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39 A POLÍTICA DA DIVERSIDADE NA SALA DE AULA Ana Cláudia Fernandes Ferreira Débora Massmann Univás RESUMO: Em um mundo em que globalização, diversidade, tolerância e inclusão têm se tornado palavras de ordem, pensar a política da diver- sidade na sala de aula implica refletir sobre o modo como a diferença é designada, dita e (re)significada na e pela sociedade. Nesta direção, fun- damentadas nos pressupostos teóricos da Semântica do Acontecimento (Guimarães, 2002), as autoras analisam um conjunto de textos jurídico- -governamentais que têm como tema a regulamentação das práticas edu- cativas para sujeitos com necessidades especiais. ABSTRACT: In a world where globalization, diversity, tolerance and inclusion have become buzzwords, thinking about the politics of diversity in the classroom involves reflecting on how difference is designated, said and (re) signified in and by society. In this direction, based on the conceptual framework of the Semantics of the Utterance Event (Semântica do Acontecimento, Guimarães, 2002), the authors analyze a set of juridical-governmental texts that have as their theme the legal regulation of educational practices for individuals with special needs. “Não é a deficiência que me impede de exercer minha cidadania, mas sim a dificuldade que a sociedade tem de eliminar barreiras, respeitar a diferença e aceitar a diversidade”. Gabriel, 14 anos, deficiente visual, aluno de escola regular Considerações iniciais A reflexão que propomos busca pensar sobre o funcionamento de sentido do que é diferente, ou seja, busca compreender o modo como

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A POLÍTICA DA DIVERSIDADE NA SALA DE AULA

Ana Cláudia Fernandes FerreiraDébora Massmann

Univás

RESUMO: Em um mundo em que globalização, diversidade, tolerância e inclusão têm se tornado palavras de ordem, pensar a política da diver-sidade na sala de aula implica refletir sobre o modo como a diferença é designada, dita e (re)significada na e pela sociedade. Nesta direção, fun-damentadas nos pressupostos teóricos da Semântica do Acontecimento (Guimarães, 2002), as autoras analisam um conjunto de textos jurídico--governamentais que têm como tema a regulamentação das práticas edu-cativas para sujeitos com necessidades especiais.

ABSTRACT: In a world where globalization, diversity, tolerance and inclusion have become buzzwords, thinking about the politics of diversity in the classroom involves reflecting on how difference is designated, said and (re) signified in and by society. In this direction, based on the conceptual framework of the Semantics of the Utterance Event (Semântica do Acontecimento, Guimarães, 2002), the authors analyze a set of juridical-governmental texts that have as their theme the legal regulation of educational practices for individuals with special needs.

“Não é a deficiência que me impede de exercer minha cidadania, mas sim a dificuldade que a sociedade tem de eliminar barreiras, respeitar a diferença e aceitar a diversidade”.

Gabriel, 14 anos, deficiente visual, aluno de escola regular

Considerações iniciaisA reflexão que propomos busca pensar sobre o funcionamento de

sentido do que é diferente, ou seja, busca compreender o modo como

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a sociedade faz significar a diferença em determinados sujeitos. Nosso interesse está particularmente no modo como a diferença é designada, dita e (re)significada em um conjunto de textos jurídicos que regula-mentam as práticas de ensino do Brasil. Trata-se pois de observar como a questão da diferença, do “ser diferente” em uma sociedade como a nossa, se constitui e se produz enunciativamente nestes textos em rela-ção às necessidades especiais de sujeitos ora significados como excep-cionais, ora como deficientes e ainda como portadores de necessidades especiais, entre outros. Sem dúvida, o assunto é espinhoso, pois toca em questões complexas que envolvem preconceito, cidadania, direitos humanos, ensino e, principalmente, sujeitos que são significados, apon-tados e ressignificados pela sua diferença.

