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X SEL – Seminário de Estudos Literários
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
A POESIA VISUAL COMO FERRAMENTA PARA O DISCURSO FICCIONAL HISTÓRICO: O
CASO DE NÓS QUE AQUI ESTAMOS POR VÓS ESPERAMOS
Ana Claudia Freitas Pantoja1 (Doutoranda – UEL/PR)
RESUMO: Neste artigo, busca-se aliar a compreensão dos pressupostos da Poesia Visual à análise dos elementos narrativos propostos no filme Nós que aqui estamos por vós esperamos, com o objetivo de verificar como o discurso ficcional em foco relaciona-se com a ficcionalização histórica. PALAVRAS-CHAVE: História; Cinema; Literatura; Poesia Visual.
Introdução
O premiado longa-metragem brasileiro Nós que aqui estamos por vós esperamos, de
Marcelo Masagão, foi apresentado pela primeira vez ao público em 1999, sob a incomum
classificação de “filme-memória” e com uma proposta ambiciosa: contar em 73 minutos a história
do século XX.
Montada exclusivamente a partir de imagens, legendas e sons – sem locução in off2 e
destituída de diálogos – a obra concretiza boa parte do projeto idealizado por Décio Pignatari,
Augusto e Haroldo de Campos, precursores da Poesia Concreta no Brasil, segundo os quais
elementos gráficos devem se relacionar com o texto verbal escrito para expandir as
possibilidades da palavra.
Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, a somatória do texto verbal (através
das legendas) e dos recursos imagéticos institui como protagonista do filme o homem comum,
anônimo e usualmente esquecido nas retrospectivas sobre o século XX, estratégia narrativa de
1 Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Londrina. Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal da Bahia 2 Locução in off ou off screen designa o artifício audiovisual de inserir apenas o áudio de um narrador responsável por conduzir a trama, informando aos espectadores detalhes sobre as ações ou personagens.
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valorização do cotidiano que se coaduna com os parâmetros historiográficos hobsbawmianos e
da micro-história.
Neste artigo, pretende-se delinear alguns exemplos específicos da poesia visual no
filme, verificando em que momentos o casamento entre palavra e imagem permite um tipo de
apreciação estética ímpar em se tratando de um discurso ficcional histórico. Para tanto, foi
especificada a sequência “Paranoia”, como recorte de análise.
1. Sobre o filme
Em 1999, quando realizadores do mundo todo apresentavam ou finalizavam obras
audiovisuais relativas ao fim do século XX (normalmente com o intuito de exibir um balanço geral
das perdas e ganhos acumulados no período), um filme chamou a atenção nos festivais
brasileiros e estrangeiros de que participou. Primeiro pela dificuldade de identificação do gênero
cinematográfico ao qual se filiava; segundo, pelo estilo pouco convencional de reunir e
apresentar os temas selecionados. O – a princípio – enigmático título Nós que aqui estamos por
vós esperamos revelou ao público uma obra que mescla eventos cruciais do último século com
pequenas biografias livremente criadas pelo produtor, roteirista, diretor e editor do filme, Marcelo
Masagão.
Centenas de planos selecionados em bancos de imagens de vários continentes,
originários de mais de 40 instituições, foram reunidas no filme, porém sem qualquer respeito pela
ordem cronológica original dos registros. Fatos ocorridos em diferentes anos foram reunidos por
eixos temáticos (exemplo: a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a Guerra do Vietnã foram
tratadas conjuntamente), sem o auxílio de locução off-screen ou de depoimentos de
testemunhas. Em Nós que aqui estamos por vós esperamos, somente fotografias, imagens em
movimento, sons e legendas são utilizados na composição da trama.
Também verifica-se o desprezo pela trajetória de um herói singular na película.
Dezenas de homens e mulheres provenientes de diferentes países, décadas, graus de
reconhecimento público e classes sociais são exibidos. Na obra, cientistas recebem tanta
atenção quanto operários comuns, políticos ilustres, donas de casa anônimas e mais uma
miscelânea de personagens diversos.
