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THESIS, São Paulo, ano I, v .3 , p. 54-77, 2º Semestre, 2005. A presença norte-americana na educação superior brasileira,2005 (E) Maria Gabriela S. M. C. Marinho 50 A PRESENÇA NORTE-AMERICANA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA DA ARTICULAÇÃO ENTRE A FUNDAÇÃO ROCKEFELLER E ESTRUTURAS ACADÊMICAS DE SÃO PAULO MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO 1 RESUMO A presença norte-americana na educação superior brasileira tem sido usualmente associada aos acordos estabelecidos em 1966 entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos e assinados respectivamente pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a United Agency for International Development (USAID), de onde resultou a célebre denominação de Acordos MEC- USAID, como passaram a ser conhecidos desde então. Uma situação particularmente inexplorada diz respeito às ações da Fundação Rockefeller no modelamento de instituições universitárias no Brasil, num contexto que antecede em várias décadas a presença norte- americana no âmbito dos Acordos MEC-USAID firmados na década de 60. O artigo analisa a constituição da filantropia científica norte-americana por meio das ações da Fundação Rockefeller e desenvolve um percurso histórico no qual aponta interfaces com a experiência brasileira, em particular as articulações acadêmicas ocorridas em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Palavras-chave: Fundação Rockefeller, Educação Superior ABSTRACT The North-American presence in Brazilian higher education has been associated with agreements settled in 1966 between Brazilian and United States of America governments and signed by Ministério da Educação e Cultura (MEC) and the United Agency for International Development (USAID) witch led to what we call since then MEC-USAID agreements. A particularly unexplored situation deals with Rockefeller Foundations structuring Brazilian college institutions before the North-American presence in the MEC-UASID Agreements in the 60’s. This article analyses the North-American scientific philanthropy through the actions of Rockefeller Foundation and develops a historical path which points out interfaces with Brazilian experiences. In particular the academic joint that happened in the first decades of XX Century in São Paulo. Key words: Higher Education, Rockefeller Foundation 1 Doutora em História (FFLCH/USP), Jornalista, Docente no Mestrado em Educação (USF), Profª. da Faculdade Cantareira.

A Presença Norte-Americana Na Educação Superior Brasileira

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  • THESIS, So Paulo, ano I, v .3 , p. 54-77, 2 Semestre, 2005.

    A presena norte-americana na educao superiorbrasileira,2005 (E)

    Maria Gabriela S. M. C. Marinho

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    A PRESENA NORTE-AMERICANA NA EDUCAOSUPERIOR BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM HISTRICA

    DA ARTICULAO ENTRE A FUNDAO ROCKEFELLER EESTRUTURAS ACADMICAS DE SO PAULO

    MARIA GABRIELA S. M. C. MARINHO1

    RESUMOA presena norte-americana na educao superior brasileira tem sido usualmente associada aosacordos estabelecidos em 1966 entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos e assinadosrespectivamente pelo Ministrio da Educao e Cultura (MEC) e a United Agency forInternational Development (USAID), de onde resultou a clebre denominao de Acordos MEC-USAID, como passaram a ser conhecidos desde ento. Uma situao particularmenteinexplorada diz respeito s aes da Fundao Rockefeller no modelamento de instituiesuniversitrias no Brasil, num contexto que antecede em vrias dcadas a presena norte-americana no mbito dos Acordos MEC-USAID firmados na dcada de 60. O artigo analisa aconstituio da filantropia cientfica norte-americana por meio das aes da FundaoRockefeller e desenvolve um percurso histrico no qual aponta interfaces com a experinciabrasileira, em particular as articulaes acadmicas ocorridas em So Paulo nas primeirasdcadas do sculo XX.

    Palavras-chave: Fundao Rockefeller, Educao Superior

    ABSTRACTThe North-American presence in Brazilian higher education has been associated withagreements settled in 1966 between Brazilian and United States of America governments andsigned by Ministrio da Educao e Cultura (MEC) and the United Agency for InternationalDevelopment (USAID) witch led to what we call since then MEC-USAID agreements. Aparticularly unexplored situation deals with Rockefeller Foundations structuring Braziliancollege institutions before the North-American presence in the MEC-UASID Agreements in the60s. This article analyses the North-American scientific philanthropy through the actions ofRockefeller Foundation and develops a historical path which points out interfaces withBrazilian experiences. In particular the academic joint that happened in the first decades of XXCentury in So Paulo.

    Key words: Higher Education, Rockefeller Foundation

    1 Doutora em Histria (FFLCH/USP), Jornalista, Docente no Mestrado em Educao (USF), Prof. daFaculdade Cantareira.

  • THESIS, So Paulo, ano I, v .3 , p. 54-77, 2 Semestre, 2005.

