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A presença africana na memória de Lisboa Helena Roseta Debate Temático “Demografia e Migrações” Assembleia Municipal, 23.6.2015

A presença africana na memória de Lisboa · Norte e os do Sul, entre as três religiões do Livro (muçulmanos, judeus e cristãos), entre residentes e nómadas, como os ciganos,

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A presença africana na memória

de Lisboa

Helena Roseta

Debate Temático “Demografia e Migrações” Assembleia Municipal, 23.6.2015

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A presença de diferentes etnias e culturas em Lisboa é uma presença fundadora. A cidade fez-se nas lutas entre os povos do Norte e os do Sul, entre as três religiões do Livro (muçulmanos, judeus e cristãos), entre residentes e nómadas, como os ciganos, de que há notícia desde o século XV.

Lisboa foi sempre terra de chegadas e partidas, de “muitas e desvairadas gentes”, como escreveu Fernão Lopes.

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O comércio de escravos começa em Portugal no tempo do Infante D. Henrique, em 1444. Mas é nos séculos seguintes que vai florescer, vindo a ter o seu auge no século XVIII com o comércio dos escravos africanos para o Brasil.

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As rotas marítimas do tráfico de escravos, em navios negreiros imundos, estendem-se às Américas e às Índias, principalmente para alimentar o trabalho nas plantações de cana do açúcar e de café e na exploração de minas.

As estatísticas conhecidas apontam para um total de 11 milhões de escravos transportados, de que Portugal registaria o maior número (mais de 4,5 milhões), seguido da Inglaterra (2,6 milhões) e da Espanha (1,6 milhões).

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Em 1761, um alvará real de D. José I determina que os escravos que forem trazidos da América, África e Ásia “sejam considerados livres logo que cheguem aos portos deste reino”.

Terá sido o primeiro diploma a acabar com a escravatura na Europa. Mas oiçamos os reais motivos: “… sendo informado [de] … um tão extraordinário número de Escravos pretos que, fazendo nos meus Domínios Ultramarinos uma tão sensível falta para a cultura das Terras e das Minas, só vem a este Continente ocupar os lugares dos Moços de servir, que ficando sem cómodo, se entregam à ociosidade e se precipitam nos vícios …”

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Foi só no século XIX, em 1836, por influência das “luzes” e da Revolução Francesa, que Sá da Bandeira decretou o fim do tráfico de escravos no reino. E em 1869 proclamou-se finalmente a abolição da escravatura em todo o Império Português.

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Da “presença silenciosa” dos escravos negros em Portugal ao longo de

mais de 400 anos pouco se fala. Mas ela deixou marcas profundas na

cultura popular lisboeta. É essa viagem que vos convido a fazer,

lembrando vivências, sofrimentos, tradições religiosas e figuras

carismáticas que deviam ser resgatadas para a história de Lisboa.

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No século XVI, os estrangeiros descrevem Lisboa como uma cidade onde “são mais os cativos que os naturais”. No século seguinte, mais de 10% da população de Lisboa era composta por negros, incluindo escravos e homens livres. Os homens livres negros podiam ter vários estatutos sociais, de músicos a marinheiros, e até mesmo cavaleiros.

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Escravos e escravas negras faziam parte do quotidiano da cidade. Em 1535 Clenardo escreve sobre Lisboa: “O serviço era todo feito por negros e mouros, dificilmente se encontrava casa sem criada escrava, que ia às compras, lavava a roupa, acarretava a água e fazia os despejos.”

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A cidade não dispensava os escravos para a sua manutenção. Em 1744, o senado de Lisboa dispôs que “cada bairro ou rua tivesse um certo número de pretas (…) a fim de conduzirem à praia essas imundícies.”

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Outra figura quotidiana era o “preto caiador”. Juntavam-se no Rossio à espera de fregueses ou cirandavam pela cidade juntamente com as vendedoras de tremoços, mexilhão e fava-rica.

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Caiador foi também o Pai Paulino, uma das figuras populares e carismáticas de Lisboa, que desembarca no Mindelo, vindo do Brasil com as tropas liberais de D. Pedro IV.

Sobreviveu à guerra entre liberais e miguelistas e até ao fim da sua vida era visto no Rossio, com a sua farda militar, contando as façanhas dos “bravos do Mindelo”. Foi retratado por Bordalo Pinheiro.

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A posse de um ou mais escravos negros era também um bom negócio: para além do serviço doméstico, era um meio de obter rendimento extra, através do seu emprego em serviços ou pequenos comércios ambulantes, cujo lucro revertia para os donos. Eram os chamados “negros de ganho”, que existiam na cidade de Lisboa desde o século XVI.

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No Mocambo, bairro criado por alvará régio no final do século XVI (hoje Madragoa), misturavam-se negros e pescadores, para além das religiosas de vários conventos. Terá tido, segundo Júlio Castilho, uma importante ocupação de escravos africanos. Restou apenas uma “Travessa do Mocambo”, mais tarde Rua das Trinas, onde existia o Convento das Trinas do Mocambo (actualmente sede do Instituto Hidrográfico).

