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A Polis Grega e a Criação da Democracia (em: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/castoriadis/democracy .htm ) Cornelius Castoriadis “Como é possível orientar-se na história e na política? Como julgar e escolher? Parto dessa questão política e é com este espírito que me pergunto: a democracia grega antiga apresenta algum interesse político para nós? As modernas discussões acerca da Grécia têm sido contaminadas por dois preconceitos opostos e simétricos – e, por conseguinte, equivalentes, num certo sentido. O primeiro, que é o que se encontra com mais freqüência nos últimos quatro ou cinco séculos, consiste em apresentar a Grécia como um modelo, um protótipo ou um paradigma eternos. 1[1] (E um dos modismos atuais é a sua exata inversão: a Grécia seria o antimodelo, o modelo negativo). O segundo preconceito, mais recente, se resume em uma ‘sociologização’ ou uma ‘etnologização’ completas do estudo da Grécia: as diferenças entre os gregos, os nhambiquaras e os bamileques são tomadas como sendo puramente descritivas. No plano formal, esta segunda atitude é, sem nenhuma dúvida, correta. Não apenas – é desnecessário dizê-lo – não há nem poderia haver a menor diferença de ‘valor humano’, de ‘mérito’ ou de ‘dignidade’ entre diferentes povos e culturas, como tampouco se poderia fazer a mesma objeção à aplicação, ao mundo grego, dos métodos – se os há – aplicados aos arunta ou aos babilônios”. Apesar disto, esta segunda abordagem deixa de lado uma consideração mínima mas ao mesmo tempo decisiva. A interrogação racional acerca das outras culturas, e a 1

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A Polis Grega e a Criação da Democracia

(em: http://www.fflch.usp.br/dh/heros/excerpta/castoriadis/democracy.htm)

Cornelius Castoriadis

 “Como é possível orientar-se na história e na política? Como julgar e escolher? Parto dessa questão política e é com este espírito que me pergunto: a democracia grega antiga apresenta algum interesse político para nós? As modernas discussões acerca da Grécia têm sido contaminadas por dois preconceitos opostos e simétricos – e, por conseguinte, equivalentes, num certo sentido. O primeiro, que é o que se encontra com mais freqüência nos últimos quatro ou cinco séculos, consiste em apresentar a Grécia como um modelo, um protótipo ou um paradigma eternos.1[1] (E um dos modismos atuais é a sua exata inversão: a Grécia seria o antimodelo, o modelo negativo). O segundo preconceito, mais recente, se resume em uma ‘sociologização’ ou uma ‘etnologização’ completas do estudo da Grécia: as diferenças entre os gregos, os nhambiquaras e os bamileques são tomadas como sendo puramente descritivas. No plano formal, esta segunda atitude é, sem nenhuma dúvida, correta. Não apenas – é desnecessário dizê-lo – não há nem poderia haver a menor diferença de ‘valor humano’, de ‘mérito’ ou de ‘dignidade’ entre diferentes povos e culturas, como tampouco se poderia fazer a mesma objeção à aplicação, ao mundo grego, dos métodos – se os há – aplicados aos arunta ou aos babilônios”. Apesar disto, esta segunda abordagem deixa de lado uma consideração mínima mas ao mesmo tempo decisiva. A interrogação racional acerca das outras culturas, e a reflexão sobre elas, não começou com os arunta nem com os babilônios. E seria possível demonstrar, na verdade, que ela não poderia ter começado entre eles. Antes da Grécia, e fora da tradição greco-ocidental, as sociedade são instituídas segundo um princípio de completa clausura (clôture): nossa visão de mundo é a única que tem um sentido e é verdadeira – as ‘outras’ são estranhas, inferiores, perversas, malignas, desleais, etc. Como observava Hannah Arendt, a imparcialidade veio ao mundo com Homero, e essa imparcialidade não é simplesmente ‘afetiva’ mas diz respeito ao conhecimento e à compreensão. O verdadeiro interesse pelos outros nasceu com os gregos, e não passa de um dos aspectos da atitude crítica e interrogadora que eles mantinham frente a suas próprias instituições. Em outras palavras, ele se inscreve no movimento democrático e filosófico criado pelos gregos.Foi apenas no quadro desta tradição histórica particular – a tradição greco-ocidental – que o etnológo, o historiador ou o filósofo pode ter condições de refletir sobre sociedades diferentes da sua, ou mesmo sobre sua própria sociedade. E, de duas uma: ou bem nenhuma dessas atividades tem qualquer privilégio particular frente a tal ou qual outra – por exemplo, a adivinhação pelo veneno entre os azanda. Neste

