A Princesa Do Gelo - Manuel João Vieira

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    Lista de autores, por ordem de sada dos contos:

    Pedro Paixo| Joo Tordo| Rui Zink| Lusa Costa Gomes| Eduardo Madeira| Ins PedrosaAfonso Cruz| Gonalo M. Tavares| Manuel Jorge Marmelo| Mrio de Carvalho

    Dulce Maria Cardoso| Pedro Mexia| Fernando Alvim| Possidnio Cachapa| David Machado JP Simes| Rui Cardoso Martins| Nuno Markl| Joo Barreiros| Raquel Ochoa| Joo Boni cio David Soares| Pedro Santo| Onsimo Teotnio Almeida| Mrio Zambujal| Manuel Joo Vieira

    Patrcia Portela| Nuno Costa Santos| Ricardo Adolfo | Ldia Jorge| Srgio Godinho

    Para aceder aos restantes contos visite:Biblioteca Digital DN

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    Contos Digitais DN A coleoContos Digitais DN -lhe oferecida pelo

    Dirio de Notcias , atravs da Biblioteca Digital DN.

    Autor: Manuel Joo VieiraTtulo: A Princesa Do Gelo

    Ideia Original e Coordenao Editorial: Miguel NetoDesign e conceo tcnica de ebooks: Dania Afonso

    ESCRITORIO editora |www.escritorioeditora.com

    2013 os autores, DIRIO DE NOTCIAS, ESCRITORIO editora

    ISBN: 978-989-8507-28-0

    Reservados todos os direitos. proibida a reproduo desta obra por qualquer meio, sem o consenti-mento expresso dos autores, do Dirio de Notcias e da Escritorio editora, abrangendo esta proibioo texto e o arranjo grfico. A violao destas regras ser passvel de procedimento judicial, de acordo

    com o estipulado no Cdigo do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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    sobre o autor

    Manuel Joo VieiraNasce em 1962, em Lisboa. Multifacetado artista, intervm em reas to distintascomo msica, artes plsticas, cinema e literatura. Em 1983, esteve na criao do Grupo

    Homeosttico, projeto marcado pela crtica ao panorama artstico da poca, reunindo vrias tendncias, entre as quais a msica, a banda desenhada e o cinema. Como ator,destacam-se as participaes emCapites de Abril(2000),A Janela (Maryalva Mix) (2001),Ill See you in my Dreams (2003) eBocage (2006). As facetas mais conhecidasdo pblico sero as de vocalista e mentor dos Ena P 2000 e dos Irmos Catita, e a deCandidato Vieira, pr-candidato Presidncia da Repblica Portuguesa. Publicou oslivrosS Desisto de for Eleito(2004) ePortugal Alcatifado Canes Anormais , Lello &Brito(2012) (em coautoria com Fernando Brito). Baseado no universo do personagempor si criado, foi ainda publicado oLivro Ros de Sua Santidade o Camarada PresidenteVieira(2010), com edio de Pedro Proena. Em 2011 publicouO lbum Bronco comos Ena P 2000, protagonizou o programa televisivo de sua autoriaPortugal Alcatifado,exibido no canal Q, tendo ainda participado emParaso, exibido no mesmo canal. Emfevereiro prximo ter lugar na Galeria Torreo Nascente da Cordoaria Nacional umaexposio de sua autoria intituladaCasa uma transladao exacta da sua casa atelie recheio para aquele espao expositivo.

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    A Princesa Do Gelo

    Manuel Joo Vieira

    Captulo 13

    Resumo dos captulos anteriores:

    O cruel Dr. Nostrar encontrou o pequeno stranpontim e desf-lo em diarreia.Kastor ficou desapontado com a bailarina an ao compreender a sua vil traio e

    desintegrou-a em pedaos, para a cozinhar e comer com arroz de grelo. Foi precisamentenessa altura que Pepito ressuscitou num salto, s para dizer um eu amo-te implacvel estatueta de gelo que se ia derretendo beira da lareira, deixando cair algumas lgrimasentre sussurros imperceptveis. O morto rapidamente voltou a falecer enquanto a tele-novela das 13 batia as 12 colhonadas.

    DIRIO DE BORDO DO CAPITO NEMO

    11 de Fevereiro de 1879, a bordo do submergvel Nautilus.

    Querida Rosinha,

    mais uma carta para a minha queridinha, pela qual nutro tantas nsias rosadas e mildesejos de felizes palmadinhas nas ndegas.

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    Pat! Pat! fazem as minha mos nas tuasNdegas escorregadiasE cheias de leo JohnsonQue reluzem com o brilho da janelaE sorriem quando te vejo nelaNelas bonita terraQue me intumesce o membro nodosoNas paisagens onde o engenho humanoMoldou o sagrado ao profanoOnde figura o animal serranoQue mergulha nos ninhos das cobrasDas quais tu comes as sobras.

    A caminho das Ilhas Salomo salvmos um marinheiro do torpedeiro Milagre.Este grande e modernssimo navio do glorioso Imprio Portugus, equipado com aquiloque de mais avanado existe na civilizao ocidental, estava sob a nossa mira desde o diaanterior. No disparmos, no entanto, os torpedos, por verificarmos que o comporta-mento do navio era errtico e aparentava uma total ausncia de coordenao. Apesardisto, no percebemos logo que se tratava de uma embarcao portuguesa, pois que nose avistavam os costumeiros porcos e galinhas no convs. Parecia antes estar totalmentedeserto. Depois de subirmos a bordo e verificarmos compartimento a compartimen-to, foi finalmente encontrado um homem, amarrado ao cordame da ncora, o que nodeixa de ter a sua justia potica, pois que o seu nome precisamente Capito ncora.Suspeito todavia de que no se trate de um verdadeiro capito, mas antes de uma espciede cone de uma marca de congelados.