Mocambo, que em umbundo significa ‘pequena aldeia, lugar de refúgio’,

pertence à esfera das línguas de Angola. É o único caso conhecido na

Europa de um bairro inteiro com nome africano, hoje desaparecido da

toponímia de Lisboa.

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“Ao passo que os portugueses, por gravidade, andam sempre tristes e melancólicos, não usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam, os escravos mostram-se sempre alegres, não fazem senão rir, cantar, dançar e embriagar-se.” (anónimo italiano, 1578 a 1580)

O escravo africano estava integrado na paisagem urbana de Lisboa. Mas havia um traço que o distinguia:

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Aos escravos não era permitida qualquer representação perante a sociedade. A forma que encontraram para se organizar foi criar irmandades religiosas ou confrarias, formadas por escravos ou “forros” mas com identidade marcada pela cor da pele. Na Igreja de S. Domingos, perto do Rossio, funcionou a Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa, que angariava fundos para comprar a alforria (ou liberdade) dos seus membros.

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Na Igreja da Graça, ainda hoje se pode ver o altar da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa, com os seus quatro Santos Negros. Trata-se de Santo António de Noto, São Benedito de Palermo, Santo Elesbão, que era escravo, e Santa Ifigénia. Santo António de Noto e

São Benedito de Palermo, ambos sicilianos descendentes de escravos, foram venerados desde meados do século XVI. Santo Elesbão (século VI) e Santa Ifigénia (século I) eram oriundos da Etiópia. Conhecidos e venerados em particular na Andaluzia, o seu culto terá sido introduzido em Portugal na primeira metade do século XVIII.

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As confrarias e irmandades organizavam peditórios regulares. Para as festas de Nossa Senhora da Atalaia, de que os negros eram os grandes animadores, deslocavam-se de casa em casa tocando música e exibindo um menino Jesus negro, como negra era a imagem da Senhora da Atalaia, por ser a Virgem Maria natural da Etiópia.

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Na procissão de Corpo de Deus, iam sempre os pretos de S. Jorge – que lembrava o “orixá” da guerra e dos metais.

Sobre essa procissão escreveu Fialho de Almeida no século XIX: nesse dia “Lisboa era deles e não havia ninguém que ao ver passar na procissão cruzes sem conta, padres às grosas e irmãos do santíssimo aos milhares, não exclamasse com impaciência para os lados: Que estopada! Tomara cá os pretos!”

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Nos teatros, desde a Maria Parda, de Gil Vicente, mais tarde nos entremezes das touradas, nas comédias, nos espectáculos de feira e nas revistas do ano, a presença de personagens negros era uma constante. Há mesmo uma tradição escrita de “língua de negro”, que viria a dar origem no século XVIII a uma literatura popular absolutamente original – os almanaques de prognóstico, de que o mais conhecido é “Os Preto Astrólogo”, surgido depois do terramoto de 1755.

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Ramos Tinhorão, musicólogo brasileiro, defende que o Fado de Lisboa, hoje património mundial imaterial, teve origem numa nova dança que fundia a fofa e o lundu, baptizada no Rio de Janeiro como “fado”. A fofa era uma forma de dançar, do tipo morna, muito popular em Lisboa, pelo século XVII. Foi banida por ser considerada "escandalosa" . O lundu é uma dança brasileira, criada a partir dos batuques dos escravos trazidos de África, de onde trouxe a base rítmica e o seu aspecto lascivo, evidenciado pela “umbigada”.

Fofa

Lundu

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Se o fado passou do escuro das tabernas para as luzes dos salões, o mesmo não aconteceu com muitas das formas de vida e cultura dos escravos africanos. O fim da escravatura não pôs fim à discriminação e a formas de racismo que ainda persistem.

Lisboa, séc XVIII

Camarate, 1993

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Resgatar as tradições culturais africanas perdidas é uma forma de afirmar as origens sem preconceitos nem medo, fazendo das raízes uma nova força de afirmação no mundo global.

Imagem da Kola San Jon da Cova da Moura, património cultural imaterial nacional, a desfilar em Lisboa.

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A memória dos mais velhos é sempre fonte de sabedoria e experiência. Transmiti-la é garantia de salvaguarda da identidade, pois comunidades sem passado são comunidades sem futuro. Temos de fazer da cultura proibida um património estimado.

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Temos de resgatar na toponímia da cidade a memória dos nomes e das tradições africanas em Lisboa. O que persistiu são lembranças de dor e sofrimento…

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Novas e velhas formas de xenofobia estão aí todos os dias, na Europa, em Portugal, em Lisboa.

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Temos de nos abrir a quem chega. Temos de lutar por um presente e um futuro em que todos possam partilhar as suas diferenças sem humilhações nem desigualdades.