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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM ANDREA CRISTINA MARTINS PEREIRA A PRINCESA E O REI Um estudo sobre a construção do sentido em Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino Niterói, RJ 2014

A PRINCESA E O REI · Pedra do Reino, baseada na obra de Ariano Suassuna, ambas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho e exibidas pela Rede Globo de Televisão, em 2005 e 2007, respectivamente

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Page 1: A PRINCESA E O REI · Pedra do Reino, baseada na obra de Ariano Suassuna, ambas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho e exibidas pela Rede Globo de Televisão, em 2005 e 2007, respectivamente

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS

INSTITUTO DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

ANDREA CRISTINA MARTINS PEREIRA

A PRINCESA E O REI Um estudo sobre a construção do sentido em Hoje é dia de Maria e A Pedra do

Reino

Niterói, RJ 2014

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ANDREA CRISTINA MARTINS PEREIRA

A PRINCESA E O REI

Um estudo sobre a construção do sentido em Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à conclusão do curso de Doutorado em Estudos da Linguagem – Área de concentração: Estudos Linguísticos. Linha de pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação.

ORIENTADORA, PROFª. DRª. LUCIA TEIXEIRA DE SIQUEIRA E OLIVEIRA

Niterói, RJ 2014

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ANDREA CRISTINA MARTINS PEREIRA

A PRINCESA E O REI Um estudo sobre a construção do sentido em Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à conclusão do curso de Doutorado em Estudos da Linguagem – Área de concentração: Estudos Linguísticos. Linha de pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação.

Aprovada em 11 de abril de 2014.

______________________________________ Prof. Dr. Adalberto Müller Junior Universidade Federal Fluminense

_______________________________________

Profª. Drª Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira (Orientadora) Universidade Federal Fluminense

_______________________________________

Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva Universidade Estadual de Montes Claros

_______________________________________

Profª. Drª. Regina Souza Gomes Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________

Profª. Drª. Renata Ciampone Mancini Universidade Federal Fluminense

Niterói, RJ 2014

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Em memória de João e Maria, meus pais, que sinalizaram meu caminho nessa terra árida do sertão.

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AGRADECIMENTOS

A essa energia divina, que cria a vida e nos impulsiona a torná-la melhor;

A Lucia Teixeira, por acreditar em mim;

A Osmar Pereira Oliva, por ter-me feito acreditar em mim; a Marlene Gomes Mendes, por me abrir a porta; a Adalberto Muller e Sílvia Maria de Sousa, pelas contribuições no exame de qualificação; a Luiz Fernando Carvalho e Carla Madeira, pelos arquivos cedidos; a Ednize Monteiro, pela amizade e colaboração;

a Vítor Fernandes, pela hospitalidade;

à Universidade Federal Fluminense;

à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), pela bolsa concedida para realização da pesquisa.

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“Toda a gente compreende sem dificuldade que se os homens encarregados de exprimir o belo se conformassem com as regras dos

professores-jurados, o próprio belo desapareceria da terra, uma vez que todos os tipos, todas as ideias, todas as sensações acabariam por

confundir-se numa vasta unidade, monótona e impessoal, imensa como o tédio e o nada. A variedade, condição sine qua non da vida,

seria eliminada dela.”

Charles Baudelaire, 1954.

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SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................................10

RESUMMÉ...............................................................................................................................11

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12

1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

HISTÓRIA DA TELEVISÃO.........................................................................................22

1.1. A TELEVISÃO, O PÚBLICO E A FORMAÇÃO DO GOSTO.......................................26

1.2. 1 DE “BRINQUEDO DE LUXO” A VEÍCULO “POPULARESCO”: NOTAS SOBRE O

PERCURSO DA TELEVISÃO NO BRASIL...................................................................31

1.2.1Dos teleteatros às telenovelas: a consolidação do gênero ficcional na TV...............34

1.2.2 Entre o popular, o popularesco e o “brega”..............................................................36

1.2.3 O “padrão Globo de qualidade” ...............................................................................42

1.3. A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA ........................................................................44

1.3.1 Minisséries e microsséries........................................................................................46

1.4. A ORQUESTRA BARROCA DE LUIZ FERNANDO CARVALHO.............................49

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2. NAS TRILHAS DAS ABERTURAS: UM FLERTE COM O

TELESPECTADOR........................................................................................................58

2.1. A CORTINA SE ABRE ....................................................................................................61

2.2. PARA ALÉM DAS FRANJAS DO MAR.........................................................................71

2.3. UMA COROA, UM TÚNEL E UM UNIVERSO A

SERDECIFRADO.............................................................................................................77

III -HOJE É DIA DE MARIA: UMA JORNADA ENTRE OS CONTOS FANTÁSTICOS

E A REALIDADE...................................................................................................................83

3.1 AS JORNADAS DE MARIA.............................................................................................84

3.2 “ERA UMA VEZ...”...........................................................................................................86

3.2.1. A estrutura narrativa: do conto tradicional à técnica cinematográfica.....................92

3.2.2. “Lírica, bonita e triste”.............................................................................................99

3.2.3. Um mundo a ser feito.............................................................................................102

3.2.4. “Um dia, tudo volta a sê”.......................................................................................109

3.3. TUDO “COMOVEDORAMENTE ALSO”................................................................... 111

3.3.1. Cores e luzes, espaços e tempos.......................................................................112

3.3.2. Bonecos, cordas e excessos no palco de Hoje é dia de

Maria...........................................................................................................................115

3.3.3. A presença do cinema: do clássico ao pós-moderno.........................................118

3.3.4 Diálogos intertextuais.........................................................................................119

3.4. NO SONHO DO GIGANTE............................................................................................125

3.4.1 A dona da voz.....................................................................................................129

3.5. LUZ E SOMBRAS, MÚSICA E DANÇA EM RITMO DE

SONHO...................................................................................................................................134

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IV -A PEDRA DO REINO: “ROMANCE ENIGMÁTICO DE CRIME E

SANGUE”..............................................................................................................................141

4.1. AS AVENTURAS DE UM QUIXOTE SERTANEJO ENTRE A FICÇÃO E A

HISTÓRIA..............................................................................................................................143

4.1.1. “Foi estranho”...................................................................................................145

4.1.2 E o palhaço, quem é?..........................................................................................147

4.1.3 Tempos, espaços, vozes e um só “canto espantoso”..........................................148

4.1.4 “A obra está finda!”............................................................................................152

4.1.5. O tempo fragmentado........................................................................................155

4.2. A EXPRESSÃO DO BARROCO...................................................................................157

4.2.1. Sons, silêncios, acúmulos e contrastes .............................................................159

4.2.2. O corpo e a voz..................................................................................................161

4.2.3. A expressão do grotesco.....................................................................................164

4.2.4. Pausa para a cultura popular..............................................................................166

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................177

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RESUMO

Dentro de uma ampla rede de estudos semióticos que se têm produzido atualmente, as linguagens utilizadas nas comunicações de massa e de expressão artística vêm se destacando e ganhando espaço, especialmente com a multiplicação de veículos de comunicação, patrocinada pela tecnologia. Assim é que se ampliam os estudos sobre o sincretismo de linguagens, presente na maioria absoluta das novas mídias; o hibridismo na arte contemporânea; as oscilações de ritmo e as manifestações do afeto e das paixões nas narrativas, objetos da semiótica tensiva. É neste cenário que este estudo se insere, na medida em que analisa a produção de sentido nas minisséries Hoje é dia de Maria, recriada a partir de contos e cantos populares recolhidos por Sílvio Romero, Câmara Cascudo e Villa Lobos; e A Pedra do Reino, baseada na obra de Ariano Suassuna, ambas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho e exibidas pela Rede Globo de Televisão, em 2005 e 2007, respectivamente. As duas obras têm em comum, ainda, o fato de serem adaptações de literatura de conteúdo popular e sertanejo, e apresentarem recursos estéticos semelhantes, como o hibridismo, a bricolagem e a aproximação com o estilo barroco. A partir da leitura individual de cada programa, tanto do plano do conteúdo, quanto da expressão, foram identificados os termos do contrato fiduciário proposto pelo enunciador em cada uma, considerando o reflexo das escolhas enunciativas no ritmo da obra, e tendo este como fator determinante na relação com o enunciatário presumido. A análise comparativa das duas obras naquilo que as aproxima ou as afasta permite entender os diferentes níveis de aceitação de uma e outra.

PALAVRAS-CHAVE – Semiótica. Televisão. Sincretismo. Hoje é dia de Maria. A Pedra do

Reino.

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RESUMÉE

Dans um large réseau d’études sémiotiques qui ont été produits de nos jours, lês langages utilisés par les médias et par lês expressions de l’art montrent leur valeur et occupent des espaces, principalement avec La multiplication de véhicules de communication sponsorisée par La technologie. Ainsi, lês études sur Le syncrétisme de langages, présent dans La majorité absolue dês nouvelles médias; l’hybridité dans l’art contemporain; lês oscilations de rythme et lês manifestations de l’affection et dês passions dans Les récits, objects de La sémiotique tensive. C’est dans CE scénario que cette étude s’inscrit au fur et à mesure qu’il analyse La production de sens dans Les microfeuilletons Hoje é dia de Maria (Aujourd’huic’estlejour de Marie), recrée à partir de comtes et chansons populaires récueillis par Sílvio Romero, Câmara Cascudo et Villa Lobos; ainsi que A Pedra do Reino (La Pierre Du royaume),basées sur l’oeuvre Ariano Suassuna, toutes lês deux dirigées Luiz Fernando Carvalho et affichées par la Rede Globo de Televisão, en 2005 et 2007, respectivement. Les deux oeuvres ont em commum le fait d’ être dês adaptations de littérature de contenu populaire et régional (l’arrière-pays), et présenter dês ressources esthétiques semblables, comme l’hybridité, Le bricolage et la proximité avec Le style baroque. Suivant La lecture individuelle de chaque programme – le projet Du contenu et l’expression – ont été identifiés lês termes Du contrat fiduciaire proposé par l’énonciateur dans chacune, rélevant la réflexion dês choix énonciatives dans le rythme de l’oeuvre, étant celui-ci um facteur déterminant au rapport avec l’énonciateur présumé. L’analyse comparative dês deux oeuvres pource que lês approche ou lês éloigne, permet de comprendre lês différents niveaux d’acceptation d’une et de l’autre.

MOTS-CLÉS – Sémiotique. Télévision. Syncrétisme. Hoje é dia de Maria. A Pedra do

Reino.

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INTRODUÇÃO

A televisão é, sem dúvida, o meio de comunicação de massa de maior alcance na

atualidade. Sendo assim, é natural que desperte o interesse de pesquisadores e críticos das

mais diversas áreas aglutinadas ou afetadas pelo “fenômeno” televisivo. E as abordagens são,

segundo aponta Arlindo Machado na obra A televisão levada a sério (2005), em geral,

negativas. A ideia de que a TV só se (pre)ocupa com produtos de mercado é amplamente

disseminada entre os estudiosos dos meios de comunicação. Isso, segundo Machado, porque

tais abordagens envolvem apenas o sistema político, econômico e tecnológico no qual se

ditam as regras de produção e as condições de recepção, deixando de lado a análise do que

realmente importa, que é, segundo ele, o exame dos programas veiculados, propriamente.

No cotidiano, em conversas informais, é também pouco comum ouvir uma opinião

que, genericamente, elogie a TV. O mais recorrente são acusações de que esse veículo presta

um desserviço à educação, à moral e aos bons costumes, ou de que é usado como meio de

estimular o consumismo e formar opiniões equivocadas, ao impor ideologias tendenciosas.

Por outro lado, entretanto, sempre há vozes que defendem ou condenam este ou aquele

programa. Isso é o que se pode depreender das conversas ouvidas nos corredores das

universidades, hospitais, nos salões de estética, nos meios de transporte, etc. Ou seja, entre o

senso comum já se pratica o que Machado defende para uma abordagem acadêmica: um olhar

sobre os produtos em particular, e não sobre o meio televisual como algo homogêneo que,

definitivamente, a televisão não é. Para o pesquisador, é necessário que se faça um “exame

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detalhado daquilo que, dentro de uma imensa massa indiferenciada de material audiovisual, se

distinguiu, permaneceu e permanecerá como uma referência importante dentro da cultura do

nosso tempo.” (MACHADO, 20005, p. 16).

A considerar a excelente aceitação pela crítica e pelo público, os índices de audiência e

os prêmios angariados, no Brasil e no exterior1, a minissérie Hoje é dia de Maria (2005),

dirigida por Luiz Fernando Carvalho, e que é uma das obras objeto desta pesquisa, certamente

estará entre aquelas que permanecerão como referência na produção televisual brasileira deste

século. Não obstante o conteúdo, que envolve histórias de contos de fadas, anedotas e lendas

para tratar de questões reais e dramáticas da infância brasileira, a minissérie também reúne

elementos expressivos de épocas, estilos e regiões as mais diversas, resultando em “um

programa que serve à diversão e ao entretenimento, mas, sobretudo, estimula o exercício da

experiência lúdica e criativa.” (PAIVA, 2007, s/p)

Na esteira do sucesso de Hoje é dia de Maria, Carvalho cria o Projeto Quadrante,

com a proposta de adaptar, para a televisão, quatro obras da literatura de diferentes regiões

brasileiras. A fórmula híbrida presente na primeira experiência se repete nas duas primeiras

produções do Projeto: A Pedra do Reino(2007), adaptada do Romance d’A Pedra do Reino e o

príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna, e Capitu(2008), do consagrado Dom

Casmurro, de Machado de Assis.

Se a concepção dessas duas obras segue, em grande parte, o estilo que o diretor

imprimiu em Hoje é dia de Maria, o mesmo não se pode dizer sobre a recepção. Enquanto

esta minissérie atingiu média de 362 pontos na primeira jornada, levada ao ar em janeiro de

2005, e 273 pontos na sequência, exibida dez meses depois da primeira, A Pedra do Reino4e

1- Hoje é dia de Maria recebeu prêmios internacionais e nacionais: Input International Board TAIPEI 2005; foi finalista no International Emmy Awards 2005, nas categorias Minissérie para TV e Melhor Atriz (Carolina Oliveira); Hors Concours BANFF Canadá 2006; nomeação e exibição no Prix Jeunesse International Alemanha 2006; Grande Prêmio da Crítica APCA 2005; Prêmio Qualidade Brasil 2005, nas categorias Melhor Projeto Especial de Teledramaturgia, Melhor Autor de Teledramaturgia (Carlos Alberto Soffredini com adaptação de Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho), Melhor Atriz Revelação de Teledramaturgia (Carolina Oliveira) e Melhor Diretor de Teledramaturgia (Luiz Fernando Carvalho); Prêmio Mídia 2005 (Midiativa); Prêmio ABC 2006, na categoria Melhor Fotografia Programa de TV (José Tadeu Ribeiro); Prêmio Contigo! 2006, nas categorias Diretor (Luiz Fernando Carvalho) e Atriz Infantil (Carolina Oliveira). Informação disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-237354,00.html. Acesso em 05/01/2012. 2MENDONÇA, Martha. O sonho não acaba. Época, Rio de Janeiro, n. 386, 06 out. 2005. Disponível em:<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG71886-6011,00-O+SONHO+NAO+ACABA.html>. Acesso em: 04 mar. 2009. 3ROCHA, Ará. Final de Hoje é Dia de Maria marca 27 pontos de audiência. O fuxico. Disponível em:

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Capitu5 obtiveram média de 11 e 15 pontos de audiência, respectivamente. Com a produção (e

relativamente fraca audiência) de Capitu, o Projeto Quadrante foi interrompido.

Além da audiência mais baixa, as críticas a Capitu e A Pedra do Reino têm um tom

muitas vezes ácido e intolerante, completamente oposto às recebidas por Hoje é dia de Maria:

“Pois muito bem. A produção é realmente muito bem cuidada. Tem figurinos maravilhosos,

imagens líricas e grandes interpretações… mas é chata que dói”, diz o blogueiro Rodrigo

Brudush (2007) sobre A Pedra do Reino, a segunda obra objeto deste trabalho. Mesmo em

algumas das muitas opiniões elogiosas à iniciativa do diretor e à emissora que a exibiu, a

impossibilidade de a minissérie atingir o grande público é sempre citada.

Depois de décadas viciando seu público em histórias bobas baseadas em um maniqueísmo primário, alavancadas por carinhas bonitas e sustentada pela autopromoção do seu império de Comunicação, a Rede Globo lança um programa de alta qualidade dramatúrgica, com direção e elenco impecáveis. Observando isso me ocorreu a seguinte questão. Será que exibindo uma atração com tanta qualidade como esta, que mostra um Brasil bem distante do paraíso tropical, dispensando galãs sem camisa e seu habitual elenco estrelar, achava a Rede Globo que o eu (sic) público poderia tolerar tamanha ousadia em horário nobre sem a devida punição?(RODRIGUES, 2007)

O comentário acima, extraído do blog Overmundo, toca num ponto importante de que

tratarei neste trabalho: a questão do gosto estético. Sem a devida profundidade, essa questão

volta e meia vem à tona em opiniões que geralmente se apegam a uma das seguintes teorias:

(1) ao produzir a maioria de seus programas com baixa qualidade estética, a TV brasileira

contribui para rebaixar o gosto das massas, ou (2) a TV produz programas de baixo valor

estético porque é disso que o grande público gosta. Afirmar qual destes dois posicionamentos

é o correto equivale mais ou menos a dizer quem nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. A

resposta às duas questões não é de fácil resposta, por isso, pelo menos no que se refere à

televisão, talvez o mais sensato seja considerar que as duas afirmativas estão corretas: a TV,

em sua sede voraz por audiência e pelos ganhos econômicos que ela implica, alimenta uma

pouca propensão do público pelo consumo de obras que demandem maior capacidade de

reflexão e intelecção, resultado da mundialmente conhecida baixa qualidade da educação em

nosso país.

<http://ofuxico.terra.com.br/materia/noticia/2005/10/17/final-de-hoje-e-dia-de-maria-marca-27-pontos-de-audiencia- 3534.htm>. Acesso em: 04 mar. 2009. 4CULTUREBA. “Capitu” dá mais audiência que “A Pedra do Reino”. Disponívelem:<http://cultureba.com.br/2008/12/16/%E2%80%9Ccapitu%E2%80%9D-da-mais-audiencia-que-%E2%80%9Capedra-do-reino%E2%80%9D/>. Acesso em: 4 mar. 2009.

5 CULTUREBA, op. cit.

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Em suas entrevistas, Luiz Fernando Carvalho, cuja carreira foi quase toda construída

na televisão, manifesta de forma recorrente seu desejo de ver esse veículo mais comprometido

com a educação e a formação do gosto estético:

Ao meu modo, faço esse caminho de buscar uma espécie de reeducação do espectador a partir das imagens, dos conteúdos, da forma, da narrativa, da luz, das personagens, da música, enfim, da estética. E, como sabemos, a estética é filha da ética. Não estou aqui falando mal da televisão. [...]A televisão precisa formar espectadores, é certo, faz parte do trabalho dela, mas ela também precisa assumir uma missão mais nobre, maior, que é formar cidadãos. De minha parte, procuro um diálogo entre os que sabem e os que não sabem; um diálogo simples, sóbrio e fraterno, no qual aquilo que para o homem de cultura média é adquirido e seguro torne-se também patrimônio para o homem mais comum, pobre, e que, em relação a tantas questões, encontra-se ainda abandonado. (CARVALHO, 2008, p. 83)

Essa preocupação de Carvalho encontra eco nas pesquisas de Pierre Bourdieu das

quais resultou a obra O gosto pela arte, em que ele conclui que “o acesso às obras culturais é

privilégio das classes cultas” (BOURDIEU, 2003, p.69). Para o pesquisador francês o que ele

chama de “necessidade cultural”, ou seja, a propensão em consumir arte, é produto da

educação: “as desigualdades diante das obras de cultura não passam de um aspecto das

desigualdades diante da Escola que cria a ‘necessidade cultural’ e, ao mesmo tempo, oferece

os meios para satisfazê-la.” (BOURDIEU, 2003, p.69). Mas se a educação tem papel

preponderante na formação dos gostos, conforme afirma Bourdieu, Umberto Eco (2006) pode

estar certo ao atribuir à própria televisão a capacidade de contribuir para o refinamento da

apreciação estética, já que, segundo Alceu Amoroso Lima, a formação do gosto “é fruto da

educação e convivência [...]. Dificilmente não melhora o nosso mau gosto, se vivermos entre

pessoas de bom gosto.”(LIMA, 1954, p.168-169)

Entretanto, se a preocupação maior dos empresários de televisão é com o consumo dos

produtos veiculados, a relação enunciador/enunciatário6 desse meio, de uma maneira geral,

parece ser relativamente simples: para atingir o maior público possível, a enunciação da

maioria dos programas é construída de forma desacelerada, acessível, reiterativa. Falta-lhe

6 A despeito dos termos enunciatário e telespectador, que utilizaremos em nossa tese, convém esclarecer que, embora até certo ponto eles possam se equivaler, por outro lado apresentam particularidades conceituais às quais vale a pena referir. Assim, enquanto o conceito de enunciatário “corresponderá ao destinatário implícito da enunciação” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 171), ou seja, àquele a quem, presumidamente, se destina uma determinada enunciação, o telespectador será aquele que de fato assiste a um programa de televisão. Dessa maneira, pode-se imaginar que o enunciatário é o destinatário virtual, cujo perfil é apenas presumido pelo enunciador, enquanto o telespectador é o receptor real, passível de ser quantificado e, até certo ponto, de ter o seu perfil identificado.

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muitas vezes a fratura, conforme aponta Greimas (2006), a ruptura pela qual o sujeito

experimentaria o valor estético.

Sem essa experiência, por sua vez, o telespectador que tem na televisão o principal –

ou único – meio de acesso à cultura, acaba por manter sua capacidade de intelecção e

aceitação num nível mediano ou quem sabe mesmo em constante queda. Assim, a

contribuição da televisão para o desenvolvimento da capacidade crítica da maior parte da

população consumidora é quase nula, quando não é negativa. Nesse jogo, colocar o

enunciatário frente a uma rigorosa linguagem estética, de forma não gradativa, pode ser

perigoso. Para o enunciador e para o próprio enunciatário, que acaba por criar resistência à

experimentação de novos produtos, por não se sentir confortável frente à sensação

experimentada.

E isso parece ser o que aconteceu com A Pedra do Reino, conforme veremos no

capítulo IV deste trabalho. Mas se os elementos de expressão presentes nesta minissérie e em

Hoje é dia de Maria são similares – o hibridismo de estilos e épocas diferentes e linguagens

de outros meios como o teatro, a pintura, o circo –, e se ambas têm o sertão e a cultura popular

como panos de fundo, o que interferiu na relação destes enunciados com o telespectador,

provocando reações tão diversas no público receptor de uma e outra?

Para responder a esta pergunta, procuramos analisar as obras naquilo que as

aproximam ou as separam, tanto no plano do conteúdo quanto no da expressão. Segundo José

Luiz Fiorin, “Há diferentes graus de identificação do sujeito com o objeto artístico: há aqueles

que se identificam com a substância do conteúdo: a realidade retratada na obra literária. Por

outro lado, há os que buscam no objeto sua construção, sua arquitetura, sua forma, seja da

expressão, seja do conteúdo.” (FIORIN, 2008b, p. 41) A identificação com a substância do

conteúdo ou com a forma da expressão, naturalmente, está condicionada à capacidade que

cada indivíduo tem de ligar-se sensorialmente ao objeto e, de alguma maneira, compreendê-

lo.

A semiótica tensiva, originária da semântica estrutural de Greimas, torna-se

imprescindível para a realização desta pesquisa, uma vez que coloca em evidência a

importância do afeto na análise dos discursos. Para Claude Zilberberg (2010), principal

teórico deste ramo da semiótica, a constituição do sentido está situada na junção entre uma

dimensão intensa, sensível, e uma dimensão extensa, inteligível. Os estudos sobre a

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tensividade, por outro lado, não ignoram a herança do modelo geral da semiótica, que entende

a produção de sentido como um percurso gerativo, partindo do nível fundamental ao

discursivo, tendo o nível narrativo como intermediário.

De acordo com esse modelo geral, o sentido se constrói na articulação entre um plano

de expressão e um plano de conteúdo, sendo que numa enunciação meramente informativa,

comunicativa, o plano de expressão se aproxima mais do estável, ou seja, quanto mais

objetiva, maior o sucesso da comunicação. Na obra de arte, ao contrário, o plano de expressão

passa a ser o diferenciador, o portador do efeito estético. Assim, a desautomatização, a

subjetividade e a exploração das potencialidades matéricas do significante são valorizadas e a

recepção do enunciado passa a ser submetida ao filtro das sensações e vivências individuais.

Daí a importância do afeto, da experiência pessoal, subjetiva, para a construção do sentido.

Ainda segundo Fiorin (2008b) as linguagens oscilam entre a estabilidade (modelos rígidos e

formas fixas) e a instabilidade (liberdade e dinamismo).

A instabilidade, segundo o teórico, depende da maneira como as três categorias

básicas da enunciação – pessoa, tempo e espaço – são instaladas no discurso, mais

especificamente quando se usa uma pessoa por outra, um tempo por outro ou uma localização

espacial por outra. Em outras palavras, a estabilidade ou instabilidade das narrativas depende

da maneira como elas são organizadas, depende, pois, das escolhas do enunciador. Nas obras

sincréticas, a instalação de pessoa, espaço e tempo ou o estudo destes torna-se mais complexo,

uma vez que nelas não lidamos com uma, mas com duas ou mais linguagens. Daí a

necessidade de recorrermos aos estudos de linguagens sincréticas, que segundo Greimas e

Courtés, são aquelas que “como a ópera e o cinema – acionam várias linguagens de

manifestação” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 467), para auxiliar nas análises propostas.

Yvana Fechine (2009), ao propor uma metodologia para a análise dos textos

audiovisuais, retoma Sergei Eiseinstein e Eduardo Leone, em suas teorias sobre a montagem

cinematográfica, para concluir que “Na produção audiovisual, a preocupação com uma

enunciação sincrética confunde-se com os processos de montagem”, (FECHINE, 2009, p.

326), os quais correspondem, muitas vezes, à exploração do potencial técnico-expressivo do

próprio meio audiovisual, a partir da articulação entre linguagens verbal, visual, gestual ou

musical. A montagem, assim, é o processo pelo qual as linguagens auditivas e visuais se

interligam em suspensões rítmicas (LEONE apud FECHINE, 2009), determinando o ritmo

geral da obra. E é das correspondências sincrônicas ou assincrônicas entre o ritmo sonoro e o

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movimento visual que vai depender o resultado agradável ou desagradável que a obra

suscitará no espectador, conforme discorre a fenomenologia perceptiva de Angel Rodriguez,

citado por Fechine.

As ideias de Leone e Rodriguez, embora prescindam de uma metalinguagem

semiótica, vêm ao encontro das postulações da semiótica tensiva, que coloca o ritmo no

centro da formação do sentido, nos discursos. Não é outra coisa o que Luiz Tatit (1997) diz

quando chama a atenção para a necessidade de haver equilíbrio na velocidade com que o

objeto se apresenta: se for muito rápida, acaba por escapar do sujeito e, ao contrário, se o

ritmo for muito lento, o sujeito é que se perde do objeto, ao perder o interesse por ele.

Falando da linguagem televisual, Fechine diz que, se por um lado, o ritmo é a “’chave’

perceptiva do ‘efeito audiovisual’” (FECHINE, 2009, p. 348), por outro ele é uma

propriedade comum tanto às linguagens sonoras quanto visuais e, portanto, analisar o ritmo

resultante da sincretização dessas linguagens equivale a identificar as maneiras como ele – o

ritmo - se manifesta nas duas formas de expressões.

Entretanto, analisar os pontos de convergência dos ritmos audiovisuais não é o único

desafio ao se analisar uma obra televisual. Há que se pensar, ainda, no hibridismo que a

constitui, pois segundo lembra Ana Maria Balogh (2004), a linguagem televisual é um híbrido

das linguagens prévias do rádio, cinema, quadrinhos, e, hoje, também das surgidas junto ou

posteriormente à televisão, como o videoclipe e a computação gráfica, entre outras.

O termo híbrido vem do grego hybris, e equivale a miscigenação, mistura, aquilo “que

violava as leis naturais” (FERREIRA, s/d, p. 722), conceito que é utilizado também em

Botânica, para designar uma variedade de planta resultante do cruzamento de duas ou mais

espécies. No campo dos estudos culturais, hibridismo – ou hibridação, como quer Nestor

Canclini – equivale a “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que

existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas.”

(CANCLINI, 2008 p.19) Essas combinações, segundo ele, às vezes acontecem naturalmente,

decorrentes de migrações, turismo ou intercâmbios. Não raro, entretanto, especialmente nas

artes e na tecnologia, a hibridação é uma opção do criador, e equivale à mistura de técnicas e

de estilos.

Zilberberg, ao falar sobre a mestiçagem, que segundo Canclini (2008) é um dos termos

usados para identificar o hibridismo, diz que

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Reduzida a seu étimo e a sua genericidade, qual seja, a mistura, a mestiçagem é portanto uma prática semiótica figural, alheia em si mesma à temporalidade, e esta última só reaparece no campo discursivo sob duas restrições: a novidade, aparente ou efetiva, de alguma mistura em um certo domínio e, eventualmente, o estilo da mistura efetuada. (ZILBERBERG, 2004, s/p)

Das palavras transcritas acima, depreendemos que o conceito semiótico de

mestiçagem corresponde ao conceito emprestado da botânica, bem como ao de hibridismo

cultural, qual seja: é a combinação de elementos diferentes da qual resulta um novo elemento.

Assim sendo, se a televisão constitui um híbrido de linguagens, ao mesmo tempo ela

tem ou, no mínimo, está em fase de definir, uma linguagem própria geral, na medida em que

possui formas recorrentes de manejar os códigos audiovisuais, de forma que os enunciados

podem ser codificados ou decodificados de forma relativamente estável por uma comunidade

de produtores e espectadores. Mas, por outro lado, ela também está sujeita a experimentações,

a instabilidades, a novas formas de hibridação, o que a faz evoluir na direção de novas

possibilidades. (MACHADO, 2005).E é justamente nessas novas possibilidades a que se

refere Arlindo Machado que a linguagem de Luiz Fernando Carvalho nas obras estudadas

parece se encaixar.

Resumidamente, os objetivos desta tese são: analisar a relação enunciador/enunciatário

na produção televisual do diretor Luiz Fernando Carvalho, especificamente nas minisséries

Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino; identificar os termos do contrato fiduciário proposto

pelo enunciador nas duas obras, de forma a identificar as estratégias utilizadas em cada uma

delas que possam ter sido responsáveis pelos diferentes resultados na junção de uma e outra

com o telespectador; identificar o andamento/ritmo do enunciado, a partir da análise dos

mecanismos de sincretização de recortes da obra.

A escolha destas obras se deu pelos seus pontos convergentes e divergentes, quais

sejam: ambas são adaptações de literatura de conteúdo popular, sertanejo, e ambas apresentam

recursos estéticos semelhantes, como o hibridismo, a bricolagem e a aproximação com o

estilo barroco; por outro lado, a aceitação pelo enunciatário presumido que, a considerar o

formato e o horário de exibição dos programas, era o mesmo para as duas obras, foi

sensivelmente diferente, conforme já referimos no início desta introdução.

Os fundamentos teóricos e metodológicos para a realização dos objetivos propostos

são os da semiótica, particularmente nos campos da semiótica tensiva e sincrética, e os da

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comunicação de massa. Dentre os muitos estudos oferecidos nestas áreas, colocamos em

destaque os que se referem à teoria do discurso, (FIORIN, 2008b e 2009a), (BARROS,

1999), às instâncias da enunciação (FIORIN 2008b), e à tensividade, com destaque para o

aspecto rítmico dos enunciados (ZILBERBERG, 2004,2007 e 2010), (TEIXEIRA 2008a)

(TATIT 1994),(FECHINE 2009).

