que é ali que se originam os anões; e anãs são ali as pessoas e até a

sua condição. Oxalá que nenhum dos presentes se ofenda se é de lá, mas eu sustento a

minha opinião.

E, voltando onde íamos, estava eu a falar-vos de uns fulanos que há tempos viveram em

Corazón de Maria. O Euremio grande tinha um rancho apodado Las Animas, que se foi

deteriorando por muitos azares, embora o maior de todos tenha sido a incúria. E nunca quis

deixar essa herança ao filho que, como já vos disse, era meu afilhado. Bebeu-a inteira a

goles de aguardente, que conseguia vendendo pedaço a pedaço o rancho, com o único fim

de que o rapaz não encontrasse, quando crescesse, onde se agarrar para viver. E quase o

conseguiu. O filho apenas se levantou um pouco sobre a terra, feito uma pura lástima, e

mesmo assim graças a uns quantos compadecidos que o ajudaram a endireitar-se; porque o

pai nem se ocupou dele, antes parecia que lhe coalhava o sangue só de o ver.

Mas, para perceber tudo isto, há que voltar atrás. Muito mais do que antes de o rapaz

nascer, e talvez antes de Euremio conhecer a que ia ser sua mãe.

A mãe chamava-se Matilde Arcángel. Entre parênteses, não era de Corazón de Maria, mas

sim de um lugar mais acima que se chama Chupaderos, ao qual nunca chegou a ir o tal

Cedillos e se por acaso o conheceu foi por referências. Nesse tempo ela estava

comprometida comigo; mas nunca se sabe o que temos entre as mãos, assim, quando lhe fui

apresentar a rapariga um pouco para presumir dela e outro pouco para que ele se decidisse a

apadrinhar-nos a boda, não imaginei que a ela se lhe esgotasse tão depressa o sentimento

que dizia sentir por mim, nem que se lhe começassem a esfriar os suspiros, e que o seu

coração o fosse dar a outro.

Soube-o depois. No entanto, terei que dizer-vos antes quem e o que era Matilde Arcángel. E

aí vou. Contar-vos-ei isto sem pressas. Devagar. Ao fim e ao cabo temos toda a vida pela

frente.

131

Ela era filha de uma tal dona Sinesia, dona da estalagem de Chupaderos, um lugar caído no

crepúsculo, como quem diz, ali onde se nos acaba a jornada. Assim todos os arrieiros que

percorriam esses rumos ficaram a saber dela e puderam lavar os olhos olhando-a. Porque

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nesse tempo, antes de desaparecer, Matilde era uma rapariguinha que se filtrava como a

água entre nós.

Mas no dia menos esperado, e sem que nos apercebêssemos de que maneira, converteu-se

em mulher. Brotou-lhe um olhar entre a vida e o sonho que penetrava dentro de nós como

um prego que custa a retirar. E depois rebentou-lhe a boca, como se lha tivessem desflorado

com beijos. Pôs-se bonita a rapariga, o seu a seu dono.

Está bem, talvez eu não fosse digno dela. Vocês sabem o que é um arrieiro. E eu era-o por

gosto. Para falar comigo próprio, enquanto andava pelos caminhos.

Mas os caminhos dela eram mais longos que todos os caminhos que eu tinha corrido na

minha vida e até pensei que nunca deixaria de amá-la.

Mas enfim, apropriou-se dela o Euremio.

Ao voltar de um dos meus percursos, soube que já estava casada com o dono de Las

Animas. Pensei que a tinha arrastado a cobiça e talvez a altura do homem. Nunca me

faltaram justificações. O que me doeu aqui no estômago, que é onde doem os pesares, foi

que se tivesse esquecido dessa ranchada de pobres diabos que a íamos ver e nos

amparávamos ao calor dos seus olhares. Sobretudo de mim, Tranquilino Herrera, vosso

servidor, com quem ela se comprometeu de abraço e beijo e tudo o resto. Embora, vendo

bem, em condições de fome qualquer animal sai do curral; e ela pode dizer-se que não

estava lá muito bem alimentada; em parte porque às vezes éramos tantos que a ração não

chegava, em parte porque sempre estava disposta a tirar o pão da sua boca para que nós

comêssemos.

Depois engordou. Teve um filho. Depois morreu. Matou-a um cavalo desenfreado.

132

Vínhamos de baptizar a criatura. Ela trazia-o nos seus braços. Já não poderia contar-lhes os

pormenores nem porquê e como o cavalo tomou o freio nos dentes, porque eu vinha mesmo

à frente. Só me lembro que era um animal rosilho. Passou ao nosso lado como uma nuvem

cinzenta, e mais do que o cavalo foi o ar do cavalo que vimos; solitário, já quase atolado na

terra. A Matilde Arcángel tinha ficado para trás, semeada não muito longe dali e com a cara

metida num charco de água. Aquela cara que tanto amámos, tantos de nós, agora quase

afundada, como se estivesse a enxaguar o sangue que brotava como manancial do seu corpo

ainda palpitante.

Mas então já não era nossa. Era propriedade de Euremio Cedillo, o único que a tinha usado

como sua. E como era engraçada a Matilde! E mais do que usá-la, ele tinha-se metido

dentro dela muito para lá das margens da carne, até ao ponto de lhe fazer nascer um filho. A

mim, nesse tempo, já não me restava dela mais que a sombra ou acaso um fio de lembrança.

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Apesar de tudo, não me resignei a não a ver. Ofereci-me para lhe baptizar o rapaz, com a

esperança de continuar perto dela, mesmo que fosse só na qualidade de compadre.

