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A PRÁTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA PESQUISA E NO ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO EDITORES ARLINDO PHILIPPI JR VALDIR FERNANDES 1

A prática da interdisciplinaridade. Prof Philippi J e Fernandes

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Prof Philippi J e Fernandes

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A PRÁTICA DA INTERDISCIPLINARIDADE NA PESQUISA E

NO ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

EDITORES

ARLINDO PHILIPPI JR

VALDIR FERNANDES

1

Importância do sujeito e da subjetividadena epistemologia e na avaliação

da interdisciplinaridade

Pr. Dr. Patrick PAUL

A interdependência do objeto e do sujeito é afirmada em numerosas correntes atuais de

pensamento. Qualificada de teoria ativa do conhecimento por Raymond Boudon (1986), parece

ter sido Hume quem propôs esse termo. Pierre Bourdieu (1979) afirma igualmente que os

objetos não são objetivos na medida em que eles são dependentes das características sociais e

pessoais dos indivíduos que os observam. Numerosas correntes filosóficas, já na época de Kant

e de Hegel, contestam a existência de um mundo e de uma realidade puramente exteriores ao

sujeito. Com esta observação, não se trata de oferecer uma lista exaustiva das correntes

filosóficas, das ciências humanas, médicas, ou mesmode certas correntes da física (a quântica,

por exemplo) que valorizamumaabordagemgeralmentequalificadade fenomenológica. Mas uma

coisa é certa. Se as ciências positivistas, muito vinculadas às evidências concretas, materiais,

são suficientes para explicar certos fatos, outros tipos de dados devem ser compreendidos a

partir do sentido que os indivíduos lhes dão no contexto de seu “projeto de mundo” (Pourtois,

Desmet, 1997). Mas, uma vez que o comportamento humanoé de natureza complexa, dinâmica

e mutável, essa introdução do sujeitoconcorremuito mais para a desordem do que para a ordem

na ciência que, consequentemente, pode perder seuestatuto de credibilidade. Os estudos

científicos clássicos, à procura da causalidade e da reprodutibilidade, interessam-se muito mais

pela estabilidade e universalidade do que pela variabilidade e singularidade. Ou seja, eles

procuram aquilo que é estável, que se reproduz (pretensão universalista que resulta da seleção

de campos organizados). Consequentemente, sua metodologia tende a eliminar o que poderia

aparentar-se à desordem, à confusão, ao não reprodutível. O problema é que numerosos fatos

naturais ou humanos respondem muito mais à confusão do que à organização. A introdução da

complexidade, da imprevisibilidade e da subjetividade torna-se, então, uma necessidade em

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certos campos do conhecimento científico.A fenomenologia,1a hermenêutica e as abordagens

interpretativas, como algumas metodologias antropológicas (observação participante, saber

tácito, autoformação, metodologia cruzada dos saberes...) são representativas, antes do tempo

atual, desta mudança interdisciplinar. Tais abordagens são, portanto, de alguma forma ou

interdisciplinares outransdisciplinares, pois se referem à complexidade das relações entre os

diferentes saberes acadêmicos (interdisciplinaridade) ou entre saberes acadêmicos e não

acadêmicos (transdisciplinaridade)2. A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade fornecem

hoje uma oportunidade para criar a ligação entre diferentes abordagens graças a uma construção

epistemológica integrativa coerente. Ao contrário do paradigma científico clássico, que valoriza

o reducionismo, a interdisciplinaridade tornou-se particularmente necessária pela emergência da

complexidade. Mas, para abordar a complexidade, a objetividade que fundamenta a ciência não

é suficiente. Porque o que estabelece a ligação entre e além das disciplinas pertence ao sujeito e

à subjetividade.

A reflexão que se segue vai tentar clarificar a subjetividade, no contexto da reflexão

interdisciplinar, questionando a noção de paradigma. Pois, no século XX, houve a invalidação

da objetividade das ciências (Bouveresse, 1999). O paradigma da ciência clássica poderia ser

adequado à interdisciplinaridade e a uma “ressurreição” do sujeito? Ou deve-se considerar esse

retorno do sujeito como significativo de uma mudança paradigmática, sem que este nome seja

necessariamente utilizado? Nossa reflexão dirige-se para esta última hipótese. Eserá também

importante precisar, no final, de que modo a validação de uma pesquisa interdisciplinar pode

integrar novos indicadores que, para além dos campos científicos, dizem respeito aos sujeitos e

às suas relações.

A interdisciplinaridade

1 A fenomenologia, que está associada, na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade, à noção de « níveis de realidade » e de « níveis de percepção », pode ser apreendida como a observação empírica de fenômenos tanto físicos quanto psíquicos e, neste último caso, incluindo o campo do consciente e do inconsciente (sonhos, por exemplo). Ela se articula com um conjunto de níveis lógicos e ontológicos, que permitem sua compreensão, o conjunto inscrevendo-se no quadro do desenvolvimento de uma teoria cognitiva associando conhecimento e autoconhecimento.2Américo Sommerman, 2012.

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A emergência da interdisciplinaridade como nova corrente de pensamento na ciência pode ser

vista como uma das respostas possíveis à complexidade nas últimas décadas do século XX.

Essareivindicação está associada a numerosas exigências. Uma delas aparece quando uma dada

disciplina utiliza tecnologias emprestadas de outras disciplinas (Kourilsky, 2002). De modo

geral, a necessidade de desenvolver novos setores, na interface das disciplinas, afeta a maioria

dos departamentos científicos. Outra exigência corresponde aosimperativos de ordem prática, à

tentativa de responder aosdesafios encontrados frente à demanda de resolução de problemas

naturais, médicos, educativos esociais, todos de natureza complexa. Poisas clausuras

disciplinares que constroem o nosso saber separam os conhecimentose tornam difícil a

cooperação entre eles. Do mesmo modo, elasseparamregularmenteos saberes formais e os

saberes experienciais e tácitos.

Por fim, evidencia-se um novo fato social que vem modificar oestatuto do indivíduo. A

importância atribuída à pessoa em vários campos (ciências humanas e sociais, ciências da

educação, medicina, preceitos da Organização Mundial da Saúde, carta dos Direitos do Homem,

etc.) torna o indivíduo cada vez mais autônomo e responsável. Essa emergência histórica,

favorecida ao longo do século XX, requer por sua vez a modificação da noção de “sujeito”, que

não pode continuar a ser considerado como um “objeto” científico. Um dos desafios da

mudança, e não dos menores, enfatiza a importância da ciência desenvolver novos caminhos

rumo à sua humanização. Comoentão, nesses desafios, conjugar as concepções das correntes

analítica, hermenêutica, dialética, pluralista, ou ainda as concepções teórico-metodológicas de

orientação reducionista, funcionalista, estruturalista, compreensiva, etnometodológica,

existencial, por exemplo, que hojesão encontradas regularmente no campo das investigações

científicas? (Alvarenga, 1994). A introdução da complexidade, rumo à qual elas nos dirigem,

convida-nos a repensar a distinção entre ciências nomológicas3 e ciências hermenêuticas4.

Acontrovérsia entre explicar e compreender (Appel, 2000), a ligação entre os imperativos pluri

3Que pretendem obter leis explicativas que tendem para a universalidade e para a

reprodutibilidade a partir de um ponto de vista explicativo unitário.

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e interdisciplinares, a busca de novas soluções direcionadas para a relação sujeito/objeto, a

hermenêutica e a fenomenologia, que promove o pensamento complexo (Wunenburger, 1990),

favorecem uma nova visão, mais aberta, mais ampla e mais complexa, do sujeito e da

subjetividade, que se tornam um dos novos terrenos de pesquisa tanto no plano metodológico

quanto no plano cognitivo.