Essa opção até poderia afastar o interesse do público, mais acostumado a
retrospectivas que contemplam figuras célebres, mas não foi o que ocorreu. Dentro e fora do
país, Nós que aqui estamos por vós esperamos teve grande receptividade de crítica e de
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público, com ótimo desempenho nos festivais de que participou. Conquistou 14 prêmios no total
e atraiu mais de 58 mil pessoas às salas de cinema com apenas duas cópias para exibição e
permanecendo oito meses em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro.
De maneira breve, pode-se destacar como principais atrativos da obra:
a) A inexistência de um protagonista aos moldes tradicionais. A personagem principal é o
homem comum, anônimo.
b) A adoção da montagem (técnica de junção de planos audiovisuais) como premissa do
filme, já que mais de 95% do conteúdo da obra são provenientes de bancos de imagens.
c) Ausência de locutor off-screen, diálogos ou depoimentos de testemunhas oculares. A
trama é construída somente a partir de imagens, sons e legendas.
d) Apesar da enorme gama de personagens e sub-temas tratados, há rejeição à
apresentação cronológica dos fatos. A reunião de eventos segue uma lógica conceitual.
e) Destaca-se o emprego de tecnologia digital no processo de edição.
f) Há a tentativa de reproduzir na própria forma do filme a velocidade, a dispersão, a
técnica e violência que marcaram o século XX.
g) Afirmação da obra como um filme-memória, em que a trama está mais voltada para a
verossimilhança do que para a verdade.
h) Exaltação da concisão como sistema expressivo.
Mas se Nós que aqui estamos por vós esperamos rejeita o tratamento historiográfico
convencional em sua trama, que tipo de reconstituição histórica está em voga no produto?
2. Sobre a aborgagem histórica proposta
O historiador marxista Eric Hobsbawm é nominalmente citado nos créditos finais do
filme como um dos “consultores espirituais” de Nós que aqui estamos por vós esperamos. Seu
livro, A era dos extremos, lançado em 1994, foi fundamental para a seleção de temas e formas
de abordagem dos eventos marcantes do século XX exibidos na tela.
Hobsbawm consolidou-se como um dos maiores historiadores da atualidade após
lançar uma trilogia sobre o século XIX composta por A era das revoluções, A era do capital e A
era dos impérios, volumes que ajudaram a criar uma base consistente para análise do período
posterior.
Obviamente, a duração de Nós que aqui estamos por vós esperamos frente à extensão
do trabalho de Hobsbawm impossibilitou que um amplo volume de assuntos presentes em A era
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dos extremos fosse abordado no filme. Mas pelo menos quatro das principais ideias-chave do
livro foram aproveitadas por Masagão. São elas:
2.1. A fixação de um período
De acordo com a periodização proposta por Hobsbawm, até 1913 o mundo ainda vivia
sob a égide das crenças desenvolvidas no século XIX; no outro oposto, já na década de 90 os
aspectos fundamentais do século XX deram lugar às características do século seguinte.
Masagão adotou o mesmo “calendário” em Nós que aqui estamos por vós esperamos.
2.2. A banalização da morte
Não há como pensar o século XX sem os grandes conflitos bélicos mundiais. Graças à
mortandade em massa, gerada pelos novos sistemas de ataques aéreos em que os soldados
não se deparam diretamente com os mortos e feridos, Hobsbawm destaca a impessoalidade
como a grande alavanca que tornou o número de vítimas apenas um dado estatístico e
banalizou as perdas humanas.
2.3. Expansão da influência estadunidense na economia global
Sob a inspiração direta da obra de Hobsbawm, Nós que aqui estamos por vós
esperamos reflete a preponderância norteamericana na economia global, especialmente no que
diz respeito ao comércio de bens simbólicos e na erosão de fronteiras geográficas para o
capitalismo.
2.4. Os extremismos
Nesse caso, Hobsbawm não se refere apenas ao extremismo decorrente da divisão
mundial entre dois sistemas, o capitalista e o socialista. Ele se refere também à polarização
decorrente da desigualdade na divisão de riquezas e do desenvolvimento tecnológico. O filme é
particularmente insistente na difusão dessa ideia.