É por isso que ainda sinto passar perto de mim esse ar, que apagou a labareda da sua vida,

como se estivesse a soprar agora; como se continuasse a soprar contra nós.

A mim tocou-me fechar-lhe os olhos cheios de lágrimas e endireitar-lhe a boca torcida pela

angústia; essa ânsia que lhe entrou e que de certeza foi aumentando durante a corrida do

animal, até ao fim, quando se sentiu cair. Já lhes contei que a encontrámos caída de borco

sobre o seu filho. A sua carne já começava a secar, convertendo-se em casca, porque todo o

sumo lhe tinha saído durante o tempo que durou a sua desgraça. Tinha o olhar aberto, posto

no menino. Já lhes disse que estava empapada em água. Não em lágrimas, mas sim em água

porca do charco lodoso onde caiu a sua cara. E parecia ter mor-

133

rido contente por não ter esmagado o filho na queda, pois transluzia-lhe a alegria nos olhos.

Como lhes disse antes, a mim tocou-me fechar aquele olhar ainda acariciador, como quando

estava viva.

Enterrámo-la. Aquela boca, à qual era tão difícil chegar, foi-se enchendo de terra. Vimos

como desaparecia, toda ela sumida na fundura da cova, até não voltar a ver a sua forma. E

ali, parado como uma forquilha, Euremio Cedillo. E eu pensando: «Se ele a tivesse deixado

tranquila em Chupaderos, talvez ainda estivesse viva.»

«Ainda viveria» pôs-se ele a dizer «se o rapaz não tivesse a culpa.» E contava que o menino

se tinha lembrado de dar um berro como uma coruja, sendo o cavalo em que vinham muito

assustadiço. Ele avisou muito bem a mãe, como para a convencer de que não deixasse

berrar o rapaz. E também dizia que ela podia ter-se defendido ao cair; mas que fez

exactamente o contrário: «Pôs-se em arco, deixando uma cova ao filho para não o esmagar.

Assim que, somando uma coisa e outra, toda a culpa é do rapaz. Dá uns berros que uma

pessoa até se assusta. E eu para que é que vou amá-lo. Ele não me serve para nada. A outra

poderia dar-me mais e todos os filhos que eu quisesse; mas este nem sequer me deixou

saboreá-la.» E assim ia dizendo coisas e mais coisas, de tal maneira que já não sabia se era

pena ou raiva o que sentia pela morta.

O que se soube sempre foi o ódio que teve ao filho.

E era disso que eu lhes estava falando desde o princípio. O Euremio deu-se à bebida.

Começou a trocar bocados das suas terras por garrafas de «aguardente». Depois até a

comprava aos barris. A mim tocou-me uma vez fretar uma recua de porcos inteira com

barris de «aguardente» consignados ao Euremio. Nisso pôs ele todo o seu esforço: nisso e

em bater no meu afilhado, até se lhe cansar o braço.

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E nesta altura já tinham passado muitos anos. O Euremio pequeno cresceu, apesar de tudo,

apoiado na piedade de umas quantas almas; quase pelo puro alento que trouxe ao nascer.

Todos os dias acordava esmagado pelo pai, que o considerava

134

um cobarde e um assassino, e, se não o quis matar, pelo menos tentou que morresse de

fome para se esquecer da sua existência. Mas viveu. Pelo contrário, o pai ia-se abaixo com

o passar do tempo. E vocês e eu e todos sabemos que o tempo é mais pesado que a mais

pesada carga que um homem pode suportar. Assim, embora ele mantivesse os seus

rancores, foi-lhe minguando o ódio, até transformar as suas duas vidas numa solidão viva.

Eu procurava-os pouco. Soube, porque me contaram, que o meu afilhado tocava flauta

enquanto o pai cozia a bebedeira. Não se falavam nem se olhavam; mas mesmo depois de

anoitecer ouvia-se em todo o Corazón de Maria a música da flauta; e às vezes continuava a

ouvir-se muito para lá da meia-noite.

Bom, para não alongar a conversa, chegaram uns revoltosos a Corazón de Maria. Quase não

fizeram barulho, porque as ruas estavam cheias de erva; assim a sua passagem foi em

silêncio, embora todos viessem montados em bestas. Dizem que aquilo estava tão calmo e

que eles cruzaram a povoação tão sem armar alvoroço, que se ouvia o grito do mergulhão e

o canto dos grilos; e que mais que eles, o que mais se ouvia era a musiquinha de uma flauta

que se lhes juntou ao passarem em frente da casa dos Eremites, e que se foi afastando, indo-

se, até desaparecer.

Sabe Deus que género de revoltosos seriam e que estariam fazendo. O certo, e isto também

me contaram, foi que, poucos dias depois, passaram igualmente sem se deterem, as tropas

do governo. E que nessa ocasião o Euremio velho, que já estava um pouco achacado, lhes

pediu que o levassem. Parece que contou que tinha contas a acertar com um daqueles

bandidos que eles perseguiam. E sim, aceitaram-no. Saiu de sua casa a cavalo e com a

espingarda na mão, galopando para alcançar as tropas. Era alto, como já lhes disse, e mais

que um homem parecia uma bandeirola, por causa de ter a cabeça ao léu, pois nem se

preocupou em ir buscar o chapéu.

E durante uns dias não se soube de nada. Tudo continuou na mesma tranquilidade. A mim

tocou-me chegar então. Vinha

135

de «baixo», onde também nada constava. Até que de repente começou a chegar gente.