Certos campos científicos concernentes ao ser humano são, de fato, naturalmente complexos. É

o caso da saúde, da ecologia e do desenvolvimento sustentável, da educação, da economia, etc.

Esta lista não é exaustiva. Não é surpreendente, portanto, que pudesse ter sido realizado há

pouco tempo (2012) um painel intitulado «Fundamentos da Interdisciplinaridade e

Transdisciplinaridade no Ensino, Pesquisa e Extensão», no «Encontro Acadêmico Internacional:

Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade no Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação,

Ambiente e Saúde»,organizado pela CAPES,em Brasília. Torna-se, de fato, urgente introduzir

novos diálogos entre os saberes acadêmicos (que é o caso da interdisciplinaridade) e entre os

saberes acadêmicos e os conhecimentos não acadêmicos (transdisciplinaridade). Pois, cada vez

mais, surge a questão da necessária articulação entre diferentes ramos do saber para poder

responder às dificuldades concretas encontradas atualmente. Mas fazer com que as diferentes

disciplinas dialoguem entre si ou convocar diferentes ramos do saber para fazer emergir o

sentido, a interação, a síntese e a inteligibilidade de suas associações não é fácil, e todos os

pesquisadores sabem disso. Esse fato é decorrente da dificuldade de comunicação entre os

saberes acadêmicos e as pessoas humanas, consideradas em sua globalidade.

No campo da filosofia das ciências, a construção do saber geralmente efetua a diferenciação

entre abordagens explicativas e compreensivas (hermenêuticas), o que, de certo modo, confirma

a separação entre as ciências denominadas «duras» e as ciências que têm um objetivo mais

humanista.Pois existem «objetos» que, sem dificuldade maior, podem se reduzir a um único

4Que abandonam qualquer ideia de um ponto de vista unitário para valorizar a pluralidade,

a singularidade e a introdução da imprevisibilidade.

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nível de realidade, o material5, sendo, por isso, mais«objetivos». Outros, mais complexos ou

obedecendoa outras leis, dificilmentepermitem a redução. Afinal, se éfácil circunscrever os

«objetos », inversamente, reduzir oestatuto do sujeito e suas representações não é simples: a

pessoa humanae o seu saberdificilmente podem se resumir a um simples objeto disciplinar.

Pode-se, então, ver as coisas pelo ângulo do objeto, por um aspecto puramente cognitivo no

qual observador e coisa observada postulam uma descontinuidade ou uma interação muito

fracaentre os dois, ou apreender uma dimensão interativa mais forte, em permanente mudança,

supondo uma interdependência e uma ação recíprocaque implicamo observadorna coisa

observada.

Enfim, se depois de mais de meio século de produções científicas, a emergência da

interdisciplinaridade e, mais recentemente, da transdisciplinaridade não deixam qualquer dúvida

quanto ao seu interesse científico e social (Sommerman, 2012), um de seus reais problemas é,

indubitavelmente, o de sua avaliação, que sempre corresponde mais ou menos aos modelos

disciplinares, uma vez que o que se avalia habitualmente é o objeto científico e não as pessoas

que participam da interaçãoentre as disciplinas. A avaliação interdisciplinar não corresponde a

um simples diagnóstico que resultaria no aprimoramento das relações entre as disciplinas. Trata-

se de um procedimento metódico e estruturado que procura identificar e compreender as

dificuldades encontradas pelos sujeitos (ANESM, 2013).

A Interdisciplinaridade envolve um « universo » participativo

A problemática das relações entre disciplinas remete, como constatamos, à complexidade dos

modosde pensamento e de interação pela multiplicidade de modelos utilizados,associada

ànecessidade de sua confluência(de Alvarenga, 1994). Mas isso questionatambém o quadro

epistemológicoe lógicoque sustentaessas operações. A complexidade do relacionamento entre

disciplinas e profissionais ou pesquisadores acarreta uma dificuldade de coordenação das

ações,tendo consequências em sua qualidade e nos resultados. Em sua reflexão sobre o

5Entendemos por « nível de realidade » um nível fenomenológico que é determinado por

um conjunto de leis que cooperam para a sua definição sem se contradizer.

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conhecimento interdisciplinar, Georges Gusdorf (1968) já assinalava os riscos decorrentes da

fragmentação dos conhecimentos, que conduz à impossibilidade das comunicações e da

compreensão entre as disciplinas. Jean Piaget (1973), na mesma época, adianta que nada nos

obriga a fracionar as disciplinas e que, justamente ao contrário, tudo nos impele a nos

empenharna procura de suas interações.

Outro ponto de reflexão diz respeito à complexidade do pensamento que se constroi em torno da

análise. Ela consiste em separar as coisas a fim de identificá-las e classificá-las em categorias

inteligíveis. Mas existem outras formas de pensar e outras lógicas, e não exclusivamentea

classicamente declarada como sendo a lógica aristotélica do « terceiro excluído », geradora de

separações cognitivas. Essas outras lógicas6, todas favorecendo um universo participativo,

deveriam poder ser consideradas, como por exemplo: o pensamento analógico, o pensamento

complexo, a lógica paradoxal (Paul, 2003). Cada uma delas pode, efetivamente, associar as

coisas a fim de articulá-las, o que é justamente um dos desafiospropostos pela

interdisciplinaridade.

A questão da complexidade7 :

Muitas correntes começaram a se abrir para o questionamento sobre a complexidade no campo

da ciência. Sem fazer referências amplas e considerando apenas a França, parece que foi Gaston

Bachelard, nos anos de 1940, que abriu o caminho para o estabelecimento de uma epistemologia

dialética e não cartesiana. No entanto, a corrente da Filosofia da Natureza alemã, no século

XIX, as correntes da física quântica, da fenomenologia, da teoria dos sistemas, da cibernética ou

do estruturalismo, no século XX, já haviam contestado, cada uma à sua maneira, a abordagem

positivista dominante. Todavia, foi preciso esperar o final da década de 80 para ver a palavra ser

visitada e trabalhada no campo científico. Morin (1990) chama de complexo o que sobrepuja a

confusão, o embaraço e a dificuldade de pensar a partir de um pensamento organizador, isto é,

6Elas podem, por exemplo, ser classificadas como de tipo holista, dualista, positivista, não-

dual e unária (P. Paul, 2003 ; tra. port.2009).7Cf. P. Paul, 2011 para maior desenvolvimento.

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que separa e religa. Barel (1979) especifica que há, na complexidade, um pensamento que

coloca em tensão polos contrários; tensão esta que é, ao mesmo tempo, de conivência e de

conflito, engajada num processo permanente de produção/destruição e de natureza

simultaneamente contínua e descontínua, analógica e digital, exterior e interior, imanente e

transcendente. Castoriadis (1993) vê na complexidade um entrelaçamento de níveis hierárquicos

irremediavelmente irredutíveis um ao outro. Nicolescu (1996), enfim, torna mais precisa essa

abordagem apresentando os termos “níveis de realidade”, “complexidade” e “terceiro incluído”,

conceitos provenientes de seus trabalhos em física quântica. Ele sugere, com esses termos,

diferentes níveis fenomenológicos, complexos e abertos para um real velado e para sempre

inapreensível. Há, também, outras abordagens da complexidade em obras de pesquisadores

vinculados ao Santa Fe Institute (Kauffman, Gell-Mann, Cowan), a perspectiva sistêmica de

Capra, a de Prigogine e Stengers, a Luhmann, a de Bateson, Watzlawick (escola de Palo Alto),

etc. que diferenciam, com outras perspectivas de estudos e de definições, a complexidade. A

nossa abordagem da complexidade é parte de uma corrente epistemológica que

poderiamoschamar de “francesa”, na qual se incluem autores como Morin, Nicolescu, Atlan, Le

Moigne, etc..