2.5. A micro-história
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Mas nenhuma das proposições de Hobsbawn é tão cara ao filme quanto a de outros
historiadores que pregam a importância da valorização da micro-história.
Em detrimento das figuras de destaque no século XX, Marcelo Masagão prefere
mostrar breves recortes biográficos, aparentemente compostos por informações superficiais,
mas que compõem um rico painel sobre o período tratado. Trechos, em princípio, dispensáveis,
mas que, reunidos, descortinam tendências comportamentais significativas. De repente, a vida
do cidadão comum, endividado, com problemas familiares ou sem medo de altura ganha
destaque, não somente como mão-de-obra para grandes construções, mas também como
participante ativo do período histórico em que vive.
Para definir melhor o conjunto de aspectos ligados à vertente da micro-história, cita-se
James Amelang, que reuniu seis elementos recorrentes nas pesquisas realizadas sob esse
enfoque
1- A redução de escala de análise, vê-se também o “pequeno”. 2- A preferência pelo que é individual, próprio ao sujeito. 3- Ênfase na história das classes não abastadas. 4- A análise baseada no paradigma indiciário. 5- Uma aproximação “transparente” ao conhecimento histórico (o pesquisador deixa claro seu próprio papel nas pesquisas). 6- Preferência por tratar os temas de forma narrativa (AMELANG, 1995, p.310.):
Por sua vez, Luis González y González define a micro-história como sinônimo de
história regional, tratada qualitativamente e não de forma quantitativa (GONZÁLEZ, 1995, p. 37).
E assim homens e mulheres comuns que instalaram telégrafos, ergueram arranha-
céus, venderam sanduíches ou viraram bucha de canhão nos conflitos mundiais ganharam as
telas em Nós que aqui estamos por vós esperamos.
Mas é importante destacar que este não é um fenômeno novo no cinema. Na obra de
Sergei Eisenstein, nome que reconhecidamente inspirou Marcelo Masagão, já se podia falar no
homem comum como protagonista e na criação do chamado massa-herói.
Mencionaram-se as características gerais do filme e os pressupostos históricos que o
norteiam, mas, observando a obra sob outro prisma, é possível abordá-la também sob a
perspectiva da Poesia Visual?
3. A poesia virtual
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Philadelpho Menezes, além de poeta e promotor cultural, foi muito feliz em reunir
definições gerais de Poesial Visual encontradas nas obras de diversos autores, como Décio
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos. A partir do apanhado realizado por Menezes, pode-se
definir esta modalidade como um tipo de poesia que migra para “outros espaços, ganhou asas e
voou para fora do modelo tradicional que conhecemos: o texto escrito em verso” (MENEZES,
1998, p. 07) ou ainda “toda espécie de poesia ou texto que utilize elementos gráficos para se
somar às palavras, em qualquer época da história e em qualquer lugar” (MENEZES, 1998, p.
14).
Ainda o mesmo autor elenca como principais características da Poesia Visual :
a) A expansão das possibilidades da palavra a partir da integração com elementos gráficos (imagens em movimento, fotografias, números, gráficos, desenhos, etc.).
b) O questionamento da tradicional separação de linguagens (entre literatura e cinema, por exemplo).
c) A abolição das rimas, com a consequente rompimento da ideia do verso como unidade mínima do poema (MENEZES, 1998, p. 34-67).
É importante destacar ainda que os próprios poetas visuais adotaram vários artifícios
da linguagem cinematográfica em suas produções, em especial a montagem. Eles partiram da
ideia de que, nos poemas visuais, as palavras – tal como as imagens – combinam-se por
aproximação e por associação, já que “quando duas imagens são colocadas lado a lado (no
caso do filme, uma na sequência da outra), elas dizem uma terceira coisa, mais do que as duas
diziam isoladamente” (MENEZES, 1998, p. 93).