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caso, o psicanalista, por exemplo, é apenas a variante ocidental do xamã, como escreveu Lévi-Strauss; e o próprio Levi-Strauss, bem como toda a confraria dos etnólogos, não passam também de uma variedade local de feiticeiros que se põem, neste particular grupo de tribos que é o nosso, a exorcizar as tribos estrangeiras ou submetê-las a algum outro tratamento – a única diferença é que, em vez de aniquilá-las por fumigação, eles a aniquilam por estruturalização.Ou, então, nós aceitamos, postulamos ou assumimos por princípio uma diferença qualitativa entre a nossa abordagem teórica das outras sociedades e as abordagens dos selvagens – e atribuimos a essa diferença um valor bem preciso; limitado, mas sólido e positivo. Começa então uma discussão filosófica. Só então e não antes. Pois entabular uma discussão filosófica supõe a afirmação prévia de que pensar sem restrições é a única maneira de abordar os problemas e as tarefas. E, dado que sabemos que essa atitude não é de modo algum universal, mas absolutamente excepcional na história das sociedades humanas, devemos nos perguntar como, em que condições, por quais vias a sociedade humana se mostrou capaz, num caso particular, de romper a clausura que é, em regra geral, a condição mediante a qual ela existe. Devemos nos desfazer destas duas atitudes gêmeas: ou bem teria existido outrora uma sociedade que permanece para nós como modelo inacessível, ou então a história seria essencialmente nivelada e não haveria diferenças significativas, a não ser descritivas, entre diferentes culturas. A Grécia é o locus social-histórico onde foram criadas a democracia e a filosofia e onde se encontram, por conseguinte, nossas próprias origens. Na medida em que o sentido e as potencialidades dessa criação não estejam esgotados – e estou profundamente convencido de que não o estão – a Grécia é para nós um germen: nem um modelo, nem um espécime entre outros, mas um gérmen.A história é criação: criação de formas totais da vida humana. As formas sócio-históricas nãoi são ‘determinadas’ por ‘leis’ naturais ou históricas. A sociedade é auto-criação. ‘Quem’ cria a sociedade e a história é a sociedade instituinte, em oposição á sociedade instituída: a sociedade instituinte, isto é, imaginário social no sentido radical” (Castoriadis Democracia 269-71) “Mas esta tradição tampouco pode nos oferecer algum repouso. Pois, embora ela tenha engendrado a democracia e a filosofia, as revoluções americana e francesa, a Comuna de Paris e os conselhos operários húngaros, o Partenão e Macabeth, ela também produziu o massacre dos mélios pelos atenienses, a Inquisição, [autonomia x heteronomia: criação da abertura crítica x fechamento], Auschwitz, o Gulag e a bomba H. Criou a razão, a liberdade e a beleza – mas também a monstruosidade em massa. Nenhuma espécie animal poderia ter criado Auschwitz ou o Gulag: para mostrar-se capaz disso, é preciso mser um ser humano. E essas possibilidades extremas da humanidade [aproximar de H. Arendt] no domínio do monstruoso concretizaram-se, par excellence, em nossa tradição. O problema do julgamento e da escolha repõe-se, portanto, também nesta tradiçãoq eu não poderíamos nem por um instante validar em bloco. Note-se que esse problema não se apresenta como uma simples possibilidade intelectual. A própria história do mundo greco-ocidental pode ser interpretada como a história da luta entre a autonomia e a heteronomia”. ........................................... “Julgar e escolher, no seu sentido mais radical, foram atitudes criadas na Grécia; é este um dos sentidos da criação grega da política e da filosofia. Entendo por política