    Dito isto, o facto de eu, o misterioso Capito Nemo (chego a ser misterioso para mimprprio), ser cidado de pleno direito do Imprio Luso no me tornou mais morno notratamento que destino a todos os estados que visam a guerra, a ganncia e a escravido.O contratorpedeiro foi devidamente afundado como todo e qualquer instrumento blicoque se me depare na rota. Pareceu-me contudo ouvir um Ai! acompanhado do gemido

    de uma guitarra quando o vi a submergir e, nesse instante, quase o julguei um ser vivo.Depois de agasalhado e enquanto tomava um chocolate quente, contou-nos o sobre-

    vivente uma histria absolutamente rocambolesca, mas que suspeito ser verdadeira, porse afigurar de uma profundidade psicolgica comparvel que atinge o nosso submarinonas viagens aos abismos do Pacfico, ou nos mergulhos na Fossa do Mindanau.

    H coisas que sentimos intuitivamente serem verdade sem termos no entanto a ne-cessidade ou a possibilidade de desenvolver uma verificao emprica para as confirmar-mos (sinto muito a falta da minha amiguinha, com quem gostaria de compartilhar estas

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    experiencias, mas verdade que a perigosa vida a bordo do Nautilus no convenientepara uma flor delicada como o a minha rola, que se quer voando livre no firmamentoazurino e no encerrada numa triste caverna metlica).

    Dizia eu que o dito marinheiro me contou que tudo tinha comeado a correr mal na vida a bordo do couraado portugus Mondego, quando um determinado mancebo,de nome J..., se apresentou para trabalhar como esbirro nas profundezas das caldeiras. Oseu trabalho consistia em vergastar e chicotear os trabalhadores que atrasassem o ritmodo necessrio abastecimento de carvo. Estranhamente, em vez de se revoltarem contraum tratamento mais spero que o habitual, os trabalhadores caam numa estranha apatia.Uma espcie de peste cerebral instalou-se. As pessoas comearam a desconfiar umasdas outras, a comida escasseava, todos os dias um marinheiro desaparecia, enquanto oscastigos fsicos triplicavam em nmero e em crueldade. Uma revolta latente comeou adominar o esprito dos marinheiros, at que tomaram a deciso de se dirigir respeitosa-

    mente ao capito para lhe pedirem que aprisionasse o mancebo J... at ao prximo porto,e logo seguirem caminho sem ele, pois que este era visto magicamente como responsvelpelo encadear de anormalidades que se verificava.

    O capito do navio, um certo Boto, oriundo das melhores famlias beirs, era umhomem indulgente e bom cuja nica fraqueza eram os grumetes adolescentes. Tinha umcoro destes anjinhos permanentemente a seu lado, entoando cnticos anglicos. Erambons rapazes, no faziam mal a ningum, comiam o seu torro de acar. Mas ultima-mente, e com a chegada deste novo elemento, o capito reparara que mesmo entre estesrepresentantes das celestes beatitudes existiam raivas e rivalidades dignas de endurecidasprostitutas da bblica Babilnia. Um tinha vazado os olhos ao amigo com o auxlio de umlpis, outro havia mutilado atrozmente os genitais de um colega com um saca-rolhas (...)

    Nas pginas seguintes o dirio do capito comea a icar borrado, no se compreendendo oscaracteres seno com muita di iculdade e pelo mtodo confuso da Psicologia da Forma.

    DIRIO DE J...10 de Outubro de 1878

    Vivamos em W... No S...., Instalados numa manso secular, enorme e sepulcral,cujas fundaes remontavam no poca do castelo normando, nem anterior fortifi-cao saxnica, no ainda antiga muralha romana, ou anterior fortaleza cltica, mas auma gruta anterior primitiva necrpole neoltica.

    Assim, quando me dirigia cave, percorria as entranhas da terra, descendo as suces-sivas estratificaes e, por assim dizer, viajava no tempo.

    Nunca tinha ousado descer aquilo que parecia ser o mais antigo estrato habitado

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    e que era constitudo por um agrupamento de monlitos formando um crculo, sobreos quais, em equilbrio precrio, se sustinham pesadas placas de ouricalco. No centroencontrava-se uma construo cuja planta rudimentar sugeria a forma de um rgosexual masculino: pnis e respectivos testculos. Interiormente, constitua para quemo percorria um escuro corredor com uma sala circular ao fundo. No centro dessa salaexistia um buraco quadrangular por onde, muito raramente, surgiam ecos e luzes defogos, e onde em determinada noite de insnia adormeci, at ser acordado pelas luzesfosforescentes. Provinham do orifcio e constatei, ao espreitar, que ao fundo se via umabarbuda mscara dourada. Parecia sussurrar conselhos, sortilgios, indicaes que euno conseguia compreender. Apreendia apenas sons graves que ecoavam e reverbera- vam, chegando at mim como o respirar e o bater do corao da prpria Terra.