Hortelões, sabem vocês: uns fulanos que passam parte da sua vida em terras arrendadas nas

ladeiras dos montes, e que se descem às aldeias é à procura de alguma coisa ou porque

alguma coisa os preocupa. Agora tinha-os feito descer o susto. Chegaram dizendo que lá

nos cerros havia luta já há vários dias. E que por ali vinham já uns quase a chegar.

Foi-se a tarde sem vermos passar ninguém. Chegou a noite. Alguns de nós pensámos que

talvez tivessem tomado outro caminho. Esperámos atrás das portas fechadas. Deram as

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nove e as dez no relógio da igreja. E quase com o toque do sino ouviu-se o mugido do

corno. Depois o trote dos cavalos. Então eu espreitei para ver quem eram. E vi um montão

de esfarrapados montados em magros cavalos; uns destilando sangue, e outros a dormir,

porque cabeceavam. Passaram em fila.

Quando já parecia que tinha terminado o desfile de figuras escuras que mal se distinguiam

da noite, começou a ouvir-se, primeiro muito pouco, e depois mais claramente, a música de

uma flauta. E, pouco depois, vi chegar o meu afilhado Euremio, montado no cavalo do meu

compadre Euremio Cedillo. Vinha na garupa, com a mão esquerda tocando firme a sua

flauta, enquanto que com a direita segurava, atravessado sobre a sela, o corpo do seu pai

morto.

137

ANACLETO MORONES

Velhas, filhas do demónio! Vi-as chegar todas juntas, em procissão. Vestidas de negro,

suando como mulas sob os raios do sol. Vi-as de longe como se fosse um rebanho

levantando pó. As suas caras já cinzentas de pó. Negras todas elas. Vinham pelo caminho

de Amula, cantando entre rezas, entre o calor, com os seus escapulários negros, grandalhões

e ruços, sobre os quais caía em grandes gotas o suor das suas caras.

Vi-as chegar e escondi-me. Sabia o que andavam fazendo e a quem procuravam. Por isso

apressei-me a esconder-me no fundo do curral, correndo já com as calças na mão. Mas elas

entraram e deram comigo. Disseram: «Ave Maria Puríssima!»

Eu estava acocorado numa pedra, sem fazer nada, só ali sentado com as calças caídas, para

que elas me vissem assim e não se aproximassem. Mas só disseram: «Ave Maria

Puríssima!» E foram-se aproximando mais.

Velhas descaradas! Deviam ter vergonha! Persignaram-se e aproximaram-se até ficarem

junto de mim, todas juntas, apertadas como um molho, gotejando suor e com os cabelos

colados à cara como se tivesse chuviscado.

- Vimos ver-te a ti, Lucas Lucatero. Vimos desde Amula, só para te ver. Aqui perto

disseram-nos que estavas em tua casa; mas nunca imaginámos que estivesses tão cá para

dentro; não neste lugar nem nestas necessidades. Pensámos que tinhas

138

entrado para dar de comer às galinhas, por isso entrámos. Vimos ver-te.

Essas velhas! Velhas e feias, como pasmadas de verem um macho!

- Digam-me o que querem! - disse-lhes, enquanto enfiava as calças e elas tapavam os olhos

para não verem.

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- Trazemos uma incumbência. Procurámos-te em São Santiago e em Santa Inês, mas

informaram-nos que já não vivias ali, que te tinhas mudado para este rancho. E para cá

viemos. Somos de Amula.

Eu já sabia de onde eram e quem eram; até podia ter-lhes recitado os nomes, mas fiz-me

parvo.

- Muito bem, Lucas Lucatero, por fim te encontrámos, graças a Deus.

Convidei-as a entrar no corredor e dei-lhes umas cadeiras para que se sentassem. Perguntei-

lhes se tinham fome ou se queriam nem que fosse um copo de água para molhar os lábios.

Elas sentaram-se, secando o suor com os seus escapulários.

- Não, obrigada - disseram. - Não vimos para te dar incómodos. Trazemos-te uma

incumbência. Tu conheces-me, não é verdade, Lucas Lucatero? - perguntou-me uma delas.

- Alguma coisa. - disse-lhe - Parece que já te vi nalgum sítio. Não és, por acaso, Pancha

Fregoso, a que se deixou roubar por Homobono Ramos?

- Sou, sim, mas ninguém me roubou. Isso foram só difamações. Perdemo-nos os dois

procurando cactos. Sou congregante e eu não teria permitido de maneira nenhuma...

- O quê, Pancha?

- Ah!, como és maldoso, Lucas. Ainda não perdeste a mania de andar dizendo mal das

pessoas. Mas, já que me conheces, tenho de dizer-te duas palavras, para te comunicar ao

que vimos.

- Não querem nem sequer um copo de água? - voltei a perguntar-lhes.

- Não te incomodes. Mas já que nos rogas tanto, não te vamos fazer ofensa.

139

Trouxe-lhes um jarro de água de murta e beberam-na. Depois trouxe-lhes outra e voltaram a

bebê-la. Então pus-lhes na frente um cântaro com água do rio. Deixaram-no ali, à espera,

para dentro em pouco, porque, segundo elas, ia entrar-lhes muita sede quando começassem

a fazer a digestão.

Dez mulheres, sentadas em fileira, com os seus negros vestidos, sujos de terra. As filhas de

Ponciano, de Emiliano, de Crescenciano, de Toríbio, o da taberna, e de Anastásio, o

cabeleireiro.

