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AOS PRESBÍTEROS Enzo Bianchi Prior de Bose 1 “O Filho não pode fazer nada por sua conta” (Jo 5,19 e 30); “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). Este “nada” que os discípulos partilham com Jesus exprime ao mesmo tempo a força e a fraqueza do ministério apostólico. Joseph card. Ratzinger INTRODUÇÃO Caros irmãos presbíteros na Igreja de Deus, Ao longo dos últimos anos, em diversas circunstâncias alguns bispos da Igreja de Deus que está na Itália me pediram para oferecer uma reflexão sobre a vida espiritual do presbítero. Sou um simples monge, “um pobre leigo”, definição que Pacômio dava de si ao grande Atanásio patriarca de Alexandria, mas aceitei porque, sem tê-lo desejado ou escolhido, me vi com freqüência ocupado na reflexão dos problemas que dizem respeito ao presbítero, além da pregação de exercícios espirituais aos presbíteros e no acompanhamento espiritual de muitos deles. Vou procurar ser apenas um eco da Palavra de Deus e uma voz daquilo que escuto a muito tempo da vida eclesial e presbiteral, e irei partilhar convosco alguns pensamentos que, a partir da minha experiência, julgo úteis, senão até mesmo urgentes, para uma vida presbiteral vivida no Espírito Santo e na fidelidade ao evangelho. Mas antes de desenvolver estas reflexões, penso que seja necessário fazer alguns esclarecimentos fundamentais, ou seja, esclarecimentos que se colocam como fundamento de todo o meu discurso. Vós presbíteros participais da missão de Jesus, o Filho do Pai, e por isso não deveríeis nunca esquecer as suas palavras: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). Só podeis exercer o vosso ministério com Jesus, deixando a ele a plena e soberana iniciativa. Não bastam as vossas capacidades, nem os vossos esforços para serdes “enviados” (ἀπόστολοι) por Jesus, como ele foi enviado pelo Pai (cf. Jo 13,20): é absolutamente necessário que vivais com ele (cf. Mc 3,14), em plena comunhão com ele, e que procureis sempre trabalhar como enviados e pastores que participam da única missão do Filho. Vós não possuís nada de próprio para levar aos homens, vós não sois nada sem o Senhor que opera em vós e através de vós, não podeis fazer 1 Tradução de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior do original publicado por Edizioni Qiqajon, Magnano, 2004.

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AOS PRESBTEROS Enzo Bianchi Prior de Bose1

O Filho no pode fazer nada por sua conta (Jo 5,19 e 30); Sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5). Este nada que os discpulos partilham com Jesus exprime ao mesmo tempo a fora e a fraqueza do ministrio apostlico.

Joseph card. Ratzinger

INTRODUO Caros irmos presbteros na Igreja de Deus, Ao longo dos ltimos anos, em diversas circunstncias alguns bispos

da Igreja de Deus que est na Itlia me pediram para oferecer uma reflexo sobre a vida espiritual do presbtero. Sou um simples monge, um pobre leigo, definio que Pacmio dava de si ao grande Atansio patriarca de Alexandria, mas aceitei porque, sem t-lo desejado ou escolhido, me vi com freqncia ocupado na reflexo dos problemas que dizem respeito ao presbtero, alm da pregao de exerccios espirituais aos presbteros e no acompanhamento espiritual de muitos deles.

Vou procurar ser apenas um eco da Palavra de Deus e uma voz daquilo que escuto a muito tempo da vida eclesial e presbiteral, e irei partilhar convosco alguns pensamentos que, a partir da minha experincia, julgo teis, seno at mesmo urgentes, para uma vida presbiteral vivida no Esprito Santo e na fidelidade ao evangelho.

Mas antes de desenvolver estas reflexes, penso que seja necessrio fazer alguns esclarecimentos fundamentais, ou seja, esclarecimentos que se colocam como fundamento de todo o meu discurso. Vs presbteros participais da misso de Jesus, o Filho do Pai, e por isso no devereis nunca esquecer as suas palavras: Sem mim nada podeis fazer (Jo 15,5). S podeis exercer o vosso ministrio com Jesus, deixando a ele a plena e soberana iniciativa. No bastam as vossas capacidades, nem os vossos esforos para serdes enviados () por Jesus, como ele foi enviado pelo Pai (cf. Jo 13,20): absolutamente necessrio que vivais com ele (cf. Mc 3,14), em plena comunho com ele, e que procureis sempre trabalhar como enviados e pastores que participam da nica misso do Filho. Vs no possus nada de prprio para levar aos homens, vs no sois nada sem o Senhor que opera em vs e atravs de vs, no podeis fazer 1 Traduo de Padre Paulo Ricardo de Azevedo Jnior do original publicado por Edizioni Qiqajon, Magnano, 2004.

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nada seno em obedincia e comunho com o Filho no pode fazer nada por si mesmo; ele faz apenas o que v o Pai fazer (Jo 5,19). Tendo bem presente esta exigncia da vossa comunho radical com o Senhor Jesus, passemos agora para algumas indicaes de reflexo.

A ESPIRITUALIDADE PRESBITERAL

Estou profundamente convencido que a vossa espiritualidade

consiste apenas na vida espiritual vivida naquilo que fazeis como , como ministros da Igreja de Deus: uma s a espiritualidade da Igreja, fundada sobre o batismo e nutrida pela Palavra de Deus e pelos santos sacramentos, mesmo se ela vivida de forma diversificada, de acordo com a graa da situao na qual o Senhor desejou o seu servo.

Infelizmente ainda existem tentativas de propor uma espiritualidade presbiteral que poderamos chamar de espiritualidade do genitivo, ou seja, fundada sobre a declinao de cada um dos aspectos da vida do presbtero: espiritualidade eucarstica, espiritualidade diocesana, espiritualidade da caridade pastoral... Ao contrrio, a autntica espiritualidade do presbtero s pode ser alimentada e vivida atravs da realizao do seu ministrio. Em outras palavras, no exerccio do seu ministrio que os presbteros crescem na f e aprofundam a sua vida espiritual: preparando-se para anunciar a Palavra e, de fato, proclamando-a, eles tambm nutrem a si mesmos; celebrando a Eucaristia entram mais profundamente no mistrio pascal; como ministros da reconciliao impregnam a prpria vida de misericrdia; procurando anunciar o evangelho, hoje e aos outros, eles mesmos o compreendem de forma melhor; no confronto e no dilogo com os no cristos medem o dom da prpria f; escutando os irmos e as irms, e carregando as suas feridas, mostram o rosto do bom pastor que d a vida por suas ovelhas (Jo 10,11).

Aqui se insere tambm a questo da assim chamada presidncia presbiteral. necessrio que vs presbteros tenhais a clara conscincia de serdes cristos que foram chamados pelo Senhor e colocados pelo Esprito Santo para presidir a comunidade, ou seja, presidir o anncio da Palavra, a liturgia eucarstica e o cuidado pastoral. A forma deste ministrio de presidncia simples e no exige comportamentos especiais e ou estratgias particulares. Ele se expressa sobretudo na solidez e no discernimento: solidez na f (e portanto exerccio pessoal do sensus fidei) para poder confirmar os irmos e discernimento realizado com autoridade, com , para edificar a comunidade como corpo do Senhor.