    A paisagem era desolada durante todo o ano. No Inverno o vento silvava nas tristesrunas nevadas e por entre os ramos secos dos torturados carvalhos, mortos mas teimo-

    samente em p. O negro lago deixava-se cobrir por uma fina placa de um gelo cinzento.Da colina avistava-se o pequeno porto, amide invadido por ondas extraordinrias,onde os pescadores naufragavam regularmente. No Outono as folhas danavam valsasfantasmagricas que ondulavam as traioeiras silvas, picando os olhos dos incautos entreas magnlias.

    Na Primavera, aquela que tida como a estao da Vida e do Amor, trovejava echovia sem cessar e, quando isso no acontecia, agitavam-se os malficos plenes da floralocal, entre os quais figurava o raroRhedondendrus Ausobstinatus,utilizado pelas bruxasdispersas pelas colinas para fabricar os seus venenos.

    O Vero era seco, inclemente e ventoso. Nessa estao, tribos de ciganos acampavamna colina que ficava a uns escassos quinhentos metros do nosso porto. O cheiro nause-abundo dos seus cozinhados empestava toda a regio. Caldo de ourio-cacheiro, fgadode moreia e outrasdelikatessen semelhantes.

    Ali vivia sozinho com meu pai e meu primo desde que minha me falecera. O seuretrato dominava a vasta sala de paredes de madeira, habitada por um bafio glacial. Minhame falecera em circunstncias nunca satisfatoriamente explicadas. Meu pai nunca falavasobre o assunto. Alis, meu pai raramente soltava uma articulao sonora e parcamente

    entreabria a sua boca fina e fechada, de onde se evaporavam eflvios nebulosos prove-nientes do seu nico companheiro desde as campanhas napolenicas, o tabaco. Tinhatodo um arsenal de cachimbos, alguns exticos em mbar hiperbreo, outros em australmarfim. O catlogo de formas era simultaneamente obsceno e sepulcral. Guardava todosesses utenslios numa mala de cachimbos teimosamente aberta e exposta sobre a monu-mental escrivaninha de castanho. Uma mala enorme, rectangular, com as extremidadesreforadas em metal, estofada numa espcie de veludo bao, entre o carmim e o negro,como o forro de um caixo. Era no fundo um caixo de cachimbos mortos, egrgio mas

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    revivente na sua tosse aflitiva e soturna.Meu pai por vezes suspendia o passo ao passar pelo grande salo em frente ao retrato

    de minha me. Revirava os olhos, exibindo uma expresso obstipada e hirta, enquantoum suor leitoso lhe saa marejando por todos os poros da face. Com uma voz que soavamuito fininha e arranhada, gritava como um possesso Irra, irra!, depois, numa me-lanclica pausa, respirava fundo, baixava a cabea num suspiro profundo e soltava umCruzes, canhoto!. Deslocava-se ento com um surdo arrastar dos chinelos de veludonos frios rectngulos de mrmores embutidos importados de Itlia, que em tempostinham resplandecido e que hoje se encontravam cobertos com uma patina de sujidadeindefinida, amarelada e viscosa, onde contemplava o seu deformado reflexo. Nessasalturas, chegava a ter pena dele. Interrogava-me qual teria sido a relao deste homemcom a minha me, pois o contraste entre estas duas personalidades no poderia ser mais violento. Aparentemente, aquela mulher que afirmavam ser a minha progenitora, per-

    tencendo sem dvida tambm a uma das mais nobres famlias da regio, tinha no entantorecebido uma educao cosmopolita e moderna. Havia viajado (e provavelmente ainda viaja) pelo vasto Mundo, conhecido pases solarengos, como a Itlia, a Grcia, o Monte-negro, esses pases, enfim, longnquos, raramente esmagados pelas formaes nebulosasque perpetuamente percorrem os nossos cus. Diz-se (ecos de ecos) que ter sido objectode galanteios e cortes de prncipes russos, cantores de tango argentinos, vizires persase sultes otomanos. Resignou-se no entanto a um casamento de convenincia que teriasido ajustado desde os trs meses de idade pelas famlias respectivas, e tradicionalmenteconsanguneas, da nossa pequena nobreza de provncia. Como era isso possvel numcarcter determinado, forte, livre e orgulhoso como o da minha me, afigurava-se detodo incompreensvel para mim. E havia de facto um acordo silencioso, uma espcie deconspirao muda que transcendia de todo e por completo as barreiras da sanidade social,que eu podia surpreender a cada instante, quando confrontava os meus mais diversosparentes, e mesmo toda a comunidade, com perguntas relativas a este mistrio. Os le- vantares de sobrolhos, os encolhimentos de ombros, os lamentos mimando ganidos, osprovrbios sem qualquer sentido, os convites para beber uma qualquer bebida alcolica,todos eram expresso de um incmodo extraordinrio quanto a um qualquer segredo

    corrosivo e obstinado.Certa noite, levantei-me da cama, ouvindo uma voz fantasmagrica a cantar uma

    velha cano que me era estranhamente familiar, no conseguindo contudo identific--la. Desci sala, no olhei para o retrato. A voz parecia vir da cave. Desci cave, mas, derepente, e antes de atingir o andar de granito onde se localizava a necrpole neoltica,o cho tremeu e as pedras comearam a danar e a rodopiar, como um carrossel.A vertigem tomou conta de mim, e comecei a girar sobre o meu prprio eixo, comoum peo. Elevei-me ento nos ares e, numa extraordinria peripcia, furei o cho de

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    mrmore e fiquei volta de dez minutos a girar sobre mim mesmo em frente ao retrato.Quando lentamente o movimento se amenizou, vi uma cara disforme colada aos grandes vitrais da parede oriental (...)