Essas abordagens teóricas se complementam na medida em que convergem para o

ponto central da pesquisa, que é a aceitação/intelecção dos enunciados pelos enunciatários,

para o que a instalação de tempo, espaço e pessoa interferem, na medida em que, juntamente

com a sincretização das linguagens visuais e sonoras, contribuem para a definição do ritmo.

Este, por sua vez, é o responsável pelo efeito agradável ou desagradável da obra, conforme já

foi referido.

Teorias sobre a formação do gosto (BOURDIEU, 2003), o estilo nos textos (DISCINI,

2003) e a linguagem televisual (MACHADO, 2005), (MACLUHAN, 2007) (BENJAMIM,

1980) também dão importantes contribuições para a formulação da tese, além de estudos

sobre a fenomenologia e a narratologia. As discussões teóricas são feitas paralelamente às

análises propostas, ao longo do trabalho, que foi organizado em quatro capítulos.

O primeiro capítulo é dedicado à televisão, e aborda questões relativas à

programação, audiência e às críticas que o veículo vem amealhando desde o seu boom, na

década de 1950. A implantação e desenvolvimento da televisão, no Brasil, é também tema

desse capítulo, assim como o percurso profissional do diretor Luiz Fernando Carvalho e sua

estética.

No segundo capítulo, damos início à análise das obras selecionadas, propriamente, a

partir das trilhas de abertura das minisséries objeto da pesquisa. O objetivo aqui é identificar

os termos do contrato fiduciário proposto pelo enunciador ao enunciatário presumido, já que

esta parte inicial da obra audiovisual tem a função de sintetizar os códigos utilizados na

construção da obra que apresenta, tanto no plano do conteúdo quanto da expressão.

Considerando a abertura como elemento de triagem do enunciatário, procuramos identificar

a presença de elementos que possivelmente podem ter antecipado o (des)interesse deste

com a enunciação em cena.

O capítulo seguinte traz a análise da minissérie Hoje é dia de Maria, com destaque

para a primeira jornada, mais apreciada pelo público, mas abrangendo também a segunda

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jornada. Nesse terceiro capítulo, além da análise do sincretismo, procuramos relacionar a

maneira como o enunciador articula diferentes gêneros de literatura popular (oral, cordel,

lendas, etc.) com aspectos reais da atualidade, e estes com elementos expressivos

emprestados de diferentes linguagens (pictórica, teatral, circense, etc.). A articulação do

tempo, pessoa e espaço é levada em conta.

O quarto e último capítulo é dedicado à análise da minissérie A Pedra do Reino. Para a

leitura dessa obra, se a metodologia utilizada é a mesma do capítulo anterior, foram levadas

em conta outras particularidades. Sem deixar de referenciar a obra literária, extremamente

extensa e hermética, que lhe deu origem, procuramos nos ater, entretanto, no produto

audiovisual em si. Ao tratar de um conteúdo que envolve aspectos de uma história dolorosa

e pouco conhecida dos brasileiros e aliar a isso a instauração não convencional dos

elementos de enunciação e a intensificação do seu estilo, essencialmente barroco, no plano

da expressão, o enunciado provoca estranhamento e consequente distanciamento do

enunciatário.

Nas considerações finais, os conceitos e os resultados das análises dos capítulos III e

IV são costurados, de forma a responder a questão que impulsionou a pesquisa.

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I - PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA HISTÓRIA DA TELEVISÃO

Quando Walter Benjamim iniciou a segunda escrita de seu aclamado ensaio A obra de

arte na era de sua reprodutibilidade técnica, em 1936, as transmissões televisivas eram ainda

experimentais e atingiam um número restrito de espectadores. O cinema, precursor da

captação e exibição de imagens em movimento, ao contrário, já atraía grande público –

evidentemente, nada que se compare à bilheteria das grandes produções de hoje, mas um

acesso significativo para aquela época. Daí ser este o veículo de comunicação de massa

escolhido por Benjamim para discorrer sobre a técnica, a reprodução, a recepção em massa e

o lugar da obra de arte em meio ao novo cenário que então se apresentava. O filme era,

segundo Benjamim, o agente mais poderoso dentre os movimentos de massa da época,

detentor de um significado social “inimaginável, na sua forma mais positiva, e justamente

nela, mas não sem o seu aspecto destrutivo e catártico: a liquidação do valor da tradição na

herança cultural”. (1992, p. 79)

Com a rara lucidez de que era portador, Benjamim aborda a questão com

imparcialidade e equilíbrio, de forma a encontrar pontos positivos na massificação da cultura

sem, no entanto, negar os prejuízos que ela acarretaria. Para ele, a reprodutibilidade técnica da

obra de arte – reprodutibilidade esta que, no caso do cinema, é inerente ao próprio processo de

produção – e sua consequente recepção em massa é, sim, fator de alteração do valor da obra.

Citando a pintura como exemplo, por se tratar de uma arte que foi originalmente apresentada

para ser vista apenas por algumas pessoas, e passou, no século XIX, a ser observada por um

público maior, graças à sua reprodução pela fotografia, Benjamim aponta este como “um

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sintoma precoce da crise na pintura que [...] foi desencadeada pela pretensão da obra de arte, a

dirigir-se às massas (sic).” (BENJAMIM, 1980, p.101).

Do pensamento benjaminiano depreende-se, portanto, que a participação das massas

na recepção da obra de arte altera o valor desta, no sentido de que “o número muito elevado

de participantes provocou uma participação de tipo diferente” (BENJAMIM, 1980, p.108).

Por outro lado, entretanto, Benjamim aponta como lugar comum a velha queixa de que as

massas só se preocupam com a diversão, enquanto a arte exige recolhimento para ser

observada. Ele cita como um dos mais radicais críticos do cinema, o francês Georges

Duhamel, “que detesta cinema e nada sabe do seu significado” (BENJAMIM, 1980, p. 107), e

para quem a sétima arte é

um passatempo para a ralé, uma diversão para criaturas iletradas, miseráveis, gastas pelo trabalho e consumidas pelas preocupações... um espetáculo que não exige concentração nem pressupõe qualquer capacidade de raciocínio..., que não ilumina nenhum coração e que de forma alguma desperta qualquer esperança a não ser a esperança ridícula de vir um dia a ser estrela em Los Angeles. (DUHAMEL apud BENJAMIM, 1980, p.108)

Benjamim não ignora o contraste entre recolhimento e diversão na recepção da obra de

arte, mas consegue ver algo de positivo também na distração: “aquele que se recolhe perante a

obra de arte, mergulha nela, entra nessa obra [...] Pelo contrário, as massas em distração

absorvem em si a obra de arte.” (BENJAMIM, 1980, p. 109). Ele cita a arquitetura como

exemplo de arte cuja recepção é distraída e coletiva, mas que, a despeito disso, tem uma

existência que acompanha a humanidade desde os primórdios de sua história e que, mais do

que qualquer outra arte, tem sua permanência garantida, não pela contemplação que ela

suscita – embora a percepção seja uma de suas formas de recepção – mas pelo uso, que é a

outra forma de apreciação. “A arquitetura nunca parou. A sua história é mais antiga do que a

de qualquer tentativa de compreensão da relação das massas com a obra de arte.”

(BENJAMIM, 1980, p. 109).

O filósofo, falecido em 1940, não viveu para assistir ao boom da televisão,

ocorrido na década de 1950, a mesma em que seu texto foi publicado. Suas reflexões sobre as

transmissões em massa, no entanto, aplicam-se perfeitamente ao novo veículo que,

indubitavelmente, ocupou o lugar que ele, àquela época, dera ao cinema. Hoje, não há dúvida

de que a televisão é “um dos fenômenos básicos de nossa civilização”, conforme aponta

Umberto Eco (2006, p. 325), o maior meio de comunicação de massa atuante. E se a TV

tomou do cinema a preferência das massas consumidoras de audiovisual, é natural que tenha

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atraído, junto com a popularidade, também a fúria da crítica. Embora ainda hoje o cinema não

esteja imune a críticas, há uma separação explícita entre o que se nomeia cinema comercial e

cinema alternativo (ou de arte), e este, embora geralmente atinja um número menor de

espectadores, é suficiente para colocar a chamada telona em posição de superioridade estética

em relação à telinha.

Apenas uma década depois da explosão da TV junto às massas, já se verificavam

debates calorosos a respeito do novo meio. É o que nos conta Umberto Eco sobre sua

participação em uma mesa redonda7, no ano de 1962, cujo tema em discussão eram as

“influências recíprocas entre cinema e TV”. Segundo ele, em muitas das objeções em relação

à TV,

aninhava-se uma reserva mental, que alguns, mais honestamente, esclareceram de modo explícito: isto é, que o cinema permite ‘exprimir’ (com todas as conotações estéticas que assume a categoria de ‘expressão’), ao passo que a TV permite, quando muito, ‘comunicar’ (e portanto, a diferença entre os dois meios é a mesma que existe entre arte e crônica). (ECO, 2006, p.329-330)

Naquela época, o que esquentava as discussões acerca da televisão era o caráter

predominantemente comunicacional desse veículo, o seu status de prestador de serviço ou

“quando muito, fenômeno sociológico” (ECO, 2006, p. 330), ao invés de portador de

linguagem estética. Numa discussão em que os participantes eram homens ‘de cultura’,

estudiosos de estética e especialistas em cinematografia, “Houve mesmo quem acusasse a TV

de não existir” (ECO, 2006, p. 330), devido a sua suposta despreocupação com o caráter

estético.

Apenas dois anos depois do encontro registrado por Umberto Eco, o americano

Marshal Macluhan lança a obra Os meios de comunicação como extensão do homem (1964),

na qual deixa clara sua posição favorável ao que ele chama de meios frios, dentre os quais se

inclui a TV. Ele explica: “Um meio quente é aquele que prolonga um único de nossos

sentidos e em ‘alta definição’” (MACLUHAN, 2007, p. 38), como a fotografia e o cinema,

por exemplo, enquanto o meio frio é de ‘baixa definição’, já que fornece poucas informações,

como a caricatura, o desenho animado e a televisão. Se considerarmos a linguagem estética

como de alta definição, ou seja, aquela que fornece muitas informações ao seu interlocutor,

7 Trata-se da mesa de discussões ocorrida durante a entrega do Prêmio Grosseto, na Itália, que deu origem ao ensaio Apontamentos sobre a televisão, que integra a obra Apocalípticos e Integrados, publicada em primeira edição em 1964.

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poder-se-ia encontrar algum ponto de convergência entre as opiniões do crítico americano e a

dos italianos, mencionada por Eco, no que se refere ao cinema e à televisão. A diferença

radical de pontos de vista está, no entanto, na maneira como eles veem o efeito disso no

público. Enquanto os críticos do encontro de Grosseto veem o telespectador como mero

consumidor do ‘serviço’ oferecido pela TV, Macluhan vê um público mais participante em

relação ao espectador de cinema, porque

Um meio frio – palavra falada, manuscrito ou TV – dá muito mais margem ao ouvinte ou usuário do que um meio quente. Se um meio é de alta definição, sua participação é baixa. Se um meio é de baixa definição, sua participação é alta. (MACLUHAN, 2007, p. 38)

A baixa definição da TV, portanto, na opinião de Macluhan, pode ser um aliado, e não

um inimigo, na formação crítica do telespectador, especialmente se se tratar de programas que

apresentem lacunas a serem preenchidas pela audiência. Sua reflexão – que hoje poderia ser

negativamente aplicada a programas como os reality shows, por exemplo, que dependem

exclusivamente da participação do público, mas cujos acréscimos na bagagem crítica do

telespectador são questionáveis – referia-se, na verdade, a um possível uso da TV no processo

educacional: por exemplo “o uso da TV no ensino da poesia permitiria ao professor

concentrar-se no processo poético do fazer real de um poema determinado” (MACLUHAN,

2007, p. 359), coisa que o livro, meio quente, não possibilitaria. Mais adiante, ele volta ao

assunto ao afirmar que a TV poderia fazer mais pelo ensino do Francês e da Física do que a

sala de aula, pelo seu poder de ilustrar a inter-relação dos processos como nenhum outro

meio.8

Sem se ater particularmente à televisão, o francês Edgar Morin, contemporâneo de Eco

e Macluhan, publica, nas décadas de 1960 e 1970, dois volumes sob o título de Cultura de

massas no século XX, cuja proposta era analisar as consequências sociais e psicológicas das

mass media no público. No primeiro capítulo do primeiro volume, Morin apresenta um

resumo do que seria o ponto de vista dos intelectuais de sua época sobre a cultura de massa:

“Os intelectuais atiram a cultura de massa nos infernos infraculturais. Uma atitude

‘humanista’ deplora a invasão dos subprodutos culturais da indústria moderna, dos

subprodutos industriais da cultura moderna.” (MORIN, 1977, p. 17). Essa oposição à cultura

8 É importante ressaltar que essa reflexão de Macluhan sobre a capacidade ilustrativa da TV é anterior à comercialização e popularização do vídeo-cassete e, naturalmente, do DVD. Tais invenções trouxeram o cinema para dentro das casas (ou das salas de aula) e, portanto, o colocaram em pé de igualdade com a TV, como ferramenta educacional. Hoje podemos pensar no audiovisual – e não apenas na TV – como ferramenta educacional.

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de massa, diz Morin, tinha unanimidade - embora por razões diferentes - entre os chamados

intelectuais de direita, que a consideravam como divertimento de incultos, “barbarismo

plebeu”, e os de esquerda, herdeiros do pensamento marxista, que a acusavam de ser o “ópio

do povo”, a arma utilizada pelo capitalismo para desviar as massas de seus verdadeiros

problemas.

A posição de Morin é singular em relação a seus contemporâneos, seja na Itália, seja

nos Estados Unidos. Em relação aos primeiros, porque não diferencia o cinema da TV; em

relação ao segundo, parece discordar de que possa haver uma participação do telespectador

naquilo que ele recebe, ao generalizar a relação destes com os veículos de comunicação de

massas:

A cultura de massa é o produto de um diálogo entre uma produção e um consumo. Esse diálogo é desigual. A priori, é um diálogo entre um prolixo e um mudo. A produção (o jornal, o filme, o programa de rádio) desenvolve as narrações, as histórias, expressa-se através de uma linguagem. O consumidor – o espectador – não responde, a não ser por sinais pavlovianos; o sim ou o não, o sucesso ou o fracasso. O consumidor não fala. Ele ouve, ele vê ou se recusa a ouvir ou a ver. (MORIN, 1977, p. 46)

Ao mencionar o caráter comercial que direciona a relação entre cultura de massa e

público, e o papel que cabe a este em aceitar ou não o produto que lhe é apresentado, Morin

antecipa uma das questões básicas que permeiam as discussões e análises sobre televisão: a

audiência e o retorno financeiro que ela implica. Sobre isso, diz Elizabeth Bastos Duarte: “Os

textos são mercadorias, que, como qualquer outro produto acabado, disputam o mercado

global. Afinal, a necessidade de aceitação do produto e da audiência sustenta a obtenção dos

patrocínios que financiam seus produtos.” (DUARTE, 2004, p.33) A audiência que atrai os

anunciantes, citada pela autora, é, consequentemente, também o sinalizador das preferências

do público por este ou aquele tipo de programa. Entender e atender a essas preferências

parece ser o maior desafio e principal objetivo dos empresários do ramo.

1.1 A TELEVISÃO, O PÚBLICO E A FORMAÇÃO DO GOSTO

François Jost (2004), ao falar sobre a comunicação televisual, diz que a maneira mais

usual de entendê-la é partindo da ideia de contrato, empregada tanto pelos semioticistas,

quanto pelos analistas do discurso. “Em televisão, pode-se definir a noção de contrato como

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um acordo graças ao qual emissor e receptor reconhecem que se comunicam e o fazem por

razões compartilhadas.” (JOST, 2004, p. 9) Pelo viés da semiótica, Jost recorre ao

pensamento de Eliseo Verón para explicar que a relação entre emissor e receptor não é real,

mas, sim, virtual, na medida em que a proposta está esboçada no próprio texto que é

produzido. “O texto contém, com efeito, uma imagem de quem fala e mostra; do mesmo

modo, comporta uma imagem de quem ouve e olha e, por isso, desenha uma relação entre os

dois”. (JOST, 2004, p. 10)

Parece-nos possível reencontrar, nas palavras de Jost, as ideias de Morin, quando este

se refere a um público mudo. A decisão de aceitar ou não as regras do jogo, de consumir ou

não o produto oferecido é, de fato, manifestada virtualmente, medida com base apenas nos

números da audiência. Dessa forma, partindo-se de um perfil padrão de consumidor que se

dispõe a ligar a TV em determinadas horas do dia, os emissores esboçam o tipo de programa

que supõem melhor se adequar aos interesses de cada um - desenhos animados para as

crianças, receitas culinárias para as donas de casa, jornalismo econômico para empresários,

etc. Os anunciantes, por sua vez, comprarão os espaços em horários cujo telespectador

predominante seja aquele passível de consumir o seu produto – brinquedos para as crianças,

eletrodomésticos para as donas de casa, serviços bancários para os empresários, etc. - e pagará

um preço maior ou menor, de acordo com o índice de audiência.

Do ponto de vista mercadológico, portanto, pode-se dizer que o emissor visa o

anunciante e este visa o consumidor. Dessa tríade, é o consumidor/telespectador – e em

princípio, somente ele – quem realmente está interessado no programa, o que leva ao

pensamento geral, e não de todo incoerente, de que o emissor oferece aquilo a que o

telespectador quer assistir. O que muito se discute, no entanto, é a fragilidade do meio –

virtual – pelo qual os gostos do telespectador são investigados, pois, se por um lado é o

espectador quem dita as regras do que vai ao ar, por outro lado, a interpretação de uma

manifestação muda, conforme nomeou Morin, não permite se chegar ao porque da rejeição ou

aceitação de tal ou qual programa. Sobre isso, diz Eco:

Uma comunicação, para tornar-se experiência cultural, requer uma atitude crítica (....) A maior parte das investigações psicológicas sobre a audiência televisional tendem, ao contrário, a defini-la como um particular tipo de recepção na intimidade, que se diferencia da intimidade crítica do leitor por assumir o aspecto de uma aceitação passiva, de uma forma de hipnose. (ECO, 2006, p. 342)

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Na medida em que a opinião crítica do telespectador é ignorada, a maneira como os

produtores dos programas reagem aos índices de audiência seguem unicamente a lógica do

mercado. A audiência, nas palavras de Jost, é um sintoma da reação do público, mas que “não

revela jamais os segredos que se passam nos bastidores.” (JOST, 2004, p.30). Diante do

sucesso de um programa, prossegue Jost, os produtores se empenham em tentar encontrar a

receita, mas nunca saberão exatamente porque ela deu certo. Na medida em que atitudes

assim se perpetuam, as análises – e o possível reflexo delas na grade de programação – não

avançam. O caminho mais curto parece ser atender ao sinalizador da audiência, retirando do

ar programas de baixa audiência e (re)investindo em fórmulas cuja eficácia já tenha sido

testada e aprovada. Daí o caráter repetitivo de temas, estruturas discursivas, mecanismos de

expressão, tramas, atores, ambientes, (DUARTE, 2004, p. 58), nos programas que ocupam os

horários nobres.

A falta de avanço nas pesquisas, apontada por Jost, leva a desabafos como o de

Fernando Barbosa Lima (1985), quando afirma que “Os programas de grande audiência,

programas que ocupam o chamado ‘horário nobre’, geralmente não estão preocupados em

acrescentar novos conhecimentos ao nosso povo. [...] Em outras palavras, a programação está

nivelada por baixo”. (LIMA, 1985, p. 12) Embora em tom mais moderado, Duarte (2004)

também concorda que a preocupação com a qualidade cede lugar à preocupação com a

concorrência e o lucro.

É a concorrência, medida via audiência, quem define a qualidade, o rumo e a vida dos produtos televisivos a serem veiculados. Seu teor informativo e cultural, sua função pedagógica e social são valores secundários, sendo muitas vezes discutíveis. Telecursos são exibidos em horários em que a população dorme. Tevês educativas de caráter privado, embora tenham qualidade, não permitem acesso, a não ser a seus assinantes. (DUARTE, 2004, p.17)

A partir das opiniões citadas, delineia-se outra questão: os programas de conteúdo

cultural e/ou educativos existem, o que faz parecer o contrário é a pouca visibilidade que eles

têm, a dificuldade de acesso pelo grande público, limitado pelo horário de exibição ou pela

barreira financeira das TVs pagas, conforme está claro na observação de Elizabeth Duarte,

transcrita acima. Seja como for, entre opiniões como as de Edgar Morin, que colocam todo o

sistema de comunicação de massa sob suspeita, e esse olhar menos generalista e mais

particular sobre os programas veiculados, já se tem uma nova perspectiva.

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A necessidade de se olhar a TV como algo heterogêneo, capaz de abrigar programas

tão variados quanto é variado o perfil do seu público, é defendida por Arlindo Machado

(2005), que critica o fato de que por muito tempo os teóricos da comunicação tenham

difundido a ideia de que a televisão é um meio ‘de massa’ no pior sentido possível, ou seja, de

só produzir programas sem qualidade cultural ou estética:

Dizer que na televisão só existe banalidade é um duplo equívoco. Em primeiro lugar, há o erro de considerar que as coisas são muito diferentes fora da televisão. O fenômeno da banalização é resultado de uma apropriação industrial da cultura e pode ser hoje estendida a qualquer forma de produção intelectual do homem. (MACHADO, 2005, p.09)

Conforme afirma Machado, a maioria daqueles que se ocupam da TV analisam-na

pelos aspectos gerais de produção e recepção, sem se ater à análise particular dos programas.

O pesquisador aponta para a necessidade de se desviar o foco de análise “das formas mais

baixas de televisão [...] para a diferença iluminadora, aquela que faz expandir as

possibilidades expressivas desse meio.” (MACHADO, 2005, p.10). Para ele, o aspecto

comercial da TV não inviabiliza a criação artística, o que é endossado por Duarte que, embora

não veja a possibilidade de que a televisão venha a ser um espaço adequado onde se possa

discutir conteúdos em profundidade, concorda que os programas podem ser produzidos com

cuidado e “até mesmo apresentar soluções criativas e linguagem inovadora.” (DUARTE,

2004, p. 60-61)

Tais constatações nos fazem voltar ao já citado ensaio de Umberto Eco, cujas

reflexões em meados da década de 1960 apontavam para uma televisão que se revelava

apenas como fenômeno sociológico, até aquele momento “incapaz de dar vida a verdadeiras

criações artísticas” (ECO, 2006, p. 330), mas que

justamente como fenômeno sociológico, surge como capaz de instituir gostos e propensões, isto é, de criar necessidades e tendências, esquemas de reação e modalidades de apreciação tais que, a curto prazo, se tornam determinantes para os fins de evolução cultural, também em terreno estético. (ECO, 2006, p.330)

Como se vê, a considerar as opiniões de Machado e Duarte sobre a presença de

linguagem estética na TV, a previsão de Eco, nesse sentido, se confirmou. O próprio Arlindo

Machado (2005) enumera dezenas de programas produzidos por TVs estrangeiras e

brasileiras, considerados por ele como os mais importantes da história desse veículo. Se fosse

atualizada hoje, 13 anos depois de publicada a primeira edição da obra, é possível que essa

lista fosse renovada ou expandida.

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No que se refere à capacidade de instituir gostos, no entanto, se o próprio

aprimoramento estético já é um indício disso, por outro lado, o interesse predominantemente

comercial dos emissores continua sendo uma forte barreira para um maior avanço nesse

campo. Não por falta de consciência dos produtores: “A TV sabe que pode determinar os

gostos do público” (ECO, 2006, p. 348); ou dos críticos: “só a televisão, com seu poder de

comunicação, poderá elevar rapidamente e com eficiência o nível cultural do nosso povo”

(LIMA, 1985, p. 14); ou mesmo de enunciatários como Luiz Fernando Carvalho, que sempre

afirma a intenção de contribuir para uma reeducação do espectador.

Entretanto, conforme já abordamos, há um consenso de que a preocupação primeira da

televisão é com o consumo e o retorno financeiro que advém dele. Diante disso, há o receio

em arriscar-se, porque “o espaço em televisão é muito caro. Não dá para se cometerem muitos

enganos.[...] O risco de não agradar, de não garantir pontos na audiência, controla o ímpeto de

grandes ousadias e experimentações.” (DUARTE, 2004, p. 73) Bourdieu , no livro Sobre a

televisão(1997), discute essa questão por um viés interessante: segundo ele, todo movimento

coletivo que tende a “homogeneizar”, torna-se conveniente, embora ninguém, em princípio,

lhe seja o autor ou o tenha desejado. Tomando o telejornal como objeto de análise, ele afirma

que “quanto mais um órgão de imprensa ou um meio de expressão qualquer quer atingir um

público extenso, mais ele deve perder suas asperezas [...] Constrói-se o objeto de acordo com

as categorias de percepção do receptor.” (BOURDIEU, 1997, p.63)

Assim, levando em conta o ponto de vista desse teórico, parece-nos que estamos

diante de uma força invisível, um movimento cuja direção não tem condutores identificáveis,

nem idealizadores, mas que, de certa forma, segue um fluxo natural, guiado pela necessidade

de atingir as massas. Bourdieu não esconde certo ceticismo quanto a uma mudança nesse

cenário: “Se um instrumento tão poderoso quanto a televisão se orientasse um pouquinho que

fosse para uma revolução simbólica [...] eu lhes asseguro que se apressariam em detê-

la...”(BOURDIEU, 1997, p.64). Revoluções simbólicas, conforme explica o pesquisador, são

aquelas que atingem as estruturas mentais das pessoas, contribuindo para mudar as maneiras

de ver e de pensar, geralmente realizadas por artistas, cientistas, religiosos ou políticos. “Ora,

ocorre que, sem que ninguém tenha necessidade de pedir, apenas pela lógica da concorrência,

e dos mecanismos que evoco, a televisão não faz nada de semelhante. Está perfeitamente

ajustada às estruturas mentais do público.” (p. 64) Apesar da declarada descrença, Bourdieu

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chama a atenção para o perigo das críticas simplistas e para a necessidade de se aprofundar

numa análise que levem à compreensão de tais fenômenos.

Cada um a seu modo, Arlindo Machado e Umberto Eco também defendem um olhar

mais cuidadoso dos críticos para com a televisão. Para Machado, é necessário que se preste

atenção aos programas de qualidade estética, ao invés de analisar a TV como algo

homogêneo; Eco, por sua vez, aponta para os riscos que uma recusa indiscriminada dos

intelectuais aos meios de comunicação de massa representaria para a sociedade, segregando-a

em um “restrito grupo de intelectuais, que desdenham os novos canais de comunicação, e um

vasto grupo de consumidores que permanecem naturalmente nas mãos de uma tecnocracia dos

mass media, privada de escrúpulos morais e culturais, atenta unicamente a organizar

espetáculos capazes de atrair multidões.” (ECO, 2006, p. 357)

A análise que iniciaremos no segundo capítulo desta tese é, de certa forma, uma

resposta a essa proposta, na medida em que terá como foco duas obras de reconhecido valor

estético. Antes disso, porém, faremos uma breve viagem pela história da televisão no Brasil, a

fim de apontar as peculiaridades desse veículo em território nacional, e os momentos em que

a relação entre programação, audiência e crítica registrou os seus altos e baixos índices de boa

convivência.

1.2 DE “BRINQUEDO DE LUXO” A VEÍCULO “POPULARESCO”: NOTAS SOBRE O

PERCURSO DA TELEVISÃO NO BRASIL

A implantação da televisão no Brasil foi, naturalmente, uma consequência da evolução

desse veículo no resto do mundo. Aqui, no entanto, a história registra particularidades que

podem nos ajudar a compreender o perfil que esse veículo vem delineando ao longo do

tempo, no que se refere à popularização da programação, bem como os conflitos que

esquentaram as críticas nesses mais de sessenta anos de sua existência. Em primeiro lugar,

cumpre lembrar que a TV brasileira foi construída muito mais com a contribuição do rádio do

que do cinema, como aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo, e isso foi preponderante

para o primeiro processo de popularização do veículo, conforme veremos adiante. Outro fator

que não podemos deixar de referir diz respeito à relação de dependência que o novo meio de

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comunicação criou com a publicidade antes mesmo da inauguração da primeira emissora

brasileira.

Embora seja sempre impossível apontar com exatidão como se deu o início de um

fenômeno como a televisão, um dos primeiros registros sobre esse veículo de que se tem

notícia no Brasil refere-se a uma propaganda da General Electric, publicada na revista

Seleções da Reader’s Digest9 em 1944, seis anos antes de a TV ser oficialmente inaugurada.

O texto publicitário reafirma a relação técnica que a transmissão televisiva mantém com a

radiodifusão, antecipa as maravilhas que o novo meio proporcionará e, sobretudo, coloca a

empresa como parceira e investidora do novo projeto, conforme se vê neste fragmento: “Faz

anos que a General Electric vem construindo aparelhos transmissores de televisão para uso

experimental. [...] os receptores de televisão permitirão a V. S. convidar à sua casa, seus

amigos e parentes para assistir uma ópera ou um filme cinematográfico transmitido por

televisão” (BARBOSA, 2010, p.22)

Outros anúncios, particularmente dessa empresa, foram publicados no intervalo de

tempo entre esse e o dia 18 de setembro de 1950, quando os Diários Associados, pelas mãos

de Assis Chateaubriand, inauguraram a TV Tupi Difusora de São Paulo. O discurso proferido

por Chateaubriand, na ocasião, chama a atenção pela exaltação aos quatro patrocinadores que

custearam o empreendimento: a Companhia Antárctica Paulista, o grupo Sul América

Seguros, o Moinho Santista e a Organização Franscisco Pignatari, fabricante da prata Wolff.

Atentai bem e vereis como é mais fácil do que se pensa alcançar uma televisão: com prata Wolff, lãs Sams, bem quentinhas, Guaraná Champagne, borbulhante de bugre e tudo isto bem amarrado e seguro na Sul América, faz-se um bouquet de aço e pendura-se no alto da torre do Banco do Estado um sinal da mais subversiva máquina de influir na opinião pública – uma máquina que dá asas à fantasia mais caprichosa e poderá juntar os grupos humanos mais afastados. (CHATEAUBRIAND apud BARBOSA, 2010, p. 19)

Em vários outros momentos do seu discurso, Chateaubriand ressalta o apoio recebido,

antecipando uma prática que hoje é corriqueira em boa parte dos programas televisivos: o

merchandising. A General Electric, como se vê, não foi patrocinadora do investimento que

possibilitou as transmissões televisivas em território brasileiro. No entanto, ela se colocou

como a empresa que, naquele momento, proporcionaria a venda de aparelhos retransmissores,

o que naturalmente era também de interesse do empreendimento. O fato é que durante toda a

9 A informação consta do artigo de Marialva Carlos Barbosa (2010), citado neste capítulo.

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primeira década da TV no Brasil, “os patrocinadores eram senhores absolutos dos programas,

escolhendo e contratando diretamente os artistas e produtores [...] à emissora restava a tarefa

de ceder estúdios e pôr o programa no ar” (PRIOLLI, 1985, p. 24). A subordinação do

programa ao patrocinador foi tal que era comum que o nome deste estivesse associado àquele,

por exemplo, Teledrama Três Leões ou Teatro Walita, entre muitos outros.