Se quem preside completa e plasma estes carismas com o dom da misericrdia, exercitada para com a comunidade que lhe foi confiada (e o

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Senhor no priva jamais deste dom os que o pedem com sinceridade!), ento aparece na Igreja o cone do pastor belo e bom ( : Jo 10,11): o que d a vida pelos irmos (cf. Jo 10,11), que conhece os cristos do seu rebanho (cf. Jo 10,14), que caminha na frente da comunidade peregrinante (cf. Jo 10,3-4) e lhe fornece no tempo devido o alimento necessrio (cf. Lc 12,42). Pastor da comunidade, servo da comunho, o presbtero um cristo e um discpulo junto com os seus irmos, mas ao mesmo tempo tem a tarefa de gui-los; ele mesmo, por outro lado, guiado pelo Esprito Santo ao qual se abandona atravs de uma escuta e uma obedincia fiis, para que esteja altura de conduzir o rebanho de Deus no meio do qual o Esprito o colocou para presidir (cf. At 20,28).

Finalmente, necessrio recordar que a eficcia do vosso ministrio condicionada pela autenticidade e pela fidelidade com que o viveis: uma maior ou menor fidelidade ao evangelho no exerccio do vosso ministrio tem uma clara influncia sobre a evangelizao, sobre a presidncia da comunidade, sobre a celebrao dos sacramentos (PO 12; PDV 25). E vice-versa, o que fazeis como presbteros parte integrante de vossa vida espiritual e determinante para a vossa santificao: vivendo plenamente o vosso ministrio vs vos realizais plenamente como homens espirituais e por conseqncia vos santificais, ou melhor, acolheis as energias de santidade que Deus doa a quem aceita.

E quando apoiais ou acompanhais agremiaes particulares e movimentos no vos esqueais que, se verdade que seja possvel receber estmulos das experincias espirituais prprias de um grupo, no podeis, porm, deixar-vos capturar por alguma delas nem correr o risco de privatizar o vosso ministrio: fostes revestidos do ministrio presbiteral tendo como referncia a Igreja toda inteira, e este ministrio que deve plasmar a vossa vida e forjar a vossa santidade. Seria terrvel se uma espiritualidade particular configurasse a vida espiritual do presbtero mais do que o exerccio do seu ministrio: disto brotariam uma grave desarmonia e uma falta de unidade no nvel pessoal!

A RELAO COM O TEMPO

A tradio espiritual sempre insistiu na relao entre o cristo e o

tempo, mas talvez hoje seja necessrio afirmar com mais fora ainda que a vida autenticamente crist no pode prescindir da relao com o tempo. De fato, hoje, vivemos numa poca marcada pela acelerao, precipitao e automatizao do tempo, de tal forma que a patologia do viver o tempo se fez mais evidente e grave. O tempo o inimigo contra o qual se luta ou o fantasma que se persegue, o tempo foge de ns, ns perdemos tempo, no

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temos tempo, somos devorados pelo tempo: o tempo torna-se assim o dolo com o qual habitualmente e cotidianamente nos alienamos.

Mas, para ns cristos, o tempo o mbito dentro do qual est em jogo a nossa fidelidade ao Senhor: ou sabemos viver o tempo, orden-lo, sentindo-o como dom e compromisso, ou o idolatramos. no correr do tempo que devemos reconhecer o hoje de Deus (cf. Lc 19,9; Hb 3,74,11); aproveitando o tempo (Ef 5,16) que podemos subtra-lo do vazio e do sem sentido; ordenando o tempo que podemos tender para a orao incessante que nos foi pedida por Jesus e pelo Apstolo (cf. Lc 18,1; Ef 6,18; 1Tes 5,17).

Por isso, o presbtero deve santificar o tempo, ou seja, disciplinar, reservar, separar de forma inteligente o tempo para aquilo que ele e para aquilo que ele chamado a fazer. H prioridades que devem ser estabelecidas, h um tempo que deve ser considerado central no prprio dia e ao qual no se pode renunciar: um tempo para a ao por excelncia que edifica a comunidade, ou seja, a santa liturgia, um tempo para guiar a comunidade do Senhor nas diversas formas necessrias, um tempo para repousar. Sem uma disciplina do tempo, que uma verdadeira santificao do tempo, no h possibilidade de vida espiritual crist. De fato, muitos permanecem na espiritualidade sempre diletantes, no perseverantes, contraditrios, incapazes de um crescimento robusto justamente por causa de seu relacionamento alienado com o tempo. Comporta-se como insensato, diz o Apstolo, quem no sabe ordenar e viver o tempo (cf. Ef 5,15-16). Quando o tempo aparece sem adventus, um ternum continuum sem novidades essenciais, tempo que simplesmente se deixa passar, sem viv-lo de forma consciente e na conscincia da vinda do Senhor, ento no h nem memria, nem espera, nem capacidade de escutar hoje a Palavra do Senhor.

Sendo assim, o tempo no dever ser nem idolatrado nem esvaziado, deve ser, ao contrrio, organizado e vivido com conscincia e vigilncia, a servio do homem e do seu bem. Infelizmente uma m educao na ascese do tempo, sofrida principalmente pelas novas geraes, induz a uma vida desordenada na qual no se percebe nenhuma ordem de importncia objetiva e de urgncia para as diversas atividades e os vrios compromissos que devem ser realizados. Desta forma no se consegue nem sequer enxergar mais a prioridade do ministrio, e todas as atividades so consumidas em um vrtice que frustra a vida humana e torna impotente a vida interior. Sabe vigiar sobre si mesmo quem se possui e exerce o domnio sobre si mesmo, e exerce este domnio sobre si que sobretudo sabe dominar o tempo.

Gostaria de recordar aqui a autntica tradio espiritual que sempre indicou a primeira hora do dia como particularmente propcia para a orao

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e a assiduidade com as Santas Escrituras. Isso tambm recordado em um belo texto de Dietrich Bonhffer:

Quando se consegue dar uma unidade ao prprio dia, ele adquire ordem e disciplina. na orao da manh que se deve buscar e encontrar esta unidade, e assim poder ser conservada no trabalho. A orao da manh decide o dia. O tempo desperdiado, as tentaes s quais sucumbimos, a preguia e a falta de coragem no trabalho, a desordem e a indisciplina dos nossos pensamentos e das nossas relaes com os outros, tm muitas vezes a sua origem no fato de ser negligente na orao da manh2. De fato, necessrio constatar com realismo que, se no se ora ao

nascer do sol, as urgncias e a multiplicidade das aes s quais somos chamados durante o dia correm o risco de eliminar tout court a possibilidade de orar. Alm disso, durante o dia somos submetidos humanssima exigncia de repousar, de se beneficiar do blsamo do silncio e da solido.

S dosando com inteligncia a orao, o trabalho e o repouso pode-se viver bem o ministrio a servio da comunidade crist. Por isso, cada um de vs tenha a coragem de dar a si mesmo uma regra de vida no meramente formal, no legalista, mas rica de sabedoria e capaz de realismo: um rastro que, no discernimento dos tempos, vos auxilie a viver harmoniosamente as exigncias do ministrio, exigncias humanas e exigncias sabticas.

A RELAO COM A PALAVRA

Nas dcadas aps o conclio Vaticano II, foi colocada em grande

relevo a relao especial entre a Palavra de Deus e o ministrio episcopal e presbiteral, e certamente hoje o vosso ministrio aparece antes de tudo com ministrio da Palavra ( : At 6,4), servio da Palavra evangelizadora para a comunidade crist e a todos os que perguntam pela esperana que habita em vs (cf. Pd 3,15). Hoje vs tendes clara esta conscincia de ser ministros da Palavra ( : Lc 1,2), mas para ser tais ministros necessrio ser ouvintes assduos da Palavra, curvados pela Palavra, habitados pela Palavra (cf. Mc 4,20; Jo 5,38; etc.). Na comunidade do Senhor, todos, at mesmo os mestres (: At 13,1; 1Cor 12,28; Ef 4,11), permanecem sempre discpulos do nico e verdadeiro Mestre, Jesus Cristo (cf. Mt 23,8.10), e os que so encarregados de anunciar a Palavra permanecem sempre a servio da Palavra (cf. At 6,4). De tal forma que, mesmo quando o presbtero prega, a Palavra que ele anuncia ressoa para ele como a um discpulo, de tal forma que renova a sua f e confirma a sua adeso ao Senhor.