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    1. INTRODUO

    A presena norte-americana na educao superior brasileira

    usualmente associada aos acordos estebelecidos em 1966 entre os

    governos do Brasil e dos Estados Unidos e assinados respectivamente

    pelo Ministrio da Educao e Cultura (MEC) e a United Agency for

    International Development (USAID), de onde resultou a clebre

    denominao de Acordos MEC-USAID, como passaram a ser conhecidos

    desde ento. Tais acordos concediam a cinco especialistas norte-

    americanos a responsabilidade de propor diretrizes para a

    reorganizao do sistema universitrio do pas. A recusa de amplos

    setores sociais em admitir o que consideravm ingerncia imperialista

    em questes essenciais para a sociedade promoveu o afastamento dos

    tcnicos norte-americanos, mas no necessariamente a doutrina de

    uma educao mais utilitarista, voltada para as necessidades de

    mercado, em oposio a uma concepo mais humanista, herdada da

    tradio europia.2

    Apesar da recusa ostensiva manifestada pelos setores

    organizados, entre os quais se destacou o movimento estudantil, muito

    pouco se avanou acerca da compreenso sobre as razes histricas da

    presena norte-americana na educao brasileira, em especial no

    ensino superior. Uma situao particularmente inexplorada diz respeito

    s aes da Fundao Rockefeller no modelamento de instituies

    2 A esse respeito, conferir, por exemplo, Ted Goertezel. MEC-USAID. Ideologia de DesenvolvimentoAmericano Aplicado Educao Superior Brasileira, Revista Civilizao Brasileira, Ano III, n 14, julho 1967.

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    universitrias no Brasil, num contexto que antecede em vrias dcadas

    a presena norte-americana no mbito dos Acordos MEC-USAID

    firmados na dcada de 60, como ser analisado a seguir.

    2. A FUNDAO ROCKEFELLER: ANTECEDENTES GERAIS

    A Fundao Rockefeller encontra-se no cerne do processo que gerou e

    constituiu o campo de atuao do que posteriormente foi caracterizado como

    filantropia cientfica e que, grosso modo, pode ser definido como a destinao

    de recursos privados para atuao em atividades de interesse pblico, no caso a

    produo do conhecimento cientfico em institutos isolados de pesquisa ou nos

    departamentos universitrios. Criada nos Estados Unidos em 1913, a Fundao

    teve por objetivo reunir e centralizar as aes filantrpicas da famlia

    Rockefeller que vinham sendo praticadas de forma sistemtica e em escala

    crescente desde o final do sculo XIX. A histria oficial da instituio localiza

    bem antes o esprito filantrpico do patriarca da famlia e magnata do petrleo

    John Dawson Rockefeller.

    Um marco na mudana do carter das aes filantrpicas

    promovidas com recursos de Rockefeller foram os donativos para a criao em

    1889 da Universidade de Chicago. A Universidade nasceu como projeto de

    instituio de ensino superior da Igreja Batista, da qual Rockefeller era membro

    destacado, pelo poder, riqueza e regularidade de suas contribuies. At 1910,

    quando encerraram-se as concesses do milionrio para a Universidade, suas

    contribuies somavam cerca de US$ 35 milhes, atravs da integralizao de

    aes da companhia petrolfera Standard Oil. Nos anos subseqentes, a

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    Universidade tornou-se uma das grandes instituies de ensino superior e

    pesquisa dos Estados Unidos.

    Entre as fortunas colossais, acumuladas num perodo relativamente

    curto, na segunda metade do sculo XIX, estavam tambm as de magnatas

    como Morgan, Armour, Sage, Stanford, Carnegie, Guggenheim, cujos nomes e

    corporaes marcariam a vida social e poltica norte-americana nas dcadas

    seguintes. Essa presena foi particularmente significativa na construo de uma

    "infra-estrutura acadmica", atravs do financiamento ao ensino e pesquisa

    com a criao de uma "corrente" de universidades, fundaes, institutos e

    bibliotecas sem paralelo com outra poca.

    O envolvimento com a criao da Universidade de Chicago

    conduziu Rockefeller ao relacionamento com Frederick Gates, at ento

    ministro da Igreja Batista e chefe administrativo da Sociedade Americana de

    Educao Batista. Gates foi o responsvel nessa instituio pela intermediao

    dos donativos de Rockefeller para a Universidade. A partir de 1892, o pastor

    assumiu o papel de principal conselheiro do milionrio, nos negcios e nas

    atividades filantrpicas, condio que manteve com prestgio crescente durante

    muitos anos, segundo os relatos oficiais da instituio.

    3. A TRANSIO DA CARIDADE PAROQUIAL PARA A FILANTROPIA EM LARGA ESCALA

    Gates tem sido historicamente apontado como o idelogo que

    concebeu e orientou o deslocamento das aes filantrpicas de Rockefeller

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    induzindo-as transio de uma escala reduzida ao mbito ampliado que

    alcanaram. O pastor teria sido, portanto, o responsvel pelo delineamento e

    implantao do modelo de filantropia racional e em larga-escala caracterstico,

    a partir de ento, das aes filantrpicas da famlia Rockefeller, modelo que

    resultou num "padro" para iniciativas do gnero, nas primeiras dcadas deste

    sculo. Gates chegou a definir um amplo programa de atuao para a

    Fundao baseado no que ele considerava as seis reas primordiais para o

    "progresso da civilizao ocidental", reservando para a FR um papel de

    alavancagem desse processo. Esse esquema inclua alm da educao, cincia e

    sade, a moral e a religio. Em 1913, o prprio Rockefeller optou por

    consolidar as reas de educao e sade, onde a Fundao vinha atuando

    prioritariamente, a fim de reforar o trabalho da instituio3

    Alm da escala global, planetria, a atuao da Fundao Rockefeller

    assumiu, entre os anos 20 e 40, o carter de "filantropia cientfica" sendo

    apontada, junto com a Carnegie Corporation, como em boa medida responsvel

    pelo deslocamento do eixo da produo cientfica da Europa para os Estados

    Unidos, atravs da injeo de recursos em programas especficos de pesquisa.