Voltando ao discurso de Chateaubriand, vale observar que as empresas mencionadas

como patrocinadoras comercializavam produtos voltados para classes mais abastadas (prata,

seguros e mesmo o refrigerante, que não era tão popular como é hoje), o que denuncia o

caráter elitista da televisão, naquele momento. A cerimônia de inauguração, conforme relata

Marialva Carlos Barbosa (2010), foi marcada pela presença de “homens de paletó e gravata,

mulheres bem vestidas, como se fossem a uma festa” (BARBOSA, 2010, p. 17). Esse perfil

de consumidor está presente também no próprio texto publicitário da General Electric quando

sugere que um televisor em casa seria um diferencial, um atrativo a ser oferecido a parentes e

amigos que, naturalmente, não tivessem o mesmo privilégio.

A exclusão do grande público, àquela época, devia-se, principalmente, ao alto preço

dos aparelhos receptores, que mesmo dois anos após a inauguração da primeira emissora, era

ainda inacessível para a maioria das famílias. É o que nos conta Gabriel Priolli: “Nos dois

primeiros anos de vida, a TV não foi mais que um brinquedo de luxo para as elites do país.

[...] Um televisor custava três vezes o preço da mais cara radiola do mercado e só um pouco

menos que um automóvel. Daí porque a programação oferecida pelas emissoras nos anos 50

tivesse aquele ‘alto nível’ tão cobrado hoje pelo público mais letrado.” (PRIOLLI, 1985, p.

23)

O comentário acima nos leva de volta à relação programação/público, sobre a qual já

referimos na primeira parte deste capítulo, e à qual voltamos para tratar do caso específico do

Brasil. O “alto nível” a que se refere Priolli, diz respeito a uma programação que incluía teatro

clássico e de vanguarda, música erudita, informação jornalística e debate político. Daí a

qualificação de “fase elitista” que autores como Sérgio Mattos (2002), por exemplo, dão à

primeira década da TV brasileira.

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1.2.1 Dos teleteatros às telenovelas: a consolidação do gênero ficcional na TV

A fim de atender a esse público culturalmente mais elitizado que a TV atraía nos seus

primeiros anos de existência, os teleteatros foram o carro chefe da teledramaturgia e, ao

mesmo tempo, conforme afirma Cristina Brandão, “o desbravador do desconhecido terreno da

linguagem televisiva”. (BRANDÃO, 2010, p. 41) As encenações teatrais, ao vivo, ao mesmo

tempo em que atendia o propósito da Tupi de se aproximar de um modelo de TV mais cultural

e menos comercial, também serviram como uma espécie de laboratório para o nascimento do

que hoje se define, ainda que precariamente, como linguagem televisual. Diz Ana Maria

Balogh, O que se denomina de modo impreciso de ‘linguagem televisual’, nada mais é do que um vasto amálgama das linguagens prévias de rádio, do cinema, dos quadrinhos, ou daquelas que foram surgindo paralelamente à TV ou junto com a TV, como a do vídeo-clipe, e da computação gráfica, entre outras. Todas elas foram incorporadas ao quotidiano da TV em sua insaciável voracidade. (BALOGH, 2004, p. 141)

Conforme se depreende da afirmação acima, a televisão parece ser o ponto de

convergência de todas as linguagens artísticas ou comunicacionais que vem surgindo ao longo

do tempo e em função da evolução tecnológica. Em sua origem, no entanto, pelo menos aqui

no Brasil, estão principalmente o teatro e o rádio, presentes através de profissionais que, de

uma maneira ou de outra, eram responsáveis pela programação, e ambos se esforçando para

promoverem uma aproximação com a estética do cinema. Foi um lento aprendizado sobre o

fazer televisão ficcional: “Falamos de um método artesanal de se encenar a teledramaturgia,

mas verificamos que tais produções, embora tecnicamente limitadas, deixavam transparecer

um lado criativo e ousado”. (BRANDÃO, 2010, p. 44). Como se verá adiante, a adesão de

cineastas ao processo de produção foi decisiva para a evolução da linguagem televisual.

Como carro-chefe da programação, nos seus primeiros anos, os teleteatros ocupavam,

naturalmente, o chamado horário nobre da televisão, assim permanecendo por quase duas

décadas, quando o espaço foi ocupado pelas telenovelas. Este formato, por sua vez, surgiu

pelas mãos dos profissionais do rádio, insatisfeitos com o fato de o teleteatro não atingir um

público mais popular, que era, afinal, o público do rádio, veículo de massa mais acessível até

então. Assim, embora as telenovelas só tenham ocupado definitivamente o horário nobre da

televisão no final da década de 1960, este tipo de ficção começou a se delinear já em 1951,

com a adaptação de radionovelas para a televisão. Em pouco tempo surgiram roteiros

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originalmente escritos para a TV, ainda pelas mãos dos profissionais do rádio. Era o início da

prática de se contar histórias em capítulos.

Convém lembrar que embora o teleteatro e a telenovela tenham convivido por muitos

anos no espaço da televisão, os conflitos eram constantes. De um lado, os profissionais do

rádio, que criticavam a técnica teatral inadequada para a TV, conforme palavras de Walter

Durst (2010): “[...] o ridículo era um só... porque eles tinham a câmera na mão deles e eles

estavam berrando... então nós passávamos o tempo rindo deles...” (DURST apud

BERGAMO, 2010, p.69). Por outro lado, o pessoal do teatro, defendendo um status mais

cultural e independente. É Sérgio Britto quem diz:

Na Tupi havia uma certa invejinha em cima da gente, eu não tinha motivo para ter inveja nenhuma. [...] Mas na verdade nós éramos os nomes independentes da televisão. Vínhamos de teatro, onde tínhamos o nosso jeito. Nosso nome entrou para a televisão com mais prestígio, teve um espaço maior, inclusive econômico. (BRITTO apud BERGAMO, 2010, p. 69)

Ao que parece, é justamente este espaço privilegiado concedido ao teleteatro que

incomodava os profissionais do rádio, responsáveis pelo cotidiano da televisão10, porém

gozando de um status artístico diferenciado (e inferior) em relação ao pessoal do teatro,

conforme palavras de Lima Duarte:

Então às segundas-feiras os “deuses” do teatro iam para lá, ocupavam o estúdio e reproduziam, na televisão, o espetáculo que eles estavam fazendo em cena.[...] A gente não se afinava muito não. Porque a gente trabalhava lá todo dia, fazendo novela, trabalhando mesmo, né, no dia a dia da coisa. E eles só vinham às segundas-feiras. [...] falaaavam, parecia melhor, né, porque falavam muito mais fluente (sic) que a gente... pô! (DUARTE apud BERGAMO, 2010, p. 68)

Essa presença assídua dos profissionais do rádio nos estúdios, no entanto, aliada ao

desejo de popularização da TV, contribuiu para a substituição do teleteatro pela telenovela,

pois enquanto o primeiro formato ia ao ar uma vez por semana, quando não apenas

quinzenalmente, a telenovela era exibida três ou quatro vezes por semana. Com isso, embora

àquela época ainda não houvesse uma programação fixa, a telenovela estava presente mais

regularmente na telinha, passando a ser diária em 1963. Nessa época, a audiência dos

teleteatros ainda era maior, porém o público começava a se habituar aos horários fixos para os

10 Além dos profissionais que garantiam o funcionamento da TV, vieram do rádio também ideias e programas, como o jornalístico Repórter Esso e o humorístico Balança mas não cai, entre outros. Apesar disso, o prestígio maior iria para os teleteatros.

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programas. Isso, aliado ao fato de que o número de televisores vendidos aumentava

significativamente – de 434 mil em 1950, para 2,4 milhões em 1966 –, fez com que a

telenovela passasse a fazer parte do dia a dia dos telespectadores, até virar mania e se tornar a

responsável pelo aumento da audiência, passando a ocupar o horário nobre, no final daquela

década. A televisão se impunha como veículo de massa, tendo nas telenovelas seu principal

atrativo.

1.2.2 Entre o popular, o “popularesco” e o “brega”

Com os profissionais do rádio à frente das novelas, a ficção se distancia do teatro

consagrado e de seu público e começa a se aproximar do grande público do rádio. A década

de 1960 marcou, portanto, a sedimentação da telenovela como principal formato ficcional,

levando a televisão a assumir o papel de veículo popular, o que trás à tona a ideia de um

‘povo’ a que o pessoal do rádio sempre recorria para se referir a seu público, mas cuja

definição foi sempre precária: “Tratava-se de um ‘povo’ ora descrito por suas qualidades

morais, portanto não intelectuais ou culturais, ora descrito como ingênuo.” (BERGAMO,

2010, p.70) É ainda Bergamo quem chama a atenção para o fato de que a ideia de povo é, ao

mesmo tempo, uma tentativa de definição do novo público de TV, mas também a fonte de

inspiração para os novos produtores, que se empenham por uma aproximação através de

temas ficcionais que retratem a realidade do país11 ou formatos que possibilitem uma maior

participação do público.

É ainda entre final de 1960 e meados de 1970, que a televisão chega a um modelo de

programação que leva em conta a predisposição presumida do público - até então constituído

principalmente pela família de classe média. Segundo explica Homero Sánchez, responsável

por analisar os números do Ibope da Rede Globo, a Bergamo (2010), o horário das seis da

tarde era dedicado aos meninos; às sete da noite iniciava a tensão, porém ainda moderada,

mas que aumentava na novela das oito; e às dez horas da noite, tinha-se liberdade para fazer

uma novela mais realista, com crítica social. Entre a novela das sete e a das oito, colocava-se

um show ou jornalístico, a fim de preparar o telespectador para a catarse maior.( BERGAMO,

2010)

11 Até então, a teledramaturgia da TV Globo era conduzido por uma autora cubana, Glória Magadan, que priorizava folhetins ao estilo “capa e espada”, com história ambientadas em tempo e espaços remotos, em tudo distantes da realidade brasileira. (RIBEIRO e SACRAMENTO, 2010, p. 124)

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Conforme se pode notar, o modelo de 40 anos atrás prevalece até os dias de hoje, pelo

menos na Rede Globo, ainda que com alguns ajustes nos horário e na temática. As gradações

de tensão continuam iguais, embora tenham aumentado significativamente em todos os

horários, na medida em que o grau de realismo não é mais tabu na televisão. Apesar disso,

salvo as alterações ocorridas nos horários, para pelo menos 30 minutos mais tarde, ainda se

nota uma tensão menor entre seis e meia e oito e meia da noite – aliás, é recorrente a

apresentação de folhetins humorísticos para o horário das sete e meia da noite –, e temáticas

mais intensas a partir das nove horas. As novelas que ocupavam o horário das dez foram

excluídas por algum tempo na TV Globo, que as retoma eventualmente, uma hora mais tarde,

mas sempre em menor número de capítulos do que as demais. Esse horário é também

utilizado para a exibição de séries e minisséries, formatos ficcionais sobre os quais falaremos

um pouco mais ainda neste capítulo. A TV Record, principal concorrente da Globo em

novelas, atualmente, mantém uma grade de programação parecida, deixando, entretanto, seu

principal folhetim para ser exibido depois do horário nobre da TV Globo, por volta das 10h30

da noite.

É importante ressaltar que embora a teledramaturgia seja a responsável pela

popularização da TV no Brasil, ela nunca foi o alvo principal das críticas que o veículo vem

recebendo ao longo de sua existência. O fato é que ainda na década de 1960, junto com a

ascensão da telenovela, apareceram também os primeiros programas abertos à participação do

público, sejam sob a forma de serviço social, com atendimento a pedidos diversos, como

bolsas de estudo, remédios e cadeiras de rodas; sejam promovendo relacionamentos

amorosos; ou ainda os de jornalismo sensacionalista, os quais foram logo tachados de

“popularescos”, o que em crítica cultural tem conotação negativa, pois está relacionado a uma

degenerescência do popular. (MIRA, 2010, p.166)

O aumento da audiência, promovido por tais programas, se por um lado serviu para

consolidar um público para a TV, por outro lado, gerou um sério conflito entre produtores

“artísticos” e “comerciais”, despertando a fúria de intelectuais e a reação do governo. É o que

contam Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento (2010) segundo os quais: “havia muita

resistência a esse tipo de programação entre a elite intelectualizada do país, e as críticas

cresceram muito no final da década [1960]. Criou-se até uma ‘campanha contra o grotesco na

TV’” (RIBEIRO e SACRAMENTO, 2010, p.111-112), liderada pelo colunista Eli Halfoun,

do jornal Última Hora, em 1968.

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Este foi também o ano em que estreou a peça de teatro Roda Viva, escrita um ano

antes por Chico Buarque, na qual ele critica severamente o poder do Ibope, assim como os

artistas que se deixavam seduzir pelo sucesso proporcionado pelas aparições nos programas

de “mau gosto”, porém de boa audiência. Eis um trecho da obra:

Ibope é o representante oficial neste mundo Da divina luzinha vermelha Só ele tem acesso aos mistérios da luz É ele quem indica as preferências Da venerada televisão É ele que deveis consultar ao fim de cada dia Para saber os frutos de vossas boas ações (BUARQUE, 1968, p. 34)

Como se denota do fragmento transcrito acima, a televisão havia assumido um aspecto

marcadamente comercial: “O que ocorre é que se forma, nesse período, uma noção de público

convertida em índice de audiência, que, exatamente por vir apresentada na forma abstrata de

número, [...] mobiliza uma multiplicidade de sentimentos e de concepções divergentes.”

(BERGAMO, 2010, p.78). Às sucessivas críticas ao “baixo nível” da programação, por parte

das classes mais intelectualizadas e de setores conservadores da sociedade, veio se unir a ação

do governo, por meio da censura, em prol da elevação da “qualidade” dos programas,

contribuindo para uma mudança de perfil da televisão, ocorrida na década de 1970.

Consta que, depois da participação de uma mãe de santo incorporando o espírito de

um exu da umbanda, num mesmo domingo de 1971, nos programas de Chacrinha e Flávio

Cavalcanti, respectivamente nas TVs Globo e Tupi, e que teria levado as plateias a uma

“histeria coletiva”, “o Ministro das Comunicações, Higino Corsetti, ventilou a possibilidade

de cassar a concessão das emissoras envolvidas, que – segundo ele – estavam se utilizando do

‘sensacionalismo’ e da ‘baixaria’ como estratégia de mercado.” (RIBEIRO e

SACRAMENTO, 2010, p. 117) Ainda de acordo com os pesquisadores, o governo teria

ameaçado proibir as transmissões ao vivo e fixar normas de conduta para as emissoras de

televisão. Diante dessas ameaças, as duas TVs envolvidas no imbróglio se anteciparam e

criaram um protocolo de conduta, que foi assinado pelos seus respectivos representantes

legais.

A década de 1970 marcou, portanto, um período de vigília em torno da programação

da televisão brasileira, resultando na diminuição de programas ao vivo e em maior cuidado

com aqueles que continuaram sendo exibidos: “os animadores populares agora estão sob

controle” (PRIOLLI, 1985, p 35). Em contrapartida, houve maior investimento em programas

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previamente gravados, mais fáceis de serem controlados, como as telenovelas e alguns novos

formatos, dentre os quais se destacam o Fantástico e o Globo Repórter, da Rede Globo,

exibidos até os dias de hoje.

Em 1979, estreia o programa Abertura, da TV Tupi, reunindo escritores, jornalistas e

artistas em uma produção que marcou a volta do debate político à televisão brasileira, depois

de um longo período de censura, o que resultou no fato inédito de atrair a atenção da crítica e

a imprensa, de forma positiva, para um programa televisivo. “Uma entrevista com Miguel

Arraes era um fato político que virava notícia de jornal. Esse e outros tantos exemplos eram

geradores de informação para a imprensa, que não apenas comentava, mas entrava no debate”,

diz Regina Mota, (2010, p. 145). Apontado por Arlindo Machado (2005) como um dos mais

importantes da televisão brasileira, Abertura inovou em conteúdo e em linguagem, conforme

lembra Priolli, referindo-se às contribuições de Gláuber Rocha, um dos apresentadores do

programa, e criticando o artificialismo da Rede Globo:

‘Abertura’ deu espaço às intervenções de Glauber Rocha, que pulverizou a estética acrílica e falsa do padrão global. Uma câmara nervosa, inquieta e ‘suja’, e uma atuação totalmente engajada, opinativa, ‘quente’ a nível das (sic) reportagens e entrevistas – com esses recursos Glauber mostrou, em especial a uma geração emergente de jovens realizadores, que era possível fazer boa TV, mal comportada. (PRIOLLI, 1985, p. 39)

O processo de redemocratização no Brasil, se por um lado possibilitou o aparecimento

do programa Abertura, por outro acabou por patrocinar a volta dos programas populares, – ou

popularescos –, na televisão brasileira, na década de 1980. O afrouxamento da censura, a

crescente audiência registrada pelo recém-criado SBT de Sílvio Santos, capitaneada pelos

seus programas de auditório e pelo jornalismo sensacionalista, e a consequente ameaça à

hegemonia da Rede Globo, acaba por trazer à tona uma nova onda de popularização da TV,

reascendendo, consequentemente, as críticas a ela. É Maria Celeste Mira quem diz: “Esse

retorno do ‘mundo cão’ reacendeu a crítica sobre a qualidade da televisão. Depois das

conquistas modernizantes da década de 1970, temia-se o retrocesso.” (MIRA, 2010, p. 157)

Sílvio Santos, que estreou em televisão em 1962, pela TV Paulista, transfere-se para a

Globo em 1966, com um programa de auditório que chegou a quatro horas de duração, nas

tardes de domingo, e que foi o primeiro campeão de audiência dessa emissora. Ele foi também

o único que sobreviveu à reformulação que a emissora fez, por ocasião do pacto de conduta

assinado com a TV Tupi, e que resultou no fim de outros programas de auditório e na

demissão de apresentadores como Chacrinha e Dercy Gonçalves. A permanência de Sílvio na

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TV Globo, no entanto, foi menos por causa da audiência e mais pelo fato de ele não poder ser

demitido, já que era concessionário de horário, e naturalmente porque não incomodava o

regime militar. A essa altura, a Globo começava a definir o que mais tarde ficou conhecido

como “Padrão Globo de Qualidade” e o programa de Sílvio Santos, apesar do sucesso com o

público, tornou-se um incômodo para a emissora, por ir contra o novo perfil que então se

definia.

Vencido o seu contrato, Sílvio Santos sai da TV Globo em 1976, quando passa a

transmitir seu programa para o Rio de Janeiro, pela TVS, e para São Paulo, pela TV Record, e

logo em seguida para o resto do país, pela TV Tupi. A concessão desta emissora, entretanto, é

cassada em 1980, e o apresentador – e agora empresário – reúne uma rede de emissoras

afiliadas da Tupi em torno da sua TV Studios Sílvio Santos, o que o leva a conseguir

concessão do Governo para criar sua própria rede, o Sistema Brasileira de Televisão (SBT),

inaugurada em 1981, cuja programação era totalmente voltada para as classes populares,

como os “shows de auditório ‘recauchutados’ da Tupi, novelas mexicanas dubladas em seus

próprios estúdios e filmes. Nesse início, o grande impacto do SBT é um show vespertino,

diário, que atualiza os velhos esquemas ‘apelativos’ dos anos 60: ‘O Povo na TV’.”

(PRIOLLI, 1985, p.40-41) Essa programação, ao mesmo tempo em que atraía o grande

público, também trazia de volta o antigo embate entre audiência/crítica, com uma novidade no

que se refere aos anunciantes:

Na ânsia de ser popular, a emissora foi novamente considerada “popularesca”. Suas telenovelas eram vistas como excessivamente sentimentais e melodramáticas, o humorismo era tido como “apelativo”, “grosseiro”, “vulgar”. Evidentemente, nada superava a rejeição a “O povo na TV”: seu “sensacionalismo” era considerado “agressivo” ao telespectador. Toda a programação concebida por Sílvio Santos e sua equipe foi condenada pelo mercado publicitário. Seus diretores chegaram a oferecer publicidade gratuita para que os anunciantes pudessem observar o retorno. Mas eles recusaram: comercial no SBT, nem de graça. [...] os anunciantes não queriam associar sua imagem e a de seus produtos à do SBT. (MIRA, 2010, p. 166)

Como a audiência em alta não garantia o retorno financeiro, o SBT contrata

profissionais da área de publicidade, a fim de entender o que estava acontecendo e promover

as mudanças necessárias. A conclusão a que se chegou foi que a grande massa que constituía

o público do SBT pertencia às classes mais baixas, o que não interessava aos anunciantes em

potencial. As mudanças, então, vieram na forma de investimento na qualidade técnica e no

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visual dos programas, que embora tenham mantidos antigas fórmulas, foram “maquiados”,

conforme palavras de Mira, com o objetivo de atingir um público consumidor,

Porque o público prefere sempre a imagem e o som de melhor qualidade, mesmo as classes populares que tendem a optar pela programação dita ‘popularesca’. Em segundo lugar porque, ainda que baseado em fórmulas consideradas ‘popularescas’, um programa bem produzido pode escapar dessa classificação, parecer menos ‘vulgar’, menos ‘grosseiro’ e, com uma imagem mais aceitável, atingir anunciantes. Foi o que aconteceu com ‘A Praça é Nossa’ e a programação do SBT. (MIRA, 2010, p. 168)

Com os novos investimentos e novas concepções visuais, que incluíam cenário e

figurinos mais bem cuidados, por exemplo, a emissora passou da classificação de popularesca

para ‘brega’, termo empregado para indústrias culturais rentáveis. E de fato, rompida a

barreira econômica, o SBT passou a ameaçar as demais emissoras, em especial a Rede Globo,

trazendo de volta modelos populares que haviam sido banidos na década anterior: programas

de auditório, humorísticos e jornalismo sensacionalista. Na Globo, tais fórmulas foram

retomadas, inicialmente, com a volta do programa do Chacrinha, o relançamento do

humorístico Balança mas não cai e a estreia do Caso Verdade. Assim, na medida em que o

SBT buscou melhorar a sua qualidade (ainda que apenas tecnicamente), a Globo fez o

caminho inverso quanto à sua programação, promovendo a mediocridade de que a TV é

constantemente acusada: “Mediocridade no sentido mais exato da palavra, isto é, qualidade do

que é médio... As águas baixas sobem e as águas altas descem” (MORIN, 1977, p. 50)

Da década de 1980 até os dias de hoje, a programação televisiva, assim como as

críticas a ela, têm se mantido estáveis: as três fórmulas citadas no parágrafo anterior são

constantes na grade de programação da maioria das emissoras: são poucos os riscos e muitas

as repetições e remakes. Em contraponto, os programas que apresentam maior cuidado com a

estética e/ou com o conteúdo geralmente são exibidos em horários ou canais inacessíveis,

conforme já dissemos no início deste capítulo. Tudo isso explica o fato de que a maioria

daqueles que se ocupam da TV analisam-na pelos aspectos gerais de produção e recepção,

sem se ater à análise particular dos programas, conforme critica Machado (2005), ao chamar a

atenção para a existência, em TV, da “diferença iluminadora, aquela que faz expandir as

possibilidades expressivas desse meio.” (MACHADO, 2005, p.10).

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1.2.3 O “padrão Globo de qualidade”

A TV Globo, emissora que abrigou os dois programas objeto desta tese, foi

oficialmente inaugurada em 1965, no Rio de Janeiro, pelas mãos do jornalista Roberto

Marinho. A exemplo das demais emissoras em atividade na época, a aposta inicial da Globo

foi em modelos de programas que já faziam sucesso junto ao grande público de televisão, em

especial as telenovelas e programas de auditório. Dessa forma, até o final daquela década,

passaram pela TV animadores como Chacrinha, Dercy Gonçalves, Raul Longras e Sílvio

Santos, todos comandando programas de cunho popular e por vezes tachados de popularescos,

conforme já mencionamos anteriormente, como no episódio da mãe de santo apresentada pelo

Programa do Chacrinha. No segmento do jornalismo, o destaque, nesses primeiros anos da

emissora carioca, foi O homem do sapato branco (1968-69), apresentado por Jacinto Figueira

Junior, que abordava de forma sensacionalista, a violência urbana, a prostituição e o

homossexualismo, entre outros temas polêmicos na época.

Embora a mudança no perfil da programação tenha ocorrido a partir do protocolo de

conduta assinado com a TV Tupi, ela resultou também dos investimentos que a emissora

começou a fazer apenas um ano depois de sua estreia. Paralelamente à contratação de

profissionais experientes para as áreas de administração e de produção e programação, a

emissora soube tirar proveito da Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel),

implantada pelo governo com o objetivo de promover a “integração nacional”, sendo a

primeira a utilizar a infraestrutura tecnológica para uma transmissão em rede, em 1969, com o

Jornal Nacional.

Mas se a TV Globo soube tirar proveito dos investimentos disponibilizados pelo

governo militar, a visão de seus novos diretores, Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira

Sobrinho, o Boni, foram decisivos para a consolidação da emissora. Conforme levantamentos

de Ribeiro e Sacramento (2010), enquanto as demais emissoras concentravam seus

investimentos em programas de boa audiência e os exploravam até a sua saturação, a Globo

procurou formar uma mentalidade de planejamento em longo prazo, o que incluía assumir

alguns riscos de fracasso “em nome de um movimento ascendente, porém estável, de

audiência e de conquista da publicidade. Significava também a eventual necessidade de tirar

do ar um programa bem-sucedido, para que sua fórmula não se desgastasse.” (RIBEIRO,

SACRAMENTO, 2010, p. 113)

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Dessa forma, aliando tecnologia moderna a profissionais experientes que trouxeram

para a emissora uma maneira de pensar a TV a longo prazo, a Globo dedicou-se, durante a

década de 1970, a renovar sua programação, criando o perfil que a imprensa da época chamou

de “padrão Globo de qualidade” e que é repetido até os dias de hoje, embora muitas vezes,

com ironia. A demissão de alguns animadores de programas, conforme já se disse, foi uma

das medidas tomadas nesse período, e ao lado dela, a contratação de novos artistas e

intelectuais, que atraiam um público mais elitizado culturalmente. Outra medida de impacto

foram as inovações no segmento jornalístico, com a criação do Fantástico e do Globo

Repórter, além do já citado Jornal Nacional. O infantil Vila Sésamo trouxe uma proposta

educativa, e o Concertos para a juventude reunia músicas clássicas e MPB, orquestradas e ao

vivo.

Com a presença de cineastas oriundos do cinema novo, como Eduardo Coutinho,

Walter Lima Júnior e João Batista de Andrade, entre outros, o Globo Repórter inaugurou uma

linguagem jornalística inovadora, o que agradou os críticos da época: “Em 28 de agosto de

1978, ao comentar a exibição do documentário de Eduardo Coutinho, Artur da Távola

comemorou o fato de o programa ter liderado a audiência, mesmo concorrendo com ‘a linha

de shows de extremo apelo popular’ das outras emissoras. A Discoteca do Chacrinha, na TV

Bandeirantes, era vencida pela ‘qualidade e o bom gosto’”. (RIBEIRO e SACRAMENTO,

2010, P. 122)

A preocupação em melhorar a qualidade de sua programação chegou, naturalmente, ao

gênero ficcional. Além da mudança no perfil das novelas de que já falamos, a emissora

estreou a série Caso especial, com histórias contadas em um único episódio. As adaptações de

obras literárias para os casos especiais, séries brasileiras e novelas, bem como a contratação

de novos autores para esses programas proporcionou temáticas mais próximas da realidade

brasileira e, consequentemente, uma maior aproximação com o público. Foi nessa década que

nomes como Dias Gomes, Janete Clair, Lauro César Muniz e Bráulio Pedrosa se uniram ao

time da emissora, e é também desse período algumas das tramas mais marcantes da história da

teledramaturgia brasileira, como por exemplo, Selva de Pedra (Janete Clair, 1972), O Bem

Amado (Dias Gomes, 1973), Gabriela (Walter George Durst, 1975) e Escrava Isaura

(Gilberto Braga, 1976).

Por tudo isso, a década de 1970 marcou um período de relativa paz entre a televisão e

a crítica intelectualizada, especialmente para a Rede Globo, que conseguiu atingir um “bom

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gosto médio”, conforme classificação do jornalista Artur da Távola (1980), em coluna de O

Globo, e consolidou-se como a principal emissora brasileira.

1.3 A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA

Muito antes do surgimento da televisão, a literatura já mantinha uma relação estreita

com a ficção audiovisual, por meio do cinema. Essa relação está na base do desenvolvimento

da sétima arte, conforme aponta Sérgio Lara Leite (1984), ao lembrar que as primeiras

realizações do também primeiro grande criador do cinema, George Méliès, foram inspiradas

em literatura: Cendrillon (Cinderela, 1900), do conto de fadas homônimo, e Le Voyage dans

la lune (Viagem à lua, 1902), inspirado na obra de Júlio Verne. Ao longo desses mais de cem

anos de história, “Todas as cinematografias do mundo, em maior ou menor grau, sempre se

utilizaram da literatura como fonte de inspiração”. (LEITE, 1984, p. 11).

O principal motivo da frequente recorrência do cinema às obras literárias seria, na

opinião de Ismail Xavier, a afinidade natural entre os gêneros narrativos, que têm em comum

os elementos que os compõem: “o filme narrativo-dramático, a peça de teatro, o conto e o

romance têm em comum uma questão de forma que diz respeito ao modo de disposição dos

acontecimentos e ações dos personagens” (XAVIER, 2003, p.64). Para Evaldo Coutinho, no

entanto, tais elementos não pertencem ao cinema, que apenas os pega de empréstimo: “Da

literatura o cinema tem várias influências, de logo manifestando-se a da continuidade da

novela ou do romance tradicionais, o que descobre a arraigada dependência do filme em

relação ao enredo, à história, que de direito pertence à literatura.” ( COUTINHO, 1989, p.

104),

Machado (1992) vai mais longe ao analisar que a aproximação do cinema com a

literatura teve outro motivo, dessa vez de ordem qualitativa:

Para que o cinema deixasse de ser apenas uma diversão barata (...) e se convertesse numa próspera indústria cultural, para que ele pudesse atrair um público novo, mais sofisticado e sólido economicamente, era preciso que fosse capaz de alinhar-se às artes nobres do período: o romance e o teatro oitocentista. (MACHADO, 1992, p. 09)

A considerar o breve passeio pela história da televisão brasileira que empreendemos

até aqui, é possível ajustar o argumento de Machado à aproximação da televisão com o teatro

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e a literatura. Basta lembrar que grande parte dos textos apresentados no formato de teleteatro,

na primeira década da televisão, naquele momento em que se buscava uma televisão “mais

cultural”, eram encenações de textos originais ou adaptados de obras dramatúrgicas e/ou

literárias de Shakespeare, Pirandello, Goethe, Dostoievski, Balzac e Nelson Rodrigues, apenas

para citar alguns exemplos.

Do mesmo modo, na década de 1970, período de reajuste da programação televisiva às

exigências do governo, e em resposta às constantes críticas da classe intelectual, a Rede

Globo promoveu uma sólida reaproximação da teledramaturgia com as produções literárias,

que serviram de fonte para Casos especiais e novelas, em especial as do horário das seis da

tarde. Aliás, no período compreendido entre 1975 e 1982, esse horário foi ocupado

exclusivamente por adaptações de romances da literatura nacional.

Vale ressaltar que até o final daquela década, priorizaram-se obras produzidas dentro

do período conhecido por Romantismo, como Helena (Machado de Assis), Senhora (José de

Alencar), A moreninha (José Manuel de Macedo), e Escrava Isaura (1976). Exceções como O

Feijão e o sonho (Orígenes Lessa) e A Sucessora (Carolina Nabuco), embora inseridas dentro

do Modernismo, mantém alguns elementos de dramas românticos. Tais opções se explicam: o

momento era de priorizar temas da realidade nacional, não necessariamente a realidade do

tempo presente que, em plena ditadura militar, era tabu para a censura. Diante disso, a opção

de buscar tramas centradas em outro período da história do país, atenderia aos interesses da

TV sem ferir o ego do governo. Diz Tânia Pellegrini:

A frequência com que a televisão busca modelos e textos numa certa produção literária do século XIX sugere continuidades entre o romance oitocentista de cunho sentimental e voltado para públicos amplos e os programas de TV baseados nesses textos. Em ambos os casos [...] parece haver o desejo de produzir narrativas capazes de representar, por meio de dramas individuais, a história nacional, o que resulta na curiosa conjunção de história e sentimentalismo, nação e drama doméstico, invenção oitocentista muito vigente na produção ficcional dos veículos voltados para público de massa. (PELLEGRINI, 2003, p.97-98)

Tal leitura torna-se mais pertinente ao constatarmos que a partir de 1980, quando a

abertura política estava em curso e a TV Globo já era campeã de audiência, foram adaptadas

obras com temáticas mais atuais, como As três Marias, de Raquel de Queiroz, que aborda a

independência feminina, e O homem proibido, de Nelson Rodrigues, cuja narrativa gira em

torno de um triângulo amoroso. Por tudo que o nome de Nelson Rodrigues representava, na

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época, essa novela não passou isenta pela censura, mas apesar dos cortes sofridos, foi exibida

até o final.