2 D. BONHFFER, Pregare i salmi con Cristo, Queriniana, Brescia, 1969, p. 114.

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Abraham J. Heschel soube exprimir a ligao entre Palavra e pregador da prpria Palavra em termos que, embora no sejam comuns no ambiente cristo, se apresentam como extremamente verdadeiros e densos de significado. Ele afirma que o pregador no deve simplesmente viver da assiduidade com a Palavra, e como conseqncia orar antes de anunci-la, mas deve tambm pregar de tal forma que suscite a orao:

Pregar para que as pessoas orem. Pregar de um modo que inspire a orao de quem est na sua frente. Uma verdadeira homilia se apresenta de tal forma que ela mesma possa se transformar em orao3. Sim, a homilia diaconia ao evangelho, mas tambm fonte de vida

espiritual do presbtero: se isso no acontecer, necessrio que se pergunte se no existe uma grave contradio acontecendo na vida do presbtero, na sua vida de f ou na sua conduta moral. No se esquea por outro lado que a Palavra de Deus pronunciada sem obedincia, sem f, ou sem conscincia, no pode fazer outra coisa seno endurecer o corao e fazer com que fique doente de (cf. Mc 10,5) o prprio pregador: de ore tuo te iudico (Lc 19,22)!

H uma expresso do discurso de Paulo aos bispos-presbteros de feso que representa uma orientao de vida fundamental para vs. Paulo, saudando estes seus colaboradores no ministrio, diz: Entrego-vos a Deus e Palavra da sua graa ( : At 20,32). No seu testamento apostlico, Paulo no confia a Palavra aos ministros, mas confia os ministros Palavra! Os destinatrios do testamento do Apstolo tm a misso de pregar, de difundir, de manter viva a Palavra em meio ao rebanho, de confi-la Igreja, mas coisa surpreendente aqui Paulo confia os ministros Palavra. Antes que a Palavra lhes seja confiada, so eles mesmos confiados Palavra; antes de serem portadores, de levarem a Palavra, eles mesmos so levados pela Palavra de Deus! Sim, a Palavra potente e eficaz, tem uma energia porque uma realidade viva e operante (cf. Hb 4,12), tem o poder de salvar a vida (cf. Tg 1,21), de edificar e de conceder a herana com todos os santos (cf. At 20,32), de comunicar a sabedoria que leva salvao (cf. 2Tim 3,15-17) e, como evangelho, potncia de Deus (cf. Rm 1,16).

Carssimos, no vos esqueais nunca: vs somente levareis a Palavra aos outros se fordes levados pela Palavra. Mas o que significa esta expresso forte e paradoxal: confiados Palavra? Significa que vs colocais a vossa f na Palavra de Deus e no em vs mesmos ou em outras realidades; que todas as manhs, como autnticos servos do Senhor, tornais o vosso ouvido atento para escutar como discpulos a Palavra (cf. Is 50,4); que todas as manhs permitis que o Senhor abra os vossos ouvidos sem voltar atrs (cf. Is 50,5); que fazeis de tudo em vossas vidas, no decurso do 3 A. J. HESCHEL, O homem em busca de Deus, Qiqajon, Bose 1995, p. 136.

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tempo, do dia, para que a Palavra habite em vs (cf. Jo 15,7), seja implantada em vs (cf. Tg 1,21). Vs devereis poder dizer como Jesus: Eu observo a Palavra de Deus (cf. Jo 8,55).

No preciso muita coisa para compreender o quanto seja fcil cair na tentao de no adequar a nossa escuta, a nossa acolhida, a nossa busca da Palavra, o nosso amor pela Palavra de Deus nossa pregao, ao nosso anncio da Palavra aos outros. Seja-me perdoado: o risco no apenas o de improvisao ou de pouca preparao com relao ao ato de evangelizao, mas muito mais radical! E o de transmitir uma palavra impotente, uma palavra sem energia diante da fora do demnio que se ope pregao, uma palavra que no chegue at o corao do fiel, mas que na realidade se esvazia rapidamente (cf. Mc 4,3-4.15). Ser confiados Palavra no um augrio, mas um compromisso de assiduidade com a Palavra, uma assiduidade feita de escuta da Palavra na leitura das Escrituras que a contm, feita de meditao e de experincia vivida diariamente, feita de orao que permita ao pregador assumir e fazer prprio o pensamento de Cristo ( : 1Cor 2,16). Somente assim a palavra anunciada pelo presbtero, como eco fiel da Palavra de Deus, realiza sua corrida e se difunde (cf. 2Tes 3,1), at ser acolhida, no como palavra humana, mas como Palavra de Deus cheia de energia espiritual e eficaz na vida dos crentes (cf. 1Tes 2,13).

A este propsito creio que seja oportuno recordar um texto do cardeal Joseph Ratzinger dirigido ao conselho das Conferncias episcopais europias. Ratzinger se interroga sobre como hoje, nesta nova situao eclesial que presenciou a promoo de muitas competncias, do saber especializado e da nova presena qualificada dos leigos na Igreja, seja possvel ao bispo, e conseqentemente ao presbtero, presidir com a Igreja. Segundo os evangelhos, a palavra de Jesus era ouvida como palavra cheia de , de autoridade, no como a palavra dos escribas (cf. Mt 7,29; Mc 1,22). Ento, como ter ao presidir a Igreja? Ratzinger responde assim:

No necessrio que o bispo [se entenda tambm o presbtero] seja um especialista em teologia, mas deve ser um mestre de f. Isso supe que ele seja capaz de ver a diferena entre f e reflexo sobre a f: em outras palavras, deve possuir o sensus fidei... Em resumo, poder-se-ia dizer que o discernimento entre dado de f e reflexo sobre a f a tarefa do bispo. Mas como se pode obter este dom do discernimento? A condio fundamental para a capacidade de discernimento consiste no sentido da f, que se torna olho; o sentido da f se nutre da prxis da f, o ato fundamental da f a relao pessoal com Deus: com Cristo, no Esprito Santo, ao Pai... Quais so as formas mais importantes desta relao pessoal realizada com Deus? O modo fundamental de uma relao pessoal o colquio, o dilogo. Porm, seria insuficiente se dissssemos que o colquio com Deus se chama orao, porque o dilogo exige reciprocidade: no somente a nossa palavra, mas tambm a nossa escuta. Sem escuta o dilogo se

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reduz a um monlogo. Eis porque ns escutamos a voz de Deus escutando a Palavra que nos foi entregue na sagrada Escritura. De fato, estou convencido que a lectio divina o elemento fundamental na formao do sentido da f e por conseqncia o compromisso mais importante para um bispo mestre da f... A lectio divina a escuta de Deus que nos fala, que me fala. Por isso, este ato de escuta exige uma verdadeira ateno do corao, uma disponibilidade no somente intelectual, mas integral, de todo o homem. A lectio divina deve ser cotidiana, deve ser o nosso alimento cotidiano, porque s assim podemos aprender quem Deus, quem somos ns, o que significa a nossa vida neste mundo4. Joo Paulo II, mais de uma vez, usou palavras iluminadoras sobre a

relao entre ministrio e Palavra de Deus. Na Pastores dabo vobis se l: O sacerdote deve ser o primeiro "crente" na Palavra, com plena conscincia de que as palavras do seu ministrio no so suas, mas d'Aquele que o enviou. Desta Palavra, ele no dono: servo. Desta Palavra, ele no o nico possuidor: devedor relativamente ao Povo de Deus. Precisamente porque evangeliza e para que possa evangelizar, o sacerdote, como a Igreja, deve crescer na conscincia da sua permanente necessidade de ser evangelizado... Elemento essencial da formao espiritual a leitura meditada e orante da Palavra de Deus (lectio divina), a escuta humilde e cheia de amor d'Aquele que fala5. Mais recentemente o mesmo Joo Paulo II, com grande audcia,