Velhas intriguistas! Nem uma sequer escapava. Todas para cima dos cinquenta. Murchas

como floripôndios retorcidos e secos. Nada por onde escolher.

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- E que procuram por aqui?

- Vimos ver-te.

- Já me viram. Estou bem. Não se preocupem comigo.

- Vieste para muito longe. Para este lugar escondido. Sem domicílio nem quem saiba de ti.

Deu-nos muito trabalho dar contigo depois de muito perguntar.

- Não me escondo. Aqui vivo contente, sem que ninguém me incomode. E que missão

trazem, se é que se pode saber? perguntei-lhes.

- Pois é o seguinte... Mas não te incomodes a dar-nos de comer. Já comemos em casa da

Torcazinha. Ali nos deram de comer a todas. Deixa de andar de um lado para o outro.

Senta-te aqui à nossa frente para te vermos e para que nos ouças.

Eu não conseguia estar descansado. Queria ir outra vez ao curral. Ouvia o cacarejo das

galinhas e tinha vontade de ir recolher os ovos antes que os coelhos os comessem.

- Vou buscar os ovos - disse-lhes.

- A sério que já comemos. Não te incomodes connosco.

- Tenho ali dois coelhos à solta que comem os ovos. Agora mesmo regresso.

E fui para o curral.

Tinha pensado não regressar. Sair pela porta que dá para o cerro e deixar à espera aquela

fileira de velhas canejas.

Dei uma olhadela ao montão de pedras que tinha posto

140

numa esquina e achei que parecia uma sepultura. Então pus-me a espalhá-las, atirando-as

para todo o lado, fazendo um regueiro aqui e outro acolá. Eram pedras de rio, redondas, e

podia aventá-las para longe. Velhas de mil judas! Tinham-me posto a trabalhar. Não sei por

que se lhes meteu na cabeça vir.

Deixei a tarefa e regressei.

Ofereci-lhes os ovos.

- Mataste os coelhos? Vimos-te atirar-lhes pedradas. Guardaremos os ovos para daqui a

bocado. Não era preciso incomodares-te.

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- Aí no vosso colo podem chocar-se, é melhor deixarem-nos cá fora.

- Ah, como tu és!, Lucas Lucatero. Continuas a ser um fala-barato. Até parece que estamos

assim tão quentes.

- Disso não sei nada. Mas faz muito calor cá fora.

O que eu queria era pô-las à vontade. Encaminhá-las noutra direcção, enquanto procurava

uma maneira de as pôr fora da minha casa e que não ficassem com vontade de voltar. Mas

não me lembrava de nada.

Sabia que andavam à minha procura desde Janeiro, pouco depois do desaparecimento de

Anacleto Morones. Não faltou quem me avisasse de que as velhas da Congregação de

Amula andavam atrás de mim. Eram as únicas que poderiam ter algum interesse em

Anacleto Morones.

E agora ali as tinha.

Podia continuar a dar-lhes conversa ou granjeando-as de qualquer maneira até que se

fizesse noite e tivessem que abalar. Não se teriam arriscado a passar a noite em minha casa.

Porque houve um momento em que se falou disso: quando a filha de Ponciano disse que

queriam acabar depressa com o assunto para voltar ainda cedo a Amula. Foi quando eu lhes

fiz ver que não se preocupassem com isso, que nem que fosse no chão havia ali sítio e

esteiras para todas. Todas disseram que isso nem pensar, o que é que diriam as pessoas

quando soubessem que elas tinham passado a noite sozinhas em minha casa e comigo lá

dentro. Nem pensar.

141

A questão, pois, era fazer-lhes longa a conversa, até que se fizesse noite, tirando-lhes a ideia

que lhes fervia na cabeça. Perguntei a uma delas:

- E o teu marido o que diz?

- Eu não tenho marido, Lucas. Não te lembras que fui tua noiva? Esperei-te e esperei-te e

fiquei esperando. Depois soube que tinhas casado. E nessa altura já ninguém me queria.

- Logo eu? O que se passou foi que se atravessaram outras preocupações que me tiveram

muito ocupado; mas ainda é tempo.

- Mas estás casado, Lucas, e nem mais nem menos que com a filha do Santo Menino. Para

que me inquietas outra vez? Eu até já me esqueci de ti.

- Mas eu não. Como dizes que te chamavas?

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- Nieves... Continuo a chamar-me Nieves. Nieves Garcia. E não me faças chorar, Lucas

Lucatero. Só de me lembrar das tuas melosas promessas me dá raiva.

- Nieves... Nieves. Como é que não me hei-de lembrar de ti. És daquilo que não se

esquece... Eras suavezinha. Lembro-me. Ainda te sinto aqui nos meus braços. Suavezinha.

Branda. O vestido com que saías para me ver cheirava a cânfora. E arrimavas-te muito a

mim. Colavas-te tanto que quase te sentia metida nos meus ossos. Lembro-me.

- Não continues a dizer coisas, Lucas. Confessei-me ontem e tu estás a despertar-me maus

pensamentos e estás a pôr-me o pecado em cima.

- Lembro-me que te beijava por trás dos joelhos. E que tu dizias que ali não, porque tinhas

cócegas. Ainda tens covinhas na parte de trás dos joelhos?

- É melhor calares-te, Lucas Lucatero. Deus nunca te perdoará o que fizeste comigo. Vais

pagar caro.

- Fiz alguma coisa de mal contigo? Por acaso tratei-te mal?