    No plano internacional, no mesmo perodo, e tambm nas dcadas seguintes, a

    Fundao Rockefeller ajudou a construir e implantar uma rede de instituies

    cientficas que, calcadas na busca de excelncia, propiciaram a difuso e

    consolidao desse padro.

    3 Conferir Raymond Fosdick, La Fundacin Rockefeller

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    Desse modo, sua atuao foi decisiva na implantao e

    institucionalizao de algumas reas contemporneas de pesquisa, como, por

    exemplo, a biologia molecular. Juntas, a Fundao Rockefeller e a Carnegie

    Corporation so consideradas como as principais fontes de recursos que

    financiaram o deslocamento do centro de produo cientfica da Europa para

    os Estados Unidos no perodo entreguerras.

    Uma compilao de dados do NRC - National Research Council

    (EUA) realizada pelo pesquisador Robert Kohler mostra que a participao da

    Fundao Rockefeller e da Corporao Carnegie foram fundamentais no

    estabelecimento da cincia acadmica nos Estados Unidos, entre 1916 e 1940.

    Segundo o autor, as duas instituies contribuiram com 97,5% dos cerca de US$

    12 milhes recebidos pelo NRC como doaes de organizaes filantrpicas,

    recursos que foram canalizados para o financiamento da atividade cientfica nas

    universidades norte-americanas.

    Por outro lado, a presena e atuao da FR em pases da Europa,

    Amrica Latina, Oriente Mdio e Sudeste Asitico tm sido associadas

    expanso dos interesses econmicos dos Estados Unidos por todo o planeta,

    sobretudo a partir do final do sculo passado. Entretanto, enquanto instituio

    filantrpica, a FR constituiu-se formalmente como sociedade civil, sem fins

    lucrativos, cujo iderio assinalava como sendo seu objetivo trabalhar em prol da

    humanidade. Contudo, sua trajetria encontra-se marcada pelo trao de poder e

    riqueza que esto em sua origem, sendo caudatria de uma das maiores

    fortunas pessoais dos Estados Unidos, acumulada no perodo de

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    oligopolizao da economia norte-americana, a partir da segunda metade do

    sculo XIX. Ainda hoje estendem-se por todo o planeta os negcios e interesses

    comerciais dos herdeiros do magnata John Dawson Rockefeller (alcunhado "rei

    do petrleo"), atravs de organizaes transnacionais como a Standard Oil e o

    National Citybank4

    4 Para uma viso de conjunto sobre o tema da filantropia cientfica, bem como a trajetria da FundaoRockefeller, tendo em vista diferentes perspectivas de anlise, consultar, entre outros: WHEATELEY,Steven C. The politics of philanthropy: Abraham Flexner and medical education. Madison: Un. Wisconsin,1989, 269p.; KHLER, Robert E. "Science, foundations, and american universities in the 1920s". Osiris.[Philadelphia]: University of Pensylvannia, (3): 135-64, 2nd series, 1987; FOSDICK, Raymond. LaFundacon Rockefeller. trad. do ingls [The story of the Rockefeller Foundation] por Julio Luelmo, Mxico:Grijalbo, 1957, 363p.; ARNOVE, Robert (ed.) et alii. Philanthropy and cultural imperialism: theFoundation at home and abroad. Bloomington: Indiana University, 1982, 482p.; KARL, Barry D. e KATZ,Stanley N. "The american private philanthropic foundation and the public sphere: 1890-1930". Minerva. London,19 (2): 236-81, 81; KHLER, Robert E. op. cit. e "Science and philanthropy: Wickliffe Rose and the InternationalEducation Board". Minerva. London: 23 (1): 75-95, 1985; FISHER, Donald. "American philanthropy and thesocial sciences in Britain, 1919-1939: the reproduction of a conservative ideology". Sociological review.Staffordshire, Keele: 28 (2): may, 1980; MACRAKIS, Kristie. "The Rockefeller Foundation and german physicsunder national socialism". Minerva. London: 27 (1): 33-57, 1989; CUETO, Marcos. "The RockefellerFoundation's medical policy and scientific research in Latin America: the case of phisiology". Social Studies ofScience. 20: 229-54, 1990; SANTOS, Luiz Antnio de Castro. "A Fundao Rockefeller e o estado nacional:histria e poltica de uma misso mdica e sanitria no Brasil". Rev. brasileira de estudos populacionais. S. P.: 6(1): 105-110, jan/jun 1989.

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    4. CONSERVADORISMO COMO REAO AOS MOVIMENTOS

    SOCIAIS: O VIS IDEOLGICO DA FUNDAO ROCKEFELLER

    Ao mesmo tempo em que fortunas como as de Rockefeller se

    acumulavam em parmetros at ento sem precedentes, segmentos sociais

    menos favorecidos, como os operrios, eram obrigados a conviver com

    situaes de profunda instabilidade econmica e social, resultantes de

    freqentes surtos recessivos. A instabilidade social tem sido apontada pelos

    estudiosos como uma das causas para o surgimento das aes filantrpicas e na

    organizao das grandes fundaes. O objetivo implcito de tais instituies

    seria, portanto, o de se antecipar a mudanas radicais, combatendo os efeitos

    das distores sociais pela via filantrpica e assistencialista. Ao mesmo tempo,

    chamaram a si a tarefa de formular um conjunto de explicaes minimamente

    coerentes com o objetivo de justificar as desigualdades sociais.