exortou todos os cristos a praticarem a lectio divina, convite que com muito mais razo se dirige a vs presbteros:

necessrio que a escuta da Palavra se torne um encontro vital, segundo a antiga e sempre vlida tradio da lectio divina: esta permite ler o texto bblico como palavra viva que interpela, orienta, plasma a existncia6. O evangelho a vossa fora, o evangelho a fonte do vosso presidir

s assemblias do Senhor, o evangelho que confere vossa pregao! Sem a Palavra de Deus vs nada sois na Igreja, sem a Palavra de Deus vs nada tendes a dizer Igreja, sem a Palavra de Deus todo o vosso esforo no adiantaria de nada! Jesus disse: Sem mim, nada podeis fazer! (Jo 15,5), mas Ele antes de tudo o Verbo, a Palavra do Pai humanidade. Do vosso relacionamento com a Palavra de Deus depende toda a vossa vida espiritual, a vossa identidade, a eficcia do vosso ministrio. Em resumo: se o vosso ministrio da Palavra nas diversas formas da escuta pessoal, do anncio na liturgia, da catequese for humilde, obediente e perseverante, ele edificar a comunidade do Senhor e, ao mesmo tempo, ser para vs confirmao na f e fonte de santificao.

A ORAO DO PRESBTERO

4 J. RATZINGER, in Consilium Conferentiarum Episcopalium Europ, Roma 2001 (texto possudo pelo autor). 5 Joo Paulo II, Exortao apostlica (1992), Pastores dabo vobis 26.47. 6 Joo Paulo II, Carta apostlica (2001), Novo millenio ineunte 39.

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O presbtero vive da Palavra que sai da boca de Deus (cf. Mt 4,4; Dt

8,3), se faz servo desta Palavra (cf. At 6,4) e se torna seu anunciador no meio da comunidade do Senhor; tudo isso, porm, s possvel e fecundo se o presbtero um homem de orao. Ningum nega que a orao seja importante e essencial na vida do presbtero, no entanto na prtica se deve constatar e so os prprios presbteros que o confessam pessoalmente que muitas vezes a orao no prioridade na vida presbiteral e que nem sempre ela feita na sua forma autenticamente crist.

O presbtero, j observamos, estando absorvido por mltiplas atividades e servios, corre o risco de no reservar orao o tempo devido, de no viv-la como fonte do seu sentir e do seu agir. Pelo contrrio, s vezes tentado a utiliz-la de forma funcional, de transform-la em algo que serve imediatamente ao seu agir: medita em vista da homilia ou de uma conferncia, pesquisa na Escritura e nos Padres para aumentar a prpria bagagem intelectual que deve ser comunicada no prximo encontro, ora pensando nos projetos pastorais, sem porm colocar estes projetos diante de Deus para fazer um discernimento em obedincia a ele...

verdade que os presbteros hoje oram pouco, mas tendo tido com freqncia a oportunidade de escut-los penso que sobretudo eles oram mal, sem reconhecer ou viver o estatuto da orao crist. E o estatuto da orao crist requer que antes de falar com Deus, antes de pensar Deus ou de desenvolver pensamentos sobre Deus e os seus mistrios, a pessoa que deseja orar deve se esforar em escutar Deus! a escuta a forma essencial e fundamental da orao crist, e isto vale sobretudo para o presbtero, porque o que ele pode anunciar e testemunhar depende daquilo que escuta. Quem chamado a presidir a comunidade do Senhor deve antes de tudo pedir a Deus um corao que escuta, um lev shomea (1Rs 3,9), e como sentinela do povo de Deus deve estar sempre escuta da Palavra proveniente da boca do Senhor, para comunic-la sua comunidade (cf. Ez 3,16-21). O exerccio da escuta de Deus, claro, na sua Palavra santa, mas no somente, tambm na profundeza do corao do homem, onde o Pai habita, Cristo fala e o Esprito ora.

Por isso, o ato de escutar o primeiro exerccio da orao crist; se, ao contrrio, a orao feita apenas falando com Deus, termina-se por viver a orao com um sentimento de frustrao e se chega a acusar o prprio Deus de fazer silncio conosco, quando ao contrrio dever-se-ia admitir que somos ns os surdos, somos ns quem no escutamos! Porque muitos, quando confessam estar em crise e de ter graves dificuldades na orao, se precipitam dizendo: Porque Deus faz silncio comigo? Porque no me diz nada?, e no se perguntam ao contrrio se no seriam eles a estar surdos? Se o presbtero um homem assduo na escuta de Deus, se verdadeiramente o servo do Senhor que escuta como discpulo iniciado (cf.

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Is 50,4), ento tambm ser capaz de escutar o irmo, de escutar o mundo. Muitas vezes as pessoas reclamam do fato que os presbteros no tm mais tempo de escutar; pois bem, por traz desta lamria nem sempre justa e pertinente se esconde porm tambm um apelo, uma necessidade que no pode deixar de nos interrogar. Sim, no fundo, quem tem um corao que escuta a Deus, tambm possui um corao para a escuta dos homens!

Alm disso, a escuta essencial para a realizao do discernimento, o ato que na orao deveria unir a vontade de Deus manifestada no corao pelo Esprito Santo com o nosso pensamento. O termo que em hebraico define a orao, tefillah , significa literalmente juzo: a orao a possibilidade de julgar com Deus, de realizar um discernimento sobre a prpria vida, sobre a relao com os outros, sobre o prprio relacionamento com as criaturas. assim que se ordena e se aprofunda a prpria interioridade, que se mede o prprio caminho humano, o prprio amadurecimento como crescimento interior adequado prpria idade e prpria situao... Quem chamado a presidir a Igreja de Deus, a edific-la com o seu servio apostlico, a organiz-la e a govern-la, deve ter entre os carismas necessrio para o seu ministrio sobretudo o discernimento. Capacidade que deve ser invocada e pedida a Deus, e que, ao mesmo tempo, deve ser afinada e exercitada sempre e de novo atravs da escuta. Nunca ser demais recomend-lo!

Ao lado desta escuta que faz do orante uma sentinela est a escuta dos irmos, como se disse um pouco atrs, a escuta dos homens que deve, por sua vez, inspirar a orao, deve fazer chegar at Deus splicas, oraes, intercesses, ao de graas por todas as pessoas (1Tim 2,1). da escuta dos homens que nasce a orao como intercesso. De fato, interceder significa dar um passo entre, ou seja, indica um comprometimento ativo, uma ao para colocar em comunicao Deus e os homens, sobretudo aqueles que no sabem que esto nesta comunicao ou no querem estar: assim que o presbtero se torna ministro da compaixo! Na intercesso o presbtero exercita mais do que nunca o seu ministrio de pastor: pois ele vela [sobre a comunidade] como quem h de prestar contas (Heb 13,17) e, consciente de tal responsabilidade, ele deve apresentar a Deus as ovelhas que conhece e sabe chamar pelo nome (cf. Jo 10,2-4), e as multides pelas quais sente compaixo (cf. Mc 6,34; 8,2). Esta uma tarefa grave, mas que o pastor sabe que deve realizar para que, de forma autntica e radical, possa assumir a responsabilidade por aqueles que lhe foram confiados.