- Tive que o tirar. E não me faças contar isso aqui na frente das pessoas. Mas para que

saibas: tive que o tirar. Era uma coisa assim parecida com um pedaço de carne seca. E

para que é que eu havia de o querer, se o seu pai não era mais que um sem-vergonha?

142

- com que então aconteceu isso? Não sabia de nada. Não querem mais uma pinguinha de

água de murta? Não demoro nada a fazê-la. Esperem um bocadinho.

E fui outra vez para o curral cortar murtas. E ali me entretive todo o tempo que pude,

enquanto abalava o mau humor àquela mulher.

Quando regressei já tinha abalado.

- Foi-se?

- Sim, foi. Fizeste-a chorar.

- Só queria falar com ela, só para passar o tempo. Já repararam como tarda a chover? Lá em

Amula já deve ter chovido, não?

- Sim, anteontem caiu um aguaceiro.

- Não há dúvida de que aquele é um bom lugar. Chove bem e vive-se bem. Aqui nem as

nuvens aparecem. Ainda é o Rogaciano o presidente municipal?

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- Sim, ainda.

- É bom homem, o Rogaciano.

- Não. É um maldoso.

- Pode ser que tenham razão. E que me contam do Edelmiro, ainda tem a botica fechada?

- O Edelmiro morreu. Fez bem em morrer, embora me fique mal dizê-lo; mas era outro

maldoso. Foi dos que disseram infâmias do Menino Anacleto. Acusou-o de agoureiro e de

bruxo e de engana-tolos. De tudo isso andou falando em todo o lado. Mas as pessoas não

lhe fizeram caso e Deus castigou-o. Morreu de raiva como os rouxinóis.

- Confiemos em Deus que ele esteja no Inferno.

- E que os diabos não se cansem de lhe deitar lenha.

- E o mesmo para o Lírio López, o juiz, que se pôs do seu lado e mandou o Santo Menino

para a cadeia.

Agora eram elas que falavam. Deixei-as dizer tudo o que quisessem. Enquanto não se

metessem comigo, corria tudo bem. Mas de repente lembraram-se de me perguntar:

- Queres ir connosco?

- Onde?

- A Amula. Por isso viemos. Para te levar.

143

Por um momento entrou-me vontade de voltar ao curral. Sair pela porta que dá para o cerro

e desaparecer. Velhas infelizes!

- E que diacho vou eu fazer a Amula?

- Queremos que nos acompanhes nas nossas súplicas. Abrimos, todas as congregantes do

Menino Anacleto, uma novena de preces para pedir que o canonizem. Tu és seu genro e

necessitamos de ti para que sirvas de testemunha. O senhor cura encomendou-nos que

levássemos alguém que tivesse lidado de perto com ele e que o tivesse conhecido tempos

atrás, antes que se fizesse famoso pelos seus milagres. E ninguém melhor que tu, que

viveste a seu lado e podes assinalar melhor que ninguém as obras de misericórdia que fez.

Por isso precisamos de ti, para nos acompanhares nesta campanha.

Velhas intriguistas! Podiam tê-lo dito antes.

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- Não posso ir. - disse-lhes - Não tenho quem me trate da casa.

- Vão ficar aqui duas raparigas para isso, pensámos nisso. Além disso está a tua mulher.

- Já não tenho mulher.

- Logo a tua? A filha do Menino Anacleto?

- Já abalou. Expulsei-a.

- Mas isso não pode ser, Lucas Lucatero. A pobrezinha deve andar sofrendo. Tão boa que

era. E tão jovem. E tão bonita. Para onde a mandaste, Lucas? Conformamo-nos com a ideia

de que a terás metido no convento das Arrependidas.

- Não a meti em lado nenhum. Expulsei-a. E tenho a certeza de que não está nas

Arrependidas; gostava muito da bulha e do alvoroço. Deve andar por esses caminhos,

desabotoando calças.

- Não acreditamos em ti, Lucas, nem um bocadinho. Se calhar está aqui, fechada nalgum

quarto desta casa rezando as suas orações. Tu sempre foste muito mentiroso e até

levantavas calúnias. Lembra-te, Lucas, das pobres filhas do Hermelíndo, que até

tiveram que ir para El Grullo porque as pessoas lhes assobiavam a canção «As meretrizes»

cada vez que assomavam à rua, e só porque tu inventaste boatos. Não se pode acreditar em

nada do que tu dizes, Lucas Lucatero.

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- Então não é necessário que eu vá a Amula.

- Confessas-te primeiro e fica tudo resolvido. Há quanto tempo não te confessas?

- Uh!, há quinze anos. Desde que os cristeros me iam fuzilar. Encostaram-me uma carabina

às costas e especaram-me na frente do padre e ali disse até o que não tinha feito. Então

confessei-me até por adiantado.

- Se não fosse o facto de seres genro do Santo Menino, não te viríamos buscar, quanto mais

pedir-te alguma coisa. Sempre foste um diabo, Lucas Lucatero.

- Por alguma coisa fui ajudante de Anacleto Morones. Ele sim que era o demónio vivo.

- Não blasfemes.

- É que vocês não o conheceram.

- Conhecemo-lo como santo.

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- Mas não como santeiro.

- O que é que estás para aí a dizer, Lucas?

- Isso vocês não sabem; mas ele antes vendia santos. Nas feiras. Na porta das igrejas. E eu

carregava-lhe as imagens.