A exclusividade de se beber na fonte literária para a escrita dos roteiros das novelas

das seis da tarde foi interrompida em 1984. A partir daí viram-se, com mais frequência,

novelas com roteiros originais. A recorrência à literatura, no entanto, voltou a acontecer, ainda

que esporadicamente, durante os últimos 30 anos. O cravo e a rosa (2000) foi livremente

inspirada na peça A megera domada, de Shakespeare, e Ciranda de pedra, adaptada da obra

de Lygia Fagundes Telles, teve uma versão em 1981 e outra em 2008. A recente Cordel

Encantado(2011), escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid, revelou-se um mosaico de

contos da literatura popular. Isso, aliado a uma estética impecável, proporcionada, em parte,

pela finalização em película, constituiu-se num estrondoso sucesso de público e de crítica.

O formato inicialmente chamado de Caso Especial, por sua vez, consistia em

episódios únicos, levados ao ar geralmente uma vez por semana, sendo presença constante na

programação da TV Globo entre 1972 e 1979. A partir de então e até 1987, alternaram-se

períodos de exibições regulares e esporádicas do formato, que em 1988 voltou com o nome de

Quarta Nobre, saindo definitivamente do ar em 1995. Embora esse programa tenha sido

alimentado por muitos roteiros originais, as adaptações de peças de teatro, contos e romances

prevaleceram durante todo o período em que ele foi produzido. Jorge Amado, Mário de

Andrade, Sérgio Porto, João Ubaldo Ribeiro, Jonh Steinbeck e João Cabral de Melo Neto são

alguns dos autores cujas obras serviram de argumento para os episódios.

Na história recente da teledramaturgia global, prevalecem os roteiros originais.

Obras literárias, entretanto, ainda são revisitadas, especialmente para a produção de

minisséries e/ou microsséries, conforme se verá a seguir. Numa conclusão antecipada, no

entanto, podemos afirmar que a literatura esteve presente em boa parte dos momentos em que

a teledramaturgia, a audiência e a crítica estiveram mais afinadas.

1.3.1 Minisséries e microsséries

Na década de 1980, se por um lado a TV Globo acabou por ceder à concorrência e

trazer de volta os programas populares de auditório e jornalísticos sensacionalistas, por outro

lado, na esteira do sucesso alcançado com os já citados Casos Especiais e as Séries

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Brasileiras da década de 1970, ela também inaugurou um novo formato que foi e continua

sendo um diferencial dentro de sua programação ficcional: a minissérie.

Narrativa ficcional disposta em capítulos, a minissérie se diferencia da novela,

inicialmente, por ser menor, com uma extensão que fica em torno de25 a 40 capítulos contra

os mais de 200de uma novela convencional. Em segundo lugar, e justamente por ser concisa,

trata-se de uma obra fechada, o que em televisão aplica-se àquele produto que só vai ao ar

depois de totalmente pronto. Dessa forma, na medida em que impossibilita interferências

ocasionadas pelas preferências da audiência ou inserções de merchandising, práticas

recorrentes nas novelas, esse formato proporciona maior liberdade de criação aos seus

autores.

Há que se considerar, no entanto, vários outros fatores que fazem com que a minissérie

seja uma exceção à estratégia da repetição de que sofre a teledramaturgia e que “se manifesta

por diferentes figuras que vão da reiteração de temas, de estruturas discursivas, de

mecanismos expressivos, às tramas narrativas, aos atores, cenários, ambientes.” (DUARTE,

2004, p. 58). Não obstante ser, na maioria das vezes, adaptações de obras literárias, o que já

lhe garantiria alguma originalidade, esse formato costuma receber investimentos financeiros

impossíveis de serem aplicados em todos os capítulos de uma novela, por exemplo, seja em

virtude de sua extensão, seja pelo ritmo acelerado de produção. Esse tratamento diferenciado,

aliado às demais questões já mencionadas, garantem às minisséries “nuanças estéticas sutis

impossíveis de manter no ritmo industrial da novela”. (BALOGH, 2005, p. 195)

A pesquisadora destaca o cuidado dispensado à produção de uma minissérie, que vai

da pesquisa à preparação dos atores, da escolha de cenários e figurinos à iluminação e

fotografia, além da finalização, que de alguns anos para cá é feita sempre em película. Não se

pode deixar de referir sobre o público presumido de tais programas, para o que recorremos a

Balogh:

A posição das minisséries no mosaico de programação, em geral após as dez horas da noite, dirige os processos de recepção para um público mais seleto e mais exigente do que o das novelas prévias do mosaico. Todos esses fatores acentuam o esmero das minisséries em relação aos demais formatos, tanto é assim que elas constituem em geral lacrème de lacréme da programação das emissoras e, em consequência, os formatos mais disputados pelos profissionais da área. (BALOGH, 2005, p.194)

Sendo disputados pelos profissionais da área, é natural que as minisséries sejam

assinadas por autores e diretores experientes e que já trazem na bagagem outros sucessos de

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público e crítica, em televisão e/ou em cinema. Aliás, a recorrente aproximação entre TV e

cinema de que fala Yvana Fechine e Alexandre Figueiroa (2010) no artigo Cinema e televisão

no contexto da transmediação, de modo geral,

tem ocorrido de: minissérie remontadas como filmes (o filme é uma versão mais curta da minissérie), filmes remontados como minisséries (a minissérie é uma versão maior do filme), filmes que se desdobram em seriados (o filme funciona como piloto ou inspira novos episódios) ou vice-versa. (FECHINE e FIGUEIRÔA, 2010, p.285)

Os produtos mais consistentes resultantes desse diálogo, no entanto, parecem ser as

minisséries, graças mais uma vez a seu caráter de obra fechada, o que impede o desgaste que

quase sempre acomete os seriados com seus múltiplos episódios. Da parceria entre minissérie

e cinema, podemos destacar O auto da compadecida, dirigido por Guel Arraes e exibido

primeiro na TV, em 1999, e um ano depois nas salas de cinema. Outro exemplo, desta vez

fazendo o caminho inverso, é o filme Gonzaga – de pai para filho, exibidos no cinema, em

2012, e logo em seguida, no final do mesmo ano, em forma de minissérie, na TV.

Vale ressaltar que tais produtos, por possuírem geralmente apenas quatro capítulos,

são versões bem menores da minissérie, motivo pelo qual vem sendo com mais frequência

nomeadas como microsséries. Embora esse conceito prescinda de melhor definição, vê-se

com certa frequência entrarem nessa classificação, não apenas as obras que viraram filmes ou

vice-versa, como também aquelas produzidas exclusivamente para TV, exibidos em no

máximo uma semana.12. Tal opção, cada vez mais recorrente, atende tanto a questões

financeiras quanto à preferência do público por obras menores, em função do ritmo acelerado

em que vive o homem contemporâneo: é mais fácil “segurar” o público em frente à TV,

durante uma semana, do que por um ou dois meses.

A redução no número de episódios, no entanto, em nada diminui a qualidade estética

das obras, podendo até mesmo aprimorá-las, conforme veremos ao longo desta tese, já que as

duas obras a serem analisadas tem extensão de cinco e oito capítulos.

12 Em nossa pesquisa, não encontramos uma fonte que indicasse com precisão o número limite de capítulos para que uma obra seja classificada como microssérie e a partir do qual entraria na categoria de minissérie. Ballogh (2004), ao falar sobre a diferença entre os dois formatos, cita como exemplo de microssérie O auto da compadecida, com seus quatro capítulos, que foi a obra que marcou o início dessa proposta de programas ficcionais seriados menores. Já Fechine e Figueiroa (2010) usam o termo minissérie para se referir aos filmes que são convertidas em programa de televisão, geralmente em apenas três capítulos. No site Memória Globo, por sua vez, encontramos a definição de micro para O auto... e minissérie para Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino; ao passo que nas teses e dissertações que consultamos, alterna-se o uso de um e outro termo em referência a estas duas obras. Diante da falta de consenso,optamos por adotar a definição de minissérie, que é a utilizada pela emissora que exibiu os programas.

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1.4. A ORQUESTRA BARROCA DE LUIZ FERNANDO CARVALHO

A imagem inicial, em tela inteira, é de um dorso masculino, nu, negro, suado, e de

braços que se movimentam, ressaltando os músculos volumosos. Para quem vem

acompanhando os capítulos da narrativa da qual o fragmento faz parte, ambientada em

fazendas de cacau da Bahia, em que diariamente se veem peões em atividades braçais, parece

não haver dúvida de que se trata de mais uma cena de trabalho árduo. Há uma novidade,

entretanto, a trilha sonora, geralmente composta de canções brasileiras de temática regional, é

aqui substituída por uma valsa de Strauss.

Lentamente, a câmara se abre para desconstruir a primeira impressão: nem peão, nem

trabalho rural, trata-se de um homem exercitando-se em um aparelho de musculação. O

cenário é, pois, uma academia de ginástica, por onde entra o personagem Damião, o jagunço

vivido pelo ator Jackson Antunes, em tudo destoando do ambiente: bigodes fartos, cabeleira

parcialmente escondida sob um chapéu de caubói, camisa cuidadosamente abotoada e

arrumada dentro de calças jeans desbotadas. O cinto e as botas de couro dão o acabamento.

Sempre em câmara lenta e ao som de Strauss, Damião anda pelo ambiente, causando o

evidente contraste entre sua figura e a dos usuários da academia. A trilha sonora, por sua vez,

destoa tanto do personagem, quanto do cenário, e reforça o estranhamento que a cena

provoca. Não por ser exótica, mas por ser poética, porque em todo o seu estranhamento, a

valsa de Strauss e o ritmo lento do movimento da cena conferem poesia ao quadro.

Dando sequência à ação, Damião para em frente a Eliana, a moça fina interpretada por

Patrícia Pillar, por quem ele deixou a esposa e o emprego de peão para ir para São Paulo,

onde está agora. A câmara vai do rosto rústico, queimado de sol, e o olhar sério, descontente e

decidido de Damião para os olhos azuis no rosto branco de Eliana, iluminado por um sorriso

largo e apaixonado, mas que vai murchando aos poucos, à medida que ela lê o semblante do

amante. Abruptamente, a música é suspensa. Sem dizer nada, Damião dá as costas a Eliana e

vai saindo da academia. Agora são seus passos que ressoam pesados no ambiente. Eliana

levanta-se e vai atrás dele.

Trata-se de uma cena da novela Renascer, (Globo, 1993), escrita por Benedito Ruy

Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Apenas mais uma entre centenas de outras

cenas que compõem essa trama de 213 capítulos, e que chama a atenção do telespectador mais

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atento pelo trabalho minucioso com que foi construída, arquitetada em seus mínimos detalhes,

porque cada detalhe tem uma função na construção do sentido. Não me aprofundarei na

análise da cena, porque este não é o objetivo. O exemplo serve apenas para introduzir algumas

palavras sobre um diretor que mesmo em se tratando de novelas, tradicionalmente o programa

mais popular da TV, nunca se contentou em apenas contar uma história, mas que sempre

procurou recheá-la de – pelo menos algumas – cenas elaboradas com o máximo de requinte

estético possível, considerando as limitações que o ritmo intenso de produção impõe ao

processo de criação dentro desse formato.

Foi com cenas como essa que a novela Renascer, assim como os capítulos iniciais de

O rei do Gado (1996) e Esperança (2002), folhetins posteriores em que se repete a dupla

formada por Ruy Barbosa e Carvalho, chegou a resultados ao mesmo tempo acessíveis e

sofisticados, cumprindo com êxito o objetivo de ser atraente às grandes massas – os índices de

audiência superaram a média esperada para o horário – porém indo além, a ponto de agradar

também a crítica especializada.

Retomando a observação de Fiorin (2008b), segundo a qual a identificação do sujeito

com o objeto artístico pode se dar pelo conteúdo ou pela expressão; considerando ainda a

observação de Duarte de que em meio às atividades do cotidiano o telespectador não costuma

estar disposto a programas que “exigem sua total atenção, o que é incompatível com o

ambiente familiar” (DUARTE, 2004, p. 58); e por fim, levando em conta o interesse que as

narrativas de temática rural escritas por Ruy Barbosa sempre despertaram no público desde

Pantanal, parece-nos pertinente supor que o conteúdo de Renascer tenha sido, em princípio, o

responsável maior pela empatia com o grande público.

O efeito sensorial causado pelo plano da expressão, no entanto, certamente acrescenta

um algo a mais a todos quantos assistirem às cenas, pois ainda que parte dos telespectadores

não consiga identificar ou explicar o que seja esse algo a mais, a beleza natural ressaltada pelo

modo de olhar da câmara fala por si mesma. Já o leitor criticamente consciente, que sabe que

há um arquiteto por trás de cada quadro, de cada janela aberta, geralmente identifica-se,

primeiro, com as escolhas expressivas, com a linguagem utilizada pelo diretor. Pelo menos é o

que se depreende dessa fala da pesquisadora Ivana Bentes, durante entrevista com Carvalho,

por ocasião do lançamento do filme Lavoura Arcaica (2001): “... Renascer dá até uma

legitimidade mesma, digamos, artística para uma linguagem de televisão na hora em que

apareceu, que foi muito importante...” (BENTES, 2002, p. 30). Em outro momento da

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conversa, ela afirma se lembrar de todos os primeiros capítulos13 da novela, tão forte lhe ficou

a impressão causada especialmente pela fotografia de Walter Carvalho: “tem alguns

elementos ali que eu acho que já estavam marcados e que vão reaparecer no [filme]

Lavoura...” (Idem, p. 29)

Tanto a novela quanto o filme mencionados são, na verdade, respostas aos longos anos

de estudos e experiências com a linguagem cinematográfica, empreendidos pelo diretor: Com

apenas um curta e um longa-metragem em sua bagagem cinematográfica, pode-se dizer que

Carvalho se formou em cinema para atuar em televisão, já que em seu currículo, até o

momento, predominam as produções para TV: um documentário, quatro novelas, um especial

musical, quatro casos especiais, cinco minisséries, duas séries e quadros para o Fantástico,

citando apenas as atuações como diretor geral14. Daí, talvez, o fato de muitas vezes a

linguagem que ele utiliza em seus trabalhos televisivos ter sido comparada (ou confundida)

com a linguagem cinematográfica, o que, aliás, ele contesta:

No intuito de elogiar, as pessoas falam que meu trabalho na televisão é cinema, mas eu discordo. Agradeço o elogio, mas discordo. Cinema para mim é uma coisa e televisão é outra, e a diferença é uma questão de linguagem. Em nenhum de meus trabalhos para TV, tive o desejo de assistir aos episódios emendados uns aos outros, partes com partes, como se formassem um filme, porque sabia, de antemão, que não constituiriam um filme. Pelo menos um “filme” que me interessaria realizar. (CARVALHO, 2009, s/p)

O que Carvalho sempre defende – e a seu modo, pratica – é um respeito maior com o

telespectador, uma nova “missão” para a TV, que esteja “diretamente ligada à educação, a

uma reeducação a partir das imagens e dos conteúdos.” (CARVALHO, 2002, p. 31). Esse

compromisso maior com o aspecto criativo da obra, que lhe confere o status de diretor autoral,

é, sem dúvida, herança do Cinema Novo, - pelo qual ele confessa ter sido fortemente

influenciado, especialmente por Glauber Rocha, representante maior do movimento que

revolucionou o cinema brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. “O Cinema Novo foi a versão 13Nota-se que os primeiros capítulos da novela, que retratam a “primeira fase” da história, ou seja, uma espécie de flash-back do protagonista enquanto jovem, apresentam uma composição estética irrepreensível cena a cena. Na medida em que a narrativa segue, naturalmente, nem todas as cenas são tão rigorosamente bem cuidadas. Ainda assim, ao longo da novela, vez por outra é possível se deparar com sequências de inestimável qualidade estética. 14 As obras assinadas pelo diretor são: o documentário Que teus olhos sejam atendidos (1998/GNT); as novelas: Renascer, Irmãos coragem, O rei do gado e Esperança (1993, 1995, 1996, 2002/Globo); o especial Chitãozinho e Xororó (1990/Globo); os casos especiais: Os homens querem paz, Uma mulher vestida de sol, A farsa da boa preguiça e Alexandre e outros heróis (1991, 1994, 1995, 2013/ Globo); as minisséries Os maias ( 2001/Globo), Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino e Capitu (2005, 2007,2008/Globo); e as séries Afinal, o que querem as mulheres? (2010/Globo) e Suburbia (2012). Uma quinta novela assinada pelo diretor, Meu pedacinho de chão, está sendo exibida neste início de 2014.

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brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da

produção, em nome da vida, da atualidade e da criação.” (XAVIER, 2001, p.57)

Essa política de autor, ainda segundo Ismail Xavier, é resultado do diálogo

empreendido pelo Cinema Novo, e depois pelo Cinema Marginal, com um movimento

empreendido por realizadores de diferentes partes do mundo - Welles, Antonioni, Pasolini,

Rossi, Resnais, Cassavetes, entre outros - que optaram por se opor ao cinema clássico e

predominantemente industrial, pelo exercício livre da autoria, pela criação de novos estilos, de

forma a revitalizar a cultura cinematográfica: “foram cineastas cuja forma de exercer a sua

consciência da técnica, da forma e dos modos de produção ensejou um exercício da autoria

que Pier Paolo Pasolini sintetizou muito bem em sua noção do moderno como um ‘cinema de

poesia’’’ (XAVIER, 2001, p. 14). É, portanto, a experiência e a visão estética desses

revolucionários da linguagem do cinema que estão na base da formação de Luiz Fernando

Carvalho, tanto pelo contato através do Cinema Novo, quanto pelo contato direto com a

filmografia dos grandes mestres. “Sem dúvida nenhuma, eu tinha consciência de que estava

me alimentando para um dia conseguir me expressar”, diz ele. (CARVALHO, 2002, p. 22)

A estreia oficial em televisão foi como assistente de direção na minissérie Grande

Sertão: Veredas (1985). Antes disso, porém, a amizade com o também diretor de TV

Maurício Farias levou-o a fazer alguns estágios em cinema: um pouco de tudo, como ele

mesmo conta (2002, p. 15), incluindo aí técnica de som, assistente de montagem e assistente

de direção. Ao lado dessas experiências iniciais, ele agregou imersões nas melhores fontes de

teoria e prática cinematográfica, com Sergei Eisenstein, Tziga Vertov, André Bazin, Luis

Buñuel, Pasolini, Luchino Visconti e muitos outros. A disciplina História da Arte estudada

durante o curso inconcluso de Arquitetura foi decisiva em sua formação, e a Faculdade de

Letras contribuiu para estreitar relações com a literatura e com a escrita de roteiros. Aliado a

tudo isso, a dedicação que o fazia, já em Grande Sertão..., debruçar-se sobre cada cena com o

esmero de um artesão:

Existiam trinta cenas no capítulo e, entre elas, duas que me eram dadas. Eu estudava aquilo, virava noites estudando aquelas duas ceninhas. Para mim aquelas duas cenas era a coisa mais importante do mundo, como exercício da gramática narrativa e de tudo, e eu me debruçava sobre as duas ceninhas talvez até com um entusiasmo exagerado. Mas eu era um jovem de 24 anos, sedento, então neste meu ímpeto cabia virar a noite relendo as teorias de Vertov para aplicar na cena do dia seguinte, era o alimento que eu tinha. (CARVALHO, 2002, p. 10)

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Pelo pouco que já foi dito aqui sobre o diretor, não é difícil entender de onde vem a

singularidade presente na sua obra, mesmo nas mais populares realizações que são as novelas.

Pode-se dizer que Carvalho sempre procurou e conseguiu fugir da “massa indiferenciada”

veiculada pela TV, de que fala Machado (1992) e enquadra-se, guardadas as particularidades

da linguagem audiovisual, na afirmação de Fiorin sobre os escritores: “Quem escreve um

texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de forma que, nele,

importa não só o que se diz, mas também o modo como se diz.” (FIORIN, 2008b, p.57) É

assim que Carvalho se comporta nos bastidores da televisão: um diretor que não se contenta

em apenas contar uma história, mas que procura recriá-la através das imagens, dos sons, do

ritmo, e do diálogo com outras formas de expressão artística.

Falar em singularidade remete, inevitavelmente, à questão do estilo, que é “o conjunto

global de traços recorrentes do plano do conteúdo (formas discursivas) e do plano da

expressão (formas textuais), que produzem um efeito de sentido de identidade” (FIORIN,

2008b, p. 96). Portanto, quando Ivana Bentes diz que alguns elementos presentes em

Renascer irão reaparecer em Lavoura Arcaica, ela não está falando de outra coisa senão do

estilo que Luiz Fernando Carvalho vem imprimindo à sua obra. Bentes se referia a elementos

expressivos da fotografia aplicados a outro ponto que une as duas obras: a temática rural, que

pertence ao plano do conteúdo.

A terra, aliás, e todas as questões ligadas a ela; a terra enquanto símbolo de mãe, e

enquanto sinônimo de brasilidade, é, assumidamente, “o elemento mais primordial” na obra

desse diretor, especialmente a partir de Renascer, a primeira direção geral de uma novela, que

foi também seu primeiro trabalho após o período em que esteve no Nordeste em busca de

lembranças da mãe de quem ficou órfão aos quatro anos de idade. Desse mergulho na região,

Carvalho conheceu e internalizou elementos da realidade e da cultura brasileira que vieram à

tona em praticamente todos os trabalhos posteriores, especialmente nos casos especiais – A

farsa da boa preguiça, Uma mulher vestida de sol – e mais recentemente nas minisséries a

partir de Hoje é dia de Maria. Mesmo na recente série Suburbia, cuja temática é

essencialmente urbana, a terra está presente nas cenas iniciais gravadas no sertão das

carvoeiras de Minas Gerais, e a cultura popular emerge, em plena favela do Rio de Janeiro,

num cortejo religioso carregado de sons e imagens do interior do país.

A terra e tudo o que está ligado a ela, portanto, fornece ao mesmo tempo os elementos

dos planos do conteúdo e da expressão, já que este se ajusta àquele pelas cores, pelos sons,

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pela luz, e por tudo, enfim. É pela linguagem, portanto, que o estilo de Luiz Fernando

Carvalho se faz notar, o que confirma o pensamento de Norma Discini, que, relendo a

Retórica de Aristóteles, diz:

Aristóteles (384 a.C- 322 a.C) pode ser ponto de partida e de chegada para novas reflexões sobre o estilo, que visem não apenas ao que o texto diz. Considerando, por exemplo, as partes componentes do sistema retórico, a inventio (o conteúdo, de onde se extraem provas e argumentos relacionados ao tema); a dispositio (a maneira de organizar ou planejar as diferentes partes do discurso); a elocutio (as escolhas da expressão que se adequarão ao conteúdo) e a actio (a execução ou atualização do discurso, que supõe timbre de voz e entonação, pausa e ritmo) sabemos que é na elocutio que se consideram instaladas as bases do estilo. (DISCINI, 2003, p.16-17)

Não é difícil, portanto, encontrar em Lavoura Arcaica, o inconfundível jogo de luz e

sombras da fotografia de Walter Carvalho utilizada em Renascer, que faz com que

prevaleçam os tons em amarelo e preto, e que se repete em praticamente todas as obras que

vieram depois. A imagem, ora excessivamente focada, ora totalmente desfocada e certos

enquadramentos e movimentos de câmara que produzem um desvelamento gradual, como a

cena citada no início deste texto, são também opções recorrentes na obra de Carvalho. Há,

enfim, uma recorrência do olhar que vê – e mostra – a cena, assim como há um cuidadoso

trabalho com a própria mise em scène, essa palavra de sentido até certo ponto indefinido,

como sugere Aumont, mas que ele resume como sendo “a ‘composição dramática’, a maneira

de conjugar, de declinar as figuras no espaço para atingir a expressividade máxima”

(AUMONT, 2004, p. 162), e onde entram então todos os elementos constitutivos da cena: o

figurino, o cenário, os objetos de cena, a luz, etc.

Não podemos deixar de mencionar também a trilha sonora, que é sempre marcante nas

obras do diretor, seja pela originalidade e, portanto, pela adequação dos sons ao universo da

obra (Lavoura Arcaica,A Pedra do Reino, Hoje é dia de Maria), seja pelo bucolismo causado

pelo som característico do vinil em canções antigas de Roberto Carlos (Afinal, o que querem

as mulheres e Suburbia), ou pelas inserções de sons e ritmos da cultura popular (Renascer,

Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino, Suburbia, entre outras). E, evidentemente, não

podemos deixar de mencionar, ainda, todo o hibridismo de culturas, linguagens e épocas que

já rendeu ao seu estilo a pertinente definição de barroco, como nessa análise de Ilana

Feldman sobre A Pedra do Reino:

Na opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é dia deMaria como, mais radicalmente, em A Pedra do Reino, a encenação contempla, incorpora e devora, almejando totalizar todas as formas de manifestação

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artística, que, ao gosto do barroco, cujo sentido literal é “acumulação”, une e mistura cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura, romance, odisséia, sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu, papangus e novelas de cavalaria. Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da nacionalidade, a mão barroca e o “estilo régio” de Luiz Fernando Carvalho orquestram excessos, intensidades, contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e diversos registros e linguagens. (FELDMAN, 2007, s/p)

Feldman está certa ao dizer que a incorporação de diferentes linguagens estéticas é

mais evidente em Hoje é dia de Maria e, principalmente, A Pedra do Reino – à qual Capitu se

junta no ano seguinte. Entretanto, muito antes da realização dessas duas obras, já nos

primeiros trabalhos que levam a assinatura de Luiz Fernando Carvalho, é possível perceber

um flerte recorrente com outras artes, em especial o teatro, a pintura, a literatura (em prosa,

em poesia e em cordel) e, sobretudo, o cinema. A origem da intimidade com o cinema,

conforme já foi dito, está na raiz da formação profissional. O mesmo se pode dizer da pintura,

tema central da História da Arte, disciplina preferida e uma das poucas que ele concluiu no

curso de Arquitetura. Quanto à dramaturgia, ele confessa “uma grande paixão pelo teatro

como elemento mítico [...] como negação do naturalismo...” (CARVALHO, 2002, p. 52) E a

literatura é a arte que está sempre na raiz de seus trabalhos, conforme ele mesmo diz.

Já foi dito aqui mesmo neste capítulo que a linguagem televisual, em sua origem, é um

híbrido de outras linguagens, especialmente as do rádio, do cinema, do teatro e da literatura.

Jacques Aumont (2004) acrescenta ainda a pintura, de quem o cinema (e, por extensão, a

televisão) teria herdado não só luz e cores, como a própria noção de quadro, enquadramento,

limitação do que vai ser apresentado. Portanto, apenas dizer que Luiz Fernando Carvalho

dialoga com outras artes pareceria lugar comum. Acontece que o diálogo que ele empreende

com tais linguagens supera o que seria uma simples questão de forma embutida no conceito

de hibridismo enquanto origem da linguagem televisual. O que se vê em suas obras é um

diálogo através do qual se busca a expressividade mesma de cada linguagem, expressividade

esta que atinge o seu máximo a partir de Hoje é dia de Maria, chegando aos “excessos e

intensidades” de A Pedra do Reino – mencionados por Feldman – e Capitu, a ponto de causar

algum estranhamento em parte do público.

A aproximação com outros gêneros, entretanto, já se faz presente em obras do início

da carreira do diretor. É possível encontrar traços fortemente teatrais nos casos especiais Os

homens querem paz (1991), Uma mulher vestida de sol (1994) e A farsa da boa preguiça

(1995). A literatura, não obstante ser a fonte para boa parte de sua obra –as exceções talvez

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sejam as novelas, Os homens querem paz e Suburbia, cujos roteiros são originais – é também

elemento intrínseco a muitas delas, especialmente no gênero cordel, como em Os homens

querem paz, A farsa da boa preguiça, Hoje é dia de Maria e A pedra do reino, apenas para

citar algumas.

A obra de Cândido Portinari foi inspiração para a concepção visual de Hoje é dia de

Maria, onde a presença da pintura, conforme abordamos no artigo As cores de um sertão em

preto e branco, “especialmente no céu do cenário da narrativa é tão forte que, misturada a

outros objetos de cena, ao figurino e à própria atuação dos personagens, deixa a nítida

impressão de que cada cena foi construída com o esmero de quem pinta um quadro à mão.”

(PEREIRA, 2009, p.39-40) Também em Lavoura Arcaica, a presença de elementos pictóricos

foi bastante ressaltada pela crítica, e o próprio diretor admite influência de “toda a pintura

tenebrista espanhola [...] com uma predominância dos fundos negros e a presença dos

dourados, que também dialoga com Rembrandt. As figuras alongadas de El Greco entram por

Caravaggio, Tziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne...” (CARVALHO,

2002,p.101)

Ao falar das obras assinadas por Carvalho – ou por qualquer outro diretor de cinema e

TV – não podemos nos esquecer de que estamos falando de obras audiovisuais, cuja

elaboração é coletiva e, portanto, recebe contribuição de diferentes criadores. Mas no caso

desse diretor especificamente, pelo estatuto de autoral a que já nos referimos, todas as etapas

de criação passam pelo seu crivo, e seu método de trabalho envolve uma minuciosa busca

pela sintonia perfeita entre os membros da equipe, que quase sempre é a mesma em diferentes

trabalhos. E a busca de sintonia passa invariavelmente pela imersão de seus colaboradores –

dos atores à equipe técnica – no universo da obra a ser criada, às vezes com uma antecedência

quase exagerada.

A luz e o enquadramento de Lavoura Arcaica, por exemplo, foram conversados com

Walter Carvalho durante cerca de seis meses, conforme conta o diretor. Para o mesmo filme,

o elenco literalmente “morou” na fazenda que serviu de locação durante três meses antes das

filmagens, a fim de incorporar os respectivos personagens, compartilhando espaços da casa e

desenvolvendo as atividades inerentes a cada um, como preparar e plantar a terra, ordenhar

ovelhas, etc. A equipe de produção de Hoje é dia de Maria foi submetida a palestras sobre a

obra de Portinari, o mesmo acontecendo com a equipe de Capitu em relação a Dom

Casmurro, de Machado de Assis. Já para A pedra do Reino, Carvalho selecionou todo o

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elenco entres atores nordestinos, muitos deles moradores locais, por trazerem internalizados o

espaço e a cultura representados por Ariano Suassuna, mas também levou sua equipe técnica

para interagir com o reino de D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna.