Considerando que Nós que aqui estamos por vós esperamos se utiliza explicitamente
do texto verbal escrito, explorando o aspecto plástico da palavra, aliado ao fato de que é uma
obra essencialmente vinculada à montagem, é quase natural considerá-lo como um exemplo
evidente de Poesia Visual.
Mas para traduzir essas ideias mais claramente, associando-as aos aspectos
historiográficos, vejamos em detalhes uma das sequências do filme.
4. Análise da sequência paranoia
O trecho selecionado é um dos poucos momentos do filme que não têm como herói o
homem anônimo, entretanto, tampouco o espectador se depara com um protagonista aos
moldes hollywoodianos. Personagens históricos conhecidos são, literalmente desconstruídos aos
olhos do público. Além disso, a forma de utilização dos recursos gráficos torna a sequência ideal
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para a compreensão da Poesia Visual, além de representar uma crítica ácida à História do
Século XX. Sua duração (restrita) também é adequada para fins de análise, já que artigos
acadêmicos requerem concisão.
A sequência Paranoia inicia-se exibindo uma superfície cinzenta e rugosa, onde é
possível ler o número 287 gravado. Em seguida, são exibidos os pronomes:
eu, tu, nós, vós, eles
O último pronome (“eles”), no entanto, é apresentado em letras bem maiores e durante
mais tempo que os demais, de forma a dar a impressão de sobrepujá-los.
A música é sombria, composta por notas graves.
O início da sequência Paranoia é marcado pela exposição – e exploração – intensa de
caracteres gráficos, no caso, os pronomes pessoais do caso reto. Como foi largamente utilizada
pelos poetas visuais concretistas, vê-se um tipo de fonte sem serifa (sem ornamentos) e de base
geométrica.
Verifica-se também que a diferença no tamanho das palavras funciona como elemento
expressivo. A maior dimensão do Eles cria um sentido de exclusão, de afastamento em relação a
eu, tu, ele, nós [...].
Claro que a música mórbida, tenebrosa, ajuda bastante na criação de uma atmosfera
opressiva. Mesmo assim, está em questão o caráter plástico da palavra, a forma como produtora
de sentido.
Deve-se destacar também que o Eles vira quase uma imagem, tanto que ele fica em
primeiro plano. Eu, tu, nós tornam-se segundo plano. Não há sentido somente nas palavras,
mas também na relação entre cenário de fundo e formas verbais. Por isso é possível pensar
naquilo que sobrepuja os demais. O artifício também permite compreender porque os poemas
visuais também são chamados de espaciais.
Depois, sobre um fundo negro, aparece a fotografia de um bebê na metade esquerda
da tela. Na outra metade surge o seguinte texto verbal:
Indolente, mal-humorado e austero Pouco dinheiro, poucos amigos, poucas mulheres. Nem cigarro, nem bebida. Bigode ralo.
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Foto e texto são substituídos pelo rosto de Hitler na tela.
A incongruência promovida pela montagem entre a descrição (obviamente de um
adulto) e a fotografia do bebê, seguidos da representação do chefe de Estado da Alemanha tem
como efeito estabelecer um intenso elo temporal entre as partes. Cada uma delas exprime um
período diferente da vida do ditador: primeiro a de uma criança que em nada inspira medo;
depois como um jovem introspectivo (“pouco dinheiro” não pode ser exatamente aplicado a um
líder político bem-sucedido) e depois Hitler tal como ele ficou conhecido posteriormente. O
espectador percebe que se trata de uma abordagem pessoal da figura histórica, em que
importantes traços da personalidade já eram esboçados desde antes da chegada ao poder
máximo da nação germânica. A montagem, nesse segmento, aposta na capacidade do
espectador em compreender os saltos e conexões temporais sugeridos.
A representação de Hitler, no entanto, não segue critérios de precisão histórica. A
fotografia é submetida ao efeito de distorção em ondas, através do qual, porções da imagem são
deslocadas vertical ou horizontalmente em ordem contínua.
Também em ondas e através de um efeito de semi-transparência, vemos a foto de
Stalin lentamente tomando o lugar de Hitler.