«Por ali andávamos os dois, um atrás do outro, de aldeia em aldeia. Ele à frente e eu

carregando-lhe as imagens com as novenas de São Pantaleão, de São Ambrósio e de São

Pascual, e pesavam pelo menos três arrobas.

«Um dia encontrámos uns peregrinos. O Anacleto estava ajoelhado em cima de um

formigueiro, mostrando-me como, mordendo a língua, as formigas não picam. Então

passaram os peregrinos. Pararam para ver aquela curiosidade. Perguntaram: «Como podes

estar em cima do formigueiro e as formigas não te picarem?»

«Então ele pôs os braços em cruz e começou a dizer que acabava de chegar de Roma, de

onde trazia uma mensagem e era portador de uma lasca da Santa Cruz onde Cristo foi

crucificado.

«Eles levaram-no dali nos seus braços. Levaram-no em andas até Amula. E ali foi o nunca

visto; prostravam-se à frente dele e pediam-lhe milagres.

145

«Isso foi o princípio. E eu vivia de boca aberta, vendo-o adular aquele montão de peregrinos

que o iam ver.»

- És um fala-barato e ainda por cima blasfemo. Quem eras tu antes de o conheceres? Um

guardador de porcos. E ele fez-te rico. Deu-te tudo o que tens. E nem assim te dispões a

falar bem dele. Desagradecido.

- Agradeço-lhe que me tenha matado a fome, mas isso não impede que ele fosse o diabo

vivo. Continua a sê-lo, esteja onde estiver.

- Está no Céu. No meio dos anjos. É aí que está por mais que te custe.

- Eu sabia que estava na cadeia.

- Isso foi há muito tempo. Fugiu de lá. Desapareceu sem deixar rasto. Agora está no céu em

corpo e alma presentes. E de lá nos abençoa. Raparigas: ajoelhem-se! Rezemos o

«Penitentes somos, Senhor», Para que o Santo Menino interceda por nós.

E aquelas velhas ajoelharam-se, beijando a cada Padre nosso o escapulário onde estava

bordado o retrato de Anacleto Morones.

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Eram três da tarde.

Aproveitei esse bocadinho para me meter na cozinha e comer uns tacos de feijão. Quando

saí já só lá estavam cinco mulheres.

- O que aconteceu às outras? - perguntei-lhes.

E a Pancha, mexendo os quatro pelos que tinha no bigode, disse-me:

- Abalaram. Não querem ter relações contigo.

- Melhor. Quanto menos burros mais carolos. Querem mais água de murta?

Uma delas, a Filomena, que tinha estado sempre calada e a quem com maldade chamavam

a Morta, encavalitou-se em cima de um dos meus vasos e, metendo os dedos à boca, deitou

fora toda a água de murta que tinha bebido, misturada com pedaços de torresmos e grãos de

esponjeiras:

- Eu não quero nem sequer a tua água de murta, blasfemo. Não quero nada de ti.

146

E pôs em cima da cadeira o ovo que eu lhe tinha oferecido.

- Nem quero os teus ovos! É melhor ir-me embora. Agora só ficavam quatro.

- A mim também me está a dar vontade de vomitar disse-me a Pancha - Mas aguento-me.

Temos que te levar a Amula seja como for.

«És o único que pode falar da santidade do Santo Menino. Ele há-de amolecer-te a alma. Já

temos a sua imagem posta na igreja e não seria justo pô-lo na rua por culpa tua».

- Procurem outro. Eu não quero ter vela nesse enterro.

- Tu foste quase seu filho. Herdaste o fruto da sua santidade. Em ti pôs ele os seus olhos

para se perpetuar. Deu-te a filha.

- Sim, mas deu-ma já perpetuada.

- Valha-me Deus, as coisas que dizes, Lucas Lucatero.

- Assim foi, deu-ma carregada de pelo menos quatro meses.

- Mas cheirava a santidade.

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- Cheirava à pura pestilência. Deu-lhe para mostrar a barriga a todos os que paravam à sua

frente, só para que vissem que era de carne. Mostrava-lhes a pança crescida, arroxeada pelo

inchaço do filho que tinha lá dentro. E eles riam-se. Achavam graça. Era uma sem-

vergonha. Era assim a filha de Anacleto Morones.

- ímpio. Não és tu que dizes essas coisas. Vamos oferecer-te um escapulário para que deites

fora o demónio.

-... Abalou com um deles, que dizia que a amava. Só lhe disse: «Eu arrisco-me a ser o pai

do teu filho.» E ela abalou com ele.

- Era fruto do Santo Menino. Uma menina. E tu conseguiste-a de graça. Tu foste o dono

dessa riqueza nascida da santidade.

- Mentiras!

- Que dizes?

- Dentro da filha de Anacleto Morones estava o filho de Anacleto Morones.

- Isso foi o que tu inventaste para lhe imputar coisas más. Sempre foste um inventor.

147

- Sim? E que me dizem das outras. Deixou sem virgens esta parte do mundo, pois sempre

estava pedindo que uma donzela lhe velasse o sono.

- Isso fazia-o por pureza. Para não se sujar com o pecado. Queria rodear-se de inocência

para não sujar a sua alma.

- Isso dizem vocês porque ele não vos chamou.

- A mim chamou-me - disse uma a quem chamavam Melquíades. - Eu velei-lhe o sono.

- E o que é que aconteceu?

- Nada. Só que as suas mãos milagrosas me aconchegaram nessa hora em que se sente a

chegada do frio. E dei-lhe graças pelo calor do seu corpo; mais nada.