    Em outra vertente de interpretao para as origens da filantropia em

    larga-escala so levantadas questes como o desvio de recursos do fisco, sob a

    fachada filantrpica. Barbara Howe contesta este argumento lembrando que a

    legislao que taxou as fortunas s foi aprovada em 1903, portanto alguns anos

    depois de iniciado o processo de redefinio das obras filantrpicas de John

    Rockefeller, conforme o projeto modelado por Gates, a partir da experincia da

    Universidade de Chicago no final do sculo XIX. Por outro lado, possvel

    entender essa transio como o resultado da conjugao dos diversos fatores

    arrolados pelos diferentes autores, como apontado anteriormente, mais do que

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    identificar e estabelecer uma causa nica e exclusiva para as aes da Fundao

    Rockefeller nos moldes em que ela se instituiu historicamente5.

    Em 1903, com a participao do herdeiro John Rockefeller Jr., a

    famlia instituiu a Junta Geral de Educao (GEB) que voltou sua atuao

    principalmente para o Sul dos Estados Unidos. A regio, ainda combalida pela

    derrota na Guerra de Secesso, apresentava graves distores com profundas

    deficincias nos campos da sade e educao. A situao era especialmente

    grave em relao populao negra, tornada livre com a abolio da

    escravatura ao final da guerra e vitimada pela discriminao, perpetrada

    sobretudo pelos sulistas derrotados e contrrios libertao, em virtude do

    desmantelamento de seu sistema de produo baseado na explorao da mo-

    de-obra escrava. A Junta de Educao Geral recebeu uma subscrio inicial de

    cerca de US$ 1 milho com a finalidade de criar um amplo projeto

    educacional, contemplando particularmente o Sul.

    A atuao do GEB no Sul conduziu ao estabelecimento em 1909 da

    Comisso Sanitria para Erradicao da Ancilostomase (Sanitary Comission for

    Erradication of Hookworm), chefiada por Gates, e secretariada por Wickliffe Rose,

    que recebeu cerca de US$ 1 milho. Antes de iniciar os trabalhos da Comisso, o

    GEB havia designado um grupo de pessoas para estudar as condies locais e

    criar um plano detalhado das operaes, procedimento padro nas aes da

    5 Conferir Barbara Howe in Arnove: Philanthropy and cultural imperialism: the Foundation at home andabroad.

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    famlia e exigncia pessoal do patriarca que s se dispunha a conceder recursos

    depois de uma avaliao rigorosa da relevncia e legitimidade da iniciativa e do

    plano de aplicao dos fundos.

    Rose era, at ento, professor de filosofia e fora indicado a Gates por

    Wallace Buttrick. Buttrick, descrito como homem pacato, sem grandes "dotes

    intelectuais", ex-empregado postal e de ferrovias, fez carreira na Igreja Batista,

    por meio destes vnculos tornou-se presidente do GEB. Rose, ao contrrio,

    descrito como personagem original e audaciosa. Sua atuao na rea de sade

    pblica, bem como no estabelecimento da chamada "filantropia cientfica", ser

    marcante na histria da Fundao Rockefeller, inclusive no plano internacional, e

    particularemnte para o Brasil.

    Os nmeros levantados pela comisso secretariada por Rose

    causaram furor: em 1910, cerca de 90% das crianas, num universo de 500 mil,

    estavam contaminadas, com igual incidncia entre adultos. A partir da, foi

    proposta campanha macia de combate e preveno em onze estados sulistas.

    Subseqentemente, a Comisso montou expressiva infra-estrutura sanitria, em

    cooperao com as comunidades locais e respectivos rgos pblicos, modelo

    que, posteriormente, seria levado para o exterior para combate aos "cintures

    de enfermidade".

    O trabalho da Comisso de Erradicao da Ancilostomase,

    desenvolvido junto com pesquisadores do Instituto Rockefeller de Pesquisas

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    Mdicas, registrou vrias descobertas cientficas importantes em relao ao

    ambiente necessrio reproduo do parasita, alm de outras relacionadas ao

    grau de morbidade provocada pela infestao. Nessa experincia no sul dos

    EUA, a Comisso entrou em contato tambm com outras enfermidades que mais

    tarde pautariam a agenda de atuao externa da Fundao Rockefeller, como a

    malria, a febre amarela e a tuberculose.

    Dessa atuao em larga escala dentro do territrio norte-americano,

    resultou, tambm, a conscincia da necessidade de formao de quadros em

    sade pblica. Essa preocupao redundou, posteriormente, na criao da

    Escola de Higiene e Sade Pblica na Universidade de Johns Hopkins que

    serviu de modelo para instituies semelhantes, criadas com o apoio da

    Fundao Rockefeller em todo o mundo, em cidades como Praga, Varsvia,

    Londres, Toronto, Copenhague, Budapeste, Oslo, Belgrado, Zagreb, Madrid,

    Cluj [Romnia], Ancara, Sofia, Roma, Tquio, Atenas, Bucareste, Estocolmo,

    Calcut, Manila e So Paulo, onde foram gastos, globalmente, mais de US$ 25

    milhes.

    O objetivo bsico de tais escolas era formar mo-de-obra que

    pudesse administrar as operaes relativas s campanhas de preveno e a

    infra-estrutura de manuteno da sade pblica, bem como treinar professores

    e estudantes e profissionais qualificados dedicados questo. Uma estratgia

    que se apoiava na premissa de que tais escolas seriam capazes de formar

    "elementos-chaves" para sade pblica. Dois brasileiros estudaram l em seus

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    primrdios, custeados pela Fundao Rockefeller: Geraldo Horcio de Paula

    Sousa e Francisco Borges Vieira, posteriormente responsveis pelo Instituto

    de Higiene que se tornou, em 1946, a Faculdade de Sade Pblica, ambas as

    isntituies tambm financiadas com recursos da Fundao.