    Aqui faltar um nmero indeterminado de pginas ao dirio

    (...) Embarquei no cargueiro Izhmir, com destino a Vladivostok, o meu ventreansioso de dinheiro fcil. Tinha-me despedido de meu pai sem um simples aceno. Eletentou, em vo, relembrar-me de que na nossa famlia nunca ningum trabalhou, nuncaningum sujou as mos, que era tudo gente fina, e que, se queria realmente alguma coisa,poderia tentar a Cmara dos Lordes, ir caa, ir aos prostbulos de Londres, pois queno ficava bem a um jovem da minha condio alistar-se num cargueiro em busca deaventuras, que se quisesse me alistava para ir at s ndias, que tinha conhecimentos e

    certamente me conseguiria uma posio adequada.Mas no meu estado mental de repulsa em relao a tudo o que tivesse a ver com a

    minha ascendncia paterna, apenas uma total recusa fazia sentido.Numa nebulosa manh de Agosto embarquei sem qualquer expectativa de regresso.

    A bordo do Izhmir, o capito simpatizou comigo e parece ter adivinhado em mim umacerta superioridade intelectual. Comecei assim por ser contratado como vigilante dostrabalhadores da caldeira, que eram praticamente escravos, pouco mais velhos do queeu, obrigados a trabalhar nesse inferno por dvidas contradas, ou por velhos laos deservido, prprios da frota prsica. A nica coisa que precisava de fazer, na realidade, eraadmoest-los com frequentes chibatadas e, uma vez por outra, dar um pontap num tipomenos trabalhador para que ele conhecesse de perto o fogo que tinha toda a obrigao demanter. No havia mulheres a bordo, de maneira que os entretnhamos como podamos,com animais de criao, por vezes leites, perus, galinhas, cabras, mas eram-nos com-pletamente interditos os marujos do comandante. Certa noite ouvi uma histria da bocado meu companheiro de quarto que, por qualquer razo, me pareceu digna de crdito eacendeu em mim um estmulo comparado alarvice provocada pela sbita viso de umalaranja por um homem padecendo de escorbuto em ltimo grau. Uma laranja metlica,

    certo, uma laranja-armadura, uma laranja aparafusada, uma laranja-bomba.Dizia-me ele que nas vastas imensides polares, para l da Islndia, onde os mapas

    apenas indicam um eterno mar de gelo, por vezes se encontra uma montanha com picosescarpados e bicudos. Nessa montanha, certo mercador iraquiano, nufrago de umatrirreme do sulto de Constantinopla, que ali foi parar como consequncia de uma tem-pestade, tendo percorrido a uma velocidade alucinante toda a distncia que separa o MarNegro, o Bsforo, O Egeu, o Adritico, o Mar da Ligria, enfim, passando as colunasde Hrcules j mais um frangalho do que um barco, e acabando por se arrastar atravs

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    do mar do norte at encalhar em rochedos de gelo, ficando a embarcao suspensa numpico, tal a Arca de No (...)

    Aqui existe mais um hiato no texto

    (...) Estava no crculo polar rctico a caar camares num perfeito crculo cortadono gelo. Os camares eram cor-de-laranja e borbulhavam ovas quase vermelhas. Eram anica coisa com cor em vrios quilmetros em redor. Tinha que ter algum cuidado, poisarriscava-me a que a rede ficasse congelada e se colasse placa de gelo. Os buracos que iaabrindo fechavam-se quase to rapidamente como o tempo que levava a abri-los. Tinhacortado no gelo um crculo perfeito, como um tamanco. A prtica tinha-me tornadoexmio neste tipo de habilidades. A pesca do grande camaro branco era o meu objectivo.Este arredio animal tpico do rctico meridional e as suas ovas arrancam fortunas junto

    dos novos-ricos de Tquio.Eis que, pouco depois de lanar o camaroeiro, sinto alguma coisa a pux-lo com

    desmedida fora. A rede muito mais pesada do que o habitual. Entusiasmado perante acaptura de um enorme camaro branco, prendo-o ao tren e acirro os ces para puxaremna direco contrria. Surge ento diante dos meus olhos um animal fantstico e, aopux-lo com toda a fora, vi que tinha emaranhado uma soberba morsa, ostentandoprodigiosas presas de marfim. Pegando no meu machado para lhe fender o crnio, j apensar numa orgia de sangue bem merecida, eis que pasmo (oh, estupor!) perante esteincrvel fenmeno: aquela morsa falava um portugus perfeitamente correcto, no semuma leve suspeita de pronncia coimbr.

    Com que ento falas portugus, morsa! verdade. Conheci muito bem Aveiro, e cheguei mesmo a servir copos num bar

    na Marinha Grande. Gosto muito de Portugal, um stio maravilhoso, as mulheres solindssimas e sinto uma grande nostalgia do sol.

    Pois, pois, tudo isso muito bonito, mas vou precisar da tua carne e dos teusmiolos para a minha refeio. A tua pele seca vai-me providenciar aconchego, os teubigodes sero teis para que eu faa um instrumento de cordas, os teus dentes vo-me

    distrair nas horas de inverno; estou a pensar fazer umas pequenas estatuetas artesanaiscom mulheres desnudas. E soltei uma gargalhada com franco prazer, como j nosoltava h meses: Ha! Ha! Ha!