- É que já estavas velha. Ele gostava delas tenras; a quebrarem-se-lhes os ossinhos; Gostava

de ouvi-los ranger como se fossem cascas de amendoim.

- És um ateu maldito, Lucas Lucatero. Um dos piores. Agora falava a Órfã, a do choro

eterno. A velha mais velha de todas. Tinha lágrimas nos olhos e tremiam-lhe as mãos:

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- Eu sou órfã e ele aliviou-me da minha orfandade; voltei a encontrar o meu pai e a minha

mãe nele. Passou a noite acariciando-me para me diminuir a pena.

E escorriam-lhe as lágrimas pela cara.

- Então não tens por que chorar - disse-lhe.

- É que morreram os meus pais. E deixaram-me só. Órfã nesta idade em que é tão difícil

encontrar um apoio. A única noite feliz passei-a com o Menino Anacleto, entre os seus

braços consoladores. E agora tu falas mal dele.

- Era um santo

- Tão bom como não há.

- Esperávamos que tu continuasses a sua obra. Herdaste tudo.

- Herdei um saco de vícios de mil judas. Uma velha louca. Não tão velha como vocês; mas

bastante louca. A única coisa boa é que abalou. Eu mesmo lhe abri a porta.

- Herege! Inventas verdadeiras heresias.

Nesse momento já só restavam duas velhas. As outras tinham ido abalando uma atrás da

outra, benzendo-se e

148

recuando e com a promessa de voltarem com os exorcismos.

- Não me vais negar que o Menino Anacleto era milagroso - disse a filha do Anastásio. -

Isso não me podes negar.

- Fazer filhos não é nenhum milagre. Esse era o seu ponto forte.

- Ao meu marido, curou-o da sífilis.

- Não sabia que tinhas marido. Não és a filha do Anastásio, o cabeleireiro? A filha do

Tacho é solteira, pelo que sei.

- Sou solteira, mas tenho marido. Uma coisa é ser donzela e outra coisa é ser solteira. Tu

sabes. E eu não sou donzela, mas sou solteira.

- com a tua idade a fazeres essas coisas, Micaela.

- Tive que fazer. O que é que ganhava com viver como donzela? Sou mulher. E nasce-se

para dar o que a vida nos dá.

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- Falas com as mesmas palavras de Anacleto Morones.

- Sim, foi ele que me aconselhou que o fizesse, para me curar do hepático. E juntei-me com

um homem. Isso de ter cinquenta anos e ser virgem é um pecado.

- Foi o que te disse Anacleto Morones.

- Ele mo disse, sim. Mas viemos para outra coisa; para que vás connosco e certifiques que

ele foi santo.

- E porque não eu?

- Tu não fizeste nenhum milagre. Ele curou o meu marido. Eu sou testemunha. Por acaso tu

curaste alguém da sífilis?

- Não, nem a conheço.

- É parecida com a gangrena. Ele pôs-se roxo e com o corpo cheio de frieiras. Já não

dormia. Dizia que via tudo corado como se estivesse a espreitar à porta do Inferno. E depois

sentia ardores que o faziam saltar de dor. Então fomos ver o Menino Anacleto e ele curou-

o. Queimou-o com um carriço a arder e besuntou-lhe saliva nas feridas e, truz, acabaram-se

os seus males. Diz-me se isso não foi um milagre.

- Deve ter tido sarampo. A mim também mo curaram com saliva quando era pequenino.

- É o que eu digo. És um malvado ateu.

- Resta-me o consolo de que o Anacleto Morones era pior que eu.

149

- Ele tratou-te como se fosses seu filho. E ainda te atreves... É melhor não te continuar a

ouvir. Vou-me embora. Tu ficas, Pancha?

- Ficarei mais um bocadinho. Darei a última luta eu sozinha.

- Ouve, Francisca, Agora que se foram todas, vais ficar a dormir comigo, não é verdade?

- Deus me livre. Que pensariam as pessoas? O que eu quero é convencer-te.

- Pois então vamo-nos convencendo os dois. Ao fim e ao cabo o que é que tu perdes? Já

estás bem velha, para que alguém se ocupe de ti, ou te faça o favor.

- Mas depois vêm os boatos. Depois vão pensar mal.

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- Que pensem o que quiserem. Qual é o problema? De qualquer maneira Pancha te chamas.

- Bom, ficarei contigo; mas só até que amanheça. E só se me prometeres que chegaremos

juntos a Amula, para eu lhes dizer que passei a noite rogando-te e rogando-te. Se não, como

faço?

- Está bem. Mas antes corta esses pêlos que tens nos bigodes. Vou-te trazer a tesoura.

- Como zombas de mim, Lucas Lucatero. Passas a vida a olhar os meus defeitos. Deixa os

meus bigodes em paz. Assim não desconfiarão.

- Bom, como tu quiseres.

Quando escureceu, ela ajudou-me a arranjar folhagem para as galinhas e a juntar outra vez

as pedras que eu tinha espalhado pelo curral, amontoando-as no canto onde tinham estado

antes.

Nem desconfiou de que ali estava enterrado Anacleto Morones. Nem que tinha morrido no

mesmo dia em que fugiu da cadeia e veio aqui reclamar-me que lhe devolvesse as suas

propriedades. Chegou dizendo:

- Vende tudo e dá-me o dinheiro, porque preciso de fazer

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uma viagem ao norte. Escrever-te-ei de lá e voltaremos a fazer negócios os dois juntos.