A imagem desaparece e surgem legendas em tamanho grande, preenchendo todo o
espaço da tela:
para noia
Em seguida as sílabas da palavra paranoia são repetidas continuamente, em tamanho
menor, porém ainda sobre toda a extensão da tela. Nos dois casos, a palavra paranoia (em
fontes opulentas ou mais discretas) ocupa toda a tela e percebe-se como essa opção se casa às
maravilhas com a doença, com o transtorno que toma conta do indivíduo e quase não deixa
espaços vazios.
Além disso, do ponto de vista gráfico, já não é possível mais saber como a paranoia
começa e nem onde ela termina. E, se olharmos ainda mais atentamente, dá para perceber que
além de repetida à exaustão, a palavra teve suas sílabas isoladas. Ora, a paranoia fascista era
baseada na segregação, na dita pureza ariana que não podia se misturar às raças degeneradas.
Logo, a proposta visual é de unir forma a conteúdo.
Voltam as imagens distorcidas de Hitler e Stalin, acompanhadas do texto:
[...] manifestação de desconfiança,
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conceito exagerado de si mesmo, e desenvolvimento progressivo de ideias de reivindicação perseguição e grandeza.
As figuras de Hitler e Stalin são cruzadas uma sobre a outra. A de Hitler esvanece,
permanece a de Stalin
Rude, provocador e cínico. Não era afeito à teoria A mãe queria que fosse padre Bigode avantajado.
Por analogia, o espectador compreende que a mesma operação posta em curso
durante a descrição de Hitler pode ser aplicada também à de Stalin. Assim como a
superexposição da palavra paranoia corresponde ao grau de importância que o distúrbio assume
frente a todas as outras características pessoais dos líderes políticos.
Vários outros rostos são exibidos após o de Stalin, enquanto as legendas compõem
uma lista tenebrosa:
Mao Tsé-Tung Mussolini Pol Pot Franco Salazar Idi Amin Ceausescu Ferdinand Marcos Pinochet Reza Pahlevi Videla Médici Mobutu
Enquanto os nomes de ditadores de diversos países se acumulam na tela, começam a
ser ouvidos sons radiofônicos. Várias vozes se misturam e é impossível identificar o(s) idioma(s)
empregados, até que apenas uma das fontes é destacada, um forte e inflamado discurso em
alemão.
Vemos a fotografia de dois homens trajando apenas sungas. Entre eles, surge a
incrustação de um fisiculturista exibindo os músculos peitorais. Os trejeitos da performance no
contexto de Nós que aqui estamos por vós esperamos, parecem exagerados e com traços de
comicidade.
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Eugene Sandow 3 1864 - 1917
Como na sequência anterior, aqui os efeitos sonoros têm papel fundamental na
condução da trama. Além da música funesta, o discurso proferido em alemão através do rádio
faz referência direta às táticas de propaganda nazista, envolvendo o espectador numa atmosfera
coercitiva. Mesmo que não seja apresentada qualquer tradução das falas, o filme aposta na
Enciclopédia do leitor para associar o idioma germânico e a inflexão severa dos líderes
militaristas alemães à exaltação desmedida que acarretou as atrocidades cometidas durante a
Segunda Mundial. Uma estratégia muito similar à empregada por Charles Chaplin em O Grande
Ditador, filme de 1940, em que um simples barbeiro é confundido com Hitler. Pressionado a
proferir palavras a uma multidão em expectativa, o impostor cria uma convincente imitação da
língua alemã, num tom inflamado muito similar ao do líder do Terceiro Reich, chegando ao ponto
de envergar o microfone somente pela força da entonação de voz. O ditador fictício se contorce,
esbraveja e engasga, sem que uma só palavra seja compreendida. O resultado pretendido é o
riso, bem diferente do que ocorre em Nós que aqui estamos por vós esperamos. O artifício,
contudo, possui o mesmo alicerce: utilizar o tom, o timbre, a altura, a clareza e o espaço sonoro
para identificar os personagens e o contexto em que se situam. Nesse segmento específico, os
recursos sonoplásticos criam um sentido de “Eles (os ditadores) versus razão”.