Seja-me permitido aqui recordar o que eu, que por minha vez sou pastor de uma comunidade, sinto como um dever absoluto todas as noites antes de me deitar: recordar diante de Deus os irmos e as irms que foram confiados minha conduo pelo Senhor, para invocar sobre eles graa

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sobre graa (Jo 1,16) e a misericrdia da qual necessitam, mas tambm para abrir o meu corao s suas necessidades e examinar diante de Deus o meu servio para com eles, a minha relao com eles. A intercesso do presbtero em favor dos que lhe foram confiados e por todos os homens na verdade um cadinho de comunho, um lugar de purificao das relaes, um instrumento para assumir as responsabilidades pastorais, uma ocasio de luta contra o cinismo que ameaa, sobretudo com o passar dos anos, o cuidado pastoral do prprio presbtero. imagem de Cristo intercessor diante do Pai (cf. Heb 7,25), o pastor da comunidade do Senhor deve invocar de Deus misericrdia; e se na pregao se coloca do lado de Deus para anunciar Igreja a sua vontade muitas vezes exigente diante da no escuta de um povo de dura cerviz (cf. Ex 32,9; 33,3; etc.), de uma raa de rebeldes (cf. Ex 2,5-8; 3,9; etc.), na intercesso deve se colocar do lado do povo para recordar a Deus o seu amor fiel, a sua compaixo que nunca se extingue!

Colocado entre esta escuta e esta intercesso, o presbtero no esquecer por outro lado a adorao, o louvor, a ao de graas, cujo cume est, sem dvida, na liturgia eucarstica. A adorao um ato extremamente elementar e simples, mas talvez o mais esquecido dentro da orao. Ela consiste no estar diante de Deus, em oferecer-lhe a prpria presena, o prprio ser corpo e esprito, e fazer isto com simplicidade e gratuidade at poder dizer ao Senhor: Eu estou diante de ti, tu s o Senhor vivente e presente. Desta conscincia se v brotar o louvor e a ao de graas, o canto do Magnificat que deve ser entoado no apenas todas as tardes nas vsperas, mas que deve ser elevado mais vezes durante o dia, quase como um cantus firmus que testemunha a nossa abertura comunho com o Senhor. Tal comunho deve ser constantemente renovada atravs da orao, que verdadeiramente crist quando se torna uma memoria Dei, uma conscincia da presena de Deus na nossa vida. Quando o presbtero, mesmo com timidez chega a pensar: Cristo e eu vivemos juntos (cf. Gal 2,20), ento esta orao contnua comea a habit-lo...

verdade, a orao uma obra difcil e cansativa, uma tarefa que nunca chega a termo, um esforo que deve ser renovado at a hora da prpria morte, uma arte que deve ser sempre aprendida. Mesmo antes da morte dever-se- pedir ao Senhor que nos ensine a orar (cf. Lc 11,1). Mas, se a nossa tentativa de orar for perseverante e cotidiana, a orao realizar muito mais do que o que vemos e percebemos... Se para cada cristo a orao eloqncia da f, isto vale certamente tambm para o presbtero, mas com uma particularidade: para ele a orao eloqncia de seu ministrio!

A RELAO COM A LITURGIA

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Sei que toco num relacionamento delicado e tambm sei que talvez,

hoje, ainda no tenha chegado o tempo para propor mais uma vez a liturgia como centro da vida do presbtero. Mas sinto, com freqncia, uma separao que atualmente se solidificou entre ministrio e liturgia. Antes da grande mudana eclesial acontecida nos anos 60 e 70, o presbtero aparecia sobretudo como o liturgo, mas com o passar do tempo se estendeu sempre mais a sua atividade pastoral e se reduziram o esforo e a ateno pela liturgia.

No entanto, o conclio Vaticano II afirmou com toda clareza que toda celebrao litrgica, como obra de Cristo sacerdote e de seu corpo, que a Igreja, uma ao sagrada por excelncia, cuja eficcia nenhuma outra ao da Igreja iguala, sob o mesmo ttulo e grau (SC 7)! Sim, a liturgia o cimo para o qual se dirige a ao da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde emana toda a sua fora (SC 10), e justamente por isso deve ser central na vida eclesial e, por conseqncia, na vida do presbtero: na liturgia que ele e se mostra no grau mximo como ministro de Cristo e administrador dos mistrios de Deus (cf. 1Cor 4,1), ministro da nova aliana (cf. 2Cor 3,6). Cada ao litrgica realizada pelo presbtero sempre realizada in nomine Christi et in nomine ecclesi, e tal afirmao de per si basta para revelar a grandeza e a necessidade da liturgia, mas tambm a enorme responsabilidade que nela compete ao presbtero.

Se esta a conscincia da grande tradio da Igreja, inegvel que hoje se nota o prevalecer do funcionalismo e a diminuio da sacramentalidade presbiteral, nutrida sobretudo pela liturgia: cada vez menos a liturgia preparada, com freqncia celebrada com pressa, no recebe mais a ateno e o cuidado que conheceu na poca da reforma litrgica. Infelizmente, a tendncia dominante hoje a de separar a liturgia da vida. E inevitavelmente esta desafeio, este descentramento da liturgia da vida do presbtero termina caindo sobre a comunidade crist: aumentam cada vez mais os cristos que se confessam cristos sem porm se sentirem vinculados por uma assemblia litrgica ao menos no dia do Senhor, tambm esta a razo.

Alm disso, deve-se perguntar se vs mesmos presbteros viveis outras formas de liturgia com as vossas comunidades, excetuada a celebrao eucarstica e alguma, cada vez mais rara, devoo. No entanto a liturgia, ao e celebrao da graa est na fonte e cume de vosso ministrio. atravs da liturgia que vs sois colocados no lugar da evangelizao e sois devidamente habilitados para ela, atravs da liturgia que renovais a vida da comunidade crist edificando-a e fazendo-a crescer na graa e na santidade. Por isso na vida do presbtero a liturgia deve ter o lugar absolutamente central: ele se prepara para a liturgia com a Palavra escutada na lectio divina, mas tambm se dispondo a evangelizar a Palavra

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escutada na sua comunidade; alm disso, se prepara para a liturgia buscando compreender a eucologia que o missal oferece, e para ela se prepara como para a ao por excelncia de toda a comunidade crist presidida por ele.

Aqui se deve perguntar: h conhecimento, h compreenso das novas oraes eucarsticas dadas comunidade pela reforma litrgica? H um esforo para fazer com que a lex orandi seja a lex credendi para os fiis? H uma capacidade mistaggica que levaria os fiis a uma verdadeira participao e a um verdadeiro conhecimento da liturgia? questo de centralidade: e se esta centralidade litrgica no real na vida do presbtero, ento todo o seu ministrio ir sentir as conseqncias e se esvaziar. S quando celebrada com f autntica e renovada, a liturgia transforma a vida, celebra a vida e d forma, plasma a prpria vida do presbtero, que justamente na presidncia eucarstica encontra o fundamento para o ministrio de presidncia da comunidade. O presbtero desde a Eucaristia e para a Eucaristia: nela o Esprito santifica a Igreja, mas tambm santifica o presbtero. No esqueais que, mesmo quando celebrais a mais humilde das eucaristias, talvez em vilarejos distantes ou em situaes urbanas de poucas pessoas, muitas vezes idosas, se celebrais com a devida tenso e com sinceridade e com convico, partilhando o po da Palavra e participando do nico po eucarstico, vs edificais a Igreja e participais da obra do Pastor dos pastores, Jesus Cristo!