- Por que não levas a tua filha? - disse-lhe eu - É a única coisa que me sobra de tudo o que

tenho e que dizes que é teu. Até a mim me enredaste com as tuas más manhas.

- Vocês vão depois, quando eu vos avisar do meu paradeiro. Lá faremos contas.

- Seria muito melhor que as fizéssemos agora. Para ficarmos quites de uma vez por todas.

- Não estou agora para brincadeiras - disse-me. - Dá-me o que é meu. Quanto dinheiro tens

guardado?

- Alguma coisa tenho, mas não to vou dar. Passei as de Caim com a sem-vergonha da tua

filha. Dá-te por bem pago com que eu a mantenha.

Entrou-lhe a raiva. Batia com os pés no chão e tinha pressa de se ir embora...

«Que descanses em paz, Anacleto Morones!», disse-lhe quando o enterrei, e de cada vez

que eu ia ao rio carregando pedras para lhe atirar para cima, também dizia: «Não sairás

daqui mesmo que uses todas as tuas manhas.»

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E agora a Pancha ajudava-me a pôr-lhe outra vez o peso das pedras em cima, sem

desconfiar que ali debaixo estava o Anacleto e que eu fazia aquilo com medo que ele saísse

da sua sepultura e viesse outra vez fazer-me guerra. De tão manhoso que era, não duvidava

que encontrasse maneira de ressuscitar e sair dali.

- Deita-lhe mais pedras, Pancha. Amontoa-as neste canto, não gosto de ver o meu curral

cheio de pedras.

Depois ela disse-me, já de madrugada:

- És uma calamidade, Lucas Lucatero. Não és nada carinhoso. Sabes quem é que era

carinhoso com as mulheres?

- Quem?

- O Menino Anacleto. Ele sim é que sabia fazer amor.

cavalo deferro

OBRAS PUBLICADAS

Dicionário Infernal, Collin de Plancy

Tradução, introdução e notas de Ana Hatherly

Poemas em prosa, Oscar Wilde

Tradução de Possidónio Cachapa

Introdução de Urbano Tavares Rodrigues

A senhora dos Açores, Romana Petri

Tradução de Margarida Periquito

Ontem, Agota Kristof

Tradução de Diogo Madre Deus

Contos de amor, loucura e morte, Horacio Quiroga

Tradução de Ana Santos

O pátio maldito, Ivo Andric

Tradução de Dejan e Lúcia Stankovic

Trold, vol. 1, Jonas Lie

Tradução de S. Wiberg Baginha

Militarmusik, de Wladimir Kaminer

Tradução de Nuno Batalha

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Uma esposa para o Sahib, Khushwant Singh

Tradução de Margarida Periquito

O matricídio e outras histórias, Géza Csáth

Selecção, introdução e tradução de Piroska Felkai

O demónio do movimento, Stefan Grabiiíski

Tradução de Maria José e Wojciech Charchalis

O vagabundo do Dharma

25 poemas de Han-Shan

Caligrafias de Li Kwok-Wing Tradução de Jacques Pimpaneau Versões poéticas de Ana

Hatherly

Os sete loucos, Robert Arlt

Tradução de Rui Lagartinho e Sofia Castro Rodrigues

PRÓXIMAS PUBLICAÇÕES

Nas ciganas - novelas completas de Mircea Eliade, vol. 1

Tradução de Anca Ferro

1,° Semestre de 2004

Herman, Lars Saabye Christensen

Tradução de Ingá Gullander

Histórias de um minuto, Istvan Õrkény

Selecção e tradução de Piroska Felkai

II Corbaccio, Giovanni Boccaccio

Tradução de Margarida Periquito

Marlboro Sarajevo, Miljenko Jergovic

Tradução de Arijana Medvedec

Alie case venie. Romana Petri

Tradução de Margarida Periquito

Trold, vol. 2, Jonas Lie

Tradução de S. Wiberg Baginha

Manuscrito encontrado em Saragoça, vol.1, Jan Potocki

Tradução de José Espadeiro Martins

Contos hieróglíficos, Horace Walpole

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Tradução de Nuno Batalha

Pedro Páramo, Juan Rulfo

Contos da selva, Horacio Quiroga

Excertos dos diários de Adão e Eva, Mark Twain

Tradução de Hugo Freitas Xavier

Hadji Murat, Leo Tolstoi

Little infamies, Panos Karnezis

2.*semestre de 2004

Sobre o Drina, a ponte, Ivo Andric

Tradução de Lúcia e Dejan Stankovic

Tsugumi, Banana Yoshimoto

The maze, Panos Karnezis

«lets start a publishing house

to hell with small literature we want something redblooded

lousy with puré

reeking with stark

and fearlessly obscene

but really clean

get what I raean

lets not spoil it

lets make it serious

something authentic and delirious

you know something genuine like a mark

in a toilet

graced with guts and gutted with grace»

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squeeze your nuts and open your face

[e.e.cummings, no thanks, 1935, adaptado por Diogo Madre Deus]

CONSELHO EDITORIAL

Alcinda Pinheiro de Sousa, Alexandre Melo, Ana Hatherly,

Ana Santos, César Charrua, Cid Valle Ferreira, Cláudio Delbianco,

Dejan Stankovic, Eunice Cabral, Eveline Cinthia Nóbrega Ponteies,

Louisa Rombouts, Manuel Folque Antunes, Margarida Periquito,

Maria João Branco, Miguel Gullander, Raul Henriques e Teresa Malafaia.