    5 . AS SEMENTES INICIAIS: A FUNDAO ROCKEFELLER DEFINE SUA

    ESTRATGIA DE PARCERIAS

    Mais tarde, quando as aes derivaram para a filantropia cientfica,

    essa concepo de elementos-chaves evoluiu para o de "sementes iniciais". A

    idia designava claramente a vocao da Fundao Rockefeller para apoiar

    financeiramente, estudantes, pesquisadores ou instituies criteriosamente

    selecionados que pudessem disseminar o modelo de cincia da instituio.

    O reconhecido sucesso da Comisso Sanitria teve um profundo

    impacto sobre a definio dos rumos das aes filantrpicas da famlia

    Rockefeller e ajudou a desencadear o processo de unificao dos organismos

    existentes em torno de uma nica e grande fundao. A partir de 1910, as

    discusses nesse sentido foram encaminhadas com a participao destacada de

    Buttrick, Rose e Simon Flexner. Posteriormente, Jerome Greene, George

    Vincent, Richard Pearce e Abraham Flexner se incorporaram ao debate.

    O sucesso do trabalho desenvolvido nos Sul dos Estados Unidos

    levou a Fundao Rockefeller a concentrar inicialmente seu trabalho na atuao

    em sade pblica, adotando como princpio a concepo da enfermidade como

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    origem da misria. Com a nova organizao filantrpica, a antiga Comisso

    Rockefeller para Erradicao da Ancilostomase transformou-se em Comisso

    Sanitria Internacional, ou simplesmente Comisso Rockefeller, que existiu entre

    1913 e 1916. Depois disso foi denominada Junta Sanitria Internacional

    (International Health Board, IHB). Em 1927, passou a Departamento Sanitrio

    Internacional.

    A Comisso Sanitria Internacional, assim como seus sucedneos,

    continuou sendo dirigida por Wickliffe Rose at 1928. Ali, ele definiu as

    grandes linhas de atuao do rgo, com nfase na "supresso" das fronteiras

    territoriais - em se tratando do combate s enfermidades -, atravs do apoio

    criao de agncias de sade pblica nos vrios pases sujeitos s endemias,

    onde a Fundao Rockefeller se faria presente. Tais agncias deveriam, tambm,

    ser capazes de difundir os ideais, os princpios e as tcnicas da chamada

    "medicina cientfica", atravs da identificao de parceiros selecionados na

    comunidade cientfica local, aptos a levar adiante o iderio e o receiturio da

    Fundao.

    Atreladas aos benefcios e facilidades concedidas estavam as

    recomendaes da instituio, em torno da necessidade de criao de uma

    infra-estrutura de ensino mdico, voltada para a formao de pessoal na rea de

    sade pblica, que pudesse tanto realizar o trabalho de campo quanto

    administrar a questo em suas inmeras interfaces. A nova configurao da

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    Fundao reforou, tambm, a presena de suas juntas no Extremo Oriente. Em

    1909, John Rockefeller havia financiado a instalao da Comisso Oriental de

    Educao, presidida por Ernest Dewitt Borton, da Universidade de Chicago,

    que produziu um extenso relatrio sobre a educao na China.

    Uma vez estruturadas em torno da Fundao Rockefeller, as aes

    filantrpicas da famlia puderam ser ampliadas para diferentes pontos do

    planeta. Nesse contexto, formou-se, em 1915, a comisso que veio para a

    Amrica Latina estudar suas condies sanitrias e organizaes de ensino

    mdico. Os relatrios desta comisso estabeleceram as bases iniciais do contato

    entre a Fundao e o Brasil nas reas de sade pblica e de ensino mdico.

    6. AS AES DA FUNDAO ROCKEFELLER NO BRASIL: SADE

    PBLICA, ENSINO MDICO E FILANTROPIA CIENTFICA

    no contexto de sua atuao transnacional que a FR interessa-se pela

    Amrica Latina e descobre no Brasil a recm-criada Faculdade de Medicina e

    Cirurgia de So Paulo6, instituio que do seu ponto de vista reunia as

    condies ideais para tornar-se uma Rockefeller's School. Ou seja, uma escola

    6 A criao da Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo em 1891, posteriormente denominadaapenas Faculdade de Medicina de So Paulo e, em 1934, incorporada pela Universidade de So Paulo(USP) insere-se na poltica de expanso do ensino superior que possibilitou, no final do sculo XIX, acriao em So Paulo da Escola Politcnica, mais tarde tambm incorporda USP. contudo, seufuncionamento efetivo s ocorreu a partir de 1913.

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    estruturada segundo suas exigncias como padro de excelncia e que

    pudesse servir como referncia para a Amrica Latina.

    No caso do Brasil, sua chegada coincidiu com a expanso dos

    interesses norte-americanos no pas, como, de resto, vinha ocorrendo em toda a

    Amrica Latina7. Em 1915, a primeira misso aportou no Brasil depois de uma

    longa viagem pelo continente feita com o objetivo de identificar os pases que

    receberiam ajuda no mbito da sade pblica e do ensino mdico8. No ano

    seguinte, em 1916, foram abertas no Brasil as duas primeiras filiais do Citybank,

    brao financeiro dos negcios da famlia Rockefeller. A vinculao entre os

    interesses das grandes corporaes que criaram as suas gigantescas fundaes e

    a atuao destas entidades vem sendo bastante analisada. Porm, importante

    lembrar - como frisa o pesquisador peruano Marcos Cueto9, referindo-se

    especificamente a FR - que essa vinculao no pode ser vista como a nica

    motivao para as aes filantrpicas de porte ento empreendidas.