Se há uma antinomia relativa entre os pensamentos analítico, analógico ou complexo,em nossa

abordagem essa oposição deve ser resolvida na interdisciplinaridade. O que exige aprofundar os

níveis lógicos e epistemológicos que sustentam a pesquisa ou a ação segundo um objetivo

cooperativo e não excludente.

A interdisciplinaridade, quanto ao sujeito, responde igualmente, no sentido entendido por

Gusdorf (1968), a uma exigência humanista e integrativa. Mas, para além das reconhecidas

intenções humanistas, é preciso ver também um início de revolução paradigmática: a

inteligência da interdisciplinaridade, proveniente de uma epistemologia da complementaridade,

é oposta a todas as epistemologias da separação disciplinar. De passagem, uma referênciafinal

parece ter sido perdida em alguns procedimentos interdisciplinares, o fato de que ocentro

adotado nessa investigação deveria continuar a ser, como diz Valade (1999), a forma humana

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enquantonó de significação.De fato, oestatuto do sujeito não é habitualmenteposto questão e a

« dessubjetivação» com pretensãoobjetiva empreendida pelas disciplinas continua dominante na

maioria das abordagens interdisciplinares. Nas margens, no entanto, o reconhecimento do

sujeito pode adquirir um verdadeiroestatuto, embora a complexidade que testemunha seja

frequentemente restrita, por integrar uma somente mais uma dimensão (a biopsicológica, por

exemplo)8, ao invés de uma visão mais ampliada e global.9A ruptura epistemológicaque a

interdisciplinaridade pode oferecer não será plenamente consumada a não sersob a condição de

restituir à pessoa humanatoda a riqueza de sua complexidade. Mas introduzir a complexidade

significa reconhecer a capacidade do pensamento humano para separar e reunir. É, portanto,

justamente o sujeito que possibilita atravessar e integrar as disciplinas. Assim sendo, a

interdisciplinaridadetestemunha uma nova epistemologia da participação e da relação que

deveclarificar a interaçãoentre objetividade e subjetividade, ou ainda, entre consciente e

inconsciente.

Esse novo olhar resulta, em nossa abordagem, de uma mudança de paradigma.

Um novo paradigmacientífico ?

Graças ao reconhecimento da subjetividade na ciência, a mudança epistemológica em

construçãorestituiàs pesquisas qualitativas, emparticular, umestatuto que não era reconhecido

até então. Os fundamentos fenomenológicos, interacionistas e dialéticos vão suscitar

procedimentos que consideram de modo mais amplo a complexidade das situações e suas

contradições (Pourtois, Desmet, 1997). Nós já desenvolvemos, em outras obras, algumas

reflexões epistemológicas aqui presentes (Paul, 2003; 2013).

O interesseessencial da interdisciplinaridade é duplo.

Por um lado, a interdisciplinaridade permanece disciplinar. Nesse sentido, que é o mais

reconhecido, ela torna possível a definição de novas fronteiras disciplinares, mais abertas em

8Esse aspecto sugere interfaces, por exemplo, entre « inter » e « trans ».

9Com nossa epistemologia em níveis de realidade, que inclui três níveis fenomenológicos e um nível de transcendência.

9

relação às queos saberes atuais propõem. Na medida em que toda disciplina, no campo

científico, caracteriza-se por uma clausura que delimita o seu campo, a

interdisciplinaridadepropõedebruçar-se sobre as dificuldades ligadas a essas clausuras esobre as

suaspossíveis relações. E uma vez que o objeto mesmo das disciplinas é, epistemológica e

metodologicamente, construído de modo claro no centro de cada uma delas, é, então,

principalmente em sua periferia, nas zonas nebulosas que a interdisciplinaridade nos convida a

reconhecer e encontrar penetrar os espaços-fronteiriços que não são facilmente acessíveis

devido às clausuras disciplinares atuais.

Por outro lado, a chave do relacionamento e da integração entre as disciplinas, como

constatamos, é o próprio sujeito. De fato, quando se estabelece um diálogo entre as disciplinas,

o sujeito e sua subjetividade são necessariamente convocados. Efetivamente, o que reúne os

saberes objetivos é o esforço de síntese intelectual dos próprios sujeitos. Ademais, nesses

campos, as convocaçõesdisciplinares são conjunturais, associadas a terrenosde pesquisa

queenvolvem mixagens disciplinares e articulações invariavelmente singulares. Todo

procedimento interdisciplinar torna-se, então, fenomenológico, subjetivo, intersubjetivo,

contextual e particular, ainda que implique o reconhecimento e a integração dos saberes

disciplinares considerados como objetivos universais e reprodutíveis. A nova construção

científica torna-se, nesse sentido, paradoxal. A diferençae a relaçãoentre pluridisciplinaridade,

interdisciplinaridade e transdisciplinaridade atestam então, ao mesmo tempo, a interaçãoentre os

próprios objetos científicos disciplinares e o reconhecimento, maior ou menor, da subjetividade

dos pesquisadores, dos profissionais e dos usuários (Paul, 2011; Sommerman, 2012).

Interdisciplinaridade de tipo « pluri » e de tipo « trans »?

Nesse sentido, éprecisodiferenciar, como diz Le Moigne (2002), a interdisciplinaridade de tipo

« pluri » e de tipo « trans ».

A primeira desenvolve-se a partir das disciplinas, formando-se às suas margens sem questionar

seus fundamentos, mediante a simples importação de modelos, conceitos e

métodosutilizadosanteriormentepor outras disciplinas, geralmente vizinhas. Essaincorporação se

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efetuará sem outra necessidade de legitimação a não ser a sua eficácia. O modelo é suposto

como legítimo epistemologicamente por já ter sido validado anteriormente por outra via. Essa

abordagem foi qualificada, embora o termo proposto venha de uma análise referente à gestão,

de « ponte objeto » (Larsonneur, 2002) no sentido da criação de pontes entre as coisas, e

também de « transversalidade horizontal » entre disciplinas e funções (Genelot, 2002), ou ainda,

de «interdisciplinaridade reduzida» (Sommerman, 2012). Em todos os casos, essa

interdisciplinaridade « fraca » é validada muito mais por sua capacidade metodológica para a

resolução de problemas do que por sua legitimidade epistemológica.

A interdisciplinaridade de tipo « trans », inversamente, está mais atenta à sua legitimação

epistemológica. Ela geralmenteremete a modelos e a uma visão sistêmica que abre

fenomenologicamente a questão do sujeito para argumentar sobre as proposições referentes à

ação humana (Le Moigne, 2002). Para isso, ela recorreao principal instrumento de que dispõe o

pensamento humano, sua capacidade para separar e reunir como, por exemplo, «o pensamento

complexo» de Morin (1990), «a lógica de tipo terceiro incluído» de Nicolescu (1996) e, no que

concerne às nossas próprias pesquisas, a «lógica paradoxal» (Paul, 2003; 2013). Essa

abordagem, segundo Le Moigne (2002), não parte das disciplinas predefinidas por um par

«objeto/método», mas de um reconhecimento daspessoas valorizando o par «projeto/contexto »,

que favorece mais a compreensão do que a explicação. A interdisciplinaridade, nesse sentido,

pode ser qualificada de «ponte relação » (Larsonneur, 2002). A diferença apresentada consiste

em ver nessa relação, a ser diferenciada da «ponte objeto» que é estável, alguma coisa que está

em perpétua mutação e que pode até mesmo se autodestruir para evoluir. A interdisciplinaridade

relacional, nesse sentido, deve poder integrar seu próprio processo de transformação e de

incerteza. Na mesma direção, Genelot (2002) apresenta o termo« transversalidade vertical »,

consistindo em distinguir diferentes níveis de lógica e categorias de ordens diferentes segundo

os sujeitos, os temas e as situações. Não é porque uma coisa funciona tecnicamente em um nível

que ela também funcionará numa ordem superior contidanuma realidade mais global, por

exemplo. Sommerman (2012) qualifica essa interdisciplinaridade vertical de «ampla», na

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medida em que ela possui a capacidade de associar diferentes dimensões (mundo das imagens,

mundo das representaçõese dos conceitos, mundo das coisas e das percepções sensíveis).