Assim, neste trabalho, embasado na Semântica do Acontecimento, tal como proposta por Guimarães (2002), tomamos como ponto de par-tida a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), publicada em 1961. A LDB tem a função de definir e regulamentar o sistema educativo bra-sileiro fundamentando-se nos postulados da Constituição Federal. Ci-tada inicialmente na Constituição de 1934, a primeira LDB, lei 4.024, é publicada efetivamente em só no ano de 1961.

Passados mais de 50 anos de sua aparição e diante das reformula-ções realizadas nas versões subsequentes, a referência nacional que re-gulamenta a educação no Brasil definitivamente não caminha a passos largos. No entanto, entre a resistência aos deslocamentos de práticas de ensino quase imóveis, que certamente não se alteram por decreto, e as modificações realizadas no texto da lei, chamamos a atenção aqui para a questão da inclusão na sala de aula e para o modo como ela vem sendo designada e (re)significada em diferentes textos oficiais. Conforme já foi dito, tomaremos a lei 4.024/61 como ponto de partida e, a partir dela, vamos percorrer outros textos, como a Constituição Federal de 1988, a LDB 9.394/96 e o Decreto n. 7.612/2011. Em conformidade com o qua-dro teórico ao qual nos filiamos, consideraremos, portanto, cada uma dessas leis como um acontecimento enunciativo que se produz pelo fun-cionamento da língua. Em cada lei, há, pois, um dizer específico sobre a diferença e sobre o modo como o sistema educativo vai lidar com essa questão.

O percurso da diversidade nos textos oficiaisA efervescência dos debates sobre inclusão e diversidade na sala aula

permitiu avanços importantes em relação ao modo de designar os sujei-tos que potencialmente inscrevem-se como público alvo dessas políticas inclusivas. De acordo com Gil1 (2011), a busca por outras formas de nomear estudantes marcados pelos aspectos da diferença, o ser diferente,

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“expressa uma disputa profunda e fundamental acerca das concepções que devem vigorar no atendimento a essas pessoas”. No caso, as diver-sas formas de nomear a diferença observadas no corpus deste estudo fornecem pistas sobre quem são esses sujeitos, quais tratamentos edu-cacionais merecem ter, e principalmente, como eles são significados na e pela sociedade.

Nota-se assim que paralelamente ao advento de novas formas de dizer a diferença na educação, busca-se deslocar esse “poder da Norma” através do qual as instituições de poder, como a escola e o governo, por exemplo, tentam estabelecer o normal como coerção social (Foucault, 1987).

Os projetos que têm sido colocados em práticas para deslocar e ressignificar esses modos de dizer a diferença não resultam apenas de um esforço brasileiro, mas sim de um movimento político-educacional maior que se sustenta em acordos internacionais, tais como a Declara-ção dos Direitos Humanos de Viena (Unesco, 1993) que constitui um texto fundamental para essa questão à medida que discute o princípio da diversidade, colocando o direito à igualdade em patamar semelhante ao direito à diferença:

22. Haverá que prestar atenção especial para garantir a não discri-minação e o gozo, em termos de igualdade, de todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais por parte de pessoas com deficiência, incluindo a sua participação ativa em todos os aspec-tos da vida em sociedade (Unesco, 1993, p.6).

Ao reconhecer a pluralidade de sujeitos portadores de direitos e de seus direitos específicos, o texto inscreve-os como parte integrante e in-divisível da plataforma universal dos Direitos Humanos. Desse modo, a Declaração de Viena pode ser considerada um divisor de águas para a inclusão educacional, pois trouxe consigo a questão da Ética da Di-versidade na implantação de políticas inclusivas. É fundamentada neste documento de Viena, que surge, em 1994, a Declaração de Salamanca (1994) em que se discorre justamente “Sobre Princípios, Políticas e Prá-ticas na Área das Necessidades Educativas Especiais”.