Ao reunir o idioma alemão, o som radiofônico, o tom dos discursos, as imagens
precedentes de Hitler, das faces distorcidas e dos fisiculturistas (utilizados como símbolos do
homem ideal), a montagem cria uma sensação geral de ameaça e loucura, especialmente por
lançar a ideia da não circunscrição temporal-espacial do distúrbio paranoico. Os ditadores
africanos, asiáticos, latino-americanos, árabes e europeus que se seguem a Hitler (encabeçados
3 Considerado um dos homens mais atraentes do mundo em sua época e ídolo do esporte durante quase três décadas na Europa e Estados Unidos, Eugene Sandow foi o precursor do fisiculturismo, sendo o responsável pela primeira competição oficial da prática, no ano de 1901, em Londres. Lançou uma revista própria em 1898, a Sandow Magazine, voltada para assuntos ligados ao preparo físico. Lançou diversos livros muito bem aceitos no mercado esportivo, inclusive uma obra que batizou internacionalmente o esporte que praticava: Bodybuilding. Abriu ginásios em várias cidades inglesas, criou diversos aparelhos de musculação e aperfeiçoou os já existentes, lançou cursos de ginástica por correspondência que disseminaram o fisiculturismo em diferentes países, foi pioneiro na defesa do ensino de Educação Física na rede de ensino, pesquisou tipos de exercícios que pudessem auxiliar no trabalho de parto e era grande incentivador da ginástica laboral, ou seja, a prática de exercícios físicos no ambiente de trabalho para que os operários tivessem melhor qualidade de vida e aumento no desempenho profissional. Ainda hoje a premiação máxima do fisiculturismo é um troféu que expõe Sandow erguendo uma barra com pesos. Por seu sucesso em demonstrações de força e beleza, por ter adquirido enorme popularidade, possuir nacionalidade alemã e apresentar traços “arianos” (pele branca, cabelos claros e olhos azuis) era considerado pelos nazistas como exemplo da superioridade da raça germânica sobre as demais, honraria duvidosa rejeitada pelo próprio Sandow.
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por Stalin) ajudam a desestruturar a crença de que os sonhos de genocídio, poder e
megalomania generalizados eram restritos à Alemanha da década de 40.
5. Considerações finais
Nós que aqui estamos por vós esperamos é um filme exatamente sobre a história do
século XX? Ao pé da letra e em sentido tradicional, não. Trata-se, na verdade, de uma visão
específica, bastante subjetiva e com alto teor poético sobre o período. Provavelmente, muito
mais próxima à ficção do que ao rigor documentarista. No entanto, eis uma obra ficcional bem
mais convincente que muitos produtos autointitulados como verídicos.
Isso porque se faz mais que um apanhado dos “fatos mais importantes do período”,
realiza-se, na verdade, a conversão do cotidiano em imagens, através da constituição de uma
crônica imagética do cidadão comum. A história converte-se da escala macroscópica para a
micro e, assim, faz-se mais a propaganda de um tipo de abordagem, que um documento verídico
propriamente dito. O filme não é um registro da micro-história, é uma grande divulgação desta,
de seus princípios e meandros, por isso mesmo é uma das ficções mais críveis que há, porque
capta tendências.
Por outro lado, é impossível deixar de notar que o apelo gráfico exercido pelo texto
verbal escrito (que potencializa a imagem e é por ela potencializado) possui considerável apelo
poético, na medida em que rompe com o sistema de expectativas acumuladas pelo espectador e
trabalha ativamente para o desenvolvimento de um sistema discursivo subversivo. A poesia
visual não é um conjunto de rimas exibido na tela, é uma forma de compreender a palavra como
indissociável da imagem, de propor o verbo como meio de comunicação visual e repleto de
potencialidades gráficas.
Por tudo isso, Nós que aqui estamos por vós esperamos não pode ser analisado
somente por um ponto de vista. Trata-se de uma obra ampla, complexa, que exige bem mais que
um simples artigo e, sem dúvida, é um marco da cinematografia nacional.
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