    Mas olha disse-me ele no faas isso, pois se no o fizeres, eu contar-te-eiuma histria que pode fazer de ti um homem rico.

    Um homem rico? Ests a querer salvar a pele. E peguei no meu machado,decidido a acabar de vez com aquele animal malcheiroso.

    Eu digo-te onde est o tesouro da Princesa do Gelo.

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    A Princesa do Gelo?! Queres dizer a Rainha do Gelo? Ao que a morsa responde: Princesa, Rainha, ela tudo, ela as vrias fases da lua, desde que nasce at que morre,para voltar a renascer.

    Bom, est bem, diz l onde est o raio do tesouro. Se me deres a tua palavra de cavalheiro de que no ousars agredir-me de qualquer

    forma, e de que me soltars, pois uma morsa preza mais do que tudo a sua liberdade. Tens a minha palavra de cavalheiro, e juro aqui, perante a memria de minha

    me, e perante o altssimo que a todos e a tudo observa. Muito bem, ento ouve atentamente aquilo que te vou dizer: na montanha

    que fica no centro do Polo Norte, aquela que s vezes aparece e s vezes desaparece,situa-se no seu pico de maior altitude o palcio da Rainha do Gelo. Esse palcio fe-rozmente defendido por seis mil guerreiros de gelo. Estes so controlados pelas duasgmeas-que-tm-sempre-calor e que vivem no iglu de madeira. Nesse palcio onde

    sempre Primavera, onde os animais falam e brincam livremente com as crianas quese alimentam de frutos silvestres, existe um mausolu. Esse mausolu a moradia daRainha. A Rainha nunca sai do mausolu, porque existe um encantamento, mas reza alenda que um dia vir um homem do sul que a beijar e far dela sua esposa, tornando omundo novamente num paraso terrestre.

    Sim, sim, e o tesouro? Como que o tesouro, onde est o tesouro? O tesouro diz a morsa incomensurvel, tanto na sua quantidade quanto

    na sua qualidade. Todos os tesouros do mundo desembocam naquele mausolu. Existel uma arca sem fundo de onde se pode tirar eternamente ouro, diamantes, prolas,ametistas, lpis-lazli, todas as moedas do mundo.

    Muito bem. E como que eu sei o caminho para l? Ests a ver esta mochila que trago s costas? diz a morsa tenho aqui o mapa

    da montanha. Consegues tir-la? Tira tu. No confio em ti Mas eu no consigo l chegar Tira-a com os dentes. E atira-ma para aqui. Esses dentes, no confio muito neles,

    e se eu fosse pr a a mo, poderia no ser muito saudvel para a minha sade.

    Ento, a morsa, num golpe de cabea, cortou as correias, e, acto contnuo, lanoua mochila aos meus ps. Desenrolei um mapa profusamente ilustrado num estilo algoantiquado e onde estavam indicados claramente o iglu de madeira e o palcio do gelo.

    Entretanto, a morsa tinha qualquer coisa na boca. Que isso? Perguntei. A chave... D c isso... No sei para que quero isto...Meti nervosamente o objecto no bolso e, simultaneamente, saquei furtivamente do

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    meu machado. Num gesto largo e circular acertei com ele no alto do crnio do enormemamfero marinho, no sem um arfar de satisfao:

    Ah, ah, mesmo no cocuruto!A morsa agonizante murmurava qualquer lengalenga de morsas agonizantes:

    Tu malfico liliputianoAlgoz das virgens santasNo teu caminho insanoAtroz a sorte espantasQuando cair o panoVais ver que j no cantasTriste matarruanoColhers o que plantas.

    Mais uma machadadazita e perdeu o pio. Cortei as presas de rico marfim, esfolei-a edividi a carne em pacotes iguais, dei ainda as vsceras a comer aos ces.

    Os meus trs ces zarolhos conduziam agora o tren atravs da densa tempestade. Ameio palmo no conseguia vislumbrar o mapa. O frio parecia estar a transformar os meusneurnios em cristais azuis quando passou minha frente um grupo de enormes vultos,quase indistintos, que na minha mente confusa lembravam elefantes em fila indiana.Agora, mais de perto, pareciam-me mais mamutes ou mastodontes, emitindo bramidoshorrendos e assustando os meus ces que, tomados de pnico, viraram no sentido per-pendicular ao do trajecto dos animais, emitindo ganidos apavorados. Sentamos atrs dens a aproximao acelerada de um terramoto em movimento. Os glidos paquidermesperseguiam-nos, tomados de uma qualquer fria incompreensvel. Os ces soltaram-se.Fui atropelado pela enxurrada da manada de gigantes, bati com a cabea na neve enre-gelada, rebolei de um lado para o outro como uma pena ao vento e de repente vi tudonegro e senti uma calmaria total.