Um esclarecimentosobre a epistemologia científica

A reflexão epistemológica que se segue foi desenvolvida, com algumas diferenças, por ocasião

de nossa apresentação no painel do encontro supracitado, organizado pela CAPES, em Brasília

(2012), bem como num livro publicado recentemente (Paul, 2013).

Os elementos que constroem essa abordagem valem tanto para a interdisciplinaridade quanto

para a transdisciplinaridade. Existem, certamente, diferenças entre essas duas abordagens, tanto

em termos dos campos convocados (a transdisciplinaridade abre-se mais facilmente para o

reconhecimento dos saberes não acadêmicos, experienciais, tácitos e implícitos) quanto

doestatuto do sujeito (mais amplo e global no caso da transdisciplinaridade)10. Mas, em seus

fundamentos, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade baseiam-se na mesma vontade de

mudança paradigmatica, conceitual e metodológica. Ambas devem ser consideradas, nesse

sentido, como complementares e interpenetradas.

Convém igualmente situar a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade em sua relação com

as disciplinas. Essas reflexões não são recentes (c.f.Nicolescu, 1997 ; Morin, 1998 ; Pineau,

2000 ; Paul, 2003). Se o campo disciplinar valoriza a objetividade, sempre presente no caso das

abordagens pluridisciplinares que continuam disciplinares, o movimento de subjetivação, mais

ou menos importante em função da interdisciplinaridade ser de tipo « inter » ou de tipo

« trans », é parte integrante, embora em diferentes graus, das abordagens interdisciplinares.

Pensar sobre a epistemologia, de modo simples, consiste na descrição inicialdo observador e da

postura da inteligênciamediante a qual ele vai analisar. Esses dois aspectos, ontológico (como

eu me posiciono para observar?) e epistemológico (como eu analiso a minha observação?),

compõem os postulados iniciais de todo processo cognitivo. A cada um desses postulados

10Cf. por exemplo Paul, 2011 e 2013 ; Sommerman, 2012.

12

corresponde um princípio metodológico que é a sua aplicação: qual método eu utilizo para

observar e para analisar?

A construção da ciência clássica baseia-se, nessa ótica, em duas hipóteses, ontológica e

determinista, bem como em dois instrumentos metodológicos, o reducionismo e o princípio

aristotélico de razão suficiente. A hipótese ontologica apresenta a realidade como independente

dos observadores: uma coisa é o que ela é, estejamos presentes ou não para observá-la. Essa

concepçãopermite o reducionismo eadivisão disciplinar. Na medida em que é difícil apreender o

todo objetivo, o reducionismo visadelimitar e fechar os campos do conhecimento para torná-los

mais eficientes e operativos. Oprimeiro reducionismo visaà eliminar qualquer forma de

subjetividade, necessariamente suspeita de não reprodutibilidade, na ciência. A esse

reducionismo por eliminação soma-se outro reducionismo, ometodológico:a decomposição do

todo em partes, em categorias disciplinares preestabelecidas; a clausura dos campos

disciplinares; a redução aos objetos (independente da subjetividade); e em um único nível de

realidade, o material. No final do processo, a soma das partes recompõe o todo. A epistemologia

positivistaafirma-se, nesse sentido, comomonismomaterialista. A hipótese determinista se

vincula a um estudo objetivo dos fenômenos observáveis mais que ao estudo das interfaces ou

probabilidades entre os fenômenos11. A hipótese determinista decorrente não é espacial, mas

temporal e diacrônica. A separação passado/futuropropõe a existência de uma causalidade

anterior que explica a realidade de modo único, reprodutível, objetivo e permanente (Le

Moigne, 1995).

11A interdisciplinaridade também pode ser vista como subsequente ao pós-positivismo, às abordagens

hermenêuticas e ao método interpretativo, sendo que todos eles consideram que só se pode construir o

conhecimento mediante uma constituição social que passa pela consciência (Morrow; Brown, 1994).

13

Sua teoria postula, então,que a totalidade do saber poderia tender à sua recomposição por meio

da soma dos saberes disciplinares.Este já é processo oferecido pela pluridisciplinaridade. Mas,

concretamente, esse processonão é claramente definido no métodocientífico: a questão do

encerramento das disciplinas é mais claramente definida do que essa das relações entre as

disciplinas, que se abre mais para a incerteza associada com as interações. E ele é igualmente

difícil de pôr em prática: não basta, com efeito, somar os conhecimentos disciplinares para

recompor a universalidade do saber. Porque, como vimos, as fronteiras que separam os objetos

disciplinares continuam sendo zonas nebulosas e as interaçõesque nelas se descobrem não são

integradas pela teoria reducionista. A metodologia das ligações interdisciplinares não faz parte,

portanto, dos fundamentos da teoria científica.Não é surpreendente,então, ver surgir na história

das ciências, desde o final do século XIX, no interior mesmo das correntes disciplinares, as

«contracorrentes » que visam à compreensão das relações, como testemunham, cada uma à sua

maneira,a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a

transdisciplinaridade (Sommerman, 2012).

Rumo a uma mudançade paradigma?

Duas questões emergem, como constatamos, quando se trata de pensar sobre a recomposição

das relações entre as disciplinas. Uma delas dirige-se para a relação entre osobjetos disciplinares

em si mesmos. A outra vai tentar integrar, para além das disciplinas, o sujeito cognoscente. Se a

questão das relações entre as disciplinas enquanto tais pertence principalmente à

pluridisciplinaridade ou a uma interdisciplinaridade «fraca», a introdução do sujeito na ciência

cabe bem mais à interdisciplinaridade « forte » e à transdisciplinaridade. Nos dois casos, o

estatuto do sujeito se modifica em relação ao paradigma científico clássico. De fato, como

apresentamos na introdução, cada vez mais os pesquisadores, particularmente nas ciências

humanas, estão convencidos de que os fatos observados são dependentes das observações, mas

também das concepções, teorias e hipóteses que sustentam a pesquisa.Os fatos não seriam,

portantosenão o resultado do posicionamento do pesquisador. E mesmo que sua observação seja

científica, elaé sempre o produto de seus sentidos e de sua representação do mundo. A partir daí,

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a aceitação da relatividade da observação e da interpretação dos fatos torna possível o

pluralismo epistemológico e, consequentemente, uma abordagem mais rica da realidade

(Pourtois, Desmet, 1997).

As novas abordagens qualificadas de pluri, inter e transdisciplinaridade baseiam-se justamente,

para além da problemática das relações entre disciplinas, num alargamento da hipótese

ontológica e da hipótese determinista, abrindo-se para a complexidade do sujeito e

reintroduzindo um jogo dialético entre objetividade e subjetividade, consciente e inconsciente,

causalidade e teleologia... A introdução do sujeito na ciência, não como objeto científico, mas

como participante da observação e interferindo nela, como é o caso na física quântica ou em

numerosas disciplinas, é nesse sentido uma verdadeira revolução científica que vem pressionar

o paradigma dominante.