    No caso das aes da FR, deve-se considerar que as questes de

    sade pblica constituam um foco privilegiado em sua agenda. A nfase na

    preveno de epidemias estava, no incio do sculo, intimamente ligada

    7 Em 1905, Brasil e EUA instalaram respectivamente suas embaixadas, sendo a brasileira emWashington a primeira representao diplomtica do pas no exterior.8 Simon Schwartzman registra: "Em 1916, o International Health Board enviou duas comisses mdicas Amrica Latina (Equador, Peru, Colmbia, Venezuela e Brasil). A primeira comisso visava pesquisaras condies da febre amarela, a fim de determinar os plos de infeco e as medidas necessrias para erradicao dadoena. A segunda visava identificar centros de educao mdica e de sade pblica no Brasil que pudessem serapoiados", in: Formao da comunidade cientfica no Brasil. S. P./R. J.: Ed.Nacional/Finep, 1979, p. 243.9 Conferir CUETO, Marcos. "The Rockefeller Foundation's medical policy and scientific research in LatinAmerica: the case of phisiology". Social Studies of Science. 20: 229-54, 1990;

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    experincia dos EUA com o "flagelo" das doenas infecciosas, s recentemente

    controladas. O temor de que o territrio norte-americano fosse reinfestado a

    partir da expanso de seus interesses comerciais pelo resto do continente - a

    abertura do canal do Panam um marco desse processo - , legitimava, no

    entender da Fundao, que tal expanso fosse acompanhada pela

    correspondente "misso civilizatria", no sentido de "educar" os vizinhos

    incultos.

    Em seus relatrios para a sede da instituio em Nova York, Rose

    costumava referir-se ao Brasil nos seguintes termos:

    Presentemente a populao se compe de negros incapazes, brancos parasitas de origem portuguesa e uma

    grande porcentagem de seus descendentes hbridos, com traos aqui e ali de caractersticas indgenas. (...) O

    Brasil Sul, comeando no Estado de So Paulo, foi colonizado por portugueses destemidos e autoconfiantes

    que desde o comeo cruzaram com os ndios nativos, desenvolveram uma estirpe brasileira resistente,

    estabeleceram-se nas estreitas margens costeiras de Santos e logo passaram a explorar e conquistar o interior.

    Esta populao tem sido revigorada por uma onda de imigrantes europeus que continua a trazer para os

    estados sulistas tipos vigorosos de colonos - italianos, alemes, austracos e poloneses. Os japoneses tambm

    esto chegando em grande nmero. Tais imigrantes fincam razes no solo e tendem, na segunda gerao, a

    tornar-se uma raa de brasileiros fortes e brancos. (...) Tais Estados do Sul, tendo a vantagem de um

    clima mais frio e mais varivel e uma populao muito mais viril, tm sob sua conta o futuro do

    Brasil. o homem branco autoconfiante que est expandindo a fronteira e deitando as fundaes

    de uma civilizao mais progressista. O Estado de So Paulo o centro e a alma deste

    movimento, com o Rio Grande do Sul prometendo se tornar um importante segundo lugar. A

    esperana do Norte reside na liderana do Sul e no sangue novo destes Estados e da Europa. (...)Os

    brasileiros so um povo latino, de origem portuguesa, e h geraes vm sendo ardentes

    imitadores dos franceses. Devido ao temperamento e cultura latinos - que o clima tropical nada

    faz para perturbar - encontram no Brasil, mais do que costume nos Estados Unidos, amplas

    condies para uma vida ociosa. Este talvez o primeiro fato teimosamente persistente diante do

    qual o americano tpico, ansioso perde a pacincia. Ele concede de mo beijada que o brasileiro

    culto um homem agradvel de conhecer, viajado, um homem do mundo, est vontade no uso

    de trs ou quatro lnguas, vai conquist-lo com sua conversao e quase convenc-lo com sua

    lgica - etc. etc. Mas o americano lhe dir: quando se trata de conseguir que as coisas sejam feitas

    neste pas!!! Omitindo imprecaes e lisonjas, em resumo trata-se disto: o brasileiro um homem

    que acredita ser mais difcil fazer do que saber o que deveria ser feito. H atrasos interminveis e

    inevitveis em todas as coisas, grandes e pequenas. Toda a mquina do governo e dos negcios

    movimenta-se em primeira marcha; e voc no pode aceler-la, pela simples razo de que, ao ser

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    fabricada, omitiram as marchas mais altas. Para o anglo-saxo o brasileiro no parece confivel.