Insisto: vs no deveis permitir que a vossa sacramentalidade se reduza a uma funcionalidade. Esta a poca do progresso da racionalizao, do recul du sens (Paul Ricoeur), e nem mesmo vs sois eximidos desta tentao, mas o funcionalismo no passa de uma nova forma de clericalismo. Carssimos, a , ao e celebrao sacramental da graa, seja verdadeiramente o corao do vosso ministrio. Vs, anunciadores, deveis sempre compreender a vossa misso como relativa s outras duas misses que precedem a vossa: a misso do Filho e a misso do Esprito, e, por isso, atravs da orao e da liturgia celebrada que vs realizais a vossa misso dia aps dia. na liturgia que vs acolheis as palavras para vs e as palavras para a pregao, na liturgia que pedis o Esprito Santo e para aqueles na direo dos quais caminhais, na liturgia que reconheceis a obra realizada do Esprito Santo em vs e nas vossas comunidades.

O ESTILO APOSTLICO DO PRESBTERO

A partir da leitura da Presbyterorum ordinis emerge uma figura

muito precisa do presbtero, caracterizada, em particular, por um estilo de vida que poderamos definir como estilo de vida apostlico. justamente por causa deste estilo de vida que a igreja latina pede ao presbtero que viva

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o celibato, mas tambm a pobreza e a obedincia, e estas duas ltimas numa forma prpria de quem possui uma vida apostlica, diferente da dos religiosos.

O celibato, bem sabemos, no est intrinsecamente ligado ao ministrio, mas encontra sua justificao dentro do estilo de vida apostlica. Os que Jesus enviou de dois em dois (cf. Mc 6,7) depois de t-los constitudo apstolos para que estivessem com ele e para envi-los viviam uma condio no conjugada, no tinham mulher e famlia consigo, ao contrrio, tinham-na abandonada (cf. Mc 10,28-31) para viver plenamente o seguimento apostlico. O presbtero celibatrio no apenas coloca a servio da comunidade a liberdade e a disponibilidade prprias de quem no est casado, mas em sua vida de celibatrio mostra que o evento Jesus Cristo mudou as relaes entre os homens e que, em vista do Reino, pode-se tambm viver o celibato que narra a sua espera! Sim, o celibato vivido por causa da doao feita a Deus que implica toda a prpria vida pode constituir um convite a re-centrar no prprio Deus o conjunto das relaes humanas, assim como o matrimnio recorda que no existe amor de Deus sem amor do outro.

verdade que o celibato est intimamente ligado obedincia e partilha crist (o verdadeiro nome da pobreza!), e por isso que so necessrias algumas condies concretas para viv-lo bem: a alguns concedido vive-lo na solido, a outros em formas comunitrias presbiterais, na amizade... Mas no sejamos ingnuos a este respeito: o celibato certamente um dom de Deus, mas para que seja bem vivido ele tambm depende dos dons, das foras e da fraqueza de cada um; por isso no devem ser desvalorizados os meios que servem de grande ajuda para a qualidade do celibato, como a vida comum, uma vida no somente boa, mas bela, humanamente bela! E no se esquea que o celibato deve ser sempre vivido sob o sinal da misericrdia de Deus. A aventura do celibato extraordinria, autntico dom de Deus, mas tambm um caminho humano no qual experimentamos a nossa fraqueza e s vezes tambm a nossa misria: a castidade em sua plenitude est sempre nossa frente como uma meta para a qual devemos tender, e em sua direo se avana adquirindo a humildade e crescendo no amor por Cristo com um corao indiviso, no amor gratuito pelos irmos e irms!

Quanto pobreza do presbtero, outro elemento que caracteriza o ministrio apostlico, ela deve ser vivida na sociedade atual atravs de um estilo de vida sbrio e uma constante tenso na direo da partilha, a . necessrio no buscar o dinheiro ou o acmulo dos bens (cf. At 20,33) mas, ao contrrio, partilhar o que se possui e se administra com os pobres, os fracos, mostrando sempre a gratuidade no ministrio a servio da comunidade crist. No penso que haja muito o que insistir sobre este tema: trata-se, para vs presbteros, de ser ministros de uma Igreja no apenas

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para os pobres, mas tambm Igreja de pobres, e com esta finalidade possuir um estilo de vida que tenha como referncia a forma pedida por Jesus aos seus apstolos enviados a anunciar o Reino (cf. Mc 6,7-13 e par.; Lc 10,1-16). verdade, o trabalhador tem direito a seu salrio (Lc 10,7), mas este salrio determinado por uma medida sempre caracterizada pela sobriedade, pela simplicidade, sempre capaz de partilha.

Certamente uma vida comunitria de presbteros pode ser um instrumento eficaz para viver tal pobreza, assim como para viver a obedincia: esta ltima, nunca demais repetir, na Igreja antes de tudo obedincia a Deus e obedincia recproca! evidente que no espao da submisso recproca se pe tambm a obedincia ao bispo, ocasio de viver evangelicamente o ministrio apostlico. Mas til ressaltar que a obedincia deve ser vivida sobretudo cotidianamente, como submisso fraterna na qual se carrega o peso uns dos outros e se suporta uns aos outros, colocando-se a servio dos irmos gratuitamente, sem esperar reciprocidade: no h amor cristo sem partilha, lgica de comunho em tudo, e sem mtua submisso! Somente assim, de fato, aprendemos a nos submeter vontade de Deus e a assumir os sentimentos vividos por Jesus, aquele que de rico que era se fez pobre por causa de ns (cf. 2Cor 8,9), aquele que embora fosse de natureza divina se fez homem obediente at a morte (cf. Fl 2,6-8).

A COMUNHO PRESBITERAL

O presbtero, j foi salientado, um servo da comunho eclesial:

esta a sua tarefa, juntamente com o ministrio da evangelizao. Mas o presbtero tambm est comprometido com uma comunho precisa e particular, a do presbitrio todo presidido pelo bispo. Nunca se esquea que na catlica est presente o ministrio apostlico, dom maravilhoso feito por Cristo sua Igreja, ministrio que no se esvazia com a morte dos apstolos, j que eles transmitiram a sua funo pastoral a outros crentes encarregados, como seus sucessores, de apascentar o rebanho de Deus que lhes foi confiado (cf. At 20,28; 1Pe 5,2). Bispos e presbteros so na catholica, hoje, os que desempenham este servio apostlico, e em cada Igreja local vs presbteros, embora destinados a diferentes ministrios, constitus com o vosso bispo um nico presbitrio. Por isso, cada Igreja local tambm o lugar da presbiteral: comunho dos presbteros entre si, comunho entre bispo e presbteros.

No se pode ser servos da comunho na comunidade crist sem se exercitar continuamente nesta arte de comunho dentro do presbitrio. Sobretudo hoje, uma vez adquirida a conscincia da eclesiologia de comunho, no se pode viver a Igreja sem intensificar, renovar continuamente, tornar transparente e visvel a comunho intrapresbiteral. E

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isto deve ser manifestado no tanto e no apenas no nvel de uma lgica de colegialidade, mas, sobretudo, atravs de uma lgica de sinodalidade, caminhar juntos (-) na histria, na direo do Reino.

Mesmo entre bispo e presbteros o que mais conta a possibilidade de construir relaes marcadas pelo amor: vs presbteros deveis encontrar no bispo um irmo maior, um pai, um amigo leal, deveis sempre ter a possibilidade de ir at ele, de ser escutados por ele, de viver com ele a solicitude apostlica e as consolaes do ministrio. Somente assim podereis aceitar alegremente ser confirmados na f e na vocao, de ser obedientes ao bispo e ao seu discernimento para a construo da Igreja, de encontrar junto a ele misericrdia. O bispo, por sua vez, no deveria se esquecer que ele preside seguramente a igreja local, na sua composio de presbteros e fiis, mas que o seu primeiro cuidado deve ser dirigido aos presbteros.