Para Thomas Kuhn (1983), um paradigma é uma atribuição, historicamente desenvolvida,

partilhada por uma comunidade de conhecimento. Inversamente, uma comunidade científica

consiste em pessoas que partilham um mesmo paradigma. Aderir a um paradigma significa ao

mesmo tempo apropriar-se de certos conteúdos teóricos, submeter-se a certas normas da

pesquisa científica e adquirir um saber-fazer que não pode se reduzir unicamente ao

conhecimento dos conteúdos teóricos.

Kuhn propõe uma concepção de progresso científico que concede um lugar importante aos

fatores psicológicos e sociais, pondo em evidência certos aspectos não verbais da atividade

científica.

Para ele, um paradigma é uma representação coerente do mundo que se apoia numa percepção,

num tipo de lógica e numa teoria que o especificam, mas que está atuando em nosso

comportamento de maneira inconsciente. Nesse sentido, é importante se interrogar sobre a

dimensão «metafísica» dos paradigmas, particularmente sobre sua dimensão ontológica e

heurística. Mas os diferentes membros de uma comunidade científica não concordam

forçosamente sobre o mesmo estatuto ontológico e heurístico, na medida emque eles nem

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sempre têm a mesma convicção frente aos modelos metafísicosassociados a um dado

paradigma. Um distanciamento maior pode provocar, então, uma mudança de paradigma.

Cada paradigma oferece uma das possibilidades de conhecimento, mas também se opõe a outro

conhecimento diferente, criando obstáculos para o surgimento de novas soluções mais

adequadas.

Os trabalhos de Kuhn foram certamente criticados. Não entraremos nessa discussão. Areflexão

paradigmática, em todo caso, pode se realizar legitimamente no que diz respeito à

interdisciplinaridade por sua relação com a subjetividade.

Com relação à questão do sujeito, devemos principalmente questionar, nesse debate, o estatuto

da ontologia científica. O ser no mundo, parafraseando Heidegger12, pode ser definido por uma

única posição, a de um « objeto »? De fato, se o real é independente dos observadores, a

identificação do sujeito com o objeto tende a fazer desaparecer (idealmente) qualquer forma de

subjetividade: a ontologia desenvolve-se, então, em umúnico nível de realidade: físico e

biológico (monismo materialista). Mas ametodologia científica, visando à objetividade e à

separação entre as disciplinas, tem limitações para integrar à questão uma visão expandida que

incorporea subjetividade (tornando difícil a introdução da imaginação, do inconsciente e do

saber experiencial, por exemplo), o que pode interferir nos resultados esperados. Aatual

mudança de paradigma surge assim como continuidade e como ruptura em relação ao

paradigma anterior. Continuidade, porque a interdisciplinaridade respeita a divisão e os saberes

disciplinares. Ruptura, porque a metodologia do novo paradigma apresenta o movimento

inverso, o da tentativa de ligações. Essas ligaçõespodem incluir, em alguns casos, os saberes

das culturas, o saber experiencial, tácito, empírico e tudo o que constitui o conhecimento

informal envolvendo o sujeito e a subjetividade, com um ponto de vista contraditórioem à

objetividade científica, que objetiviza o sujeito (redução).

12 A noção de «ser no mundo» foi desenvolvida pelo filósofo alemão Martin Heidegger no tratado “Ser e Tempo” (Sein und Zeit) de 1927. Nessa obra, ele se propôs a recolocar a questão do «sentido do ser» que, para ele, foi esquecida pela metafísica tradicional (N. da T.).

16

Afinal, essa mudança envolvea necessidade de juntar continuidade e ruptura, o que pede o

desenvolvimentode um pensamento complexo e paradoxal, de tipo sistêmico, para integrar e

ultrapassar a epistemologia clássica. No sentido em que na interdisciplinaridade e na

transdisciplinaridade o real inapreensível se situa entre e além das disciplinas e das pessoas,

toda transformação exterior social, por exemplo, tem repercuções sobre o autoconhecimento do

sujeito e, por outro lado, toda transformação interior tem implicações ecológicas, políticas,

educativas sobre o mundo exterior. Isso nos aproxima das perspectivas de trabalhos como os de

Edgar Morin e Boaventura Souza Santos, que defendem uma mudança paradigmática por razões

inclusive políticas e societais.

Uma nova concepção do sujeito e da ontologia

A metodologia científica reduz o mundo e o sujeito a objetos disciplinares. O não reducionismo

não é disciplinar. No entanto,deve haver o cruzamento entre reducionismo e não reducionismo.

Esse processo promove uma abertura às novas perspectivas epistemológicas e dialéticas, mais

globais e mais gerais (Paul, 2012).

No novo método científico, a integração do sujeito é mais ampla e mais global, não se limitando

ao seu estatuto de objeto. A hipótese fenomenológica, ao incluir o posicionamento ontológico

da ciência como uma das suas possibilidades, desemboca então num pluralismo ontológico,

ontogenético e antropoformador(Paul, 2013). Nesse sentido, a hipótese fenomenológica em que

se apoiam a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade inscreve-se nas abordagens

hermenêuticas e interpretativas clássicas da filosofia ou da socioantropologia, por exemplo. Mas

seus fundamentos, repousando na complexidade, estipulam a noção de níveis de realidade

inscritos no quadro de uma fenomenologia plural.

A hipótese fenomenológica que se apresenta com a mudança de paradigma baseia-se num «

antirrealismo », fazendo com que as propriedades dos objetos sejam dependentes da postura de

observação, necessariamente plural. Os diferentes níveis fenomenológicos (ou níveis de

realidade) dependem dos diferentes níveis de percepção e de análise, embora em si e para além

17

de qualquer fenomenologia, o real seja inapreensível, postulando um «buraco negro do

conhecimento» final.

Esses diferentes níveis fenomenológicos que surgem com a progressão da abertura em relação

ao sujeito postulam uma ontologia em diferentes níveis de subjetividade interligados a

diferentes níveis de realidade, o conjunto desenvolvendo o conceito de antropoformação (Paul,

2013): ecoformação (o modo pelo qualnossa relação com o mundo nos forma); heteroformação

(o modo pelo qual nossa relação dual com os outros nos forma); autoformação (o modo pelo

qual nossa relação conosco mesmos nos forma); ontoformação (nossa relação formativa com o

sagrado, o Ser), o conjunto estando radicado em um real13 inapreensível em si. É o processo

antropoformadorque recompõe, no final, a totalidade das possibilidades perceptivas e

cognitivas. Ele renova a questão da ontologia integral, que se desenvolve com a progressão da

integração dos diferentes níveis de realidade humana em ligação com a construção identitária

(Paul, 2013).

Cada nível de realidade, por ser diferente de outro, sugere leis que lhe sãoparticulares, mas que

diferem de um nível de realidade para o outro. Essas leis, que sustentam uma fenomenologia

específicaa cada nível, manifestam uma espacialidade, uma temporalidade e relações intra e

interssistêmicas que lhes são peculiares. É no campo das relações interssistêmicas entre níveis

diferentes de realidade que se pode apresentar melhor a problemática da complexidade14.

Na medida em que se inscreve umainterdependência do objeto e do sujeito (importância das

interações e retroações) e uma abertura para diferentes níveis fenomenológicos dependentes dos

observadores, a complexidade é o resultado da tecedura entre diferentes níveis de realidade do

objeto e diferentes níveis de percepção do sujeito. No final do processo, o todo é superior,

graças às interações, à soma das partes: os saberes disciplinares não se perdem, mas se somam à

13Designando o que não é qualificável nem quantificável, ou seja, que continua

desconhecido. A relação entre ontoformação e real recompõe as ligações, por exemplo,

entre teologia positiva e negativa (ou catafática e apofática).

14Lembrando que « complexus » significa « tecer junto».