    Via agora uma bela mulher morena, de cabelos escuros e longos, nariz direito, olhos

    fascinantes, cristalinos, brilhantes, longas pestanas altivas, um olhar simultaneamentearrogante e de uma fragilidade extrema... Onde j a tinha visto? Parecia a rainha de umconcurso de beleza do fim dos anos sessenta, vestida com um simples vestido branco. Tra-tava-se de uma rapariga alta, dos seus vinte e seis anos, com qualquer coisa de simultane-amente virginal e explosivo. Havia algo de totalmente inesperado. Calava umas sabrinas vermelhas com um lacinho. Uma menina de famlia, extremamente ajuizada, grande,bem feita, mas ainda com uma maneira de cruzar as pernas algo infantil, habituada a seradorada por todos os machos alfa do seu subrbio de provncia. Estava agora minha

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    frente, bebia uma imperial enquanto lia um livro que tinha encontrado num qualqueralfarrabista. Um livro de capa azul, encadernado, dos anos cinquenta, sobre um assuntode quiqueriqui, em que contracenavam um taxista, o seu carro e um bairro onde no sepassava nada. A princpio senti vontade de me ir embora. Ela era grande demais para omeu gnero. Depois lembrei-me que no tenho um gnero. E quando ela me olhou defrente com os seus faris fiquei estupefacto e perdi-me nesses abismos. Voltando a mim,era claro que aquela s podia ser a minha noiva, a mulher pela qual esperamos toda uma vida, e que me era de repente oferecida de mos largas pelo destino. No, no era a minhanoiva, era simplesmente A noiva : o tipo perfeito da encarnao terrestre de um smbolodo domnio das ideias e ao mesmo tempo o mais belo animal que me foi dado alguma vez a contemplar. Tentei falar com ela e apesar do medo de balbuciar rudos incoerentesa minha voz saiu directa ao assunto, pertinente, inteligente, quase eficaz. Parecia eraque era outro eu que proferia as palavras enquanto eu apenas desejava fundir-me com a

    misteriosa jovem num nico ser, total e luminoso. E eis que nos tnhamos que separar.Prometera no me apaixonar e nos seu lbios encontrei a prpura do Infinito, a prola daorigem do Universo. Separvamo-nos agora, voltaramos a ver-nos mais tarde; quandoacontecia, precisava sempre de alguns minutos para vencer a inicial estranheza e voltar amergulhar no abismo dos seus olhos.

    Estava rojado no cho. Em frente a mim, o chefe dos mamutes olhava-me a trsquartos em contrapicado, um olho quase humano, com espessas sobrancelhas e profundasolheiras Havia nesse olhar qualquer coisa de professoral ou doutoral, um mamute-mo-cho. Um pequeno movimento e esmagar-me-ia como a um mosquito. Elevava a pata, dotamanho de um Opel Corsa, a quarenta centmetros da minha face enregelada. Sentia-mefractal, feito de cristais de gelo, prestes a explodir como o vidro de um automvel. Percoa conscincia.

    Novamente A noiva minha frente. Agora um prenncio do seu cheiro, agora o seudesaparecimento sbito.

    Estou em plena Lisboa. Um sol implacvel e uniforme de setembro.

    No Chiado, sob um astro solar

    Que me comea, decididamente, a enervarResplandecendo como gnea marionetaSobre os barbudos que circulam de bicicletaDesfao-me em p csmicoFugindo pelas entrelinhas da calada antiga portuguesa.Uma s ptala que me toque na ponta do nariz e soobrarei.Mas eis que uma flutuante ptala se aproxima. V-me.Dirige-se em minha direco, ameaadora.

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    Observa-me com um olhar complacente (se que as ptalas tm olhar)E subitamente atropelada por um elctrico.O perigo imediato passa assim a perigo imanente.

    Enquanto tecia estas consideraes poticas num estado de nevrose, o gargantuescoproboscdeo, comandante do exrcito da idade do gelo, ficando comovido com a minhacrise de soltura potica, comea ele prprio a lapidar m poesia no meu crebro cansado:

    Flores sem corao!Vegetais instrumentos da minha flagelao!Quisera eu ser um santo apcrifa E chicotear-me com dentes de tigreQue so

    Apesar de tudo mais carinhosos.

    Isto sem querer cair em extremos.O ridculo sim, mas o ridculo nobre,O ridculo soberboIntil Golias de barrentos ps.

    O coro espectral do mastodntico exrcito bramava o poema:

    Um terramoto na minha almaUm chocapic de cartolinaMeu corao-crisntemoTeu abanico em clidas tardes.

    cruel devoradora de inocentesE minsculos biscoitos de chocolatePlancie permanente do meu pensamento

    Horizonte glacial da minha parvoce.

    Para ti so os parasos das bonecasPara mim as velhas mmias astecas.

    Novamente a escurido. Depois, a sensao de balano de um barco. Seguidamente,a viso dos flocos de neve que borboleteavam em meu redor, numa dana sem lei dagravidade, brilhando no cinzento de chumbo do cu. Tinha fome. Tinha muita fome.

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    Naveguei dois dias e duas noites no dorso do chefe dos mamutes, alimentando-mede vermes e parasitas que habitavam a sua lanuda pelagem. Tnhamo-nos tornados,por assim dizer, quase amigos, na medida em que um homem e um mamute podemser amigos. Provavelmente trabalhvamos com objectivos cruzados, mas era possvelencontrar um terreno comum. No entanto, por alguma razo, tudo em mim apelava destruio do tirnico paquiderme. Mas era impossvel de exterminar. Eis seno que ocu se desanuvia subitamente deixando aperceber no horizonte campos verdes nimbadosde luz alaranjada e suspeitas de azul celeste.

    Neste instante a infinita placa de gelo comeou a quebrar-se e por todo o lado osmamutes soobravam, mergulhando nas guas negras com bramidos impotentes. Fuiarrastado para o fundo.