Incio de Antioquia um Padre da Igreja que deveria ser lido e relido com renovada ateno vrias vezes pediu comunho, dentro de toda a Igreja, mas em particular dentro do presbitrio, harmoniosamente unido ao bispo como as cordas ctara (Aos Efsios 4,1). Se a tarefa do bispo sobretudo a de preocupar-se com a unidade, pois nada mais bonito e melhor do que ela (A Policarpo 1,2), os presbteros, por sua vez, devem se submeter ao bispo (cf. Aos Magnsios 3,1) e nunca fazer nada, no que diz respeito Igreja, sem ele (Aos Esmirneus 8,1). Caminhar juntos, viver a sinodalidade, este o desafio ao qual chamada a Igreja nas prximas dcadas para viver autenticamente a comunho: caminhar juntos como cristos, caminhar juntos fiis e presbteros, presbteros e bispo, bispos e bispo de Roma... Somente uma Igreja sinodal ser uma autntica comunho, imagem da comunho divina triunitria, na qual a unidade e a diferena no so contraditrias, mas essenciais a uma comunho plural!

Justamente em vista de uma espiritualidade da comunho, Joo Paulo II, na Novo millennio ineunte, forneceu algumas indicaes que podem, certamente, inspirar, tambm, a forma da comunho presbiteral (cf. NMI 43-45). necessrio, antes de tudo, deixar que seja o mistrio de Deus, comunho do Pai, do Filho e do Esprito Santo, comunho de vida e de amor, a inspirar e plasmar a comunho eclesial em todas as suas realizaes. Ou seja, trata-se de contemplar a comunho triunitria, de invoc-la, de senti-la cannica, regra de todo o nosso agir, em vista de uma comunho que no seja a medida de nossos desejos e projetos, mas que tente traduzir algo da comunho divina. a partir dessa comunho descendente que devem ser hauridas todas as energias necessrias para viver a comunho fraterna, a dos filhos de Deus. necessrio, portanto, acolher o irmo de f na unidade profunda do corpo de Cristo: o irmo no est em relao comigo tendo como base uma relao psquica,

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sentimental, mas somente porque ele que faz a vontade de Deus, meu irmo, minha irm e minha me (cf. Mc 3,35)7.

Em vista de uma autntica espiritualidade de comunho necessrio, alm disso, chegar a enxergar o outro como dom de Deus para mim. Os outros no so o inferno, como gostava de dizer Jean-Paul Sartre, mas so para mim uma bno, o dom precioso que me foi concedido para que eu viva em plenitude: a verdadeira dimenso do cristianismo nunca sem o outro! O outro, por fim, o irmo ao qual sou chamado a dar espao, que devo conhecer para saber o que lhe causa sofrimento e o que o torna feliz, para carregar o seus pesos e partilhar os seus pensamentos, os seus desejos, para escut-lo e consult-lo tendo em vista o discernimento eclesial comum, de tal forma que a Igreja seja verdadeiramente um caminhar juntos em direo ao Reino. Sim, o outro a possibilidade de encontrar, servir, amar o prprio Senhor no sacramento do irmo!

Por isso, vs presbteros sois chamados a fugir, mais uma vez, de toda lgica individualista e de toda forma ostensiva de originalidade, a evitar o isolamento, e, sobretudo, a suficincia; dever-se-ia dizer dos presbteros tambm aquilo que deveria ser dito de todos os cristos: V como se amam! (Tertuliano, Apologtico, 39,7)... O ministrio presbiteral caracterizado por uma forma comunitria radical, que o termo colegialidade evoca, sem poder descrever de forma completa: no vos esqueais, por isso, da sinodalidade do presbitrio, que, no seu interior e com toda a Igreja, a via mestra para que a Igreja brilhe como casa e escola de comunho (NMI, 43) para as novas geraes crists e para todos os homens.

MINISTRIO E VIDA HUMANA

Com freqncia, e isto uma realidade recente, no mbito dos que

exercem funes ministeriais na Igreja, deve-se constatar uma falta de ateno s virtudes, no s teologais, mas s humanas. Tem-se, s vezes, a sensao de que o ministrio vivido como funo se torna um pretexto para evitar o confronto com valores que, na verdade, so determinantes na rede das relaes interpessoais e sociais, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento de uma personalidade humana inclinada a fazer da prpria vida uma obra de arte. No fundo, uma patologia doctica, porque no pe em relevo a importncia encarnatria da vida crist, no reconhece a bondade da realidade criatural e a assuno por parte do Cristo da natureza humana e de tudo o que a ela pertence. Como se Cristo tivesse vivido neste mundo somente para viver o ministrio pblico e a cruz, e no tambm para viver

7 Releia-se, a este respeito, as reflexes iluminadoras de D. Bonhoeffer em La vita comune, Queriniana, Brescia, 1986, 11.ed., pp.39-54.

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como homem, mais ainda, como o verdadeiro Homem, o Adam querido por Deus na criao!

verdade que ns temos um passado que no leu plenamente o significado da encarnao de Deus em Jesus de Nazar. Um passado no qual est presente um gnosticismo que no apenas pe em conflito a vida humana e a vida crist, mas at mesmo impede de perceber a humanidade, a existncia humana ordinria e comum, como aquilo que deve ser assumido na vida crist, e, como conseqncia, tambm na vida do presbtero. Com a preocupao excessiva de pr em evidncia a diferena entre ministros e fiis e com o empenho de exibir uma identidade prpria se est, na verdade, encorajando a conservao de identidades fracas, que tendem a se apoiar na funo para dar estabilidade aos prprios comportamentos e vencer as inseguranas. O ofcio, neste caso, se torna um elemento atrs do qual a pessoa se esconde para ocultar as prprias fragilidades, o que confirma o esquecimento do humano, transformado em instrumento do mero exerccio do ministrio. Na verdade e nisto permanecendo fiis grande tradio espiritual catlica necessrio reafirmar que no h uma clara separao e, muito menos, contraposio entre maturidade humana e maturidade crist: estou convencido, cada vez mais, que a hodierna crise do presbtero deve ser justamente identificada nesta relao entre ministrio e vida humana, e no no mbito da teologia do ministrio.

Deve ser dito com insistncia: a humanidade de Jesus, como nos proposta pelos evangelhos, no nem aparente e nem sobreposta sua misso: uma humanidade real, uma existncia cotidiana comum carne e ao sangue. Este o lugar no qual nos foi dada a imagem perfeita do Deus invisvel (cf. Col 1,15), este o lugar no qual o Filho , nos narrou Deus (Jo 1,18)! Permiti-me, ento, renovar o convite de Paulo aos presbteros de feso: Cuidai de vs mesmos (At 20,28). Advertncia anloga dirigida a Timteo: Vigia sobre ti mesmo (1Tim 4,16). Sim, vigiar sobre si mesmo uma atividade que se impe por si mesma, mas ela pode se tornar mais difcil para os que esto voltados para a vigilncia dos outros pelo mandato que lhes foi conferido. Acontece que quem no vigia sobre si mesmo se torna espio e policial dos outros. Carlos Borromeu assim dizia se dirigindo aos presbteros:

Exerces a cura dalmas? No te esqueas de cuidar de ti mesmo, e no te entregues aos outros a tal ponto que no sobre nada de ti para ti mesmo. claro que deve estar presente a lembrana das almas que te foram entregues, mas no te esqueas de ti mesmo8. No, ningum pode se justificar dizendo: Estou ocupado demais

com os outros para poder pensar em mim mesmo!, porque quem diz isto, mais cedo ou mais tarde descuidar do seu ministrio no conseguindo 8 Citado em PDV , 72.

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mais estar altura da situao. Vigiar sobre si mesmos, cuidar de si mesmos, uma condio necessria para a qualidade do ministrio e a fidelidade a ele.