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não intrigas de corte, nem lutas entre grupos sociais que defendem seus interesses ou posições (coisas que ocorrem em outros lugares), mas uma atividade coletiva cujo objetivo é a instituição da sociedade enquanto tal. É na Grécia que encontramos o primeiro exemplo de uma sociedade deliberando explicitamente acerca de suas leis, e modificando-as. Em outros lugares, as leis são herdadas dos ancestrais, ou são dádivas dos deuses, quando não do Único Deus Verdadeiro; mas não são estabelecidas, isto é, criadas, pelos homens após discutirem e confrontarem, coletivamente, as leis boas e más. Esta atitude conduz a outra questão que também nasce na Grécia – não se pergunta apenas: esta lei que aqui está é boa ou má? mas sim: o que é, para uma lei, ser boa ou má – em outras palavras, o que é a justiça? E ela se prende diretamente à criação da filosofia: do mesmo modo que, graças à atividade política grega, a instituição existente da sociedade pela primeira vez é posta em questão e modificada, a Grécia é a primeira sociedade a ter-se questionado explicitamente sobre a representação coletiva instituída do mundo, itso é, a entregar-se à filosofia. E, tal como a atividade política na Grécia rapidamente desemboca na questão ‘o que é a justiça em geral?’, e não apenas se ‘esta lei particular é boa ou má, justa ou injusta?’, também a interrogação fislosófica desemboca com igual rapidez na questão ‘o que é a verdade?’, e não simplesmente se ‘é verdadeira esta, ou aquela, representação do mundo?’ E estas duas questões são questões autênticas – vale dizer, questões que devem permanecer para sempre em aberto” “A criação da democracia e da filosofia, e de sua ligação, encontra uma precondição essencial na concepção grega do mundo e da vida humana, no núcleo do imaginário grego. (...) Esta concepção condiciona, por assim dizer, a criação da filosofia. A filosofia, tal como os gregos a criaram e praticaram, só é possível porque o universo não é totalmente ordenado. Se ele o fosse, não haveria nenhuma filosofia, apenas um sistema de saber único e definitivo. E, se o mundo fosse puro e simples caos, não haveria nenhuma possibilkidade de pensar. Mas, além disso, ela também condiciona a criação da política. Se o universo humano fosse perfeitamente ordenado, quer a partir do exterior, quer por sua ‘atividade expontânea’ (‘mão invisível’, etc.), se as leis humanas tivessem sido ditadas por Deus ou pela natureza, ou ainda pela ‘natureza da sociedade’ ou ‘pelas leis da história’, não haveria, então, lugar algum para o pensamento político, e nenhum campo aberto á ação política, e seria absurdo perguntar pelo que é uma boa lei, ou pela natureza da justiça. De modo análogo, se os seres humanos não pudessem criar alguma ordem para si mesmos estabelecendo leis, não haveria qualquer possibiliade de ação política, instituinte. E, se um conhecimento seguro e total (episteme) do domínio humano fosse possível, a política terminaria imediatamente e a democracia seria tão impossível quanto absurda, já que ela pressipõe que todos os cidadãos têm a possibilidade de atingir uma doxa correta, e que ninguém possui uma episteme relativamente a assuntos políticos.Parece-me importante insistir nessas ligações, porque as dificuldades com as quais se defronta o pensamento político moderno decorrem, em boa medida, da influência dominante e persistente da filosofia teológica (vale dizer, platônica). Desde Platão até o liberalismo moderno e o marxismo, a filosofia política tem estado contaminada pelo postilado operatório que diz que há uma ordem total e ‘racional’ (e, por conseguinte, ‘repleta de sentido’) do mundo, e seu inevitável corolário: há uma ordem nos assuntos humanos que está ligada àquela ordem do mundo – o que se

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poderia chamar a ontologia unitária. Este postulado serve para dissimular o fato fundamental de que a história humana é criação – e sem esse fato não pode haver nenhuma autêntica questão de julgamento e escolha, quer ‘objetivamente’, quer ‘subjetivamente’. Ao mesmo tempo, ele oculta ou exclui, de fato, a questão da responsabilidade. A ontologia unitária, seja qual for o seu disfarce, está essencialmente ligada à heteronomia. E, na Grécia, a emergência da autonomia dependeu de uma concepção não unitária do mundo, expressa desde os primórdios nos ‘mitos’ gregos”  “Mas a essência daquilo que importa na vida política da Grécia antiga – o gérmen – é, certamente, o processo histórico instituinte: a atividade e a luta que se desenrolam em torno da mudança das instituições, a auto-instituição