Enfim, o que fica dessa breve imersão no método de trabalho e na obra de Luiz

Fernando Carvalho, é que o título de maestro lhe cai bem, pois é como maestro que ele

comanda a orquestra em que transforma cada obra que é oferecida ao público. É o que diz

Walter Carvalho15, cujas palavras pegamos de empréstimo para encerrar este capítulo:

O cinema do Luiz é um cinema de orquestra, é um cinema de um cara que, de posse do seu roteiro, que seria a partitura, quando ele levanta a batuta, um conjunto de coisas, de músicos, de cantores, de cores, de cordas, de metais, se juntam num ritmo, numa velocidade, numa cor, num compasso, num diapasão. (CARVALHO, 2007, s/p)

15 Extraídas do Making-off (“Nosso diário”) de Lavoura Arcaica.

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II - NAS TRILHAS DAS ABERTURAS: UM FLERTE COM O TELESPECTADOR

Decidimos começar nosso trabalho pela análise das aberturas das minisséries, por

entender que elas se constituem em elemento de triagem do enunciatário, na medida em que

procuram sintetizar, metafórica ou metonimicamente, o conteúdo da obra e, às vezes, também

alguns elementos de expressão. Além disso, no caso de programas seriados como as novelas e

as minisséries, essa peça é usada para marcar os inícios e finais dos episódios nos dias em que

eles são exibidos, e um pequeno fragmento delas – a vinheta – marca o final e início dos

blocos de cada episódio. Com isso, as imagens e a trilha sonora que compõem a abertura

desses programas acabam por se transformar em sua identidade.

Durante nossa pesquisa, encontramos poucos estudos que analisam o papel das

aberturas – e respectivas trilhas sonoras – dos programas audiovisuais na interação destes com

os enunciatários presumidos. Ainda de acordo com as fontes pesquisadas, percebemos que

não há consenso sobre o termo utilizado para designar essa parte da obra. Em roteiros de

cinema, eventualmente se encontra o termo “trilha de abertura”, numa referência à

sincretização da trilha sonora com as imagens; em textos sobre televisão, ora encontramos

“vinheta”, ora “abertura”, com o predomínio deste. Considerando que o Dicionário Técnico

de TV (ROITER e TRESSE, 1995, p. 124) não traz a definição para essa parte introdutória dos

programas, e define vinheta como aquelas chamadas curtas que marcam o final e o reinício

dos blocos de cada programa, utilizaremos o termo abertura, nesta tese.

É importante destacar que nem sempre os programas seriados começam com a

apresentação da abertura. O mais comum é a exibição das primeiras cenas da narrativa e, só

após isso, a apresentação da composição de abertura, que quase sempre é o momento de

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também apresentar o elenco e a autoria. No caso das minisséries em estudo, entretanto, tanto o

primeiro quanto os demais episódios foram precedidos pela abertura, outra razão pela qual

começamos nossa análise por elas. Vale ressaltar, ainda, que nessas obras, como em todas as

narrativas televisuais, as aberturas não são as responsáveis por estabelecer o primeiro contato

do enunciatário com o enunciado proposto. É prática corriqueira, na televisão, a antecipação

de fragmentos das narrativas durante algumas semanas antes da estreia. As cenas, exibidas

nos intervalos da programação, naturalmente são escolhidas de forma a seduzir o espectador e

despertar nele o desejo de assistir ao programa.

Antes de iniciar a análise das aberturas de HDM e APR, no entanto, convém explorar

um pouco mais o conceito de sincretismo, por ser ele primordialmente importante em nossa

tese. Conforme já mencionado na introdução deste trabalho, semiótica sincrética refere-se às

manifestações que acionam duas ou mais linguagens. Jean-Marie Floch (1986), com base nas

postulações hjelmslevianas, diz que “as semióticas sincréticas constituem seu plano de

expressão – e mais precisamente a substância16 do seu plano de expressão – com elementos

que dependem de várias semióticas heterogêneas” (FLOCH, 1986, p. 218). Sobre o assunto,

diz Lucia Teixeira:

Nos textos sincréticos, a particularidade matérica das linguagens em jogo se submete a uma força enunciativa coesiva, que aglutina as materialidades significantes em uma nova linguagem. É por isso que se fala em linguagem cinematográfica, linguagem audiovisual, linguagem teatral, etc. (TEIXEIRA, 2009, p. 58)

Ao falar em força coesiva, Teixeira reafirma a ideia de que o sincretismo de

linguagens é resultado de um mecanismo de enunciação em que um conteúdo se manifesta

por diferentes substâncias da expressão. Dessa maneira, na linguagem audiovisual, por

exemplo, os diferentes sons (música, vozes, ruídos, sons da natureza, etc.) e imagens (atores

em movimento, gestos, desenhos, cores, luzes) se mesclam e se complementam na construção

de um conteúdo. Assim, uma música (ou canção) ouvida isoladamente dificilmente será

portadora do mesmo discurso de quando ouvida como elemento de composição de uma cena

de cinema ou TV. Dessa maneira, ainda que a sincretização implique superposição de

16O conceito hjelmslevianode substância está ligado ao de forma, ou mais precisamente, a substância é criada pela forma. Assim, por exemplo, na semiótica verbal, a forma é dada pelos traços fônicos e suas regras combinatórias, enquanto a substância são os sons; já na semiótica visual, a forma é constituída de traços eidéticos, cromáticos e topológicos, e a substância gerada são as imagens.

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conteúdos, o seu resultado será a construção de um novo e único conteúdo. É o que acontece,

por exemplo, quando uma canção é escolhida em função da aproximação que o conteúdo de

sua letra tem com a ação narrada, ou mesmo quando a imagem narra uma ação e a música

indica estados psicológicos. Sobre isso, Fiorin (2009b) diz que

A manifestação do sincretismo pode ser idêntica à manifestação de todos os conteúdos ao mesmo tempo e, por conseguinte, tem-se uma fusão. Pode ocorrer, no entanto, que certos conteúdos sejam manifestados por uma determinada linguagem e não por outra. Por exemplo, a música no cinema, parece servir para manifestar estados patêmicos ou para representar uma personagem, mas não para narrar ações pragmáticas. Temos, pois, uma implicação. Nesses casos, é preciso definir os papéis e os estatutos de cada uma das diferentes semióticas e, ao mesmo tempo, as regras de manifestação dos conteúdos por cada uma delas. (FIORIN, 2009b, p. 35)

Sendo assim, é indiscutível a importância de se levar em conta, em nosso estudo, o

caráter sincrético das obras pesquisadas. Nas análises que passamos a empreender daqui por

diante, se não levaremos em conta todas as particularidades das obras, dada a extensão do

recorte e a riqueza de elementos utilizados na criação, procuraremos privilegiar elementos dos

planos visuais e sonoros capazes de, pelo menos em parte, esclarecer o lugar das diversas

linguagens presentes nos objetos estudados.

Em se tratando das aberturas, se a linguagem da televisão, sincrética por natureza,

pode aglutinar linguagens visuais diversas (fotografias, imagens em movimento, luzes, cores,

letreiros) e mais de uma linguagem sonora (música, vozes, sons, ruídos), as aberturas dos

programas, pelo aspecto sonoro, quase sempre envolvem apenas a música. Daí que, se a

abertura como um todo imprime identidade ao programa, a trilha sonora que a compõe,

devido às repetições diárias, torna-se sua principal referência a ponto de, isoladamente, ser

capaz de remeter o telespectador ao programa de que faz parte. Geralmente escolhida entre

obras recém-lançadas, não é incomum que os temas de abertura de novelas e outros

programas televisivos tornem-se sucesso da noite para o dia como carros-chefes nos shows de

seus intérpretes e hits constantes nas rádios, em programas de TV e, consequentemente, na

boca do povo. Outra prática bastante comum é a retomada de sucessos de épocas passadas,

regravadas ou recriadas por outros artistas. E há, ainda, os raros casos em que a trilha sonora é

composta originalmente para atender à obra em questão. É neles que as minisséries aqui

estudadas se encaixam.

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A Pedra do Reino17 tem toda a sua concepção musical inédita, assinada por Marco

Antônio Guimarães, compositor do grupo instrumental mineiro Uakti; já em Hoje é dia de

Maria, o responsável pela trilha sonora é Tim Rescala que, além de composições inéditas, fez

novos arranjos para canções de Villa-Lobos e para obras de Guerra Peixe, Francisco Mignone,

Alceu Boquino, entre outros18. Uma pequena amostra dessa compilação/recriação de músicas

populares e eruditas é que compõe a abertura da minissérie, conforme veremos a seguir.

Pelo aspecto visual, a abertura da primeira jornada de HDM é assinada por César

Coelho, Raimundo Rodrigues, Alexandre Romano, André Holzmeister, Marcelo Max Leal e

Patrick Raynaud; e pela segunda respondem Hans Donner, Alexandre Pit Ribeiro e Alexandre

Romano. Já a concepção visual da abertura de APR leva a assinatura de Lobo e da agência de

designer Vetor Zero, o que naturalmente subentende outros criadores não nomeados.

2.1 A CORTINA SE ABRE

A primeira imagem 19que se tem da abertura de Hoje é dia de Maria – primeira

jornada – é de uma cortina que sobe, abrindo-se para um palco onde desenhos animados

simulando marionetes se movimentam. Em primeiro plano, uma árvore, de cujo galho pende

um balanço onde uma menina se diverte; ao fundo, um casebre de adobe à vista, emoldurado 17A partir deste capítulo, eventualmente utilizaremos as abreviações HDM e APR, para denominar Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino, respectivamente. 18Informação disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-237354,00.html. Acesso em 05/01/2012

19 Todas as imagens utilizadas nesta tese foram capturadas, pela autora, dos DVDs das minisséries analisadas.

Figura 1 – Imagem inicial: cortina artesanal Figura 2 – Cortina se abrindo

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por um céu amarelado e pequenas nuvens brancas; e no meio, numa estrada que se insinua

entre o verde e as flores que enfeitam as duas margens, um cavaleiro segue caminho,

afastando-se da casinha. No plano sonoro, um suave arranjo musical deixa entrever por entre

as notas a melodia de uma antiga cantiga - Sapo cururu - do folclore brasileiro.

Como se pode depreender das figuras 1 e 2, a cortina que se abre no início da abertura

de HDM não é uma cortina qualquer, mas um trabalho artesanal, minuciosamente enfeitado

com babados, renda e bordado, imagem que remete à decoração de um quarto de criança ou às

avós sentadas em cadeiras de balanço, às voltas com costuras e bordados, enquanto contam

histórias para os netos. O estilo artesanal da cortina que se abre continua no cenário que surge

por trás dela, todo ele desenhado sobre tecidos: um floral para a terra, outro liso para o céu, no

qual se podem divisar as fibras abertas, como nos tecidos próprios para bordados, e pequenos

recortes de renda formando as nuvens.

Do colorido da cena, pode-se dizer que corresponde àquele esperado para uma

paisagem campestre: cores variadas nas flores (algumas com traços de bordado), verde para o

capim e folhas de arbustos, branco para as nuvens e um tom amarelado para a estrada de terra.

O amarelo do céu em lugar do azul, que é a cor mais comum para esse elemento, não chega a

surpreender: é uma das muitas cores presentes em representações – sobretudo as pictóricas –

do sertão, como referência ao sol forte que na maior parte do tempo assola essa região. É o

amarelo, aliás, a cor predominante na abertura.

A primeira impressão a que o telespectador é remetido é a de um espetáculo que está

para ser encenado. E ainda que os detalhes artesanais do plano de expressão usados na

organização do palco, nessa cena de abertura, passem despercebidos, não há dúvida de que o

espaço figurativizado para a construção da narrativa, a essa altura, já tenha sido identificado

por quem está diante da tela da TV: trata-se de uma representação do sertão. É provável que

um grande número de pessoas que assistiram ou assistirão à minissérie não conheça

pessoalmente essa “zona pouco povoada do interior do país, (...) mais seca do que a caatinga,

onde a criação de gado prevalece sobre a agricultura, e onde perduram tradições e costumes

antigos.” (FERREIRA, 2001, p. 1293). No entanto, o sertão parece morar no imaginário dos

brasileiros, sem deixar de despertar o interesse de povos estrangeiros.

Pesquisadores de diferentes épocas registraram as características seculares do sertão:

como Saint- Hilaire (1975), naturalista francês, que percorreu e estudou o interior brasileiro

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em 1817. Entre outros registros que ele deixou, referentes a essa parte do Brasil, ele destaca as

diferenças substanciais que a região registra em períodos chuvosos e de seca, que vão do

maravilhoso ao verdadeiro caos. Maurice Gaspar (1910), que também fez seus registros no

século XIX, observa a hospitalidade, a disposição e a solidariedade do sertanejo, enquanto a

pesquisadora contemporânea Walnice Nogueira Galvão (1972) chama a atenção para o

contraste entre a caatinga e os rios e veredas que cortam a terra seca. Para Euclides da Cunha,

o sertanejo é antes de tudo um forte e o sertão, na visão de Guimarães Rosa, está em toda

parte.

O fato é que o sertão é ao mesmo tempo sedutor, com suas lendas e tradições, e

assustador, pelo que representa de sofrimento, fome e violência. E a maior prova de toda a

influência que esse espaço exerce no imaginário dos brasileiros está na sua constante e

diversificada representação nas artes. A prosa de Guimarães Rosa, a poesia de João Cabral de

Melo Neto, a música de Villa Lobos, a canção de Luiz Gonzaga, a pintura de Portinari, o

cinema de Nelson Pereira dos Santos e a televisão de Luiz Fernando Carvalho são apenas

alguns dos inúmeros espaços que o sertão ocupa nas artes brasileiras. Antes de tudo isso,

entretanto, é necessário lembrar que durante muito tempo o espaço em que se construíram as

narrativas infantis era o interior do país. Basta citar o Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro

Lobato, para entender porque toda criança, mesmo urbana, cresce conhecendo, pelo menos

em parte, o universo rural.

Figura 3 – Primeiras imagens do palco

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O compositor João Araújo, de Belo Horizonte, fez uma canção intitulada Menino da

cidade em que fala do que ele chama de “saudade do que nem vivi”, e afirma: “se eu não

nasci lá no sertão/Meu coração sabe senti/ Cheiro de roça pelo ar/Café que cabô de sair/ Terra

molhada, vai chover.” (ARAÚJO, 2005). Os versos do compositor – que demonstram não

apenas certo conhecimento sobre os costumes do sertanejo, como também de sua expressão,

já que foram construídos com a chamada linguagem “caipira” – apenas endossam o que

dissemos acima: não é preciso pisar em terras sertanejas para reconhecê-lo. Portanto, os

elementos que saltam aos olhos do telespectador já na primeira cena da abertura de HDM são

suficientes para remetê-lo com segurança ao espaço da narrativa que está para ser contada,

pois ainda que um ou outro elemento esteja mais condizente com o universo urbano, como

veremos na sequência da abertura, a maioria deles nos remete ao espaço rural.

Num movimento de câmara contínuo, que vai da esquerda para a direita, as imagens

que se seguem e compõem a abertura da obra confirmam a ideia inicial de que se trata de uma

narrativa predominantemente sertaneja: uma mulher segurando uma criança pela mão, às

margens da estrada por onde o cavaleiro segue viagem; um pássaro que invade a tela como

que substituindo o cavaleiro na cena; um homem agredindo com pauladas outro homem caído

ao chão, enquanto é assistido por um terceiro, este com uma pasta de executivo na mão; um

casal (a mulher com uma trouxa de roupa na cabeça) seguindo pela estrada; um grupo de

cavaleiros; um homem devorando um sanduíche; uma carruagem; fornos de carvão, em cuja

redondeza um demônio salta de uma moita para a outra; soldados, rei e rainha, e, por fim, uma

noiva que dá as costas ao noivo enquanto, ao fundo, os ponteiros de um relógio caminham

para as 12 horas. À exceção da cena que envolve a família real, e que se passa no interior de

uma construção, todas as demais estão a céu aberto, sugeridas pelo movimento de câmara,

como que sucedendo uma à outra ao longo da mesma estrada. A paisagem vai sendo

substituída à medida que as cenas se sucedem, mas sempre com elementos comuns à

geografia sertaneja: mato, capim, pedras, árvores ressequidas, casebres, etc.

Assim, pois, no plano do conteúdo, como se nota, e pelo aspecto visual, a abertura da

minissérie é composta de fragmentos. E se não é possível ainda conhecer em detalhes os

desdobramentos da história, – e afinal não é mesmo esse o objetivo de uma abertura, pois do

contrário estaria adiantando-se ao que é da narrativa em si – já é possível antever isotopias de

histórias passadas em regiões interioranas, presentes na memória do sujeito a elas exposto,

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seja pela experiência concreta, seja pela ficção, e que são, portanto, familiares aos olhos do

espectador.

Por essa rápida sequência, que dura pouco menos de um minuto, pode-se depreender,

além do espaço rural, como já dissemos, a presença de personagens reais (a criança, o homem,

o casal, os cavaleiros), fantásticos (o demônio) e de contos de fadas (rei, rainha). A figura de

um homem com pasta de executivo e outro comendo sanduíche deixam antever um diálogo

com hábitos urbanos contemporâneos, o que, aliado aos personagens citados anteriormente,

sinaliza para um processo de hibridismo cultural.

No plano de expressão visual da sequência de cenas que completam a abertura, merece

destaque a categoria cromática, responsável pela identificação do espaço e do tempo nos quais

as cenas se sucedem. O amarelo representativo do sol do sertão, presente na primeira cena, é

também a cor predominante em toda a abertura. Na medida em que os personagens se movem

pela estrada, no entanto, essa cor ganha mais espaço e novas tonalidade, chegando a cobrir,

por algum tempo, praticamente todo o espaço do cenário. Nas cenas em que o amarelo é mais

intenso, considerando que se podem divisar apenas alguns galhos ressequidos de árvores,

cactos e carcaças de boi, além dos viajantes, é claro, o espaço é, sem dúvida, o que se poderia

chamar de alto sertão, longe de qualquer localidade ou habitação.

Por outro lado, a considerar a intensidade da cor, diluída em tons que vão do amarelo

claro, no horizonte, para outros mais escuros que se espalham para o céu e pela terra, denota-

se um momento de sol mais forte, ou seja, pleno dia. Pouco mais adiante, uma súbita mudança

na iluminação do cenário aponta para o início da noite: nesse momento, a cor ganha uma

tonalidade mais escura, dividindo espaço com o marrom, por onde o preto também se insinua.

Figura 5 – Tons escuros: início da noite Figura 4 – Tons de amarelo indicando dia de sol

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É o momento em que também aparecem, ao fundo, uma casa e uma igreja, indicando que a

viagem agora é por espaços habitados.

É importante ressaltar que, apesar da predominância do amarelo, cor originalmente

tônica20, a possibilidade de saturação do visual por esse elemento cromático é impedida pela

presença, ainda que esparsa, de cores variadas e/ou mais suaves nos figurinos, nos pássaros

que cruzam os ares, ou em bandeirolas pendentes do alto. São esses elementos que garantem

uma sutil quebra no andamento até então excessivamente acelerado pela tonicidade das cores

e da luz.

Nesse sentido, a substituição do amarelo pelo azul, no momento em que no céu se vê

uma meia lua, seguida pelo surgimento de estrelas e depois por uma lua inteira, revelando a

noite alta, traz um descanso para os olhos, já que apesar da tonalidade escura pelo uso da cor

preta, a presença do azul e do

branco indicando a

luminosidade dos astros, no

céu, imprime alguma suavidade

ao cenário. De uma maneira

geral, no entanto, a sequência

apresenta equilíbrio entre um

plano de expressão mais rápido

em relação ao conteúdo, cuja

familiaridade o torna mais

lento, garantindo junção positiva com o telespectador.

Aqui temos uma inversão de valores: o frio do azul é aquecido pelo vermelho e

amarelo do fogo que aponta dos fornos de carvão, e em marrom avermelhado é o demônio

que salta entre as moitas. Em meio a elementos assustadores, uma carruagem segue pelo

caminho, apontando para a magia e o encantamento, o verde reaparece e logo um castelo onde

a cena (agora interna) indica um casamento real. O colorido e as rendas trazem de volta a

fantasia e a leveza da primeira cena. O ciclo então se fecha com o fim da abertura e, com ela,

20 Os conceitos de tônico e átono, aplicado às cores são, por vezes, relacionados a cores quentes (amarelo, vermelho e laranja) e frias (azul, verde e violeta). Pelo ponto de vista da Semiótica, no entanto, nem sempre essa correlação é válida, já que, dependendo do grau de mistura, uma cor considerada fria, pode tornar-se tônica, assim como uma cor quente pode ser enquadrada como átona. No primeiro caso, temos o verde cítrico, por exemplo, cuja mistura recebe maior quantidade de amarelo e, no segundo, o amarelo claro, pelo acréscimo da cor branca.

Figura 6 – Equilíbrio de cores e elementos

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a curiosidade e a expectativa se instalam. O telespectador está, pois, em posição de espera,

confirmando Lucia Teixeira quando, relendo Otávio Paz e Zilberberg (2007) diz que a

“disposição de alma” a que Paz se refere como efeito do ritmo, “corresponde a uma

expectativa do sujeito em relação ao que advirá.” (TEIXEIRA, 2008, p. 170)

Voltando ao plano do conteúdo, podemos dizer que, quanto ao espaço onde se constrói

a narrativa e à actorialização, parece não haver dificuldade de apreensão do enunciado

presente na abertura de HDM. De acordo com a semiótica tensiva, o ritmo está na base da

construção do sentido em um discurso, e a ideia de ritmo está, por sua vez, ligada ao

andamento (acelerado ou desacelerado), à velocidade com que o sujeito entra em contato com

o objeto, para o que o conhecimento prévio de pelo menos parte do conteúdo presente no

discurso contribui enormemente. Conforme explica Renata Mancini,

Quanto mais rápido o andamento de um conteúdo qualquer, ou seja, quanto maior a celeridade de penetração de seu valor na arena perceptiva do sujeito, maior o susto, o arrebatamento que ele promove e, consequentemente, menor sua intelecção. Por outro lado, um conteúdo desacelerado é aquele que penetra o campo de presença21 em uma velocidade compatível com a intelecção. (MANCINI, 2007, p. 297).

O andamento, que está ligado primordialmente à velocidade do discurso, como se

denota da citação acima, pode ser analisado, também, pela previsibilidade (desacelerações)

ou, ao contrário, pelas surpresas e precipitações (acelerações) que a familiaridade (ou

ausência dela) com o conteúdo ou com elementos da linguagem de expressão, podem

21 A noção de campo de presença, devida à fenomenologia de Merleau-Ponty, está ligada às relações juntivas entre sujeito e objeto. A questão em destaque para a abordagem tensiva, e que interessa ao nosso estudo é a compreensão de campo de presença como a arena onde se estabelece a relação entre sujeito e objeto, ou seja, o campo da percepção. (MANCINI, 2007, p. 296).

Figura 7 – Mudança de espaço: castelo

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provocar no sujeito. Em se tratando da velocidade de apresentação do objeto, ou da medida do

conhecimento prévio por parte do sujeito, o resultado será sempre uma reação de conforto ou

desconforto, de junção ou disjunção, dependendo da medida da intelecção.

Vale dizer, portanto, que no texto sincrético em análise, o andamento predominante do

conteúdo é desacelerado, e para isso a linearidade do tempo, denotada a partir do movimento

contínuo de câmara e da alternância na iluminação do cenário, sugerindo uma sucessão de

dias e noites, dá uma importante contribuição.

Pelo aspecto sonoro, temos uma composição instrumental na qual se identificam

pequenos trechos de melodias de antigas cirandas e cantigas de roda, formando um pout-

pourri do qual, possivelmente, pelo menos um fragmento será reconhecido pelo enunciatário.

Assim, mentalmente, na sequência do Sapo cururu que sonoriza a primeira cena, é possível

reconhecer melodias que remetem a cantigas como Constança, Rosa amarela, Belos olhos ou

Cai, cai, balão. A junção desse plano sonoro com o visual descrito anteriormente constitui, na

abertura, o sincretismo que caracteriza a linguagem televisual.

Figura 8 – Final da abertura, com título da obra

Pois bem: se a enunciação sincrética requer um conteúdo comum às diferentes formas

de expressão, a eliminação das respectivas letras das cantigas selecionadas para constituírem o

plano musical não foi aleatória, já que elas, por não possuírem uma relação direta com o

conteúdo visual, poderiam confundir o enunciatário. Despidas de suas letras, no entanto, a

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compilação melódica de cantigas de roda complementa o sentido proposto pelo plano visual,

para sintetizar a obra, na medida em que ela – a música – é que reforça o elemento folclórico

que dará o tom da minissérie, bem como sinaliza para a fragmentação das cenas como forma

de antever a reunião de várias histórias numa só. Após o último fragmento do plano visual, a

compilação melódica também é encerrada e o ritmo mais lento das notas indicando o final de

uma peça orquestrada acompanha o ritmo com que as letras vão se desenhando no fundo do

palco – o mesmo da primeira cena – compondo o título da obra, em que o nome Maria se

destaca pelo tamanho, cor e tipo de fonte diferentes das demais palavras, e pelo traço de

bordado com que é desenhado.

Segundo Yvana Fechine, “Na produção audiovisual, a preocupação com uma

enunciação sincrética confunde-se com os processos de montagem” (FECHINE, 2009, p.

330), nos quais as correspondências são estabelecidas a partir de “engates” entre unidades de

diferentes semióticas – visual e sonora.

No cinema, a unidade da montagem é o plano. Não parece produtivo, no entanto, observar (ou orientar) a montagem buscando uma articulação estrita entre elementos da cadeia audiovisual (relação plano a plano entre imagem, música, fala, etc.). Ou seja, não se pode esperar que o desenvolvimento do sintagma audiovisual seja o resultado de uma correspondência, ponto a ponto, entre unidades dos sistemas visual e musical que o compõem. Para pensarmos as correspondências é preciso, portanto, eleger unidades maiores dentro da cadeia sintagmática audiovisual. (FECHINE, 2009, p.333)

Assim, ao observar a montagem da abertura de HDM, verificamos que a cada

fragmento melódico corresponde um fragmento visual que, por sua vez, sugere um novo

acontecimento. O momento em que se dá a mudança de uma unidade (musical e visual) para

outra, portanto, são os pontos de “engate” citados pela autora. Dessa forma, a composição

musical folclórica e fragmentada contribui para que o enunciatário identifique a presença de

mais de uma história dentro da história. O sentido então se constrói: estamos diante de uma

compilação de contos e cantos da cultura popular. E mais: as melodias de cantigas de roda

aliadas à imagem inicial da menina no balanço, à delicadeza dos elementos artesanais

utilizados na composição estética e às cenas da narrativa que certamente já foram

apresentadas ao público algumas semanas antes, não deixarão dúvida de que a obra que está

por vir retoma a cultura popular voltada, primordialmente, para o universo infantil. Um

universo infantil que vive na memória de sujeitos pertencentes a qualquer faixa etária e que,

portanto, não está restrito às crianças.

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Retomando o conceito de andamento referido anteriormente, e a ele acrescentando as

noções de foco que designa o regime de manipulação do sujeito através de um andamento

acelerado – causado pelo estranhamento, por exemplo -; e apreensão, que se refere a uma

percepção desacelerada - como no caso de um conteúdo familiar -, é possível afirmar que a

abertura de HDM, ao apresentar um grande número de elementos já conhecidos, manipula o

enunciatário predominantemente pela apreensão, o que torna mais confortável a interlocução

entre enunciador e enunciatário22. Os estudos acerca do ritmo nos discursos comprovam, no

entanto, que da mesma forma que a aceleração exagerada pode constituir entrave à intelecção

e aceitação do enunciado, uma desaceleração muito acentuada pode também provocar o

desinteresse do sujeito. Uma estratégia de manipulação eficiente, portanto, é aquela que

consegue equilibrar o andamento do conteúdo, de forma a possibilitar a interação do sujeito

com um dado objeto, em parte pelo que já é previsto, em parte pelo que pode dar a conhecer.

A isso se aplica o que diz Sílvia Maria de Sousa (2009), relendo Luiz Tatit:

Segundo Tatit (1997) tanto a surpresa quanto a espera necessitam de um equilíbrio entre o sujeito e o objeto. Se um objeto se apresenta numa velocidade muito grande, corre o risco de escapar do sujeito, pela perda de seus contornos e identificações. É o caso de alguns objetos de vanguarda artística, por exemplo, que de tão imprevisíveis nem chegam a ingressar no campo de percepção do espectador. Em contrapartida, na utilização de um ritmo lento demais é o sujeito que se perde do objeto, dele se desinteressando. (SOUSA, 2009, p.384)

Assim é que se, por um lado, a familiaridade com o espaço e o tempo, e as figuras que

os povoam, contribui para aproximar o enunciado de HDM do telespectador, por outro lado,

tais informações estão parcialmente encobertas pelo traço um tanto impreciso utilizado para

desenhar atores e objetos em cena e pelo próprio caráter de síntese que tem uma abertura. Para

exemplificar, tomemos a figura de um casal que segue pela estrada, ambos carregando

trouxas na cabeça: depois de assistir à minissérie pode-se relacionar esse desenho à cena dos

retirantes da seca. Antes, porém, é apenas um casal tipicamente rural, pois não há elementos

figurativos suficientes para uma leitura precisa que leve à identificação dos retirantes.

Essa particularidade do plano de expressão de expressão confere às imagens que se

apresentam um sentido muito mais metafórico do que figurativo, uma vez que não são

iconizados de maneira a garantir a há referencialização, ou seja, o casal que se apresenta 22Em conferência apresentada na UFF, em setembro de 2013, Zilberberg pareceu redefinir as noções de foco e apreensão. Nesta tese, no entanto, manteremos o que está desenvolvido em Zilberberg (2010, 2011) e MANCINI (2007).

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simboliza todos os casais sertanejos, que tanto

podem ser retirantes quanto trabalhadores a

caminho da roça, já que carregar objetos na

cabeça é prática comum entre moradores do

interior, pelo menos, é uma imagem recorrente

nas representações desses personagens. Essa é,

pois, uma imagem que remete a habitantes da

zona rural de uma maneira geral, e não

especificamente à representação de um homem

e uma mulher particulares, vivendo uma situação particular, como serão os personagens que

se apresentarão na minissérie. Assim é que os desenhos que compõem a abertura não

equivalem ainda à figurativização dos personagens, mas apenas a uma antecipação simbólica,

metafórica, da narrativa final.

Aliado a isso, a mistura de atores de diferentes culturas – a sertaneja, a realeza, a

urbana, a mística –, assim como o prenúncio de mistura de linguagens de expressão pouco

comuns nas produções televisivas recentes, anteriores a HDM – como o teatro, a pintura e o

artesanato – se constituem no elemento surpresa, numa maneira de apresentar um conteúdo

familiar, já conhecido, de uma forma que se insinua inovadora, pelo tratamento inusitado

conferido ao plano da expressão.

2.2. PARA ALÉM DAS FRANJAS DO MAR

A abertura da segunda jornada de Hoje é dia de Maria também começa pelo abrir de

Figura 9 – sertanejos ou retirantes?

Figura 10 – Outro tempo, outra cortina se abrindo para o mesmo palco

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cortinas. Mas ao contrário da abertura da primeira jornada, marcada pela leveza das cores e

contornos, temos uma cortina escura, cuja cor marrom avermelhada apenas se insinua sob o

peso das sombras. É uma cortina mais pesada, mais sóbria, portanto, e que se abre ao meio,

insinuando não mais uma encenação infantil, mas um teatro profissional. Por trás do pano, no

entanto, temos a mesma cena inicial descrita no item anterior e o mesmo movimento de

câmara. A diferença está nas sombras e na pouca iluminação, sugerindo noite, e na direção

tomada pelo cavaleiro, que, se na primeira abertura se afastava da casa, nesta, ao contrário, se

aproxima, como que fazendo o caminho de volta. No plano sonoro, temos a mesma

compilação melódica da primeira jornada, porém a composição ganha um arranjo musical

denso, combinando com a atmosfera opressora que o novo colorido revela.

Na sequência das imagens, praticamente tudo é novo: na parte superior da cena, vê-se

uma corda onde gira uma espécie de roldana que dá movimento a um pássaro e a uma grande

estrela, embaixo, dois arbustos predominantemente compostos de rodas, pregos e outras

sucatas. Da cena inicial ficam apenas as nuvens de renda, que pendem do céu – agora em azul

– e permanecem nele até o fragmento seguinte, em que a terra é substituída pelo mar.