Seja-me permitido dizer o que muitos presbteros me confessam com freqncia: muitas vezes a vida presbiteral por causa do acmulo de compromissos, por causa de certa desordem no dar a justa prioridade e no dominar o tempo do dia, por certa preguia ou incapacidade de por limites que tambm significam dizer um no aos pedidos das pessoas no deixa espao para o cuidado de si mesmo, de tal forma que no acontece o que So Paulo deseja a Timteo: Dedica-te leitura [...] no te descuides do carisma que est em ti [...] ocupa-te destas coisas, dedica-te inteiramente a elas para que teu progresso seja manifesto a todos (cf. 1Tim 4,13-15) 9. necessrio deixar claro que um presbtero privado de uma vida intelectual, ou seja, em primeiro lugar incapaz de assiduidade na leitura, avana a passos largos em direo da decadncia espiritual; as conseqncias sero sentidas sobretudo pela sua adorao e pela sua contemplao, progressivamente mais ridas e mais pobres, mas depois tambm pela sua pregao e, enfim, pela sua autoridade dentro da comunidade crist. Bem sabemos que o resultado de uma escassa vida intelectual, da falta do exerccio de pensar, no consiste apenas numa estreiteza de horizontes, mas amide tambm se traduz em uma condio de misria espiritual na qual se est exposto a correntezas opostas e antagnicas: por um lado a influncia do relativismo que dissolve a f, do outro lado a do fundamentalismo que, debaixo da mscara de uma identidade forte e que d segurana, impede toda pesquisa e intolerante para com os caminhos diferentes do prprio.

Gregrio Magno, lamentando-se dos presbteros de seu tempo e sendo-lhes solidrio, acusava tambm a si mesmo dizendo:

Ns nos afogamos de negcios terrenos! Sim, uma coisa o que assumimos com o ofcio presbiteral, outra coisa o que mostramos com os fatos! Ns abandonamos o servio da Palavra e somos chamados de bispos-presbteros, mas isto talvez sirva mais para a nossa condenao, j que possumos o ttulo, mas no a qualidade10. Mas hoje, em minha opinio, no h apenas o problema do

ministrio sobrecarregado de compromissos e incumbncias que pesa sobre a vida do presbtero: tambm e sobretudo uma questo de m qualidade de vida humana. Pensem-se simplesmente os relacionamentos e necessidades primrias que um homem vive: a casa, a comida, a roupa. A casa do presbtero muitas vezes no acolhedora, um espao ao qual no se vai de boa vontade, que no canta a vida. assim que, no se sentindo em sua prpria casa, muitos presbteros encontram substituies, 9 Verdadeiramente extraordinria, neste sentido, a carta dos bispos franceses de 16 de janeiro de 2002, entitulada Reencontrar o tempo de ler (cf. Il Regno documenti 5 [2002], pp. 187-189). 10 GREGRIO MAGNO, Homilias sobre os Evangelhos 17,14.

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freqentando assiduamente famlias e grupos. Alm disso, o alimento tomado em que contexto? Se o comer no apenas sustento, mas ocasio de cultura, hoje o presbtero pode se dizer sempre capaz de viv-lo com uma lgica crist que antes de tudo eucarstica? E o que dizer da roupa? Nos primeiros sculos cristos no havia nenhum hbito distintivo do clero: este se imps apenas no sculo XVII com a batina compreendida como sinal de consagrao a Deus. Mas a veste a primeira linguagem com a qual uma pessoa comunica aquilo que . Por isso Jernimo sugeria aos presbteros que fugissem da elegncia e da sofisticao, mas tambm da cafonice e da negligncia. Saibamos ou no, estes trs mbitos refletem quem o presbtero e, ao mesmo tempo o influenciam: a partir destes trs se revelam a sua liberdade e a sua maturidade.

Sim, hoje, costuma-se no confiar mais na funo, mas na pessoa, e a autoridade do presbtero, que se torna ainda mais necessria, est ligada sua estatura humana e espiritual. Diante de Deus e dos homens nada pode substituir uma vida pessoal autntica! Mais do que nunca, necessrio que o presbtero cultive interesses pessoais intelectuais, literrios, artsticos, musicais, de acordo com os dons recebidos porque a vida crist , busca e contemplao da beleza: para manter-se vivo, vivaz, interessado na vida, para renovar as prprias convices ao longo dos anos, para combater a doena do cinismo e da resignao necessrio ler, ir ao encontro das fontes crists e culturais, tambm necessrio saber repousar e recrear com inteligncia.

A condio atual do presbtero est marcada pela disperso, pela exposio sem proteo, mas, sem uma vontade de levar uma vida boa e bela, no sentido pleno do termo, a pessoa se expe apenas disperso. Sobretudo, para que haja uma boa qualidade de vida importante o exerccio (ascese) das relaes, j que a qualidade de vida est ligada e unida diretamente qualidade das relaes: entre proco e vigrio, entre presbtero e bispo, entre presbteros e leigos e, alm disso, com as infinitas e diversas situaes pessoais e existenciais com as quais o presbtero se confronta. Vigiar sobre si mesmo significa vigiar sobre as relaes, sobre o comportamento, sobre o ministrio Mais do que nunca, hoje necessria uma ascese da comunicao. Deve-se acrescentar ao risco da disperso o do stress e do cansao, da depresso e da desmotivao. Se uma pessoa fizer coincidir personalidade, realizao pessoal e trabalho pastoral, atividades do ministrio, ento os fracassos pastorais se tornam fracasso da pessoa tout court. necessria tambm, uma compreenso evanglica da eficcia da Palavra, que sempre da ordem da eficcia da cruz.

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CONCLUSO Carssimos, um documento sobre o servio sacerdotal exarado em

1992 pelos bispos alemes11 fala de neurose pastoral e deseja que os presbteros assumam uma espiritualidade do dizer no para poder dizer um sim maior e mais importante. Sabe-se que o conclio de Trento soube modelar uma identidade presbiteral, que, evidentemente, precisa sempre ser corrigida e completada, e que significou para a Igreja uma verdadeira reforma. Talvez o Vaticano II no tenha tido a mesma fora e a mesma criatividade sobre o presbiterato, mas de fato, est sendo modelado um novo tipo de presbtero e de bispo que certamente mais inspirado pelo Novo Testamento do que pelas preocupaes eclesisticas. O caminho ainda longo e difcil, mas compete a alguns de vs a responsabilidade, vivendo (ou no vivendo) o evangelho, de dar Igreja um servo do Senhor, um servo da comunidade, e ao mundo uma testemunha fiel evangelho de Jesus Cristo.

Sede, pois, ministros de Cristo e administradores dos mistrios de Deus, como vos chama Paulo (1Cor 4,1) e assim sereis homens a servio da santidade da Igreja e homens de santidade. Aquilo que fora administrais, hauris na fonte do amor, e aprendei amando o que anunciais ensinando, escreve Gregrio Magno12. Eu e a minha comunidade oramos e continuaremos a orar por isto e vs perdoai-me a possvel insipincia.

BIBLIOGRAFIA PARA IR ALM...

COLETTI, D. Vivere da prete: la forma cristiana della vita sacerdotale,

Piemme, Casale Monferrato 1995. COZZENS, D. Face mutante do sacerdcio, Loyola, So Paulo 2001. EPISCOPADO ALEMO, Il servizio sacerdotale, em Il Regno documenti 5

(1993), pp. 164-175. RATZINGER, J. Natura del sacerdozio, in La Chiesa, Una comunit

sempre in cammino, Paoline, Cinisello Balsamo 1991, pp. 75-93. SESBO, B., No tenham medo! Os ministrios na Igreja de hoje, So

Paulo, Paulus, 1998. TETTAMANZI, D. La vita spirituale del prete, Piemme, Casale Monferrato

2002.

11 Cf. Il Regno documenti 5 (1993), pp.164-175. 12 GREGRIO MAGNO, Homilias sobre Ezequiel I,5,16.