Estes dois documentos constituem uma amostra das discussões in-ternacionais sobre o assunto e da rede de sentidos que foi se constituin-do em torno do tema educação inclusiva. O movimento internacional e a rede de sentido que ele suscitou produziram ecos e afetaram signifi-cativamente as políticas públicas, promovidas pelo Ministério da Edu-cação do Brasil, no que concerne à inclusão de crianças e adolescentes com necessidades educativas diferenciadas na rede regular de ensino. Para ilustrar este movimento que tem sido designado como “políticas

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inclusivas”, trazemos o seguinte gráfico apresentado pelo MEC2 no iní-cio de 2011:

O gráfico ilustra em números aquilo que, nos últimos anos, tem-se tentado instituir através de leis e de decretos. Ou seja, há um movimento cada vez maior para integrar os sujeitos, significados socialmente pela diferença, no sistema de ensino regular. É interessante observar já aqui neste gráfico o modo como essas relações estão sendo significadas.

A fim de observar como os sentidos se constroem e se constituem pelas relações de determinação3 entre as palavras no acontecimento da enunciação, utilizamo-nos do conceito de Domínio Semântico de De-terminação (DSD), proposto por Guimarães (2007). Definido como um mecanismo de descrição e de interpretação, o DSD ampara-se nas rela-ções de determinação semântica que as palavras estabelecem no funcio-namento da língua. Tem-se assim que a história do sentido de uma pa-lavra é produzida pela “ação que as palavras exercem, à distância, umas sobre as outras. Uma palavra é levada a restringir cada vez mais sua significação, pelo fato de existir uma companheira que estende a sua” (Bréal, 2008, p.182). Para se constituir, um DSD levam-se em conta dois procedimentos fundamentais na constituição de sentidos: a articulação e a reescrituração. Enquanto a reescrituração diz respeito ao processo de construção de sentidos na unidade do texto, a articulação remete à análise das relações de sentido no interior do próprio enunciado.

A partir das informações apresentadas pelo gráfico, podemos estabe-lecer o Domínio Semântico de Determinação abaixo. No gráfico acima,

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“Evolução da política inclusiva nas classes comuns do ensino regular se mostra consistente ao longo dos anos” é reescriturado enumerativa-mente por: “Matrículas em escolas especializadas e classes especiais”; “Matrículas em escolas regulares/classes comuns”. Esta enumeração, sob a aparência da homogeneidade do dado, coordena uma oposição, uma antonímia. Ao mesmo tempo, cada um dos elementos da enumeração articula no seu interior as relações “escolas especializadas” e “classe es-peciais” de um lado e “escolas regulares” e “classes comuns” de outro. O que nos leva ao seguinte DSD1:

DSD1

Aqui, é possível verificar, a partir das relações de determinação e de antonímia, a rede de significação que vai se produzindo em torno do que se está chamando de educação inclusiva ou políticas inclusivas. Ou seja, o sentido do que é educação inclusiva vai se constituindo no dizer do próprio Ministério da Educação pela tensão entre o igual e o diferen-te, o normal e não-normal. Em outras palavras, entre o que está incluído e o que está excluído.

Essa primeira manobra de análise semântica assinala para o processo de produção de sentidos que nos conduz a pensar o político na linguagem. Ou seja, é preciso considerar que uma palavra, no âmbito do enunciado ou do texto, pode ter outros sentidos, sentidos que se aproximam, que de-rivam e se complementam, funcionando numa mesma direção, e sentidos que se dividem, se afastam, se confrontam assumindo funcionamentos diversos. Pensar o político na linguagem significa, pois compreender que, como nos diz Orlandi (2009, p.83), “o sentido pode sempre ser outro”. Já para Guimarães (2002, p.16), pensar o político na linguagem significa pois pensar a questão da contradição que, de acordo com o autor, “instala o conflito no centro do dizer”. Ou seja, “o político está assim sempre divi-dido pela desmontagem da contradição que o constitui”

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No DSD1 apresentado acima, nota-se como a contradição, o polí-tico, enfim, se instalam no dizer: a relação entre escola regular/escola especial, classe regular/especial, sujeito normal/sujeito diferente (não normal), aparece em uma relação de antonímia ao mesmo tempo em que essa relação é determinada pela própria noção de inclusão, edu-cação inclusiva. Ou seja, o sentido de educação inclusiva traz já em si uma contradição que lhe é constitutiva. É pois tomando como funda-mentação essa concepção do político que avançamos nesta reflexão em direção à análise de textos jurídicos oficiais.