explícita (ainda que permaneça parcial) da polis enquanto processo permanente: um processo que demora cerca de quatro séculos. (...) As poleis, ou pelo menos Atenas (sobre a qual nossa informação é menos lacunar), não param de por em questão a sua instituição: o demos continua a modificar as regras que conformam a sua vida. Tudo isso, sem dúvida, é indissociável do ritmo vertiginoso da criação durante esse período, e isso em todos os domínios, não apenas no campo estritamente político.Esse movimento é um movimento de auto-instituição explícita. O significado fundamental da auto-instituição explícita é a autonomia: nós estabelecemos nossas próprias leis. De todas as questões levantadas por esse movimento, vou evocar brevemente três: ‘quem’ é o ‘sujeito’ dessa autonomia? Quais são os limites de sua ação? E qual é o ‘objeto’ da auto-instituição autônoma?O coletivo dos cidadãos – o demos – proclama-se absolutamente soberano: ele rege por suas próprias leis (autonomos), possui sua jurisdição independente (autodikos) e governa-se a si mesmo (autoteles), para retomar os termos de Tucídides. E declara, também, a igualdade política (a igual repartição da atividade e do poder de todos os homens livres. É essa auto-instauração, auto-definição do corpo político, que contém – como não pode deixar de conter – um elemento de arbitrariedade. Quem estabelece a Grundnorm, na terminologia de Kelsen, a norma que governa o estabelecimento de normas, é um fato. Para os gregos, esse ‘quem’ é o corpo de cidadãos masculinos livres e adultos (...) A igualdade dos cidadãos é naturalmente igualdade em relação à lei (isonomia), porém, no fundo, é bem mais que isso. Ela não se resume na outorga de ‘direitos’ iguais passivos – mas consiste na participação geral ativa nos negócios públicos. Essa participação não é deixada ao acaso mas é, ao contrário, ativamente encorajada pelas regras formais, bem como pelo éthos da pólis. (...)A participação se concretiza na ecclésia, Assembléia do Povo, que é o corpo soberano efetivo. Nela, todos os cidadãos têm o direito de tomar a palavra (iségoria), suas vozes têm cada qual o mesmo peso (isopséphia), e a todos se impõe a obrigação moral de falar com toda a franqueza (parrhésia). Mas a aprticipação se dá também nos tribunais, onde não há juízes profissionais e a quase totalidade das cortes são formadas de júris, sendo os jurados escolhidos por sorteio.A ecclésia, assistida pela boulé (Conselho), legisla e governa. Isso é a democracia direta. Três aspectos dessa democracia merecem um comentários mais amplo.a) O povo, em oposição aos representantes. Na história moderna, toda vez que uma coletividade política ingressou em um processo de auto-constituição e de auto-atividade radicais, a democracia direta foi redescoberta ou reinventada: os conselhos comunitários (town meetings) durante a Revolução Americana, as sections durante a Revolução Francesa, a Comuna de Paris, os conselhos operários ou os sovietes em

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sua forma original. Hannah Arendt insistiu muitas vezes na importância dessas formas. Em todos esses casos, o corpo soberano é a totalidade das pessoas envolvidas ... a representação é um fato extranho à democracia. Uma vez que haja ‘representantes’ permanentes, a autoridade, atividade e iniciativas políticas são retiradas do corpo dos cidadãos e transferidas para o corpo restrito dos ‘representantes’ ...”b) O povo, em oposição aos experts. (...) Não há nem poderia haver ‘especialistas’ em assuntos políticos. A perícia política – ou a ‘sabedoria’ política – pertence à comunidade política ... O bom juiz de um especialista não é outro especialista, mas o usuário ... E naturalmente, quanto a todos os assuntos públicos (comuns), o usuário – e, portanto, o melhor juiz – só pode ser a própria pólis ... Nunca será demais insistir no contraste entre esta concepção e o ponto de vista moderno. A idéia hoje dominante, segundo a qual peritos só podem ser julgados por outros peritos, é uma das condições da expansão e da crescente irresponsabilidade dos aparelhos hierárquico-burocráticos modernos. A idéia dominante de que existem ‘experts’ em política, vale dizer, especialistas do universal e técnicos da totalidade, menospreza a idéia mesma de democracia: o poder dos políticos