18

riqueza das interações, com o surgimento de novas perspectivas (capacidade criativa e

integrativa dos sujeitos). A lógica entrecruzada de elucidação-explicação (objeto) e de

acompanhamento-compreensão (sujeito) possibilita a emergência de fenômenos imprevistos.

Uma mudança de lógica que dá acesso aos paradoxos e à complexidade

A hipótese paradoxal, em sua pluralidade constitutiva, integra a hipótese determinista

(causalidade anterior e explicativa) como um de seus casos particulares. Considerando a

pluralidade de relações entre sujeito e objeto que a hipótese paradoxal sustenta, a hipótese

determinista é a expressão de uma interação muito fraca entre os dois termos. Essa nova

categoria de entendimento, paradoxal, não é constitutivada objetividade, como a abordagem

determinista. Ela integra a objetividade abrindo-a, uma vez que o determinismo é um dos

tiposde conhecimento reconhecidos. Mas outros posicionamentos são possíveis.Do mesmo

modo, se não é negada uma ou várias causalidades anteriores que permitem explicar a razão de

um fenômeno, isso é visto em diferentes níveis (disciplinares, lógicos, fenomenológicos...). A

mudançade lógica, e de paradigma, integraigualmente, contraditoriamente à causalidade, uma

teleologia que permite compreender o sentido de um processo pelo fato de que a sua finalidade

já está implicitamente inscrita desde a sua origem (recursividade dos sistemas). Essa abordagem

não é, portanto, diretamente causalista ou finalista, e sim cibernética e sistêmica.Ademais, frente

ao determinado encontra-se o indeterminado. Todo resultado supõe a interação do identificado

com o não identificado. O imprevisto faz parte da epistemologia, que, a partir daí, não possui

qualquer vocação para uma reprodutibilidade constante ou universal: tudo está em função do

contexto, o que é válido em um caso jánão é válido em outro. A interação entre as partes

convocadas engendra qualidades ou elementos surpreendentes pela emergência de fenômenos

novos e imprevisíveis: citando uma célebre frase de Pascal, o todo se torna maior do que a soma

das partes.

Na medida em que os níveis fenomenológicos são concebidos como hierárquicos e não

hierárquicos, distintos ou imbricados, a complexidade é admitida. A metodologia reducionista,

gerando a clausura das disciplinas, é substituída, na interdisciplinaridade, por uma metodologia

19

do complexo. Esta enuncia que os níveis fenomenológicos são o resultado da tecedura entre os

níveis de percepção que testemunham as relações entre objeto e sujeito (Paul, 2013).Esses

níveis são frequentemente denominados «níveis de realidade». Cada nível de percepção

corresponde a um tipo de lógica particular. Segue-se a isso que cada um dos níveis de realidade

só é apreensível em função da adequação existente entre a postura fenomenológica da

observação selecionada, a capacidade do observador para percebê-la (o que postula diferentes

modos perceptivos) e pensá-la (postulando, por sua vez, diferentes tipos de racionalidade).Há,

portanto, uma relação entre níveis de percepção e níveis ontológicos e lógicos, o que caracteriza

o processo mesmo de ontogênese e de antropoformação.

O conjunto de níveis fenomenológicos recompõe a complexidade da malhagem humana. É,

então, complexo aquilo que questiona cada um dos níveis separadamente e que pode ao mesmo

tempo reunir e integrar os níveis entre si. Essa aptidão da interdisciplinaridade permite

reconhecer uma de suas características: ela direciona para uma epistemologia das dobras, das

rupturas, mas também das pontes, das ligações e interações que se situam não somente entre as

disciplinas (postura fraca), mas também entre níveis diferentes de realidade do sujeito (postura

forte). Essa abordagem, além das rupturas e das pontes, supõe também considerar os circuitos

recursivos, os imbricamentos, as ressonâncias possíveis entre os níveis. É, enfim, a introdução

de um «buraco negro»acolhendo o « real » que oferece ao sistema a sua imprevisibilidade e a

sua abertura, permitindo todas as possibilidades transformadoras e criadoras.

Esses níveis devem ser entendidos como estando inscritos nas relações, mais ou menos fortes ou

fracas, entre o objeto e o sujeito (Paul, 2003). Essas interações podem se referir às relações

intersubjetivas ou intrassubjetivas. Tratar-se-á, então, de respeitar essas diferentes posturas para,

idealmente, favorecer as pontes entre elas. A intrassubjetividade, por sua vez, postula que cada

ser humano está envolvido, mesmo sem que o saiba, em um processo de ontogênese que se

constrói mediante um percurso de integração progressiva dos diferentes níveis de realidade que

o constituem, sugerindo diferentes fases de construção da própria identidade (Paul, 2013).Essa

circunstância, igualmente sugerida por Martin Buber (1989) em « Le chemin de l’homme »,

20

valoriza, enquanto visão teleológica, a significação existente em que cada um realiza a sua

« virtude própria ». Paralelamente, essa afirmação supõe por sua vez, enquanto pluralidade

original, que cada um atue « de acordo com sua própria fase ». A evolução da pessoa supõe,

nesse sentido, crises cognitivas, rupturas e integrações que são oportunidades de efetuar

passarelas entre diferentes pontos de vista e possibilidades de mudança do olhar. Essas

transformações perceptivas e cognitivas, como processo de ontogênese, constroem passo a

passo o percurso transformador.

Alguns elementos de reflexão referentes à avaliação de projetos e de programas

interdisciplinares

Uma das principais questões, nas organizações oficiais, é de saber como avaliar os projetos

interdisciplinares ou transdisciplinares,uma vez que os sistemas de avaliação baseiam-se na

disciplinaridade. Um grupo de avaliadores de programas já deveria poder abranger, para manter

a coerência, um grupo pluridisciplinar. As avaliações também poderiam ser efetuadas por vários

grupos de examinadores separados, tendo cada um competências diferentes.Pode-se sugerir

também um conjunto de pessoas com as mesmas experiências profissionais e cujo saber-fazer

apresenta o mesmo grau de complexidade que o projeto a ser avaliado. A ideia é de que o

avaliador tenha interiorizado uma representação do produto esperado em termos da

problemática, da expressão, da estruturação e da argumentação (Maingain, Dufour, 2002).

Uma apreciação referente à epistemologia e à metodologia, mais ou menos redutoras ou

integradoras, deveria também poder nos esclarecer quanto à validade de um projeto ou de um

programa interdisciplinar. Mas a avaliação também requer um questionamento sobre o estatuto

do sujeito, da subjetividade, das inter-relações subjetivas e sobre os fatores de qualidade.

A questão da relação entre as disciplinas

Uma síntese simplificada dos trabalhos de Klein (1990) e Repko (2008) pode permitir clarificar

os dados metodológicos que validam um procedimento interdisciplinar.

De modo geral, a metodologia interdisciplinar exige :

- definir o problema;

21

- identificar os saberes relevantes das disciplinas;

- avaliar os caminhos nos quais eles podem gerar conflito;

- integrar os saberes;

- engajar a “negociação dos papéis” (no trabalho em equipe...);

- produzir uma compreensão interdisciplinar do problema: criar ou descobrir o conceito, a teoria

ou a hipótese que é seu fundamento comum.

O conjunto sugere refletir, anteriormente à pesquisa, sobre os critérios e qualidades esperadas

capazes de se tornarem indicadores positivos ou negativos da validação (Maingain, Dufour,

2002).

Esse processo metodológico é essencialmente uma ajuda para a relação entre as disciplinas ou

entre as áreas disciplinares.