Nas águas, surge um enorme réptil, também feito de sucata e, num movimento de cima

para baixo, o cenário agora é no fundo do mar, onde rodas (de bicicleta?) e correntes dão

movimento a peixes, argolas, chave, boneca, uma imagem de santa e outros objetos presos a

elas. Voltando à superfície, vê-se ao longe uma cidade que, no corte seguinte, passa a ser a

ambientação da cena: ruas vão se sucedendo, prédios sendo substituídos, engrenagens dando

forma a objetos de cena, uma boneca manipulada por cordas, uma figura masculina construída

de sucata, outra sugerindo um demônio, um enorme pé que invade a tela como que

esmagando o cenário, um grupo de pessoas fugindo. Ao final, de novo o sertão e a menina no

balanço, logo substituídos por um fundo que cai sobre o palco exibindo o título da obra.

Como se pode perceber, pela própria indefinição da descrição aqui feita, o conteúdo

que se apreende dessa nova abertura é bem mais acelerado do que na primeira. As presenças

do mar e da cidade não deixam dúvida sobre os novos espaços a serem ocupados pela

narrativa. Mas, além disso, pouca coisa ou quase nada é possível prever sobre as ações que

estão por vir, até porque ação requer primordialmente atores e pela descrição acima se

percebe que os objetos, nessa abertura, predominam sobre os sujeitos. Os elementos utilizados

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pelo enunciador para compor o plano de

expressão reforçam a soberania da cidade

e, portanto, do espaço, sobre os

personagens: a tonalidade predominante

aqui é escura e as poucas figuras humanas

presentes neste novo palco não remetem

necessariamente a sujeitos, pois ou são

manipulados por cordas ou feitos de

sucata, assim como de sucata é feito tudo

o mais que compõe o cenário.

Além disso, a proporção de tamanho e a pouca iluminação que deixa o cenário mais

escuro praticamente ocultam os atores, reforçando a ideia de que, independente do que está

por acontecer, as figuras humanas estão subjugadas pela cenografia. A leveza e a saudade da

infância presentes nas cenas da primeira abertura são substituídas por certa opressão, somente

atenuada pela parcial aproximação da trilha sonora desta com a anterior, já que ambas

apresentam a mesma compilação melódica, porém com arranjos musicais diferentes.

Tanto quanto na primeira, o colorido e a iluminação chamam a atenção na

apresentação visual da abertura da segunda jornada de Maria. Nesta, conforme já foi referido,

a primeira cena é a mesma da abertura anterior, com a diferença de que o cavaleiro que partia

com o dia claro, está agora retornando para casa, à noite. E é novamente pela categoria

cromática que é possível demarcar o tempo, pois que neste fragmento já se pode denotar que o

colorido variado da cena, embora continue lá, está um tanto ofuscado, desbotado pela pouca

iluminação que incide sobre o cenário, produzindo sombras que, não obstante descolorirem a

cena, reduzem o efeito de profundidade e engolem as extremidades da tela, resultando num

espaço cenográfico aparentemente

menor.

Esse efeito atravessa toda a

composição da abertura, indicando

que, ao contrário da primeira obra,

em que o tempo é dividido entre dia

e noite, aqui a noite é soberana.

Além da primeira cena, o elemento

Figura 11 – Mesmo título, outra moldura

Figura 12 – A volta do cavaleiro: pouca luz indicando noite

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que amarra as duas aberturas, apontando para uma sequência narrativa é a presença da cor

azul, escolhida para colorir a noite, no final da primeira abertura, e que permanece na cena do

mar que simboliza a travessia do sertão para a cidade, assim como nas poucas frestas em que

é permitido ver o céu, entre as construções do espaço urbano noturno.

É a cena do mar, aliás, o momento de maior descanso visual, já que nelaa suavidade

do azul do céu incidindo sobre as ondas das águas pela luz refletida por uma estrela se

sobrepõe à escuridão que dominará as cenas que estão por vir. O amarelo predominante na

primeira jornada, indicando um espaço sertanejo, na segunda abertura aparece em esparsos

fachos de luz que, vez por outra, saem dos prédios ou de postes de luz e incidem sobre os tons

predominantemente escuros – do terroso ao preto – dos contornos da cidade grande. A

iluminação natural que vem das estrelas no céu, ou a artificial, que vem das lâmpadas, é

insuficiente para apagar as sombras impostas pela noite e pelos prédios, mas garante pequenos

feixes de cor – azul e lilás na parte superior do cenário, ou vermelho e amarelo nos elementos

que preenchem o espaço inferior – que asseguram ao telespectador divisar, ainda que de

maneira imprecisa, os contornos dos objetos de cena.

Fechine (2009) propõe três pares de categorias responsáveis pela determinação do

ritmo no audiovisual:1) extensidade vs intensidade23 (que dizem respeito à duração de

intervalos e sequências); 2) continuidade vs descontinuidade (ligadas à regularidade e

irregularidade dos intervalos e sequências); 3) segmentação vs acumulação (referentes à

combinação dos elementos sonoros e visuais no tempo, explorando-os com base na

simultaneidade ou sucessividade). A fim de melhor explicar tais categorias, a autora elaborou

23 O grifo em itálico foi mantido da fonte utilizada.

Figura 13 – O azul do mar Figura 14 – As sombras da cidade grande

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um esquema no qual relaciona cada um dos pares categoriais a aspectos dos planos sonoro e

visual. O que vem a seguir é uma síntese de tal esquema.

Pelo aspecto musical, a intensidade está ligada a intervalos menores na base

instrumental, maior pulsação e mais marcações tônicas, resultando num andamento rápido e

intenso; a extensidade, ao contrário, marca composições caracterizadas pela atonia, menor

pulsação, intervalos maiores e andamento lento e extenso. A continuidade refere-se à

presença de gradações na base instrumental, provocando a sensação de progressividade e

expansão musical; a descontinuidade, por sua vez, é indicada pelo maior apelo às “quebras”,

ou seja, mudanças bruscas na base instrumental. Finalmente, a acumulação e segmentação,

que se referem a arranjos mais harmônicos (superposição de elementos sonoros como

instrumentos, vozes, ruídos, etc), no primeiro, e à exploração de arranjos mais melódicos,

marcados pela economia de elementos sonoros e sequências musicais mais “limpas”, no

segundo.

No plano visual, tais categorias aplicam-se da seguinte maneira: a intensidade é

marcada por um maior número de cortes e menor duração dos planos, enquanto na

extensidade, o que prevalece são cortes mais esparsos e planos mais longos; a continuidade

está relacionada principalmente à “decupagem clássica, orientada pela decomposição linear

gradual das cenas dos planos mais abertos aos mais fechados e vice-versa, com vistas sempre

à produção de um efeito de continuidade da representação (cena)” (FECHINE, 2009, p. 352);

já a descontinuidade está ligada à maior fragmentação dos planos, resultando numa montagem

mais próxima de uma “colagem”. A acumulação pode estar ligada tanto à disposição

simultânea de elementos plásticos (volumes, massas, cores), tornando o quadro mais “cheio”,

quanto à simultaneidade de ações ocorrendo ao mesmo tempo, resultando no acúmulo de

informações visuais. A segmentação privilegia a sucessividade tanto no emprego de

elementos plásticos, quanto na movimentação no interior do quadro (uma após outra) que,

nesse caso, se apresenta mais limpo.

Diante de tais definições, não é difícil concluir que a intensidade, a descontinuidade e

a acumulação imprimem um andamento mais acelerado ao conteúdo do objeto (sonoro ou

visual), dificultando sua apreensão pelo sujeito a ele exposto, enquanto a extensidade, a

continuidade e a segmentação resultam na desaceleração e, portanto, numa intelecção mais

eficiente do conteúdo.

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Aplicando tais conceitos à nossa análise, verificamos que tanto a primeira quanto a

segunda abertura seguem basicamente o mesmo ritmo (visual, já que a trilha sonora é a

mesma, como já foi dito) no que se refere à sucessão de cortes e à duração dos planos (nem

muito longos, nem muito curtos). Em ambas há também uma sobreposição de elementos

plásticos e, em alguns momentos, de movimentação. Entretanto, na primeira abertura, o

movimento linear, sempre da esquerda para a direita, e a regularidade do espaço suavizam o

efeito dos cortes, fazendo prevalecer a impressão de continuidade. O tratamento no plano de

expressão, que envolve a variedade de cores, aliada à familiaridade dos elementos em cena e à

leveza do desenho com que são apresentados, imprimem certa harmonia que, por sua vez,

disfarça o efeito de acumulação provocado pelo predomínio do amarelo, em alguns trechos, e

pela superposição de elementos.

Na segunda abertura, embora o enunciador siga basicamente o mesmo estilo de

montagem, há detalhes que indiscutivelmente interferem no ritmo como um todo. Como já foi

dito, o movimento de câmara não segue um único sentido: há quebras que indicama

alternância e por vezes a aproximação de espaços. Além disso, alguns cortes são feitos

abruptamente, dando a impressão da “colagem” a que se referiu Fechine, e indicando

descontinuidade na sucessão das imagens. Aliados a isso, a superposição de movimentos e de

elementos plásticos, os tons predominantemente escuros e os contornos assimétricos dos

objetos e atores, conferidos pelo uso de engrenagens de ferro e metal em sua composição,

reforçam o efeito de acumulação, especialmente nas cenas cuja ambientação é a cidade.

Assim é que, se na primeira abertura, apontamos para a predominância da apreensão como

estratégia de manipulação do enunciatário, nessa segunda abertura, a percepção do

telespectador parece ser requisitada predominantemente pelo foco.

Figura 15 – Sobreposição de elementos familiares Figura 16 – Sobreposição de elementos indefinidos

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E se na primeira abertura a desaceleração é quebrada pela presença de elementos novos

entre os já conhecidos, apontando para uma possibilidade de surpresa, na segunda abertura

essa relação é inversa: a aceleração causada pela surpresa, pela imprecisão dos objetos e

movimentos em cena, é minimizada pela retomada de elementos da abertura anterior – como a

cena inicial e a trilha sonora, por exemplo –, o que sinaliza para a continuidade de uma

narrativa bem sucedida.

Diante do que foi analisado até aqui, já é possível entender, ainda que parcialmente, o

que pode ter sido responsável pelas diferenças registradas entre as audiências das duas

jornadas da minissérie: 36 pontos para a primeira e 27 para a segunda. Seja como for, em

ambos os casos, pode-se dizer que as estratégias de manipulação surtiram resultados

surpreendentes para o veículo e o horário em que o programa foi exibido. Uma análise mais

apurada da minissérie, entretanto, será nosso tema no próximo capítulo. Por enquanto,

faremos a leitura da abertura de A Pedra do Reino.

2.3 UMA COROA, UM TÚNEL E UM UNIVERSO A SER DECIFRADO

Figura 17 – Primeira imagem de APR: coroa e naipes de baralho

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Se a obra literária que deu origem à minissérie A Pedra do Reino é, de acordo com o

seu autor, “um romance enigmático”24, não menos enigmática é a abertura da obra

audiovisual. Ao contrário das aberturas de HDM, que apontam de maneira mais ou menos

precisa para uma narrativa que se construirá num tempo linear, em APR, à primeira vista, o

que se percebe são imagens soltas, que parecem não conter um conteúdo legível. Entretanto,

Segundo Alberto Manguel (2001),

Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas, fotografadas, edificadas ou encenadas – atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias (sejam de amor ou de ódio), conferimos à imagem imutável uma vida infinita e inesgotável. (MANGUEL, 2001, p. 27)

Essa necessidade de atribuir às imagens um caráter narrativo não é nada além da busca

inesgotável pelo sentido. E o sentido, de acordo com as teorias semióticas, só pode ser

construído a partir da junção dos dois planos constitutivos do discurso: o da expressão e o do

conteúdo. Para a apreensão do sentido de um texto, como já foi dito neste trabalho, o ritmo é

fator preponderante e que pode, por sua vez, se manifestar de diversas maneiras: pelo grau de

familiaridade entre objeto e sujeito,pela velocidade do contato entre um e outro, pela

intensidade ou acúmulo de informações ou elementos, seja da expressão ou do conteúdo,

enfim, por todos os aspectos que contribuem com a inteligibilidade do texto.

Na abertura de APR, a primeira imagem em cena não representa dificuldade de leitura:

trata-se de uma coroa. Seja pelas histórias reais de monarquias com que a mídia

eventualmente nos massacra, seja pela lembrança viva de reis e rainhas de contos de fadas,

conhecidos através da literatura ou do cinema, pode-se dizer que esse objeto é familiar a todas

as faixas etárias e culturais. Nesta obra, em particular, a coroa reafirma a ideia que o próprio

título traz implícita, a de que a história a ser contada refere-se à realeza.

Na imagem em questão, a coroa é um desenho, centralizado, em dourado, e que traz

nas extremidades os quatro símbolos da cartomancia: os naipes de Paus, Copas, Espadas e

Ouros, que representam fogo, água, ar e terra, respectivamente. Essas figuras não chamam

muito a atenção e, portanto, não chegam a causar estranheza, por estarem, de certa forma,

ofuscadas pelo brilho que emana do objeto principal. Num movimento zoom in25, a coroa se

24O texto que antecede o primeiro livro do romance, uma espécie de prólogo, começa com a denominação de “Romance-enigmático de crime e sangue” (SUASSUNA, 2007, s/p) 25 Movimento de câmara que traz a imagem distante para bem próximo.

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aproxima e se abre a partir das frestas marcadas pelo traço do desenho, de baixo para cima, –

de novo como cortinas –, iniciando um mergulho para o qual o telespectador é arrastado, e

que sugere uma viagem interior, pelas memórias talvez, ou quem sabe pelos delírios.

Figura 18 – Frestas se abrindo: uma coroa inusitada

A partir daí, o que se vê são figuras soltas se sucedendo ao movimento de câmara,

sempre em zoom in, de forma que ao mesmo tempo em que arrasta e prende a atenção do

telespectador, impede-lhe, pelo menos numa primeira leitura, uma apreensão precisa – ou

mesmo razoável – do conteúdo de que é portador: escudos com figuras que se assemelham a

naipes de baralho – mas que não se identificam com nenhuma das quatro já citadas – e

animais selvagens; uma mão parcialmente fechada e em seguida totalmente aberta de cuja

palma emerge um coração; um portal de onde se vê, ao fundo, os contornos de um castelo,

depois o castelo se aproximando até que suas portas se abrem e dão acesso a um espaço que

sugere uma capela, de cujo teto composto de figuras geométricas transparentes, se vê o céu

que é para onde, agora, o movimento nos leva, estrelas, planetas, mandalas, cartas de baralho,

um olho que se abre revelando novas mandalas, um sol que se expande e dá lugar ao título da

obra.

Manguel (2001) cita a pintura para falar sobre a leitura de imagens artísticas de uma

maneira geral, e afirma:

O que vemos é a pintura traduzida nos termos de nossa própria experiência. Conforme Bacon sugeriu, infelizmente (ou felizmente) só podemos ver aquilo que, em algum feitio ou forma, nós já vimos antes. Só podemos ver as coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos. (MANGUEL, 2001, p. 27)

Individualmente, as imagens que compõem a abertura de APR não são estranhas ao

olhar do telespectador, a dificuldade está em construir um sentido para o que a relação entre

elas pode sugerir, já que as figuras aqui apontam para símbolos, metáforas da narrativa que se

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propõem a apresentar. Apesar da extrema

subjetividade requerida para a leitura dessa

composição, podem-se depreender os dois

espaços principais explorados pelo conjunto

de imagens: a materialidade dos elementos

que compõem a primeira parte da abertura

(coroa, mãos, castelo), indica o espaço

terrestre, enquanto os elementos que

despontam no segundo momento (estrelas,

astros, baralho) apontam para o céu e a espiritualidade que ele encerra. A presença do castelo,

assim como a coroa que abre a composição, reforça a ideia de reino presente no título da obra.

O mais são símbolos que de maneira imprecisa nos remetem a poder (a mão parcialmente

fechada) e à emoção (o coração na mão).

Assim, a dúvida e o mistério que esses

elementos suscitam no telespectador se

intensificam na segunda parte da abertura,

com a presença sistemática de símbolos

místicos, o que torna o conteúdo da obra

predominantemente acelerado. Diante disso,

retomando Renata Mancini (2007) pode-se

dizer que estamos diante de um texto que

manipula o enunciatário “pela surpresa, pelo estranhamento causado pelo desconhecido, pelo

insólito ou imprevisto [...], em que a percepção do enunciatário é requisitada pelo eixo do

FOCO.” (MANCINI, 2007, p. 298).

No plano da expressão visual, temos um andamento, em princípio, também acelerado,

graças principalmente à velocidade com que os muitos elementos visuais se sobrepõem, sem

se relacionarem coerentemente. Na categoria cromática, as cores predominantes são o amarelo

dourado e o marrom de tom terroso, sendo que este, por vezes, é quase totalmente submerso

em sombras, pelo excesso da cor preta que o constitui. Na primeira parte da abertura, o

dourado e o marrom se alternam, indicando maior ou menor tonicidade, ao mesmo tempo em

que reproduz o olhar do telespectador – menos luz sobre os objetos à distância, e maior brilho

Figura 19 – Mão fechada à distância: pouca luz

Figura 20 – Mão aberta: luminosidade na aproximação

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quando se aproximam –, o que, de certa forma, contribui para uma pequena desaceleração no

andamento, impedindo, assim, a saturação da visão.

Pelo aspecto simbólico, essas cores também reforçam a oposição matéria/espírito

presente na abertura, já que o dourado é a cor do ouro, elemento que “carrega, como matéria,

uma ambivalência pesada, que o torna ora um símbolo de intuição superior ora um símbolo da

avidez de poder.” (ROMEY, 2007)26. O marrom avermelhado – ou castanho – é, por sua vez,

a cor símbolo da terra, materialidade por natureza. A ambivalência provocada pelas cores é

reforçada, nestas cenas iniciais, pela categoria eidética, com a alternância entre o traço

quadrado, ligado à materialidade, e o círculo, símbolo máximo da perfeição espiritual.

Na segunda parte, a ideia limitada do túnel se expande para o infinito, graças à

constância da luz e à presença do azul, que reforçam o misticismo de que o céu e os astros são

portadores, ao mesmo tempo em que conferem profundidade ao cenário. A espiritualidade

ganha um reforço pelo traço predominantemente circular dos astros e mandalas que se

sucedem. Sedutoras por si mesmas, essas imagens ganham eventualmente tonalidades de

verde e outros tons de amarelo e vermelho, produzindo uma sensação agradável aos sentidos

que aponta para uma sutil desaceleração no andamento, apesar de a cor dourada, tônica por si

mesma, continuar predominando.

A composição musical inédita, de Marco Antônio Guimarães, destituída de

letra,começa com um solo agudo, sincronizado com a primeira imagem, e que a acompanha

até o momento em que a coroa se abre para o túnel. A partir daí, a melodia extraída de

instrumentos artesanais, numa mistura de ritmos dançantes que remetem a culturas orientais, 26 ROMEY, Georges. A cor dourada. Disponível em http://sonharsimbolos.wordpress.com/2007/10/11/a-cor-dourada/. Acesso em 08/03/2012.

Figura 21 – Passagem do espaço terrestre para o ... Figura 20 - ... espaço celeste

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indígenas e ciganas, vai se repetindo, sem grandes alterações no ritmo até o final da

composição visual, em que o mesmo solo que marca o início da música encerra-a, como se

fechasse um círculo, no momento em que o movimento visual também é interrompido, com

foco no título da minissérie. Dessa maneira, a abertura repete, no plano sonoro, a

circularidade predominante do plano visual. A repetição da melodia, no entanto, e a

consequente ausência de alterações rítmicas imprimem um andamento desacelerado ao plano

sonoro, o que resulta em equilíbrio e, consequentemente, em fator de aproximação com o

telespectador, apesar da pouca inteligibilidade do conteúdo.

Manguel (2001, descrevendo sua impressão ao se deparar pela primeira vez com o

quadro Barcos na praia de Saintes-Maries, de Vincent van Gogh, numa época de sua infância

em que só estava habituado a ver ilustrações dos contos de fada de Grimm, diz que, apesar de

não estar familiarizado com aquele tipo de pintura, alguma coisa em seu interior reconheceu

algo espelhado no colorido do quadro

(MANGUEL, 2001). Talvez essa seja a

melhor maneira de explicar a experiência

que temos diante da abertura de APR:

somos crianças tocadas por uma

linguagem nova, na qual nos vimos

espelhados apenas intuitivamente, talvez

porque “A verdade humana é a do

símbolo,dos significados. Nossos

neurônios não funcionam dentro da

realidade, mas dentro da imaginação.” (BYINTON, 2007, s/p)27.

27 Carlos Byinton é terapeuta junguiano e foi convidado pelo diretor Luiz Fernando Carvalho para proferir palestras sobre os arquétipos presentes na obra de Ariano Suassuna. A citação foi extraída dos Diários de filmagem da minissérie, organizados pelo projeto Memória Globo.

Figura 23 – título sobre sol dourado

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III - HOJE É DIA DE MARIA: UMA JORNADA ENTRE OS CONTOS FANTÁSTICOS E A REALIDADE

A minissérie Hoje é dia de Maria veio a público em janeiro de 2005, por ocasião das

comemorações dos 40 anos da Rede Globo, 12 anos28 após o projeto ter sido idealizado pelo

diretor Luiz Fernando Carvalho. O roteiro, inicialmente confiado a Carlos Alberto Soffredini,

foi retomado por Carvalho em parceria com Carlos Alberto Abreu, este indicado pela filha de

Soffredini, que faleceu em 2001.

“Hoje é dia de Maria” nasceu da alegria que tive ao me deparar pela primeira vez, já adulto, com os contos populares recolhidos da oralidade popular brasileira por Sílvio Romero e Câmara Cascudo, entre outros. Logo depois vieram as pinturas de Cândido Portinari e as cirandas recriadas por Villa-Lobos. (CARVALHO, 2006, s/p)

Assim é que, para contar as aventuras da menina Maria, a narrativa se apropria de

elementos folclóricos e místicos presentes em contos populares, lendas e anedotas, dentre as

quais se destacam Como a noite apareceu, A menina enterrada viva, O papagaio do limo

verde, Maria borralheira, Pé de Zimbro, Barba Azul, Mil e uma noites e Pele de Asno. Ao

analisar a presença da cultura popular oral em HDM, Adriane Hauschild (2007) diz que

As imagens da microssérie Hojé é dia de Maria representam uma cultura intrínseca ao ser internalizada culturalmente através das gerações. Tais imagens conferem vida a um imaginário de uma coletividade, em que

28 Informação disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-237354,00.html . Acesso em 05/01/2012

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cirandas, contos e cantigas fazem parte da cultura popular brasileira, que sofreu influências das culturas indígena, africana e portuguesa. (HAUSCHILD, 2007, p. 138).

Essa cultura que de alguma maneira está internalizada em cada telespectador da

minissérie – possivelmente a mesma que motivou Carvalho –, esse imaginário popular que

adapta histórias universais a personagens, elementos e cores brasileiras, parece ser o que a

priori confere a aura de encantamento presente na minissérie. Ao lado de toda a fantasia

emprestada da literatura oral, entretanto, nos deparamos com questões bastante dramáticas e

atuais, como a seca, a exploração do trabalho infantil, o alcoolismo e a violência dele

decorrente, por exemplo. A obra oferece, portanto, “uma pequena tentativa de nos

reaproximarmos de um grande tema: a infância. Uma infância brasileira, rica, mas por ora

também trágica.” (CARVALHO, 2006, s/p.) Ao aliar ancestralidade à atualidade, a minissérie

parece criar uma relação de identificação com o enunciatário, que é o que exploraremos neste

capítulo. Antes, porém, vamos a um breve resumo do conteúdo da obra.

3.1 AS JORNADAS DE MARIA

A história de HDM gira em torno de uma menina órfã de mãe, que vive com o pai

alcoólatra, pelo qual é submetida a trabalhos domésticos e eventualmente a assédio sexual. O

sítio em que vivem está abandonado, os irmãos foram embora em busca de uma vida melhor,

e é neste cenário que a menina conhece aquela que virá a ser sua madrasta e em quem

deposita as esperanças de voltar a ter uma família e de ver o pai novamente feliz para, assim,

ter sua infância de volta. Após o casamento, no entanto, a madrasta passa a maltratá-la e tenta

matá-la, o que provoca a fuga de Maria que, com um talismã em forma de chave, segue em

busca das franjas do mar. A menina conta com a proteção de Nossa Senhora e de um Pássaro

misterioso, que a acompanha ao longo de sua jornada.

O primeiro desafio de Maria é conseguir atravessar o País do Sol a Pino – que

inevitavelmente nos remete ao Nordeste brasileiro -, lugar onde o sol castiga sem trégua, já

que a noite foi roubada. A menina consegue, com a ajuda dos índios, trazer de volta a noite, e

pode então seguir viagem. Antes e depois disso, ela encontra pelo caminho diversos

personagens: um Maltrapilho, um Homem do Olhar Triste, retirantes sem esperança de

encontrar vida nova, um defunto que é surrado como forma de pagar sua dívida, crianças

sendo exploradas como mão de obra em carvoaria, e muitos outros, dentre os quais se destaca

Zé Cangaia, que se torna grande amigo de Maria. O maior opositor à jornada de Maria é o

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demônio Asmodeu, também conhecido como Sete Peles, por sua capacidade de se

metamorfosear em sete fisionomias diferentes, e que se revela estar sempre por detrás das

dificuldades encontradas pela menina. Ao comprar a sombra de Zé Gandaia com um

sanduíche, Maria propõe um desafio a Asmodeu, saindo vitoriosa. O amigo recupera sua

sombra, porém Maria desperta ainda mais a ira do inimigo.

Dentre as muitas artimanhas de Asmodeu, ele rouba a infância de Maria que, adulta,

reencontra a madrasta e a filha desta, com quem disputa o amor de um príncipe, quase se casa,

desiste do casamento por amor ao Pássaro, descobre que este é, na verdade, um homem (a

quem passa a denominar Amado) vítima de um encanto do qual só se livra à noite, conhece e

acompanha dois irmãos saltimbancos, passa a encontrar-se com o seu Amado durante as

noites, desperta o amor do saltimbanco que, com a ajuda de Asmodeu, aprisiona o

Pássaro/Amado em uma gaiola. Enquanto procura pelo homem amado, Maria reencontra o pai

que a estava procurando e juntos seguem com os saltimbancos até que o pai tem uma visão

com a mãe de Maria, que o leva com ela. Com a morte do pai, Maria segue esperançosa de

reencontrar seu Amado, enfrenta a neve provocada por Asmodeu e encontra o Pássaro, preso

a um bloco de gelo. Com a intensidade de seu amor, ela consegue descongelar a ave e, assim,

também o livra do encantamento.

Sempre implacável em sua perseguição, Asmodeu transforma Maria novamente em

criança, a fim de separá-la do Amado, e ela então se vê fazendo o caminho de volta, desta vez

com mais leveza: as crianças carvoeiras se libertaram do trabalho escravo, os retirantes veem

chover no sertão, e, por fim, a maior surpresa: o sítio de seu pai está novamente bem cuidado

e sua mãe e seus irmãos continuam lá, como se nada de ruim tivesse acontecido. Tudo não

passou de uma grande artimanha do demônio, que ela consegue vencer mais uma vez,

transformando-o em lata. Completando o final feliz, Maria reencontra o garoto que havia sido

transformado no Pássaro, ao lado dele, encontra o tão desejado mar, ali mesmo no meio do

sertão. Assim termina a primeira jornada de Maria.

E é daí que a minissérie é retomada, em sua segunda jornada: a menina é levada pelas

águas do mar até uma praia desconhecida. Assustada, ela encontra uma lavadeira que a

incentiva a continuar e que mais adiante se transfigura em Nossa Senhora Aparecida. Maria

encontra um Pato que quer aprender a voar e uma Cabeça de marionete com os quais segue

até se deparar com o Gigante das Guerras, até então adormecido. Ela é engolida pelo gigante,

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cai num lixão, para onde mandam “tudo que a cidade não quer” 29, reencontra a menina

Carvoeira da primeira jornada, que lhe dá de presente um binóculo antigo. Com o binóculo,

Maria chega à cidade grande, onde é acolhida pelo demônio Asmodeu Cartola, que agora é

dono de um teatro de variedades e passa a explorar os serviços da menina. Ao fugir, Maria

ganha um novo amigo, o cavaleiro Dom Chico Chicote, que logo se apaixona pela cigana

espanhola Alonsa. Ao lado do amigo, Maria reencontrará muitos dos desafios de sua primeira

jornada, porém desta vez adaptados à vida urbana: a fome, a injustiça, a discriminação e por

fim, a violência da guerra. Ao final, consegue voltar ao sertão e ao sítio onde dessa vez está

seu pai e a avó que, na verdade, é quem estava contando todas essas aventuras para a neta

febril.

3.2 “ERAUMA VEZ...”

A primeira cena do

primeiro episódio de HDM segue

o estilo da abertura: é um cenário

artesanal, com a diferença de que,

graças à proximidade com que é

apresentada, aqui a imagem se

assemelha mais a um desenho de

livro de história infantil do que

propriamente a um cenário de

teatro, como vimos na abertura.

É uma paisagem rural, simples: uma estrada sinuosa, ladeada por pequenos montes, vegetação

rala e ressequida, na qual se destaca um arbusto artesanalmente florido. Há um sutil

movimento, em travelling30, da direita para a esquerda, mas que não chega a revelar novas

imagens: é como um quadro sendo visto por um observador em movimento. As cores suaves

remetem a um registro desbotado pelo tempo, presente apenas na memória.

No plano sonoro, a mesma compilação orquestrada da abertura retoma, agora mais

suavemente, as notas melódicas de Sapo Cururu, constituindo o fundo musical para a voz em

off – feminina, pausada e trêmula como é comum nas pessoas idosas – que introduz a 29 Fala da menina Carvoeira a Maria, no primeiro episódio da segunda jornada de HDM. 30 Movimento de Câmera em que o equipamento realmente se desloca no espaço, diferentemente da movimentação em panorâmica, nas quais a câmara apenas gira sobre o seu próprio eixo, sem se deslocar.

Figura 24 – Início da narrativa visual: como uma página ilustrada

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narrativa pelo plano verbal. As palavras que ela evoca repetem oralmente a imagem distante

da estradinha que se perde no horizonte e antecipa informações sobre o sujeito, o tempo, o

espaço e as circunstâncias da ação que começa a ser narrada: “Longe... num lugar ainda sem

nome, havia uma pobre família desfeita. E era uma vez uma menina chamada Maria.”31

Todos os elementos presentes na cena, portanto, seja o traçado simples do desenho que

constitui o plano visual, seja a melodia de cantiga de ninar e a narração oral numa voz

cansada – fazendo lembrar a avó contando histórias – no plano sonoro, remetem ao universo

das histórias infantis. Universo este que é reforçado, nas últimas palavras da narração em off,

com a indicação de que o sujeito da ação é uma criança/menina chamada Maria. E a julgar

pela informação sobre a situação inicial da família de Maria – uma pobre família desfeita –

pode-se inferir que se trata de uma criança cuja história é dramática.

Do espaço da narrativa só se sabe que é longe e que “ainda” não tem nome. A primeira

indicação, de distância, está repetida na imagem, na desolação da paisagem e, principalmente,

na estrada que vai além do que a vista alcança. Isso, aliado ao anonimato do lugar e ao recurso

da ilustração utilizado na composição do cenário, aponta para o caráter ficcional da história e

indica um movimento comum das narrativas orais, que é a possibilidade de ser reinventada,

de ter elementos acrescidos a elas pelos sucessivos enunciadores de diferentes espaços e

épocas. Se o lugar “ainda” não tem nome, significa que pode vir a ter, seja pela interferência

daquele que a reconta, seja pelas possibilidades de leitura que suscitará nos telespectadores.