    No se pode contar com ele; nunca assume uma posio. Os prprios brasileiros designam como

    um "homem srio" o raro indivduo que digno de confiana. O que querem dizer com isto o

    homem que leva a srio seus compromissos, suas responsabilidades nos negcios e no governo, e

    que se sabe que estar altura deles. O temperamento latino aparece aqui, como na maioria dos

    pases latinos, na forma de um individualismo inculto: no tanto um egosmo agressivo, mas a

    falta de sentido de solidariedade, de conscincia social, de sentimento comunitrio, ou at mesmo

    de um vivo interesse pelo bem-estar de seus vizinhos. Ao brasileiro faltam tanto o esprito como a

    tcnica de realizao por meio de uma ao organizada de equipe. E intimamente afim a este

    individualismo sua atitude extremamente pessoal em todas as coisas. O brasileiro comum parece

    ser totalmente "cego" diante da objetividade cientfica. Em lugar da fidelidade a princpios, ao

    pas, comunidade, ou mesmo ao partido, ele coloca a fidelidade pessoal. Criticar sua folha de

    servio realizar uma afronta pessoal. Uma tentativa de crtica cientfica passvel de tomar a

    forma de um inflamado ataque pessoal. (...) O Brasil uma democracia somente no nome; o povo

    no tem voz nem na determinao das polticas nem na seleo dos representantes que iro

    execut-las. Tais questes so administradas por um pequeno e ntimo crculo. Nas presentes

    condies, melhor que seja assim; com mais de 80% da populao composta de analfabetos, no

    pode haver opinio pblica inteligente10.

    Portanto, preciso assinalar que, embora os interesses econmicos

    faam parte do contexto de surgimento e atuao da filantropia cientfica, eles

    no foram os nicos e imediatos determinantes das aes filantrpicas. As

    interaes foram mais sutis e complexas: ocorria naquelas circunstncias a

    transferncia de todo um modelo de organizao social consubstanciado num

    padro que concebia como superiores suas estruturas acadmicas, de pesquisa

    cientfica e de atendimento a camadas sociais desfavorecidas.

    Em decorrncia, para vaibilizar seus objetivos e concepes, a

    Fundao Rockefeller julgava necessrio associar as campanhas de sade pblica

    a uma adequada infra-estrutura de ensino mdico de qualidade. O que, por

    10 Conferir: documento n 7502, ["Observaes sobre a situao da sade pblica e sobre o trabalho da juntainternacional de sade no Brasil"], do Rockefeller Archive Center, Nova Iorque, 25 de outubro de 1920, porWickliffe Rose apud Histria, cincias, sade: Manguinhos. R. J.:1 (2): 120-122, nov 1994/fev 1995

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    sua vez, s ocorreria se tal ensino estivesse vinculado pesquisa

    cientfica de excelncia. Da a necessidade de se implantar na Faculdade de

    Medicina de So Paulo o trip que constitua o cerne de seu modelo: a) ensino

    associado pesquisa; b) numerus clausus (limitao do nmero de vagas); c)

    hospital de clnicas: criao do hospital-escola, anexo Faculdade.

    Os administradores da Fundao avaliavam de maneira inflexvel

    que s a juno destes trs aspectos era capaz de proporcionar o ensino e a

    pesquisa de excelncia, promovendo, dessa forma, a transio da medicina de

    atividade meramente clnica para bases consideradas cientficas.

    Para cumprir seus objetivos no Brasil, e por extenso na Amrica

    Latina, a FR destinou, entre 1916 e 1931, cerca de 1 milho de dlares para a

    Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo. No perodo, iniciativas semelhantes

    foram financiadas em outros pases, com a mesma perspectiva de difuso de

    padres "modernos" de atividade mdica, assentada em bases consideradas

    cientficas, portanto, tidas como "racionais". Se eram "racionais", tornavam-se

    "socialmente desejveis", na viso hegemnica dos administradores da

    filantropia.

    Atravs dessa viso de mundo elitista, creditava-se a

    responsabilidade pela misria e a pobreza carncia das estruturas de

    Higiene e Sade. Difundir novos padres nestas reas significava combater de

    perto os dois males. A concepo da filantropia encontra-se bem expressa nas

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    palavras de seu principal idelogo, o ex-ministro da Igreja Batista, Frederick

    Gates:

    Se a cincia e a educao so o crebro e o sistema nervoso da civilizao (...), asade seu corao. A sade o rgo que impulsiona o fluido vital em todas aspartes do organismo social, permitindo o funcionamento de todos e cada um dosrgos, medindo e limitando sua vida de modo efetivo ... A enfermidade o malsupremo da vida humana e a fonte principal de quase todos os demais maleshumanos: pobreza, crime, ignorncia, vcio, ineficincia, taras hereditrias, emuitos outros males.11.

    A partir das alteraes propostas pela Fundao Rockefeller, a

    Faculdade de Medicina de So Paulo atingiu um nvel de excelncia acadmica e

    cientfica que a tornou uma escola de referncia para a criao de outras

    faculdades no pas. Entre as escolas mdicas de So Paulo que seguiram o

    modelo encontram-se: a Escola Paulista de Medicina, a Faculdade de Medicina de

    Ribeiro Preto, a Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas, a

    Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa, a Faculdade de Medicina de Botucatu,

    Faculdade de Medicina de Taubat, a Faculdade de Medicina de Santos.

    Em alguns casos, como o da criao da Escola Paulista de Medicina,

    em 1933, o surgimento dessa nova instituio representou tambm uma crtica

    inflexibilidade dos padres adotados pela Faculdade, extremamente apegada

    aos preceitos da Fundao Rockefeller, sobretudo no tocante limitao do

    nmero de vagas. No caso especfico da Escola Paulista de Medicina, sua origem

    passou a ser identificada como uma dissidncia promovida por ex-professores

    da prpria Faculdade de Medicina.