se justifica pela ‘expertise’ que só eles possuiriam – e o povo, imperito por definição, é chamado periodicamente a dar sua opinião sobre esses ‘experts’ ...c) A Comunidade, em posição ao Estado. A pólis grega não é um Estado na concepção moderna ... A idéia de um Estado, isto é, de uma instituição distinta e separada do corpo de cidadãos, teria sido incompreensível para um grego ... Nem ‘Estado’ nem ‘aparelho de Estado’. Naturalmente, existe em Atenas uma maquinaria técnico-administrativa 9muito importante nos séculos quatro e cinco), mas esta não assume nenhuma função política. Essa administração, significativamente, era composta de escravos até nos seus escalões mais elevados (polícia, conservação dos arquivos públicos, finanças públicas; Talvez Ronald Reagan e certamente Paul Volcker fossem escravos, em Atenas). Tais escravos eram supervisionados por cidadãos magistrados, geralmente escolhidos por sorteio. A ‘burocracia permanente’ que desempenha as tarefas ‘executivas’, no sentido mais estrito do termo, é relgada aos escravos (e, prolongando o pensamento de Aristóteles, poderia ser suprimida tão logo as máquinas ...). “O que se vê aqui é a criação de um espaço social propriamente político, criação que se apóia em elementos sociais (econômicos) e geográficos, sem no entanto estar determinada por eles. Não há, neste caso, nenhuma pretensão à ‘homogeneidade’: a articulação do corpo de cidadãos, criada assim numa perspectiva política, vem superpor-se às articulações ‘pré-políticas’ sem as esmagar. Essa articulação obedece a imperativos estritamente políticos: de um lado, a igualdade na repartição do poder, de outro, a unidade do corpo político (em oposição sos ‘interesses particulares’). (...) Isso denuncia, mais uma vez, uma concepção de política diametralmente oposta à mentalidade moderna, calcada na defesa e afirmação de ‘interesses’. Os interesses, na medida do possível, devem ser mantidos afastados do processo de decisão política ... A participação geral na política implica na criação, pela primeira vez na história, de um espaço público. A ênfase que Hannah Arendt deu a esse espaço e a elucidação que ela forneceu de seu significado constituem uma de suas maiores contribuições ao entendimento da criação institucional grega. ... A emergência de um espaço público significa que se criou um domínio público que ‘pertence a todos’ (ta koina). O ‘público’ deixa de ser um assunto ‘privado’ – do rei, dos prelados, da burocracia, dos políticos, dos especialistas, etc. As decisões relativas aos assuntos comuns devem ser tomadas pela comunidade”.

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A existência de um espaço público não é uma simples questão de dispositivos jurídicos que garantam a todos a mesma liberdade de pronunciamento, etc. Tais cláusulas constituem apenas uma das condições para a existência de um espaço público. O essencial é outra coisa: o que irá a população fazer desses direitos? Quanto a este aspecto, os traços determinantes são a coragem, a responsabilidade e a vergonha (aidos, aischune). Na ausência delas, o espaço público torna-se simplesmente um espaço para a propaganda, para a mistificação e para a pornografia – aexemplo do que ocorre cada vez mais nos dias de hoje. ... Apenas a educação (paideia) dos cidadãos enquanto tais pode dotar o ‘espaço público’ de um autêntico e verdadeiro conteúdo. Mas essa paideia não é, basicamente, questão de livros ou verbas para as escolas. Ela consiste, antes de mais nada e acima de tudo, na tomada de consciência, pelas pessoas, de fato de que a pólis é também cada uma delas, e de que o destino da pólis depende também do que elas pensam, fazem e decidem; em outras palavras: a educação é participação na vida política.A criação de um tempo público não se reveste de importância menor que a criação de um espaço público. ... a emergência de uma dimensão onde a coletividade possa inspecionar seu próprio passado enauanto resultado de suas próprias ações, e onde se bara um futuro indeterminado como campo de suas atividades. É exatamente esse o significado da criação da historiografia na Grécia. É espantoso que a historiografia, na sua acepção rigorosa, tenha existido exclusivamente em dois períodos da história da humanidade: na Grécia antiga e na Europa moderna, ou