Sobre o tempo em que a narrativa se passa, também não há uma indicação concreta.

Há, no entanto, indícios de que se trata de um tempo também distante, o que se pode inferir

pela voz da narradora idosa e pela presença da expressão “Era uma vez”, que nas narrativas

orais indica passado ou, no mínimo, indeterminação temporal. No plano visual, os tons

desbotados da ilustração reforçam essa informação.

A composição musical, não obstante reforçar o universo da narrativa, também

reafirma a indefinição temporal e espacial, na medida em que reproduz uma cantiga antiga, de

autoria e origem desconhecidas, e que é também parte da cultura popular oral. Estamos,

portanto, diante de uma história cujos elementos remetem à infância e cujo universo

figurativo é, primordialmente, o da cultura oral.

31 Narração em off, episódio 1.

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Não é por acaso que a voz tem um lugar de destaque nessa primeira cena, pois além

dos indícios de apropriação de cantos e contos da oralidade, até este momento é somente

através dela – a voz - que temos conhecimento sobre o sujeito e as circunstâncias em que a

ação se moverá. Não obstante o caráter sincrético da composição da cena, que repete

informações do plano do conteúdo nas diferentes linguagens de manifestação, a situação

inicial da narrativa pertence, até esse momento, apenas ao sentido da audição, suscitando a

impressão de que se está ouvindo (mais do que vendo) a história.

Essa sensação, no entanto, dura apenas um breve momento, pois ao final da introdução

verbal oral, a história tem continuidade na linguagem audiovisual. A trilha sonora ganha um

ritmo mais acelerado, acompanhada pelo movimento de câmara que finalmente revela o

sujeito prenunciado pela narradora: uma menina, a quem naturalmente se identifica como

sendo Maria, se divertindo em um balanço. Ouvem-se risadas de criança sobre as imagens que

são em desenho animado e que, por isso mesmo, prendem a atenção do telespectador pelo

inusitado da composição: até aqui, a cena ainda remete à de uma página de história infantil,

porém agora é evidente que se trata de uma página filmada, com desenhos que se

movimentam e com sons naturais a preencher o ambiente.

É importante observar que a brincadeira e o riso da menina produzem uma quebra de

expectativa, já que a advertência feita pela narradora sobre as circunstâncias de vida da

protagonista apontavam para uma infância triste. Da narração à ação, portanto, nessa curta

cena, já se pode vislumbrar uma – talvez a principal, embora não se possa afirmar ainda –

oposição semântica do nível temático que norteará o desenvolvimento da narrativa, que é a

alegria versus a tristeza.

Novo travelling, desta vez da esquerda para a direita, como o virar de página, e entram

em cena as primeiras figuras humanas representadas pelas atrizes Fernanda Montenegro e

Thaynná Pina. Nesse novo movimento da cena, a surpresa fica por conta do contraste entre

elementos naturais – as atrizes – e o cenário artesanalmente construído. Os figurinos em estilo

clássico e a entonação carregada, porém não identificável com uma região específica,

confirmam a distância temporal e a indefinição espacial.

Fechine, na obra Televisão e presença (2008), ao discorrer sobre o que ela chama de

“relação entre sujeito e objeto”, explica que “a noção de presença corresponde,

essencialmente, à descrição de uma modalidade de encontro entre o sujeito e objeto na qual o

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momento evanescente no qual ambos estão em contato determina o sentido.” (FECHINE,

2008, p. 87) Por essa perspectiva, o sentido se faz, ou pelo menos começa a se fazer, na

intensidade do ato que o produz. A presença é então entendida

...como um primeiro modo de existência do sentido: um sentido que pode ser pensado como de tipo particular de percepção fusional do sujeito com o objeto, admitindo, com isso, a anterioridade de um mundo sensível em relação às construções do intelecto com suas representações figurativas, com seus pensamentos abstratos e formais (FECHINE, 2008, p. 90-91)

Aplicando esse conceito às cenas inicias de HDM, pode-se inferir que o primeiro

contato do telespectador com a obra é suficiente para acionar experiências sensoriais, visuais

e auditivas, que vão além da promessa narrativa, embora não se possa ignorar, também, o

poder de suscitar a imaginação que habita a expressão “Era uma vez...”. Vejamos o

depoimento de Celso de Magalhães:

Ah! Meu amigo, nunca livro algum, por mais notável que fosse o seu autor e mais celebrada a sua fábula, conseguiu atrair-me como aquelas velhas o faziam com o imã dos seus racontos. Às primeiras palavras, que caíam, lentas, no silêncio atento: - “Era uma vez...” o coração batia-me comovido, um calor inflamava-me o rosto, abria-se-me os olhos e eu via, “via”[...] todas as cousas e figuras desses poemas da infância, primeiro alimento da imaginação. (MAGALHÃES apud CASCUDO,1954, p. 19)

Tomando a declaração do pesquisador como passível de corresponder ao pensamento

geral de quem viveu, direta ou indiretamente, a experiência de ser ouvinte de histórias

transmitidas oralmente, é possível entender a sensação causada pela cena inicial de HDM.

Não obstante a plasticidade da imagem e o universo da literatura infantil que ela evoca, nessa

cena, o meio – a voz – pelo qual a narrativa é apresentada, é um importante elemento de

aproximação entre enunciador e enunciatário. Talvez porque, ainda que as histórias orais, na

medida em que vão sendo recolhidas e publicadas, deixem de pertencer estritamente à

oralidade, a voz é a razão de ser dessa modalidade de literatura e sempre será o seu meio de

transmissão por excelência.

Zunthor (2010), na obra Introdução à poesia oral, ao falar sobre as situações possíveis

de oralidade, classifica como primária ou pura aquela cuja transmissão é unicamente pela

voz, sem qualquer contato com a escrita ou com meios mecânicos. A obra em análise,

portanto, não se encaixa nesse tipo de situação. No entanto, a presença da voz em off, anterior

ao início da ação propriamente, por um brevíssimo momento provoca a ilusão de oralidade

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pura, promovendo uma aproximação entre intérprete e ouvinte parecida com a performance,

que é entendida como

a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontadas, indiscutíveis. (ZUNTHOR, 2010, p.31)32

A performance, assim, requer intérprete e ouvinte juntos, compartilhando o mesmo

tempo e o mesmo espaço, o que naturalmente não acontece no ato de transmissão/recepção de

um programa audiovisual, mediatizada pela tela e, muitas vezes – como em HDM – por uma

produção antecipada. Entretanto, a ilusão de oralidade pura a que me referi para tentar

descrever a sensação provocada pela presença da voz no início do programa equivale a uma

ilusão de performance que, por sua vez, equivale a, de certa forma, colocar o

telespectador/ouvinte dentro da obra, frente a frente com o locutor/intérprete (ainda que esse

intérprete se materialize apenas através da voz).

Fechine (2008), citando Zunthor, ressalta a importância da voz também nas

transmissões televisivas:

Na televisão, a voz é, sem dúvida, o elemento sonoro hegemônico. Parte-se aqui do pressuposto de que é possível associar à voz uma experiência presencial fundada, sobretudo, no sentimento de contato que ela, numa dimensão simbólica ou material nos inspira. Como nos lembra Paul Zunthor, ‘a voz é uma forma arquetipal, ligada para nós ao sentimento de sociabilidade’ e, em decorrência disso, de proximidade com o outro. (FECHINE, 2008, p. 115)

Ao analisar esta brevíssima cena de introdução da narrativa, o que se supõe é que a

presença de elementos familiares do telespectador, evocados por tradições culturais

conhecidas através de livros de literatura infantil ou de lembranças de experiências

performáticas da infância, aliados à magia da voz, podem ter sido responsáveis por seduzir o

telespectador a permanecer diante da tela neste primeiro episódio e nos seguintes33, mesmo

que a intenção inicial de alguns deles fosse apenas dar uma “olhadela”34, considerando que o

32 Esse conceito de performance é diferente daquele utilizado pela semiótica discursiva, que denomina performance a fase da estrutura narrativa em que o sujeito realiza a transformação necessária para merecer a recompensa. 33 As notas e críticas de jornais consultadas, como por exemplo, Rodrigo Fonseca (Jornal do Brasil, 13/01/2005), citam uma audiência de 34 pontos no primeiro episódio. A média geral do programa, no entanto, segundo Daniel Piza (O Estado de São Paulo, 23/01/2003) foi de 36 pontos, o que indica aumento de público após a estreia da minissérie. 34Fechine, retomando conceitos de Jonh Ellis sobre os modos de ver TV, classificados por aquele autor como “olhar” e “olhadela”, explica que “No regime da ‘olhadela’, a TV permanece ligada sem que o espectador sequer

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programa que o antecedeu na grade de programação foi o BBB, cuja proposta, radicalmente

diferente, pressupõe um perfil de enunciatário também diferente.

A proximidade – em termos de horário – entre os dois programas, aliás, foi assunto em

muitas notas e comentários de jornais e revistas da época, todos eles apontando, por outro

lado, a distância – enquanto proposta – entre ambos, porque “No BBB há um simulacro de

verdade onde no fundo tudo é falso. Em Hoje é Dia de Maria parte-se da falsidade de cenário

e entonações para se chegar se não à verdade, já que esta é difícil de ser atingida, mas pelo

menos à emoção e a sinceridade.”(ORICCHIO, 2005, s/p) O crítico, ao mencionar o cenário e

a entonação, deixa claro que está se referindo à composição do plano de expressão, que foge

ao naturalismo que é predominante na televisão e que foi também a pretensão do cinema

quando se propunha a promover uma ilusão de realidade.

Em HDM, como nas obras seguintes do mesmo diretor, está claro que o artificialismo

expressivo é consequência, principalmente, da aproximação com a linguagem da pintura e do

teatro em suas diferentes formas de manifestação: mambembe, teatro de bonecos, ópera, etc.

Sobre o plano de expressão da minissérie, no entanto, reservarei algumas páginas no próximo

item. Por enquanto, proponho-me lançar um olhar sobre a narrativa, a história propriamente

dita, já que ela, como obra ficcional que é, já estaria, em tese, liberada de qualquer

compromisso com a realidade. Apenas em tese, pois “do mesmo modo que a referência à

realidade nunca pode ser constante numa ficção sob pena de lhe fazer perder seu estatuto de

ficção [...], a ficção mais inventiva jamais pode criar um mundo que nada deveria ao nosso.”

(JOST, 2004, p. 106)

Não obstante o caráter, ao mesmo tempo independente da realidade e vinculada a ela,

que toda obra ficcional deve ter, como sugere Jost, HDM é uma obra baseada em contos

maravilhosos e lendas, nos quais a fantasia é condição sine qua non; mas que também agrega

questões de uma região cuja realidade é reconhecidamente dramática, conforme veremos.

pare diante da tela. O espectador apenas ‘monitora’ a televisão enquanto realiza outras atividades, dedicando-lhe uma atenção intermitente ou esporádica. No regime do ‘olhar’, ao contrário, o espectador é completamente absorvido pelo que vê na TV.”(FECHINE, 2008, p.106)

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3.2.1. A estrutura narrativa: do conto tradicional à técnica cinematográfica

O americano Syd Field, tão prestigiado quanto criticado35 consultor de roteiros e

professor de técnicas de roteirização para cinema, é enfático ao afirmar que o tempo que o

espectador leva para decidir se o filme vale ou não vale a pena é de dez minutos, o que

equivaleria a dez páginas de roteiro. Nesse tempo, o espectador tem de saber “quem é seu

personagem principal, qual é a premissa dramática, isto é, sobre o que trata o filme, e a

situação dramática – as circunstâncias que rodeiam a ação”. (FIELD, 2001, p.60) Ainda de

acordo com Field, nos primeiros dez minutos o filme conquista (ou não) o público, sendo que,

na primeira meia hora, deve apresentar sua história.

Sem pretender entrar na discussão sobre os méritos – ou a ausência deles – da fonte

citada, como leitores e espectadores, podemos concordar em que há, de fato, um tempo médio

para sermos capturados por uma narrativa, seja ela audiovisual ou literária. Portanto, se é

exagero delimitar esse tempo em dez minutos, como o faz Field, não o é concordar que as

primeiras páginas – em se tratando de obra literária – ou os primeiros minutos – no caso de

audiovisual, são fundamentalmente importantes para despertar o desejo de continuar lendo –

ou vendo – uma narrativa.

Em televisão, no caso específico de programas seriados, não é difícil perceber que há

um cuidado especial com o primeiro episódio, cuja duração média – excluindo os intervalos

publicitários – fica entre 40 e 50 minutos; e o primeiro bloco é sempre mais longo do que os

demais36. Esses dados confirmam, de certa forma, a observação de Field, se entendermos que

o primeiro bloco teria a função de conquistar o telespectador, enquanto o primeiro episódio

inteiro daria conta de apresentar a história.

Field, em Manual do Roteiro (2001), chama a atenção, ainda, para a importância do

que em linguagem cinematográfica se chama de ponto de virada (plot point), ou o “incidente,

ou evento, que ‘engancha’ na ação e a reverte noutra direção” (FIELD, 2001, p.27), para

mover a narrativa. Ainda de acordo com esse professor, um roteiro fílmico deve ter pelo

menos dois pontos de virada – dependendo da narrativa, pode apresentar vários –, um

35 O autor é muito criticado por cineastas e admiradores do “cinema de arte” por valorizar excessivamente a técnica ao dar orientações sobre como construir um roteiro. É, apesar disso, “o mais procurado professor de roteiro do mundo”, segundo citação de capa, atribuída ao The Hollywood Reporter, que acompanha o seu Manual do Roteiro, publicado no Brasil pela editora Objetiva/RJ, em 2001. 36 No caso de novelas das 21h, cujo horário é mais rentável com publicidade, não é incomum que o primeiro capítulo tenha a duração de até 1h30 (incluídos os intervalos comerciais).

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próximo dos trinta minutos, cuja função é mover a ação para o seu desenvolvimento; e outro a

aproximadamente 1h3037 minutos, para conduzir à resolução da história.

O russo Wladimir Propp, por sua vez, na obra Morfologia do Conto Maravilhoso

(200638), ao estudar a estrutura dos contos maravilhosos39de seu país, mais especificamente os

contos de magia, relaciona o que ele chama de funções dos personagens, sobre as quais,

segundo ele, todas as narrativas dessa natureza são construídas. Comparando as primeiras

funções de Propp à estrutura dos primeiros 30 minutos de narrativa fílmica defendida por

Field, é possível concluir que alguns elementos propostos por um são essencialmente os

mesmos e estão, de fato, presentes também no primeiro episódio de HDM. O primeiro ponto

de virada citado por Field, por exemplo, tem estreita relação com a função que Propp nomeou

de dano, e que é uma “função extremamente importante, porque é ela na realidade que dá

movimento ao conto maravilhoso [...] o nó da intriga está ligado ao dano” (PROPP, 2001, p.

31).

Além dessa, é possível relacionar vários outros aspectos daestrutura dos contos

maravilhosos, levantada por Propp, às estruturas narrativas de outra natureza. Não é por outra

razão que a teoria proppiana tenha servido de base para que Greimas desenvolvesse, anos

mais tarde, a sua Sémantique Structurale(1966), na qual propõe uma gramática universal da

narrativa. Dessa forma, as trinta e uma funções distribuídas entre sete esferas (personagens)

de ação (vilão, doador, ajudante, objeto da procura, mandatário, herói e falso herói) que Propp

identificou nos contos maravilhosos russos, são substituídas, por Greimas, por seis actantes

(auxiliar, sujeito, oponente, destinador, objeto, destinatário), dentre os quais se destacam o

sujeito e o objeto.

Relacionando uma teoria à outra, o sujeito greimasiano identificar-se-ia com o herói

proppiano, enquanto o objeto citado por aquele é o mesmo objeto da procura mencionado por

Propp, sendo que “o enunciado elementar da sintaxe narrativa caracteriza-se pela relação de

transitividade entre (estes) dois actantes: o sujeito e o objeto”. (BARROS, 1992 p.16) Um dos

37 Considerando, naturalmente, o tempo médio de 2h de duração. 38 O ano refere-se à segunda edição brasileira, com tradução de Jasna Paravich Sarhan. A obra original, no entanto, foi publicada em primeira edição em 1928, em Moscou. A segunda edição, com acréscimos, de 1969 é a que deu origem à tradução utilizada nesta pesquisa. 39 Propp utiliza a classificação de Antti Aarne,( um dos fundadores da chamada escola finlandesa, responsável por vários estudos sobre os enredos de narrativas) para os contos maravilhosos: contos de animais, contos maravilhosos propriamente ditos e anedotas. No entanto, ele próprio questiona o mérito de tal classificação, ao sugerir que os contos de animais poderiam ser classificados como contos maravilhosos propriamente ditos, e que não há um estudo exato sobre a noção de anedota.

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avanços da teoria francesa em relação à russa é que a noção de actante não se limita às

funções desempenhadas unicamente por personagens. Dessa forma, mesmo o sujeito e o

objeto “são papeis narrativos que podem ser representados num nível mais superficial por

coisas, pessoas ou animais.” (FIORIN, 2009a, p. 28). Outra mudança, a principal delas

segundo Barros, é que “o estudo da narrativa deixou de restringir-se ao exame da ação, para

ocupar-se também da manipulação, da sanção e da determinação da competência do sujeito e

de sua existência passional” (BARROS, 1999, p.37-38). A autora está se referindo às fases da

estrutura narrativa complexa propostas por Greimas, quais sejam: a manipulação, a

competência, a performance e a sanção.

A fase da manipulação constitui-se de uma provocação para que o sujeito queira ou

deva fazer alguma coisa, e pode ser por meio de tentação, intimidação, sedução ou

provocação; a competência é caracterizada por um saber e/ou poder fazer; a performance está

relacionada com a transformação central da narrativa, e por fim, a sanção, que é o

reconhecimento da performance e é onde também ocorre o desvelamento de segredos,

mentiras, e eventualmente, a distribuição de prêmios e castigos.

Com base na semiótica narrativa, passamos então à leitura de Hoje é dia de Maria,

tomando como ponto de partida o primeiro episódio – pela sua importância no processo de

persuasão do enunciatário, porém sem deixar de mencionar passagens de outros capítulos da

minissérie – e como ponto de chegada o último episódio, que é onde se dá a sanção, última

fase da estrutura de uma narrativa complexa, na qual, segundo Fiorin (2009a), todo texto se

encaixa. Na minissérie, a narrativa principal é constituída de várias narrativas mínimas40,

algumas delas resultantes da apropriação de contos da cultura popular, outras criadas em

função do novo texto. A multiplicidade de informações impossibilita uma análise minuciosa

de toda a obra, daí a opção pela leitura da minissérie a partir do percurso do sujeito da

narrativa principal, figurativizado pela menina Maria, de forma a contemplar as quatro fases

da estrutura narrativa.

A primeira cena de HDM à qual nos referimos a pouco, dura apenas 25 segundos. Tão

curta quanto intensa, ela antecipa informações sobre a personagem principal e sua situação

dramática. Ainda que apenas através de um desenho animado e da voz da narradora, o

telespectador já sabe que se trata de uma família desfeita e uma menina chamada Maria: é

40 “ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um estado inicial, uma transformação e um estado final” (Fiorim, 2009, p 27-28).

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essa a situação inicial da história que se vai contar. Considerando os dois enunciados

elementares da narrativa: os de estado, que estabelecem as relações de junção entre o sujeito e

o objeto; e os de fazer, que correspondem às transformações que levam de um estado a outro,

temos, na enunciação oral da primeira cena, a indicação de um enunciado de estado: uma

família (que foi) desfeita implica uma relação de disjunção entre seus membros.

A segunda parte do enunciado – “E era uma vez uma menina chamada Maria...” que

apresenta o sujeito da narrativa, não afirma, mas deixa subentendido que Maria faz parte da

referida família e que, assim, está também em disjunção com seus familiares. A interrupção

da narração oral no momento em que a narrativa audiovisual ganha movimento indica que a

história continuará a ser contada de outra maneira: não mais pela voz de uma narradora, mas

pela encenação. Para saber mais sobre a menina Maria e o que irá acontecer com ela, é

necessário continuar diante da tela.

Na sequência, entram em cena a futura madrasta41 de Maria (Fernanda Montenegro) e

sua filha Joaninha (Thaynná Pina). Mãe e filha se aproximam do pequeno sítio, onde tudo,

casa e plantação, têm aspecto de abandono, causando admiração na mãe, que lembra que

aquilo tudo já foi uma “lindura”42. De longe se vê uma menina em frente à casa, depois

andando descontraída pelo campo, onde brinca alegremente com patos, ao som da cantiga

“Que lindos olhos”, e em seguida, num balanço, imagem esta que retoma e dá vida a duas

cenas anteriores – na abertura e no início da narrativa – em desenho animado, e que contribui

para que o telespectador reconheça nela a personagem apresentada oralmente pela narradora:

Maria ganha vida na interpretação da atriz Carolina Oliveira.

Enquanto a menina se diverte no balanço, um homem (Osmar Prado) surge à porta da

casa e, cambaleante e em tom de lamento, clama pela volta dos filhos e da esposa. A Madrasta

que assiste a tudo, surpreende-se com a atitude do homem e, alternadamente às súplicas e

lamentos dele, ela comenta com a filha sobre a real situação daquela família: a esposa faleceu

e os filhos foram trabalhar para certo japonês. É, então, através dos dois discursos que o

sentido se faz: o homem está bêbado, pois a família pela qual ele clama faz parte do passado.

Logo, no entanto, surgem dois meninos correndo em meio à vegetação; e uma mulher (Juliana

41 A maioria dos personagens da narrativa não é nomeada, dessa maneira, utilizaremos a designação que lhes foi dada no roteiro da obra, como por exemplo: Pai, Madrasta, Maltrapilho, etc... 42 Fala da Madrasta, episódio 1.

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Carneiro da Cunha) que, sorridente, levanta um bebê ao colo. O homem sorri, estendendo os

braços: “Ah! Ceição, ocê vortô...é ocê!”43

A contradição entre essa imagem e o conteúdo do plano verbal apresentado até agora,

aliado à luminosidade impressa nas figuras da família indicam que se trata de um delírio, uma

visão do pai, estratégia usada pelo enunciador para apresentar a referida família desfeita,

informada pela narração oral. Assim que a visão se dissipa, o homem, encolerizado, grita por

Maria, que salta assustada do balanço e corre para a casa, onde gritos e sombras sugerem que

ela está sendo espancada. Do lado de fora, um pássaro voa no céu.

Não há dúvida, portanto, de que Maria e o Pai são os sobreviventes da família

anunciada na primeira cena do programa. A encenação aqui descrita, além de confirmar a

situação inicial da narrativa, esclarece as circunstâncias que levaram a heroína ao estado em

que ela se encontra. Assim, novos enunciados de estado e de fazer são introduzidos: Maria e

seu pai viviam felizes, porém com o esfacelamento da família, sofreram uma transformação e

agora estão em disjunção com a felicidade, o que também refletiu no comportamento do pai

que, de homem trabalhador e pai amoroso, transformou-se em ameaça à filha que restou.

A cena seguinte, em que Maria reza em frente a uma imagem de santa, revela o objeto

de seu desejo, assim como o meio que ela possui para alcançá-lo: “com essa chavinha, eu hei

de encontrar meu tesouro, que se esconde n’algum dos caminhos das franjas do mar.” 44 A

situação em que a menina vive agora, portanto, se apresenta como o primeiro elemento de

manipulação, na medida em que a leva a querer mudar seu destino. O objeto mágico, a

chavinha que ganhou da mãe, dar-lhe-á competência para fazê-lo. A partir desse ponto, o que

se espera é a performance, ou seja, as ações que levarão Maria a alcançar (ou não) o seu

objetivo. Pela semelhança que a narrativa apresenta com a estrutura de um conto maravilhoso,

em que os finais são invariavelmente felizes, conforme concluiu Propp em seus estudos, o

enunciatário, que já tem internalizada tal estrutura, já sabe, em parte, o que esperar da história.

Já sabe, pelo menos, que a heroína enfrentará adversidades, mas, no final, certamente sairá

vencedora.

A sequência seguinte apresenta Maria trabalhando na colheita de milho, enquanto o

pai, ainda bêbado, sentando ao pé de um arbusto, fala sozinho. A menina se aproxima para

ajudá-lo a se levantar e é assediada por ele. Salva pelo pássaro misterioso – o mesmo que 43 Fala do Pai, episódio 1. 44 Fala de Maria, episódio 1.

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sobrevoava a casa, enquanto ela era espancada pelo pai –, Maria foge e encontra a futura

madrasta, que assistia a tudo e lhe oferece mel, enquanto insinua que um novo casamento para

o pai poderia restituir a infância à menina. Essa sequência serve para reforçar a triste situação

em que Maria se encontra, introduzindo um novo enunciado de estado: Maria está sendo

privada de sua infância, quando é submetida a atividades de adultos; mas também esclarece o

papel do pássaro dentro da narrativa: ele é a figurativização do coadjuvante, aquele que

auxiliará a protagonista em sua tarefa.

A Madrasta, embora num primeiro momento apresente-se como aliada, encarnará, na

verdade, o papel de oponente ou antissujeito, se não na narrativa principal, conforme se verá

até o final da trama, pelo menos em algumas narrativas mínimas. Tal situação é prevista pelo

pai, quando ouve da filha a sugestão de que ele deve se casar novamente: “antão45 a tarzinha

hoje lhe oferece mel? Pois amanhã ela há de lhe dar é fel.”46Apesar da previsão sombria, o

casamento se realiza, em meio a cantorias, caretada47 e forró. O final da sequência mostra

Maria deixando o local da festa e caminhando sozinha, triste, ao som instrumental da cantiga

que integra o conto A menina enterrada viva, no qual uma madrasta provoca a morte da

enteada. Ainda que destituída de letra, a popularidade da cantiga leva o telespectador ao seu

conteúdo: “Capineiro de meu pai,/ Não me cortes os cabelos;/ Minha mãe me penteou,/ Minha

madrasta me enterrou/ Pelo figo da figueira/ Que o passarinho bicou.”! O plano sonoro, assim,

reforça as palavras premonitórias proferidas pelo pai: a entrada da Madrasta em cena, ao invés

de melhorar a vida da menina, a colocará em perigo.

Retomando o modelo de Syd Field, vamos considerar este como o final do primeiro

bloco48e da segunda narrativa mínima49, que retrata o casamento do pai e uma nova fase para

Maria: aqui já temos bem definidas a personagem principal e as circunstâncias que movem a

ação – uma família desfeita, uma criança privada da infância e maltratada pelo pai, e a entrada

em cena de uma madrasta de intenções duvidosas –, a elas se juntando a premissa dramática: a

45 A grafia das palavras que reproduzem as falas dos personagens obedece a maneira como elas são pronunciadas. Para isso, além da audição, consultamos o roteiro da obra, cuja escrita segue a prosódia utilizada na obra. 46 Fala do Pai, episódio 1 47 Manifestação popular de origem africana, em que os participantes dançam usando máscaras. 48 Não é possível afirmar com certeza que o primeiro bloco termina aqui, uma vez que a cópia utilizada para a pesquisa, o DVD comercializado pela Som Livre, apresenta os episódios sem cortes. A conclusão é da autora, que analisou o tempo, o andamento da narrativa (que a partir de agora tomará outro rumo) e a maneira como a trilha sonora foi introduzida. Levou-se em conta, ainda, a teoria de Syd Fiel, porém adaptando-a ao tempo e ao formato da narrativa audiovisual, bem como à prática usual em televisão. 49 Consideramos a primeira narrativa mínima, aquela que mostra o convívio de Maria com o Pai, sendo que a segunda começa com o encontro de Maria com a futura Madrasta.

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história gira em torno de uma criança órfã, que sonha encontrar um tesouro que ela acredita se

encontrar nas franjas do mar.

Assim que o pai sai em viagem – em busca de financiamento para reconstruir o sítio –

a madrasta se revela má: Maria continua sendo forçada a realizar todas as tarefas da casa, sem

direito a brincadeiras ou descanso, e por vezes sofrendo agressões físicas. Em meio aos maus-

tratos, no entanto, um estímulo lhe aparece quando, ao chorar de tristeza enquanto lava roupa

em um riacho, a menina vê uma figura feminina vestida de santa, cuja fisionomia é a mesma

de sua falecida mãe, que lhe chama a atenção para o fato de que as águas do ribeirinho vão

para o mar cantando e não “botando pranto”: “Arreda a tristeza, Maria, que o que há de ser

tem muita força. Arreda a tristeza, que o seu dia vai chegar.” 50

Essa passagem, além de acentuar a oposição entre a bondade da Mãe e a maldade da

Madrasta, também atribui à primeira o papel do destinador que instiga Maria a não desistir do

seu sonho e manipula-a por meio da tentação, que é, segundo Fiorin, “Quando o manipulador

propõe ao manipulado uma recompensa, ou seja, um objeto de valor positivo, com a

finalidade de levá-lo a fazer alguma coisa” (FIORIN, 2009a, p. 30). A figura da mãe, embora

seja só uma lembrança, revela-se fundamental dentro da narrativa, lembrando que foi também

ela quem deu a Maria a competência – o poder fazer –, na forma de chave mágica, com a qual

a menina pretende buscar o seu tesouro. É importante destacar, ainda, que tanto o objeto de

desejo, quanto a recompensa prometida pelo sujeito manipulador são valores ainda subjetivos.

No entanto, expressões como “tesouro” ou “o seu dia” subentendem que o objeto a ser

alcançado é investido de um valor positivo.

Antes de ganhar estrada, Maria será novamente vítima das maldades da madrasta. Ao

fugir da ameaça de agressão por parte desta, a menina embrenha-se no mato e cai desfalecida,

quando a madrasta assopra uma vela que simbolizava a alma da enteada. Ao retornar de

viagem, o pai descobre a maldade da esposa, sai à procura da filha e encontra o local onde ela

está enterrada. Maria revive e volta para casa, mas durante uma discussão entre o pai e a

madrasta, pega uma trouxinha de roupa e foge decidida a ir buscar o seu tesouro, mesmo

depois de ouvir a sentença da madrasta de que ela, a menina, “hai de morrer sequinha-

esturricada”51, pelo sol que nunca se põe no caminho que terá de atravessar. É o fim do

primeiro episódio e de mais uma narrativa mínima: o casamento do pai, ao invés de restituir a

50 Fala da Senhora (conforme definição no roteiro da minissérie), episódio 1. 51 Fala da Madrasta,episódio 1.

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infância a Maria, tornou mais dura a sua vida. Ao tomar o (incerto) caminho rumo ao mar,

Maria deixa nos telespectadores a certeza de novas aventuras e o desejo de seguir com ela

nessa jornada.

3.2.2. “Lírica, bonita e triste”

Por essa breve leitura do episódio de apresentação da minissérie, já se pode perceber

que o primeiro dia de Maria foi uma sucessão de episódios tristes: violência, assédio sexual,

trabalho forçado, tentativa de assassinato. Vendo por este lado, a história parece totalmente

incoerente com o universo da literatura infantil do qual a minissérie originou, como parece

incoerente também com a ideia de que o telespectador vê a televisão apenas como válvula de

escape dos problemas do cotidiano, e por isso não costuma estar a fim de coisas sérias.

(DUARTE, 2004).

A incoerência, no entanto, é apenas aparente. No que se refere ao primeiro aspecto, o

da literatura infantil, convém reforçar a informação de que sua origem está na adaptação de

contos populares destinados ao público adulto, nos quais, muitas vezes, há uma alta dose de

violência. Veja-se o exemplo do conto da Cinderela, um dos mais populares em todo o

mundo e cuja presença na minissérie é marcante: a versão mais conhecida no Brasil, a estória

da Gata Borralheira - que mais tarde ganha adaptação local com o título de Maria

Borralheira (ROMERO, 1954) - é atribuída ao francês Charles Perrault, que teria sido o

responsável por conferir o tom infantil ao conto, já que em sua origem, a história apresenta

situações inadequadas para as crianças.