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    7. CONSIDERAES FINAIS

    Em razo de sua ideologia centrada na crena generalizada da sade

    pblica como redeno dos males sociais, a face mais conhecida da atuao da

    Fundao Rockefeller, sobretudo no Brasil, est associada s campanhas

    sanitrias. No entanto, a anlise mais detida do tema revela que as aes no

    campo da filantropia cientfica em apoio a criao de estruturas de pesquisa em

    departamentos universitrios constituram uma interface significativa dessa

    presena no campo da Higiene.

    A amplitude do tema impe a constatao de que as aes

    filantrpicas desenvolvidas pela Fundao Rockefeller no se esgotaram na

    transformao da Faculdade de Medicina de So Paulo em um centro de ensino

    mdico de excelncia e referncia para o Brasil e a Amrica Latina e o

    relacionamento perdurou aps a criao da Universidade de So Paulo.

    Diversificaram-se as reas de atuao da Fundao em decorrncia do porte da

    recm-criada universidade e dos contatos estabelecidos, estreitando-se

    localmente a vinculao com membros destacados da comunidade cientfica

    local, em atuaes que se estenderam nas dcadas seguintes para diversas reas

    11 Citado por FOSDICK, Raymond B. La fundacin Rockefeller. trad. do ingls [The story of the RockefellerFoundation] por Julio Luelmo. Mxico: Grijalbo, 1957, 378p. , p. 40.

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    e departamentos da Universidade de So Paulo e posteriormente na Universidade

    Estadual de Campinas.

    A importncia do tema tem provocado nos ltimos anos o

    surgimento, em diferentes nveis e instituies, de pesquisas histricas e

    sociolgicas especificamente dedicadas presena da Fundao Rockefeller no

    Brasil12, a exemplo do que j ocorreu em dcadas assadas no plano

    internacional, atravs de estudos focalizando sua atuao em escala planetria.

    12 Exemplos nesse sentido podem ser buscados, por exemplo, na criao do Banco de Dados Rockefeller, no Instituto deMedicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A esse respeito, conferir: SANTOS, Luiz A. de Castro e FARIA,Lina Rodrigues de. Arquivo Rockefeller Banco de Dados. R. J.: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1995 eFARIA, Lina Rodrigues. A fase pioneira da reforma sanitria no Brasil: a atuao da Fundao Rockefeller (1915-1930).dissertao de mestrado. R. J.: Instituto de Medicina Social/UERJ, 1994. Outro plo de interesse em torno do tema podeser encontrado na Casa de Oswaldo Cruz/Fundao Oswaldo Cruz na coleta e sistematizao de dados, sobre a FundaoRockefeller. Nesse caso, o interesse concentra-se mais na rea de Sade Pblica. No entanto, as duas aes da FundaoRockefeller no Brasil - o apoio e financiamento atividade cientfica e a implantao de campanhas de Sade Pblica -deram-se concomitantemente. Portanto, so reas que resultam interligadas. Deve-se esclarecer que o interesseprimordial das duas instituies acima citadas, ambas localizadas no Rio de Janeiro, encontra-se focado em aes emtorno da Sade Pblica.

    Tambm em Minas Gerais, h pesquisas sendo iniciadas no sentido de recuperar a participao daFundao na trajetria cientfica de Baeta Vianna.

    Sobre a participao da Fundao Rockefeller na institucionalizao da pesquisa cientfica no Paran ,podemos encontrar referncias em LUNARDI, Maria Elizabeth. Organizao da cincia no Paran: a contribuio doIBPT, Campinas: diss. mestrado IG/DPCT/Unicamp, 1993.

    Universidade Federal de Santa Catarina, Nadir Ferrari, est estudando a associao entre Newton Freire-Maia e a Fundao Rockefeller.

    Finalmente, sobre a Fundao Rockefeller, produzi na Unicamp a dissertao de mestrado. O papel daFundao Rockefeller na organizao do ensino e da pesquisa na Faculdade de Medicina de So Paulo (1916-1931) e me encontroem fase final de doutoramento onde investigo a articulao entre a Fundao Rockefeller e a Universidade de de So Paulo.

    Outros estudos em torno de experincias filantrpicas no Brasil podem ser encontradas para o caso daFundao Ford em MICELI, Srgio (org.) et alii. Histria das cincias sociais no Brasil. S. P.: Idesp/Sumar/Fapesp, 2vs., 1989/1995. As obras renem um conjunto de ensaios resultantes de pesquisas realizadas pelo IDESP - Instituto deEstudos Econmicos, Sociais e Polticos de So Paulo. O segundo volume foi, inclusive, parcialmente financiado pelaFundao Ford.

    No primeiro volume, consultar sobre o tema, especificamente, MASSI, Fernanda. "Franceses e norte-americanos nas cincias sociais brasileiras (1930/1960)", op. cit., p. 410 e LIMONGI, Fernando, "A Escola Livre de Sociologia ePoltica em So Paulo", op. cit., p. 217 e, do mesmo autor, "Mentores e clientelas da Universidade de So Paulo", idem, ibidem,p. 111.De Srgio MICELI, consultar tambm, A desiluso americana: relaes acadmicas entre Brasil e Estados Unidos. S. P.:Idesp/Sumar/CNPq, 1990, onde o autor analisa as relaes acadmicas de um ponto de vista das cincias sociais, e AFundao Ford no Brasil. S. P.: Sumar/Fapesp, 1993, onde o autor sugere razes sutis e intrincadas em torno do papelrepresentado pelas grandes agncias filantrpicas internacionais na implantao e financiamento de modelosacadmicos e de pesquisa cientfica no pas.

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