seja, nas duas sociedades em que se desenvolveu um processo de questionamento das instituições existentes. (...) Outra instituição de auto-limitação é a tragédia. ... Pois a tragédia (em oposição ao simples ‘teatro’) não poderia mesmo nascer em outro lugar que não a cidade onde o processo democrático, o processo de auto-instituição, atingiu o apogeu ... uma dimensão política essencial na tragédia” “Hannah Arendt possuia uma concepção substantiva do ‘objeto’ da democracia – da pólis. Para ela, o mérito da democracia reside em ser ela o regime político no qual os seres humanos podem revelar quem eles são através de seus atos e de suas palavras. Este elemento, com certeza, estava presente e era importante na Grécia ...Não obstante, é impossível reduzir o sentido e os fins da política e da democracia na Grécia a esse elemento ... a posição de Hannah Arendt deixa de lado a questão capital do teor, da substância, dessa ‘manifestação’. ... A diferença entre Temístocles e Péricles, de um lado, e Cleon e Alcibíades, de outro, entre os edificadores e os coveiros da democracia, não se acha no simples ato da ‘manifestação’, mas no conteúdo dessa manifestação ...”.A concepção substantiva da democracia na Grécia mostra-se claramente na massa global de obras da pólis, em geral. E ela foi explicitamente formulada, com uma profundeza e intensidade inigualadas, no maior monumento do pensamento político que já me foi dado ler, a Oração Fúnebre de Péricles (Tucídides II, 35-46). Nunca deixarei de espantar-me pelo fato de que Hanah Arendt, que admirava esse texto e forneceu brilhantes indicações para sua interpretação, não tenha visto que ele apresentava uma concepção substantiva da política dificilmente compatível com a sua.Em sua ‘Oração Fúnebre’, Péricles descreve os usos e modos de fazer dos atenienses e apresenta, em meia frase, uma definição de qual é, de fato, o ‘objeto’ dessa vida. A passagem emq uestão é a famosa Philokaloumen gar met’euteleias kai

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philosophoumen aneu malakias. ... Os verbos não permitem esta separação entre o ‘nós’ e um ‘objeto’ – beleza ou sabedoria – exterior a esse ‘nós’. Eles não são verbos ‘transitivos’; nem mesmo apenas ‘ativos’, já que são, ao mesmo tempo, ‘verbos de estado’ – como o verbo viver, eles designam uma ‘atividade’ que é igualmente um modo de ser, ou melhor, o modo em virtude do qual o sujeito do verbo é. ... nós existimos no e pelo amor da beleza e da sabedoria, e na e pela atividade suscitada por esse amor; nós vivemos por elas, com elas e através delas – mas fugindo das extravagância e da lassidão. E é por isso que ele se julga no direito de qualificar Atenas de paideusis – educação e educadora – da Grécia.Em sua ‘oração Fúnebre’, Péricles mostra implicitamente a futilidade dos falsos dilemas que contaminam a filosofia política moderna e, de maneira geral, a mentalidade moderna: o ‘indivíduo’ contra a ‘sociedade’ ou a ‘sociedade civil’ contra o ‘Estado’. O objetivo da instituição da pólis é, a seus olhos, a criação de um ser humano, o cidadãos ateniense, que existe e vive na e pela unidade destes três elementos: o amor e a prática da beleza, o amor e a prática da sabedoria, o cuidado e a responsabilidade para com o bem público, a coletividade e a pólis ... E não é possível separar esses três elementos: a beleza e a sabedoria tal como os atenienses as amavam e as viviam somente poderiam existir em Atenas. O cidadão ateniense não é um ‘filósofo privado’, nem um ‘artista privado’: ele é um cidadão para quem a arte e a filosofia tornam-se modos de vida. Tal é, penso eu, a verdadeira resposta, a resposta concreta da democracia antiga à questão referente ao ‘objeto’ da instituição política.Quando digo que os gregos são para nós um gérmen, quero dizer, em primeiro lugar, que eles jamais cessaram de refletir sobre esta questão: o que deve ser realizado pela instituição da sociedade?; e, em segundo lugar, que em Atenas, o caso paradigmáico, eles chegaram á seguinte resposta: a criação de seres humanos vivendo com a beleza, vivendo com a sabedoria, e amando o bem comum” [Paris-Nova York-Paris, março de 1982-junho de 1983]  in As Encruzilhadas do Labirinto II, tradução de José Oscar de Almeida Marques, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.