    Curiosamente, no senti qualquer tipo de frio em contacto com a gua glida. Fuimergulhando calmamente, em cmara lenta, invadido por um sentimento de uma

    extrema beatitude, roando a perfeio espiritual do Nirvana. Compreendi ento queestava a deixar o mundo dos vivos e nessa altura deu-se um Clic! na minha cabea ecomecei a agitar-me violentamente. Consegui dar uma patada sobre um mamute imersoe projectei-me para cima, em direco luz do dia, e, subitamente, fui apanhado numarede de pesca. Pensei tratar-se de um quebra-gelos japons, quando deparo com duasfaces feminis de jovem e sorridente compleio.

    Acordei dentro de uma tenda feita em pele de mamute. As gigantescas presas destesanimais constituam a estrutura aracniforme do casebre. Considerava agora com maisateno as minhas hospedeiras. Eram gmeas, idnticas como duas gotas de gua e belascomo os amores.

    Ol, estrangeiro. Ol. Vens de onde? Pesco camaro. Venho de W... , na longnqua Europa, para fazer fortuna. Procuro

    o palcio da Princesa do Gelo. Nesta aldeia somos todas suas filhas. Ela a abelha-mestra. Todas as aldeias de

    pescadoras de mamutes em redor da Montanha-que-vai-e-vem foram fundadas pela

    princesa. Ah, pescam mamutes, muito bem. que o cheirinho que vem da lareira mesmo

    muito simptico. Sinto a espinha a encostar-se ao estmago, que est, parece-me, j numestado de autofagia...

    Eis que reparo que me fitam fixamente com qualquer propsito torpe em mente Temos que o levar para o laboratrio e relatar chefe que apanhmos um homem.

    contra todos os regulamentos mant-lo em casa. Estamos a ser muito malandras. s muito malandra, To!

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    E tu s muito malandra, So.Eis que se beijam apaixonadamente, mas quando digo que se beijam, mais aproxima-

    do seria dizer que se comem. Ou que se fundem. Ou que se fodem.A saliva corre-lhes pelos pescoos abaixo dando pele um brilho lustroso e profundo.

    As mos percorrem mil caminhos sinuosos at se perderem nos femininos abismos. Qual de ns a mais bela? Hem? Digo eu. Qual de ns preferes? Vocs so... Um bocado parecidas... Vs? Eu bem te disse que no valia a pena. sempre a mesma coisa. No tm a

    menor sensibilidade. um problema irresolvel. Podamos cozinh-lo... Estou farta de mamute magrinho...No sei.

    Sim... Tem uns olhos encovados. algo melanclico. Acho-lhe graa. pena...Compreendendo que me achava na corda bamba e que as nativas no eram total-

    mente amistosas ou estveis, resolvi jogar um jogo do qual desconhecia as cartas. Claro que h diferenas entre vocs... Mas vou precisar de tempo e de as conhecer

    melhor, mais intimamente. Posso dizer que sou um conhecedor da natureza feminina e,embora nunca tenha visto um caso de semelhana anlogo na minha vasta experincia,posso-vos afirmar que se algum pode fazer uma distino de valor entre as minhas duasamigas, esse algum s posso ser eu. Claro, com o estmago vazio, difcil... j quaseque no vejo nada e temo mesmo ser vtima de alucinaes e de estar a falar com o meureflexo no gelo...

    Levaram-me ento cuidadosamente para um lugar ao p da lareira, onde me serviramum magnfico olho de mamute acompanhado por camares e polenta de centeio.

    A partir da tive uma vida magnfica. A minha existncia era coroada pelas maisdiversas e esquisitas flores. As irms gladiavam-se para obter os meus favores e a minhapreferncia. Eu fazia sinais, ora a uma, ora a outra, subtis sinais de que essa seria a minhapreferida. Davam-me banho, alimentavam-me, penteavam-me, cortavam-me as unhas,

    catavam-me, levavam-me a passear e noite procuravam satisfazer todos os meusmnimos desejos, para alm daquilo que pode ser considerado cannico entre todos osKama Sutras do universo. Mas todas as semanas, ao Domingo de manh, cada uma doseu lado da lareira, olhavam para mim de uma forma muito sria e faziam a pergunta: Jdecidiste qual de ns duas a mais bela?, J decidiste qual de ns duas a tua preferida?.Esses quinze minutos eram particularmente difceis para mim, pois como duas gotas degua eram clones absolutos. Pela sua educao, indumentria, trejeitos, modos, postura,no era possvel de forma nenhuma distingui-las. Certo Domingo, disseram-me: Tens

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    de te decidir at a Primavera voltar. Quando a Primavera voltar, o rouxinol vai cantartrs vezes. At esse dia vais ter de nos dizer, ou seremos obrigadas a informar o resto daaldeia de que te encontras entre ns e sers assado no espeto e comido pelas ancis combatatinhas e cebolinhas, e a verdade que j te encontras bastante gordinho.