Outras manobras analíticasComo dissemos anteriormente, cada lei analisada é tomada aqui

como um acontecimento enunciativo que, por se dar nos espaços de enunciação, é por essência um acontecimento político, visto que a cons-tituição da temporalidade do acontecimento se produz na relação entre línguas e falantes que “é regulada por uma deontologia global do dizer em uma certa língua” (Guimarães, 2002, p.18).

Nossa entrada para a análise do modo como a diferença é significada nos textos jurídicos se dá a partir da lei 4.024/61. Como primeiro recorte, tomamos o Título X “Da educação de excepcionais” que especifica uma categoria de ensino a ser discutida nos artigos subsequentes. Apesar de ser o primeiro enunciado, no texto da lei, que coloca em funcionamento um dizer específico sobre a educação de sujeitos com necessidade educativas diferenciadas, é preciso observar que, ao mesmo tempo que este enun-ciado aparece em paralelismo sintático com outros tipos de educação (de grau primário, de grau médio, superior), o funcionamento semântico é outro, como se pode observar pelas paráfrases abaixo:

Recorte 1TÍTULO VI: Da Educação de Grau Primário.TÍTULO VI: Sobre a educação de grau primário.TÍTULO VI: A educação é de grau primário.

Recorte 2TÍTULO VII: Da Educação de Grau Médio.TÍTULO VII: Sobre a Educação de Grau Médio.TÍTULO VII: A Educação é de Grau Médio. Recorte 3TÍTULO IX: Da Educação de Grau Superior.TÍTULO IX: Sobre a Educação de Grau Superior.TÍTULO IX: A Educação é de Grau Superior.

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Recorte 4TÍTULO X: Da Educação de Excepcionais.TÍTULO X: Sobre a Educação de Excepcionais.TÍTULO X: A Educação é de Excepcionais.

Enquanto nos recortes 1, 2 e 3, “Educação” é especificada por uma expressão que significa o grau de escolaridade, no recorte 4, a especifi-cação coloca uma característica do sujeito, o “excepcional”. Mas afinal quem é e o que é o excepcional? Vejamos o funcionamento semântico destes recortes a partir do DSD de número 2:

DSD2

EDUCAÇÃO

┤ grau primário

┤ grau médio

┤ grau superior

┤excepcionais (sujeitos)

Mas adiante, no artigo 88 “Da Educação de Excepcionais”, não há uma definição de quem são os excepcionais, mas o texto apresentado nos permite perceber que a educação de excepcionais deve, se possível, enquadrá-los no sistema geral da educação com o objetivo de integrá--los à comunidade como mostra o recorte 5.

Recorte 5:Art. 88. A educação de excepcionais deve, no que for possível, enqua-drar-se no sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunida-de (Lei 4.024/61)

Isso nos leva a compreender que este sujeito, designado como excep-cional, marcado, portanto pela diferença, tal como já pudemos mostrar no DSD1, está fora do sistema geral de educação e, consequentemente fora da sociedade. Em outras palavras, ele é um sujeito excluído. Pode-mos representar estes aspectos no DSD3:

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DSD3EDUCAÇÃO

┴Sujeito Excepcional ┴

Exclusão

┴Sujeito normal ┴Inclusão ┴Sistema geral de educação

┤Sociedade

Em relação à Constituição Federal de 1988, a análise mostrou que no

texto da lei há categorizações muito próximas àquelas observadas na lei 4.024/61, representadas no DSD anterior. Já no recorte 6, apresentado a seguir, nota-se que a “educação dos excepcionais” foi reescrita, na Cons-tituição de 1988, através da especificação “atendimento educacional es-pecializado”. Outro movimento de sentido interessante de ser observado diz respeito ao modo como o sujeito excepcional é reescrito e ressignifi-cado, por expansão, através da designação “portadores de deficiência”. A relação exclusão/inclusão continua aqui produzindo efeitos de sentidos como mostra o seguinte recorte:

Recorte 6:O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a ga-rantia 1. de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos

17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos;

2. atendimento educacional especializado aos portadores de defi-ciência, preferencialmente na rede regular de ensino; (Consti-tuição Federal de 1988)

Ou seja, a educação é garantida para todos, mas uma parcela des-te todos, aqueles que são significados social e politicamente pela sua diferença, é colocada como sendo um “a parte”, isto é, eles estão fora da rede regular de ensino e são, portanto, atendidos pela educação es-pecializada. O texto da Constituição parece colocar em funcionamen-to uma espécie de Partilha do sensível (Rancière, 2009) à medida que mostra a existência de um comum partilhado pelo todos, que compre-ende a maior parte da população, e coloca também a possibilidade de existência de recortes, parcelas, partes exclusivas e excluídas: as pessoas ditas portadoras de algum tipo de necessidade especiais. Nas palavras de Rancière (2009, p.16), “a partilha do sensível [...] define o fato de ser

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ou não visível num espaço comum”. Assim, questionamo-nos: qual é a visibilidade de sujeitos marcados pela sua diferença no texto da lei e na própria sociedade? Na busca por respostas e levando em conta: o recor-te 6 acima; a projeção da antonímia que indicamos no DSD1; e conside-rando que a expressão “educação básica” funciona no texto da legislação como elemento de uma enumeração que inclui algo como educação in-fantil, educação superior, educação especial, chegamos ao DSD abaixo:

DSD4

EDUCAÇÃO ┤ todos

┤ infantil

┤ básica

┤ superior

┤especial

┤ sujeito normal

___________________

┤sujeito portador de deficiência ┴ Exclusão

Já no texto da LDB de 1996, lei 9.394/96, logo nas primeiras páginas do texto, observa-se a seguinte reescrituração:

Recorte 7:TÍTULO III: Do Direito à Educação e do Dever de EducarIII - atendimento educacional especializado gratuito aos educan-dos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regu-lar de ensino; (Lei 9.394/96)

Aqui, observa-se outro modo de (re)significar o sujeito e suas dife-renças. Se na constituição era o “atendimento educacional especializado” que se destinava a sujeitos portadores de deficiência, aqui, há um desloca-mento de sentido que se sustenta na reescrituração por expansão, através da expressão “educandos com necessidades especiais”. Essa forma de de-signar é mantida, mais adiante, no artigo 58 da mesma lei, em que se es-pecífica e se define a educação especial, como mostra o recorte 8 a seguir:

Recorte 8: CAPÍTULO V: DA EDUCAÇÃO ESPECIALArt. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencial-mente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais; (Lei 9.394/96)

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A relação exclusão/inclusão continua funcionando semanticamente, nos dois recortes apresentados, principalmente pelo modo como as re-lações de contiguidade se estabelecem no interior do próprio enuncia-do, como, por exemplo, no caso de “preferencialmente na rede regular de ensino” que nos leva a compreender que o todos ainda está partilhado e que nem todos estão de fato incluídos nesta rede regular de ensino.

Já no Decreto n. 7.612/2011, da Presidência da República, em que se institui o Plano Nacional da Pessoa com Deficiência, a finalidade é “de promover, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações, o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com defi-ciência” (Art. 1°, Decreto n. 7.612/2011). Neste documento, destacamos o Artigo 2° em que se define quem são as pessoas com deficiência:

Recorte 9: Art..  2o    São consideradas pessoas com deficiência aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, in-telectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barrei-ras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (Decreto n. 7.612/2011)

De todos os textos jurídicos percorridos até aqui, este é o primeiro que traz uma definição específica de quem são os sujeitos significados pela diferença. Trata-se pois de um dizer sobre a diferença que vai es-pecificá-la, torná-la visível, dita, audível e reconhecível. Assim, a partir deste recorte que dá nome à diferença, apresentamos outro DSD que vai tornar mais visível a rede de sentidos que está funcionando neste artigo 22.