A observação epistemológica

A mudança de postura intelectual supõe validar o percurso do pesquisador e da pesquisa

propondo avaliar seu conteúdo epistemológico e metodológico. Éimportante, emparticular, não

priorizar as metodologias baseadas unicamente nas abordagens hipotético-dedutivas ou

quantitativas, a fim de favorecer uma abordagem centrada nas pessoas (métodos qualitativos,

fenomenológicos e indutivos) ou na complexidade (metodologias dialética, dialógica,

« dialogante », etc.), que possibilitem as pontes entre quantitativo e qualitativo, hipotético-

dedutivo e indutivo... Como a interdisciplinaridade não se satisfaz nem com a objetividade da

ciência nem com a subjetividade das pessoas, a avaliação deve considerar sua articulação

dialética. Mas ela abre, então, para uma relação singular entre « objeto » e « sujeito » que supõe,

invariavelmente,a necessidade de articular paradoxalmente os conhecimentos provenientes do

reducionismo dos objetos disciplinares com a complexidade e globalidade (mais ou menos

implicada) do sujeito atuante.Mas, nesse caso, é frequente encontrar tensões ou conflitos entre

pontos de vista (epistemológicos, disciplinares, lógicos, subjetivos) diferentes. Existem também

tensões entre teorias e conceitos que remetema interpretações contraditórias quemuitas vezes,

dependemdo « nível de realidade » no qual cada um, sem que o saiba, se situa. Essas tensões,

22

que não devem ser eliminadas, são significativas e criadoras de soluções e de sentido. A

interdisciplinaridade de tipo « trans », em particular, como vimos, desloca os critérios de

legitimação dos conhecimentos à partir da objetividade direcionando-se para a interação entre

objetividade e subjetividade. Já não é o método utilizado que legitima o procedimento, mas

justamente a adequação entre os conhecimentos disciplinares convocados, o contexto no qual

eles intervêm e a capacidade de síntese das pessoas que disso pode resultar 15. A aptidão para

utilizar uma pluralidade de formas e de lógicas deveria, nesse sentido, ser levada em conta

como, por exemplo, a utilização conjunta ou separada da lógica discursiva e de pensamentos de

tipo analógico, complexo ou paradoxal, que podem associar as coisas a fim de articulá-las.

A modelização

A utilização de modelos é também um elemento positivo da avaliação. Um modelobaseia-se,

efetivamente, numa analogia entre algo inteligível e algo que não é facilmente acessível ao

conhecimento por ser muito complexo. A utilização de modelos abertos, que acolhem o

indeterminismo, é um dos indicadores da mudança paradigmática: à medida que a complexidade

estudada aumenta, o determinismo do sistema diminui. A clarificação dos modelos utilizados é,

portanto, um aspecto importante da avaliação quando :

- apreciam o modo pelo qual os diferentes modelos utilizados ou as diferentes

metodologias disciplinares convocadas, possivelmente divergentes, articulam-se e cooperam;

- especificam a congruência dos modelos com os princípios epistemológicos e éticos da

interdisciplinaridade;

- favorecem uma problemática aberta (um sistema aberto) entre posturas eventualmente

contraditórias entre si. Cada uma enriquece as outras com seu ponto de vista, a divergência de

opiniões sendo mais uma riqueza do que uma restrição, porque ela evita a uniformidade, o

15 Vale ressaltar que esta é uma proposição do autor do capítulo e não necessariamente uma

“nova verdade”.

23

dogmatismo e o erro mediante a utilização de uma metodologia que integra as contradições

(triangulação, metodologia dialética, da tecelagem...) ;

- evitam as simplificações precipitadas de modo a respeitar mais a complexidade

e o indeterminismo, que se associam a uma « objetividade fraca », retomando um

termo do físico Bernard D’Espagnat.

A questão geral do sujeito

Um recente estudo transversal, realizado por Sommerman (2012), confirma a importância de se

considerar o sujeito na interdisciplinaridade. Paraele, uma « formação maisampla da pessoa » ou

o « desenvolvimento devalores e atitudes » específicas são apostas importantes. De fato, o

desenvolvimento quase que exclusivo datecnologia e o aumento progressivo do domínio da

natureza, levando à sua destruição, não favorecem de modo algum o desenvolvimento de

valores humanos e naturais. A formação disciplinar por sua vez, em nossa hipótese, mantém a

fragmentação da percepção humana e distancia o sujeito de si mesmo. A educação das pessoas

deveria, portanto, valorizar cada vez mais o desenvolvimento de valores e atitudes sociais de

cunho humanista ea abertura para outros pontos de vista, favorecendo a pluralidade cognitiva,

socialecultural.Uma das riquezas da interdisciplinaridade, a ser tambémentendidacomo um

indicador, é a maneira pela qual o projeto desenvolve novos caminhos rumo à humanização.É

relevantemanter aberto o debate sobre os humanismos e seus usos ideológicos.

A multirreferencialidade, um pensamento crítico, um olhar global e aberto capaz de se

aproximar da complexidade, uma abordagem mais ampla da pessoa e o auto-reconhecimento

das próprias representações subjetivas fazem parte das expectativas interdisciplinares. Uma

abordagem participativa e aberta em relaçãoaos saberes não acadêmicos, experienciais e tácitos

pode também ser esperada em termos d’avaliação (Sommerman, 2012). Enfim, a capacidade de

desenvolver uma reflexão metacognitiva abrangendo a explicação dos procedimentos, o

julgamento sobre as produções e a regulação dos processos mentais dos atores são também

sugeridos como expectativa associada à interdisicplinaridade (Maingain, Dufour, 2002).

A questão do sujeito: a abordagem individualizada

24

A construção de uma situação de aprendizagem ou de pesquisa exige que os saberes em questão

sejam primeiramente analisados e coordenados. Mas é igualmente importante reconhecer o

funcionamento de cada um dos sujeitos envolvidos no procedimento interdisciplinar. É somente

depois de efetuar esse trabalho que será possível ajustar os objetivos e negociar as perspectivas.

O que podemos compreender a respeito do outro a partir de nossas próprias representações? O

que podemos propor que seja claro, compreensível, realista, individualizado no contexto da

pesquisa, da ação ou da formação? A ideia é de poder identificar as representações e avaliar as

possibilidades integrativas de cada pessoa. Esse conhecimento é necessário para orientar a busca

de fontes de informação que permitirão responder às questões formuladas, analisá-las e integrá-

las. A título de exemplo,essa etapa poderia basear-se numa série de entrevistas individuais

realizadas no início da pesquisa, mas também podendo ser escalonadas no tempo em função das

necessidades. A repetição das entrevistas tem por finalidade abordar os problemas estabelecidos

de modo individual ou grupal em várias sequências, e a cada vez com apostas diferenciadas.

Poderia tratar-se também de um processo interativo entre os participantes a fim de instituir uma

« carta » ao mesmo tempo metodológica e ética. A metodologia das histórias de vida pode

mostrar-se pertinente nas pesquisas de campo, pois ela pode ajudar a compreender um

funcionamento e a modificar as ações de modo espontâneo ou pela prática educativa. As

entrevistas podem ser realizadas individualmente, numa relação singular, ou por uma equipe, no

contexto de uma dinâmica de grupo. Trata-se, em todo caso, de desenvolver uma escuta não

seletiva e empática. Outras escolhas podem, certamente, ser consideradas.

A questão do sujeito: relações intersubjetivas

As relações intersubjetivas supõem, entre outras coisas, o desenvolvimento de uma cultura

partilhada no interior de um trabalho de equipe ou de um grupo de pesquisa, o que requer o

estabelecimento de uma linguagem comum, de uma ética e, se possível, de uma interação prévia

ou progressiva entre os profissionais. Poisnão é fácil criar um diálogo efetivo e com objetivo

concreto entre profissionais e/ou pesquisadores que possuem origens disciplinares e mesmo

culturais diferentes. Essa operação deve abranger ao mesmo tempo os dados gerais, cognitivos,

25

em ligação com os instrumentos disciplinares, e os dados específicos a cada um dos campos

abordados, pois cada um deles possui suas próprias particularidades. A presença de uma

linguagem comum ou do desejo de seu desenvolvimento pode fazer parte da avaliação de um

projeto interdisciplinar.