    Numa noite em que passeava pelas alamedas inflamadas de gelo, reparei que umarvore comeava a rebentar. Uma pequena folha verde emergia de um galho. Senti oaroma da Primavera a aproximar-se. Voltei para casa. As irms dormiam, ressonan-do como locomotivas. Roubei o que pude, levei toda a comida possvel e queimei assuas roupas na lareira para que no me pudessem seguir. Depois, no sei porqu, nummovimento alegre e descontrolado, incendiei a cabana. Assim que sa, entusiasmei-me eincendiei todas as cabanas da aldeia. A mim no me pem no espeto, disse por entre gar-galhadas alegres, e, pelo meio da lama e da neve que j derretia, subi a colina em direco montanha. No sop, olhei para trs e vi a aldeia envolta em profundas labaredas. Para

    mim, era uma viso apaziguadora e querida. Vi os vultos a sarem das casas envoltosem chamas, as mes levando as filhas, tentando salv-las desesperadamente. Pensei estamontanha cheia de neve facilmente pode ocasionar uma avalanche. Comecei a gritarfeito louco, e a alavancar pequenos penedos pela encosta abaixo, na esperana de que umaavalanche valente pudesse sufocar a aldeia. Via j pequenos grupos armados, eriados, delanas a apontar na minha direco. Pus-me a correr encosta acima, desvairado. No seiquanto tempo estive a correr. Senti uma injeco de adrenalina que me dava poderes desuper-homem. Subi e trepei como um macaco por penedos e glaciares, escondi-me emgrutas, convivi com animais ferozes, at que finalmente adormeci num buraco escuro.

    Quando acordei, vi brilharem na escurido dezenas de pares de olhos que me fitavamimveis. Acendi um cigarro e vi que se tratava de homens esqulidos, de semblanteesfaimado, doentes, esquelticos, desesperados.

    Quem so vocs? Quem s tu? Sim, quem s tu? diz outro. Eu vim da aldeia das mulheres que comem homens e que caam mamutes. Ah! disseram eles Nunca ningum conseguiu de l escapar.

    Quer dizer que vocs no vieram de l?No, ns vimos de cima e no podamos descer por causa dessa tribo de mulheres

    da aldeia que tu incendiaste. Agora talvez haja uma hiptese de regressarmos. Ok, ento vm de cima. E o que que h l para cima? O que que h l para cima?! O palcio da Princesa do Gelo, o tesouro. Algum tem alguma coisa? Algum conseguiu ficar com alguma parte do tesouro?Nisto, um ancio branco como a cal sentenciou o seguinte: O Palcio aparece e desaparece, ora num stio, ora noutro, tanto o vemos surgir por

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    cima das nuvens, como num instante estamos na entrada principal, e de repente estamosno torreo, ou voltamos a ficar no meio do deserto nevado. Assim que lhe tocamos ele de-saparece como uma miragem. A nica coisa palpvel so os cruis exrcitos de anes quese divertem nossa custa e nos fizeram gastar todo o dinheiro que tnhamos, roubandotodos os nossos mantimentos, dando falsas indicaes, fazendo de ns os infelizes que tu vs, nesta gruta prostrados, sem qualquer esperana daqui sairmos vivos.

    Quer dizer que no tm nenhum conselho para algum que queira conquistar otesouro?

    Contenta-te com o que tens. Todas as riquezas do mundo no valem as riquezasinteriores. Todas as riquezas do mundo no valem a tranquilidade, a simplicidade, umpensamento claro, simples e escorreito, o trabalho, o amor, a amizade...

    Sim, sim, mas podem dizer-me de onde vm, se vm de cima, se vm de baixo?No me sabem dizer a ltima vez que viram o palcio, onde estava?

    Uma das pobres almas que se acotovelavam na gruta levantou-se e veio ter comigo: Eu no fico aqui com este bando de derrotistas. Eu vou contigo. Fui o ltimo a

    ver o palcio (...)

    Estranhamente, est em falta mais uma parte do texto

    CENAS DOS PRXIMOS EPISDIOS:

    J... descobre o palcio-jazigo da Princesa do Gelo, depois de passar cinco dias ecinco noites perdido no labirinto vaginal da feiticeira tibetano-transmontana CirsaVanessa Sandrake, com morada em: Rua do Amial, 696969-69, Carrazedo de Montene-gro, Lhassa, Tibete.

    Como tudo faz para entrar no palcio e para a despertar, e de como isso se revelaextremamente nada fcil, at se lembrar de que a morsa lhe tinha dado a chave e de se

    arrepender de todos os seus pecados, e ainda de se oferecer como voluntrio para cantarnum vdeo de caridade caso ela no despertasse.

    De como se encontram e perdem no meio de uma tempestade de areia.

    Finalmente, J... apaixona-se pela Princesa do Gelo, que mais no do que umammia Inca em que encarnou o esprito de sua prpria me.

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    Como J... vai confraternizar com a Princesa do Gelo e conhecer o seu grelo, e decomo se perde neste durante quarenta dias e quarenta noites.

    De como o nosso heri vai fazer uma plantao de grelos de mulheres de gelo ecom isso ficar milionrio, depois de se verificar que cada mulher de gelo tem um grelo. Ede como os vai transportar no paquete Piedade, graciosamente escoltado pelo contra--serapilheiro Mondego, que por sua vez ser , devido a um trgico erro decorrentede trfico de influncias, escndalos de pederastia e batota em campeonatos mundiaisde tnis de mesa, torpedeado pelo Nautilus, a vanguardista embarcao submergvel donosso heri, o Capito Nemo.

    E mais, muito mais, se comprarem os fascculos do jornalO Rabinho pelo modestopreo de duas notas de vinte.

    Uma aventura da autoria do prestigiado Jlio Verme(Edies Verme Juvenil),criador, entre outras coisas, de um circo de pulgas que ficou em minha casa e da

    coleco completa das listas telefnicas de Pampilhosa da Serra desde 1784.

    Este texto foi escrito de acordo com a antiga ortografia.

    Para aceder aos restantes contos visite:Biblioteca Digital DN

    http://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspxhttp://www.dn.pt/Especiais/bibliotecadigital.aspx