DSD5 Exclusão Inclusão ┬ ┬

Impedimentos físicos ┤

Impedimentos mentais ┤

Impedimentos intelectuais ┤

Impedimentos sensoriais ┤

DEFICIENTE ┤ políticas inclusivas

┤ Educação

┤ Sociedade

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Considerações finaisTodos estes movimentos de análises que se configuraram sob a for-

ma de diferentes Domínios Semânticos de Determinação, conduzem, enfim, a representação dos modos de dizer a diferença na educação inclusiva. Em outras palavras, as descrições e análises realizadas nesta reflexão nos permitiram perceber que, nos textos analisados, o sentido da diferença, do sujeito que é diferente, foi sendo construído, inicial-mente, pela designação de “excepcional”, em seguida pela de “portador de deficiência”, mais adiante por “portador de necessidade especial”, também por “educando portador de necessidade especial” e, por fim, em uma lei muito específica, por “deficiente”. Todas as formas de signifi-car são determinadas pelos “impedimentos físicos, mentais, intelectuais e sensoriais” que determinam, por sua vez, e especificam a diferença destes sujeitos. A relação de inclusão/exclusão, sustentada pela própria diferença, colocou em funcionamento a memória do preconceito e da própria cidadania. Assim, à medida que a lei tentou produzir efeitos de inclusão acabou por confirmar a existência de sujeitos excluídos em função de suas diferenças, como é possível verificar neste último DSD que traz a tessitura dos sentidos sobre a diferença nos textos jurídicos.

DSD6

Impedimentos físicos , mentais,

intelectuais, sensoriais

Excepcional ┤

DIFERENÇA

Portador de deficiência ┤

┤Políticas inclusivas ┴

Portador de necessidade

especial ┤

┤Educação regular

Educando portador de necessidade

especial ┤

Deficiente ┤

┴ ┴Inclusão Exclusão

A partir destas análises, constata-se que os modos de dizer e de (re)significar a diferença contribuem (e apontam) para um avanço do pen-samento político e social em torno da educação inclusiva. Avanço que certamente, por um lado, re-significa as políticas educacionais, mas, por outro lado, traz à escola a difícil tarefa de romper com paradigmas tra-

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dicionais e propor ações mais amplas que estejam de acordo com as necessidades histórico-culturais dos sujeitos (alunos, professores, pais, etc.) implicados nestas práticas.

Enfim, a tentativa de dizer a diferença nomeando-a diferentemente se dá porque, ao renomear, pretende-se produzir outros sentidos para a diferença, seja especificando-o, tornando-a mais visível, seja apagando--a, tornando-a invisível.

Notas1 Publicado em Gestão Escolar, Edição 016, Out./Nov., 2011. Todos significa todos. <http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/50-anos-lei-diretrizes-bases-edu-cacao-brasil-ldb-647284.shtml>2 Fonte: http://www.fnde.gov.br/. Para mais informações sobre os indicadores da política inclusiva, confira: http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/177/o-impasse-da-inclusaomudanca-na-meta-4-do-plano-nacional-243674-1.asp3 A determinação é descrita por Guimarães (2007, p.79) como “uma relação fundamen-tal para o sentido das expressões linguísticas”. O autor esclarece ainda que “semantica-mente, é possível dizer que toda relação de predicação é, em certa medida, pelo menos, uma relação de determinação e vice-versa” (Guimarães, 2007, p.78).

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______. (1971). Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 5.692. Disponível em http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agos-to-1971-357752-norma-pl.html. Acesso em 03 jul. 2012.

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Palavras-chave: diversidade, ensino, sujeitos com necessidades especiaisKey-words: diversity, teaching, special-needs subjects

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