A intersubjetividade supõe que o outro não se situa necessariamente no mesmo nível perceptivo

ou no mesmo tipo de lógica da nossa própria percepção ou compreensão do real. É importante,

então, reconhecer e respeitar essas diferentes posturas para, idealmente, favorecer as pontes

entre elas.

Pode-se também tentar formular quais seriam as competências necessárias e as que poderiam ou

deveriam ser desenvolvidas no projeto mediante a construção de um programa co-construído e

coordenado pelas pessoas envolvidas. Os objetivos visados, as competências a serem adquiridas

e as disciplinas convocadas são definidas em ligação com o projeto. Elas são, portanto,

examinadas de modo refletido, negociadas e depois planificadas no tempo, favorecendo a

coerência com os objetivos propostos, adaptando-os ao que é realizável e valorizando a

cooperação. A questão do diálogo entre pessoas de disciplinas e de profissões diferentes é um

elemento central da reflexão interdisciplinar. O que requer observar aquilo que é fonte de

confluência, mas também de divergências, de diferenças, de tensões entre pontos de vista e entre

as pessoas, e que poderia originar a ultrapassagem das próprias referências disciplinares de cada

um de modo a promover uma abertura para novas escolhas conceituais e metodológicas. Trata-

se de sabertambém como os pontos de vista divergentes entre os profissionais e/ou

pesquisadores da equipe são evidenciados para apreciar de que modo essesdiferentes olhares são

utilizados na concepção ou no decurso da realização do projeto. Mais diálogo, maior pertinência

e maior realismo tornam-se objetivos interdisciplinares. Trata-se igualmente de apreciar melhor

as expectativas e as demandas de modo a estabelecer as hipóteses ou ações que respondam às

necessidades específicas, individuais ou coletivas, mas sempre definidas e delimitadas. Quanto

mais precisos e delimitados forem os objetivos, melhores serão a metodologia e a compreensão,

e mais concretas serão as ações. Ademais, as competências definidas e delimitadasserão, no

26

caso de insucesso, mais fáceis de avaliar. Consequentemente, um procedimento interdisciplinar

não pode ser definido antecipadamente e imposto. Ele deve ser visto como uma co-construção

que responde às necessidades (favorecendo as competências cruzadas, as metodologias

indutivas...). Procede-se por alargamentos sucessivos para se chegar às ações que abarquem as

pessoas, os diversos ambientes e a maneira pela qual os diferentes atores envolvidos vão poder

colaborar para a construção do projeto.

De modo amplo, a seleção dos critérios indicadores do comportamento dos atores entre si faz

parte de uma abordagem interdisciplinar e transdisciplinar (Paul, 201316). Por exemplo :

- apreciar a vontade de aprender a trabalhar conjuntamente ;

- definir as competências dos diferentes atores no projeto envolvido e apreciar o modo

pelo qual se estabelecem as sinergias;

- apreciar a transversalidade das funções e como se efetua a coordenação (internamente,

mas também externamente : instituições, financiadores...) ;

- esclarecer : Como se efetuam as reuniões de planejamento dos projetos? Como se

efetuam as reuniões de regulação? Como são explicitados os elementos que compõem a

coordenação do trabalho, das funções e das atividades?

- identificaras estratégias de comunicação entre os atores e entre eles e as autoridades

tutelares e de financiamento;

- perceber se há, ou não, descentração quando ocorrem dificuldades : distanciamento,

desenclauramentos, aberturas;

- saber se há a elaboração de uma linguagem ou de um vocabulário comuns (ou

referências culturais comuns) que permitam o desenvolvimento das reflexões e a construção de

um projeto comum, com objetivos compartilhados, a partir de uma compreensão mútua;

16Obs. Essas metodologias e avaliações não são provenientes de procedimentos pessoais,

mas associados à questão da Educação Terapêutica, na França. Cf. nas referências

bibliográficas, o livro aqui citado.

27

- saber favorecer uma mudança de referências entre as pessoas mediante a utilização de

lógicas diferentes.

A abordagem interdisciplinar se constroi no horizonte dessas interações, que tendem para a sua

integração recíproca.

A questão do sujeito: relações intrassubjetivas

A melhor descoberta de si mesmo, dos outros e do mundo também representa um dos

indicadores interdisciplinares pertinentes a ser integrado na avaliação, bemcomo o

questionamento sobre a capacidade de transformação e de abertura das pessoas participantes.

Nesse sentido, desde o início do projeto, é preciso definir quais serão os indicadores mais

pertinentes que poderão informar sobre a situação da construção do saber, sobre o modo e a

qualidade da sua aplicação e sobre o reconhecimento da dimensão não verbal implícita na

comunicação verbal. Em outros termos, deve-se estar atento às relações que articulam o

consciente e o inconsciente. A avaliação deve, por exemplo, integrar as dificuldades e as

resistências pessoais que põem em dúvida o sentido, a praticabilidade e os ajustamentos.

Globalmente, seria o caso de distinguir, como na Educação Terapêutica, a avaliação das

competências pessoais de ordem intelectual (cognitivas), de ordem gestual e técnica (campo

sensório-motor), de ordem relacional (psicoafetivas) e de ordem global (d’Yvernois, Gagnayre,

2008). Mas isso exige também o reconhecimento das nossas próprias representações, das nossas

dúvidas, da nossa abertura frente ao desconhecido e, de maneira ampla, de todo o poder

operativo de nosso inconsciente.

Trata-se igualmente de resgatar os elementos que desenvolvem uma abordagem global da

pessoa e que envolvem o cognitivo, o sensorial, o emocional e o intuitivo no processo. Essa

abordagem global não deve somente ser reconhecida, mas também integrada pelo vaivém entre

as percepções provenientes da experiência, as emoções engendradas e a teoria. É preciso,

portanto, ao mesmo tempo conceitualizar o vivido e colocá-lo em prática mediante os novos

conhecimentos. A interdisciplinaridade intrassubjetiva deve, consequentemente, poder também

apreender o nosso próprio processo de representações, de transformação e de incerteza.

28

Finalmente, na medida em que a interdisciplinaridade,em nossa perspectiva,possuium objetivo

humanista, toda avaliação do bem-estar e da qualidade de vida (em ligação com o ambiente

natural, profissional, pessoal, familiar, abrangendo a relação entre as pessoas, a arte, a estética,

etc.) deve ser considerada e valorizada.O reconhecimento do inconsciente e sua articulação com

o consciente oferece também algumas reflexões sobre a realidade cotidiana de algumas

profissões (bancários, médicos, professores, pesquisadores, etc.) que estão imersas em múltiplas

frentes de trabalho, emocionalmente tensas, com escolhas entre vida profissional e vida pessoal

difíceis de ser tomadas. Essas tensões são geradoras de conflitos inconscientes e de doenças, em

ligação com a valorização apenas do objeto (a profissão) e com o não reconhecimento do sujeito

e da sua realidade subjetiva.

Para concluir, devemos lembrar que as reflexões desenvolvidas em direção a uma nova relação

epistemológica entre o objeto e o sujeito estão necessariamente, como todo procedimento

científico, em debate. Mas os desafios associados à necessidade de uma mudança de paradigma

(geradora de uma nova construção social) são enormes neste momento particular da história

humana. A responsabilidade por essas mudanças cabe, parcialmente, aos intelectuais e,

consequentemente, ao mundo do ensino e das universidades, que podem insuflar novos valores.

Esperamos que esse desafio seja aceito.

 

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