Segundo Giselle Hirata (2012), em uma das versões, a madrasta, tentando matar a

enteada, acaba jogando uma de suas próprias filhas na fogueira; em outra, a personagem

assassina a madrasta que a trata mal, numa terceira, dois pássaros amigos da Cinderela

perfuram os olhos de suas irmãs. Há, ainda, uma versão em que a moça vira empregada para

fugir do pai que queria se casar com ela, situação esta que se repete no conto Dona Libismina,

presente na antologia de Sílvio Romero utilizada na criação da minissérie.

Embora em Maria Borralheira, que é um dos contos utilizados como referência para

a criação da heroína de HDM, não haja violência física e o final seja feliz, nesse primeiro

capítulo é possível reconhecer alguns elementos de outras versões do conto da Cinderela,

como a intenção incestuosa do pai, a fuga da protagonista e a presença do pássaro que a

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protege, além da madrasta má, figura familiar em todas elas. O que há de realmente novo na

fabulação de HDM é que o sofrimento a que a heroína é exposta resulta da junção de

elementos dos contos maravilhosos com questões da realidade, o que o torna mais dramático,

na medida em que aproxima de questões atuais conhecidas dos telespectadores.

Dessa forma, enquanto na literatura fonte, a personagem geralmente é protegida pelo

pai, passando a ser explorada e maltratada apenas pela madrasta, e mesmo assim quando o pai

está ausente, na minissérie, este se apresenta como o primeiro algoz da menina, seja pela

agressão física ou pela sujeição ao trabalho pesado. E enquanto nos contos populares, o tema

do incesto se apresenta pelo desejo de casamento do pai com a filha moça, em HDM há uma

tentativa real de abuso sexual contra a criança. Dessa forma, podemos dizer que o pai de

Maria, tal qual se apresenta nas primeiras cenas da minissérie, está mais próximo daqueles

que frequentam o noticiário e as estatísticas sociais, do que propriamente de um pai de contos

de fadas. Diante das maldades a que a nova esposa submete a filha, no entanto, o pai zeloso

das histórias infantis, livre do efeito do álcool, vem à tona para assumir o lugar que lhe é

devido numa boa história infantil.

O fato de o telespectador preferir o entretenimento e a leveza ao invés de programas

“pesados52”, conforme advertiu Duarte (2004), também não torna incoerente a recepção da

minissérie porque, a despeito da violência que há no primeiro episódio – e violência contra

uma criança, o que poderia torná-la mais repulsiva – a obra, desde a sua abertura, deixa clara

uma proposta lúdica, que se materializa nos empréstimos da literatura de caráter maravilhoso,

bem como nos elementos do plano de expressão, constituído da mistura (hibridismo) de

técnicas e linguagens de diferentes manifestações artísticas. “Até hoje não surgiu, e

dificilmente surgirá num futuro próximo da televisão brasileira, uma obra tão lírica, bonita e

triste como a microssérie ‘Hoje é dia de Maria’”. (GONZALEZ, 2005, s/p).

O comentário de Amélia Gonzalez, publicado no jornal O Globo, após a exibição do

primeiro capítulo, aliado à análise deste, nos permite afirmar que o lirismo e a beleza, neste

episódio, estão presentes primordialmente nas opções expressivas, conforme veremos adiante.

À medida que nos aprofundamos numa análise mais detalhada do conteúdo do episódio, no

52 É importante lembrar que nem sempre a violência é considerada pesada. Ao contrário, ela muitas vezes é fator de conjunção com o telespectador, haja vista a frequência com que é utilizada no cinema e na TV, em filmes e programas de entretenimento. Sobre isso, aliás, refletimos anteriormente em nossa dissertação de Mestrado Recortes da obra Memorial de Maria Moura: o processo de recriação em cena (2008). Em HDM, é o tipo de violência e, principalmente, contra quem ela é praticada, é que a torna mais séria e pesada, pois dificilmente deixará impassível aquele que a presencia.

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entanto, é possível perceber que a

junção de elementos conhecidos

dos contos tradicionais a

questões dramáticas reais

envolvendo uma fase tão

delicada que é a infância, – além,

é claro, das opções expressivas –

acabaram por confrontar o

telespectador com dois mundos

que, unidos, criaram uma

possibilidade totalmente nova,

que é a possibilidade de voltar ao passado e refletir sobre o presente; de se indignar e se

divertir ao mesmo tempo.

Há, no primeiro episódio, em meio a tantos dramas vividos pela protagonista, uma

promessa latente de resgate da infância. Como na cena de apresentação de Maria, em que ela

brinca com patos ao som de uma cantiga de roda, e que revela a alegria possível – e que

deveria ser inerente – à infância; ou na já citada cena em que, transmutada em santa, a mãe de

Maria a instiga a acreditar num futuro feliz. Dessa maneira, o final do primeiro episódio, em

que Maria decide fugir da sua triste realidade para buscar um “tesouro” nas franjas do mar,

aponta para a possibilidade de uma mudança de rumo na história, caracterizando o segundo

ponto de virada de que fala Field (2001). Tais cenas acabam por instigar a curiosidade e o

interesse do telespectador em acompanhar a jornada da menina, pois que a esta altura ele já

deve estar totalmente sensibilizado, tanto pelo drama da personagem e a estética geral do

programa, quanto pelo reencontro lúdico com a própria infância e com a cultura popular.

Acrescente-se a isso o fato de que para arrematar esse capítulo de apresentação de

HDM, a narração oral é reintroduzida sobre a imagem da menina ganhando estrada, com sua

trouxinha no ombro:

Antonce, de maneiras que foi ansim por essa forma: Maria ganhou estrada e envergou caminhada sem querer fim. Ai, fingia que ela não sabia nem do país do sol a pino, que secava bicho, home e minino, e... mai fecha a janela dos óio, dorme e sonha, que a noite lhe seja risonha, e amanhã a gente continua, quando cair o sol, arribá a noite e suspender a lua. Inté!

Figura 25 – Final do primeiro episódio: Maria inicia sua jornada

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Com essa perfeita junção entre os planos visual e sonoro/verbal, a história é

interrompida com a promessa de continuidade no dia seguinte. Como uma criança sonolenta,

embalada pela voz da avó, o telespectador se despede de Maria, com a promessa e o desejo de

voltar a encontrar-se com ela, no dia seguinte.

3.2.3. Um mundo a ser feito

A partir do segundo capítulo, acompanhamos Maria em sua jornada à procura do mar.

A cena inicial deste episódio retoma o final do anterior, e é também introduzido pela narração

oral: a heroína caminha pela estrada seca, enquanto canta a cantiga Constante53, de Villa-

Lobos. Da cantiga entoada pela menina, no início de sua viagem, pode-se fazer duas

leituras: como o riacho, ela buscará o mar cantando, conforme aconselhou a aparição da

Senhora; e ela será persistente em sua busca. A música, que já se revelara marcante no

primeiro episódio, torna-se constante na narrativa, e estará presente tanto nos momentos de

descontração, quanto nas cenas mais dramáticas. E logo ficará claro que a caminhada de

Maria será feita de muitos encontros com personagens e situações que a desafiam “Um herói,

num conto maravilhoso, passa por várias provas. Umas sucedem às outras.” (FIORIN, 2009a,

p. 34). A cada encontro, portanto, uma prova, e a cada prova uma sequência narrativa.

O primeiro encontro é com um homem – que no roteiro da obra leva o nome de

Maltrapilho – que está à beira de uma poça d´água, a quem Maria pede informação sobre a

estrada que a levará ao mar. Ao ouvir a pergunta, ao invés de responder, o homem começa a

lamentar de dor e aponta para um ferimento na perna. Pela malícia estampada na expressão

facial do Maltrapilho, percebe-se que se trata de um teste. Maria cuida do ferimento do

homem, usando um pedaço de sua saia molhada nas águas da poça, enquanto ouve as palavras

enigmáticas do seu interlocutor:

E ocê tome tento, menina, que esse é um mundo que está para ser feito e, no fundo de tudo, um defeito é degrau importante na escada do perfeito. Torto, pobre ou malfeito, todo vivente pode andar reto, porque humano não é ruim nem bom, humano é ser incompleto.54

Metaforicamente, o que o Maltrapilho diz a Maria é que será ela quem construirá o seu

destino (o mundo está para ser feito) e que todas as pessoas, independente de sua condição 53 Ciranda recriada por Villa-Lobos, cuja estrofe única diz:“Constança, meu bem, Constança/Constante sempre serei/Constante até a morte/Constante eu morrerei.” 54 Fala do Maltrapilho, episódio 2.

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física ou social (torto, pobre ou malfeito), devem ser tratadas com humanidade. A cada boa

ação, um novo passo (degrau) rumo ao objetivo (perfeito) almejado. Maria diz não

compreender as palavras do Maltrapilho, embora já as esteja colocando em prática, no

momento em que cuida do ferimento dele. E é quando a menina volta ao poço para repetir a

operação, que o Maltrapilho desaparece, deixando no chão uma varinha.

Essa narrativa, recriação de uma das provas a que a heroína de Maria Borralheira é

submetida, constitui-se em uma das muitas narrativas mínimas que, ao mesmo tempo em que

se resolvem em si mesmas, já que passam por todas as fases da estrutura canônica, também se

encaixam na narrativa seguinte para, ao final, conferir unidade à narrativa principal. Dessa

forma, no fragmento em questão, temos um sujeito (Maria) buscando um objeto (o mar),

lembrando que a manipulação já acontecera anteriormente, o que, portanto, liga esta às

narrativas anteriores. Novas competências, no entanto, são atribuídas pelo Maltrapilho, que

fornece o saber, ainda que de forma metafórica, e o poder, figurativizado na varinha.

Tal objeto dará condições a Maria para vencer o próximo desafio: garantir enterro

digno a um morto que é seguidamente espancado por cobradores de uma dívida deixada por

ele. A varinha mágica, assim, ao mesmo tempo em que se constitui em nova competência para

o passo seguinte, representa também, nesta narrativa, a sanção, ou seja, a recompensa pela boa

ação praticada. O mesmo acontece em outro episódio, quando Maria encontra um Mendigo

sedento e dá a ele a última porção de água que trazia na cabaça. Em agradecimento, ele

informa à menina sobre como encontrar os índios que poderiam devolver a noite roubada55 e,

assim, tornar possível a travessia pelo País do Sol a Pino. Dessa forma, a cada passo, a

menina faz por merecer ajuda para dar o passo seguinte na busca pelo objeto que deseja

alcançar.

Fragmentos como esses, que são recriações de contos da oralidade, alternam-se com

narrativas que remetem a fatos da realidade brasileira, como o encontro de Maria com as

crianças escravizadas no trabalho em carvoarias, ou com os retirantes da seca, situações que

não se encontram em nenhuma história de encantamento, mas sim, estão inscritas na história

real de algumas regiões do país. Essas narrativas, diferentemente das anteriores, não se

apresentam como provas. Maria não sabe nem pode reverter a situação em que seus

interlocutores se encontram.

55 Narrativa adaptada do conto Como a noite apareceu (CASCUDO, 1943)

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Nesses casos, portanto, ao contrário das sequências oriundas da literatura oral, as

narrativas são interrompidas antes de concluir todas as fases: Maria toma conhecimento da

situação dos grupos, se solidariza, mas não possui a competência necessária para transformar

o estado em que seus interlocutores se encontram. Ela representa, no entanto, a possibilidade

de libertação, a esperança de dias melhores, a mensageira entre a gente sofrida e o “o povo de

lá”, ou seja, aqueles que têm o saber e o poder para resolver tais conflitos. Isso explica

porque, mesmo nada conseguindo fazer para aliviar a dor daquelas pessoas, Maria ganha deles

o estímulo para querer seguir viagem, conforme se depreende das palavras do Retirante e da

Menina Carvoeira, ao se despedirem de Maria:

... ocê é nova, e gente nova tem sempre caminho pra frente. Que Deus atenda seus sonhos! Se a menina conseguir chegar ao mar, não se esqueça de quem se perdeu no caminho. Tamo todos na mesma jornada.56

Segue caminhá, menina, pra mode a gente invejá seu passo ligeiro. Pra mode a gente sabê que alguém busca outro rumo, outra vida lá nas franja do mar! Segue caminhá, menina, pra gente desejá um dia tomem podê caminhá. Inté mais vê, menina! Boa viagem! Vai na frente, ensinando o caminho pra quem não pode partir! Só mais uma coisa. Leva nossa história lá pras franja do mar! Pede ao povo de lá pra não se esquecer da gente.57

Os conflitos encontrados pela protagonista no encontro com as crianças escravizadas e

os retirantes da seca, assim, ficam em suspenso, mas nem por isso deixam de contribuir para a

unidade da obra, pois fazem parte do caminho que levará a protagonista à transformação

esperada, do estado inicial de tristeza para a felicidade.

É importante destacar, ainda, que mesmo em cenas como essas, em que a relação entre

figuras como a carvoaria, o trabalho forçado, a seca e a fome, conduzem o enunciatário

predominantemente para percursos narrativos de questões sociais, há, paralelamente, figuras

com as quais se podem construir temas leves, porquanto fantasiosos, como objetos mágicos,

personagens que desaparecem misteriosamente, uma noite roubada e presa dentro de um coco,

etc. Lembrando que sempre há a possibilidade de se extrair temas sociais das sequências

em que a fantasia aparentemente predomina, como no encontro entre Maria com o

Maltrapilho e o Mendigo.

Nessas narrativas, a própria condição dos interlocutores de Maria depreendida da

maneira como são nomeados já aponta para questões sociais ligadas à pobreza. Além disso,

suas demandas são por cuidados (doença) e água (sede), e na medida em que Maria os atende, 56 Fala do Retirante para Maria, episódio 2 57 Fala da Menina Carvoeira para Maria, episódio 2.

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revela o tema da solidariedade. Por outro lado, há o objeto mágico, a informação sobre a

noite, e o poder que os dois homens têm de desaparecer misteriosamente, o que confere o

caráter de fantasia, de irrealidade da situação apresentada. Essa dupla possibilidade de leitura

está presente também em sequências narrativas que se estruturam predominantemente em

questões sociais. À guisa de exemplificação, analisaremos brevemente as cenas referidas

acima.

Na narrativa que se passa na carvoaria, por exemplo, a sombra – símbolo da alma –

das crianças foi vendida em troca de comida e, ao final, o papel do escravizador é o demônio,

figura comum nos contos maravilhosos. O conteúdo do plano verbal, constituído do diálogo

entre a Menina Carvoeira e Maria, é predominantemente realista, pois gira em torno da triste

realidade vivida pelos meninos: “Sina nossa é labuta de fazê carvão. O pão nosso mais o

feijão a gente tira é dessa luta.” 58. A exceção é quando a menina fala sobre a sombra vendida.

O plano visual confirma a dramaticidade do conflito vivido: fornos soltando fogo,

fumaça, crianças sujas e tristes empurrando carrinhos de lenha, alimentando os fornos. A

imagem que precede esse encontro, no entanto, mostra Maria andando por um bosque florido,

à noite, olhando o céu carregado de estrelas, como balões coloridos, enquanto canta a cantiga

“Cai, cai, balão!” Logo a menina avista ao longe outros pontos luminosos, desta vez, em terra:

são os fornos de carvão. O movimento de câmara em zoom revela o cenário descrito

anteriormente.

No plano sonoro, um coro de vozes se junta à voz de Maria no final da cantiga que ela

cantava, e emenda com outra “Dão Lalalão, Senhor Capitão/ Espada na cinta, ginete na mão”.

Embora o conteúdo verbal da cantiga prenuncie o autoritarismo a que as crianças são

submetidas, o que é confirmado no decorrer da cena, a origem popular do canto e a

musicalidade, por outro lado, contribuem para uma leitura lúdica, atenuando, assim, ainda

que minimamente, a dramaticidade da situação.

Da mesma maneira, no encontro com os retirantes, apesar de toda a carga dramática

impressa pelo conhecimento prévio de tal situação como algo presente na vida dos

nordestinos, a fantasia está presente, seja no plano verbal, seja no visual ou sonoro. No verbal,

constituído do diálogo entre Maria e o Retirante, embora, a exemplo da cena anterior, também

predomine o aspecto dramático/social, há uma abertura para a fantasia, no momento em que

58 Fala da Menina Carvoeira, episódio 2.

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os dois falam sobre a noite roubada, que seria a responsável pelo sol forte: “Sem noite

ninguém consegue cruzar esse sertão”.59

No plano imagético, a figurativização dos retirantes não é tão sombria como é comum

na maioria das representações das vítimas da seca: A caracterização dos personagens, se não

ignora a realidade dos retratados, também não a exacerba, ou antes, minimiza-a: há a presença

da característica trouxa de roupa que simboliza a migração, mas há também elementos que

chegam a embelezar a cena, como uma sombrinha enfeitada ao estilo oitocentista, exibida por

uma das mulheres, uma cesta de frutas, e os instrumentos musicais carregados por alguns

membros do grupo, objetos inimagináveis numa representação de retirantes da seca. Não há

magreza excessiva, não há desespero nos olhares. Mas, mais uma vez, é a música o elemento

mais destoante do drama vivido pelos retirantes, pois ela é executada pelos próprios atores

que, cantando, abrem e fecham a cena. Segundo Fiorin:

Há alguns discursos que articulam duas ou mais isotopias [...] e outros que se desenvolvem simultaneamente sobre vários planos isotópicos. Neste último caso, não há um trecho com uma isotopia, outro trecho com outra e a contraposição das duas, mas ocorre uma superposição de isotopias, ou seja, o discurso inteiro pode ser lido sobre mais de uma isotopia. Insistimos em que essa pluri-isotopia está inscrita no texto por meio de desencadeadores ou conectores de isotopia. (FIORIM, 2009a, p.115)

Considerando as palavras do teórico e o conceito de isotopia –a recorrência de um

dado traço semântico que determina o(s) modo(s) possíveis de se ler um determinado texto –,

conclui-se que HDM apresenta um discurso pluri-isotópico, uma vez que situações inusitadas

como as descritas aqui, em que um percurso figurativo que conduz a tematizações ligadas à

fantasia caminha lado a lado com outro que encobre temas pertencentes a uma realidade

possível, perpassam toda a obra.

No entanto, não podemos deixar de observar que nas cenas iniciais da minissérie,

analisadas no início deste capítulo, há uma promessa de que a história que está por vir prime

pela fantasia, já que a expressão “Era uma vez...(...) prende a história no tempo imaginário da

fantasia” (BARROS, 1999, p. 61), passando pela figura da madrasta, do diabo, pelas cantigas

de roda, pelas brincadeiras da menina, e pela construção artesanal de cenários e bichos.

A quebra de expectativa se dá ainda no primeiro bloco do primeiro episódio, com a

entrada em cena do Pai, bêbado, e pelas ações que decorrem disso, uma vez que o alcoolismo

e a agressão de pai contra filha não fazem parte do universo das histórias infantis tradicionais,

59 Fala do Retirante, episódio 2.

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mas, por outro lado, é tema comum nas crônicas da vida real. Temos, assim, um

desencadeador de isotopia, ou seja, o elemento que conduz o telespectador para uma nova

perspectiva de leitura da obra; da mesma maneira que, na sequência da carvoaria, é a imagem

dos meninos trabalhando para manter os fornos acesos o desencadeador da isotopia do

trabalho infantil, após uma sequência predominantemente lúdica.

Carvalho, ao falar sobre o que o moveu a compor a minissérie, revela que buscou o

inconsciente, o subterrâneo brasileiro, mas que foi uma “tentativa com muita delicadeza

porque o fio que está conduzindo tudo isso é o fio da infância, o fio da memória.”

(CARVALHO, 2006, s/p.). Dessa maneira, questões sociais e fantasia dividiram espaço em

um ambiente que reproduz o universo onírico, onde é possível transitar entre elementos e

situações decorrentes de experiências concretas ao lado do insólito.

A possibilidade de que tudo não passe de um sonho, no entanto, sóé levantada no

último episódio, quando Maria reencontra o Mascate, primeiro personagem no seu caminho

de volta, com quem conversa sobre as lembranças do que teria vivido até ali: “...Onte, inté

parece que eu tava feliz, já era crescida...moça-muié que já tinha conhecido o que era o amor.

Eu tava no meio da neve... Será que tudo isso foi um sonho, siô mascate?”60 Dessa forma, se a

minissérie, ao abordar temas como os maus tratos contra crianças ou o drama da seca, não

esconde a dura realidade vivida pelas vítimas de tais dramas, ela, por outro lado, proporciona

diversão e, sobretudo, a esperança de dias melhores que só a capacidade de sonhar pode

conferir.

É assim que no terceiro episódio, quando Maria se depara cara a cara com o demônio

Asmodeu, seu verdadeiro e grande opositor, há mais diversão do que medo ou conflito. Todas

as dificuldades que ela encontrará daí por diante serão criadas por esse ser que, a cada

tentativa de destruí-la, se transformará em um de seus sete disfarces. Antes disso, porém, o

telespectador será brindado com momentos de bom humor e descontração, quebrando o ritmo

dramático que a narrativa vinha seguindo até então e que retomará adiante. Um bom exemplo

é o encontro de Maria com o personagem Zé Cangaia, vítima de Asmodeu, com quem aquele

trocou a sua sombra por um sanduíche61. Maria, como faz em outras sequências narrativas, se

propõe a ajudar o novo amigo e reverter a situação. A prova a que a menina terá de se

60 Fala de Maria ao Mascate, episódio 8. 61 Nesta cena, assim como em outras, há a inserção de figuras que apontam para a contemporaneidade, a mistura de culturas, e contribuem para a atemporalidade da narrativa. É o que acontece com a introdução de um sanduiche em meio a uma atmosfera de cultura popular, por exemplo.

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submeter, neste episódio, envolve um duelo poético com o demônio, do qual naturalmente, ela

sairá vitoriosa.

A junção da poesia oral cantada de conteúdo anedótico, com o som do pandeiro e a

gingada de corpo dos debatedores, resultou numa cena alegre e divertida, bem diferente dos

dramas apresentados no primeiro e segundo episódios. Ainda nessa sequência, é possível

reencontrar-se com as aventuras de Pedro Malasartes, quando os dois amigos enganam o

diabo ao dizerem que havia um pássaro cantador escondido embaixo de um chapéu, quando,

na verdade, o que havia ali era o cocô de Zé Cangaia.

Cenas como essas, em que a alegria da cultura popular se sobrepõe aos conflitos,

provocam uma ruptura com o teor dramático que a proximidade com temas da realidade

imprimiram na narrativa principal, nos primeiros episódios, proporcionando ao telespectador

uma volta ao tempo para reencontrar a

alegria da infância. A diversão presente

em cenas dessa natureza equilibra a

carga dramática da obra, garantindo,

assim, o entretenimento esperado de um

programa televisivo, na medida em que

o universo conhecido, extenso, do

mundo infantil, imprime um andamento

mais lento – e agradável – à obra, nos

momentos em que ela atinge maior

intensidade.

Intensidade e extensidade, de acordo com a semiótica tensiva, são os eixos que regem

a relação entre sujeito e objeto, e que, ao se bifurcarem, respondem pela construção do

sentido. Conforme explica Zilberberg (2006) “a tensividade é o lugar imaginário em que a

intensidade – ou seja - os estados de alma, o sensível – e a extensidade – isto é, os estados de

coisas, o inteligível – unem-se uma a outra; (...) essa junção indefectível define um espaço

tensivo de recepção para as grandezas que têm acesso ao campo de presença. (ZILBERBERG,

2006, p. 169). Em outras palavras, o eixo da intensidade refere-se ao impacto, à força da

tensão que o objeto desperta no sujeito, enquanto o eixo da extensidade é responsável pela

percepção daquele por este. Dessa maneira, o insólito é intenso, porque toca o sensível,

enquanto o conhecido é extenso, porque é inteligível.

Figura 26 – Maria duelando com Asmodeu

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3.2.4. “Um dia, tudo volta a sê...”

A partir do quarto episódio, há uma mudança significativa no desenrolar da narrativa,

um novo ponto de virada: Maria perde a chave – sua principal competência – para Asmodeu,

que também lhe rouba a infância, transformando-a em mulher. É, ainda, nesse episódio, numa

cena em flashback, que finalmente se tem notícia de qual é o verdadeiro objeto de sua busca:

“Maria, não se aparte nunca, nunquinha, dessa chavinha. Ela vai abrir o seu maior tesouro. O

tesouro da vida. O tesouro do amor.”62 Sem chave e sem infância, Maria se desespera, mas

então a Senhora/Santa novamente aparece para manipulá-la a continuar sua jornada: “Chora o

que foi, não, fia, porque um dia tudo volta a sê! E o que há de sê tem muita força! Corage, fia!

Recorda o que foi e celebra o que vem. Corage! Vai buscá seu tesouro que a caminhada é

longa, mai, le juro, há de

valê!”63

Como mulher, Maria

agora encontra desafios de

outra natureza – como

disputar com Joaninha, o

casamento com um príncipe –

, novos ajudantes – como o

mascate que lhe dá de

presente o vestido e o sapato

com os quais vai ao baile e

conquista o coração do

príncipe –, e novos opositores – como o saltimbanco que se apaixona por ela e se une a

Asmodeu para separá-la de seu Amado. Mas isso depois que ela abandona o noivo no altar,

encontra o pássaro ferido e descobre que ele era, na verdade, um belo homem que fora vítima

de um encanto que o transformava em pássaro durante o dia. Maria encontra e entrega-se ao

amor, mas ainda não se realiza por completo: há novos obstáculos em seu caminho, até que a

felicidade seja plenamente conquistada.

A diversão, a partir desse episódio, fica por conta do teatro mambembe, comandado

por um casal de irmãos, ao qual Maria se junta. Música dança, poesia e encenações circenses

62 Fala da Mãe, episódio 4. 63 Fala da Senhora, episódio 4.

Figura 27 – Lirismo e diversão no teatro mambembe

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alternam-se aos encontros e desencontros da protagonista com o seu Amado, até que

finalmente ela recupera a chave perdida e com ela, abre o coração do pássaro, livrando-o

definitivamente do encanto. Esta, que deveria ser a performance da narrativa principal, acaba

se revelando em apenas mais uma narrativa mínima: obcecado por ver Maria infeliz,

Asmodeu transforma-a novamente em criança, a fim de impedi-la de ser feliz. Essa ação, na

minissérie, equivale ao último ponto de virada da história, aquele que, segundo Syd Fiel

(2001), conduz a narrativa para o seu desfecho.

Novamente criança, Maria, involuntariamente, se vê fazendo o caminho de volta,

durante o qual reencontra os personagens que encontrara anteriormente, porém não mais em

situação de dor e sofrimento, mas, ao contrário, livres de seus conflitos: Zé Cangaia comanda

um parque de diversões, os meninos carvoeiros estão livres, chove no caminho dos retirantes,

e até a Madrasta voltou a ser apenas a vizinha boa, e continua casada com o primeiro marido.

E finalmente, ao chegar a sua casa, Maria encontra o sítio próspero, a família reunida e um

Ciganinho, sua promessa de amor, que havia sido transformado em pássaro: todos foram

vítimas do diabo, que ao final se revela o único malfeitor da história e que, ao devolver a

infância a Maria para separá-la do Amado, acabou quebrando o próprio feitiço.

Antes da transformação final, um último desafio: Asmodeu tenta refazer a maldição,

mas a menina enfrenta-o e o destrói com a última competência que adquirira em sua

caminhada de volta – um espelho que ganhara do Mascate. Vencer o demônio e desfazer o

mal que ela havia feito era, afinal, a grande prova que Maria teria de cumprir para realizar sua

performance. Cumpridas as demais etapas da narrativa, chegamos, pois à última: a sanção.

Asmodeu recebe seu castigo: é transformado em lata. A Maria caberá a recompensa.

Segundo Propp (2006), a última função de um conto maravilhoso é o casamento do

herói ou sua ascensão ao trono. Na versão apresentada em HDM, não há uma coisa nem outra,

já que estamos lidando com uma heroína criança, que não vive em um reino, mas sim em um

sitiozinho simples, no meio do sertão. Há, no entanto, os correlatos ao modelo proppiano: na

última cena da minissérie, Maria e o Ciganinho descobrem o mar, ali mesmo, nas

proximidades do sítio.

Na sequência, os dois andam no meio do mato, até que surge o mar diante da tela. Em

seguida Maria entra no enquadramento e, de costas para a câmara e de frente para o mar, abre

os braços e se demora, assim, ao som de uma cantiga de roda, que fala de amor (“Ai,

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Juquinha, Juquinha, meu bem! A vida é formosa para quem amores têm.”). Logo, o plano

abre e abarca o Ciganinho, que se aproxima, dá a mão à menina, e ambos ficam a olhar, ora o

mar, ora um para o outro, até que o plano fecha em Maria e, em seguida, o movimento de

câmara exclui-a do quadro para fechar na imagem do mar. Ao final da música, a voz da

narradora é reintroduzida e, em poucas palavras, ela resume a performance e a sansão da

narrativa: “Maria virou, mexeu, lutou e mereceu. E até hoje vive feliz com o seu Amado.”

Dessa forma, a heroína encontra o tesouro procurado: o amor. Os dois personagens

não trocam palavras, nem beijos, no entanto, o conteúdo do plano imagético e sonoro, este

constituído da música e da linguagem verbal presente na cantiga e na narração, não deixa

dúvida. Na medida em que atende a expectativa da heroína, a narrativa atende, também, as

expectativas dos telespectadores, com a promessa de continuidade, na voz da narradora em

off: “Tem muita história na gibeira... Encontro co’cês numa festa lá na beira, nas franjas do

mar. Atrasá até pode, só num pode é fartá. Inté!”

3.3 TUDO “COMOVEDORAMENTE FALSO”

A expressão entre aspas do subtítulo acima foi tomada de empréstimo a Luiz Zanin

Oricchio (2005) que a utilizou numa referência à artificialidade dos cenários de filmes como

Mélo(1986), de Alain Resnais e Ela nave va (1983), de Fellini, com os quais o crítico

compara a opção de Carvalho para a criação de HDM: “a minissérie aposta na deslavada

artificialidade para comover o público.” (ORICCHIO, 2005, s/p).

Artificialidade, falsidade, antinaturalismo são expressões a que praticamente todos

aqueles que se dispuseram e se dispõem a criticar ou analisar a minissérie recorrem. E não por

acaso, pois pelo que já referimos aqui sobre o plano de expressão da obra, seja na abertura,

seja na cena de apresentação, já se pode notar que é impossível falar da minissérie sem

destacar essa particularidade. “Esse procedimento de exposição da construção dramática não

se limita aos cenários. O clima é fabular, as falas são recitadas, busca-se uma prosódia

implausível dos atores.” (ORICCHIO, 2005, s/p)

Da citação acima, bem como de várias críticas consultadas durante a pesquisa para

escrita desta tese, conclui-se que o termo artificialismo é utilizado para definir o efeito de

distanciamento que os recursos expressivos utilizados em HDM estabeleceram em relação às

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narrativas predominantes na televisão brasileira, as quais, quase sempre, buscam uma

aproximação maior com o universo natural, com a realidade factual. Dessa forma, enquanto a

maioria das narrativas televisuais – e mesmo cinematográficas – utiliza-se de cenários,

figurinos e objetos de cena visando à produção do chamado efeito de realidade, em HDM a

proposta parece ser exatamente o oposto disso. Os elementos estéticos vestem com precisão a

proposta já apontada no plano do conteúdo, de que mesmo o que foi inspirado na realidade

produza um efeito de fantasia, de sonho, conforme assume o diretor da obra: “Estou propondo

aos telespectadores um jogo com a imaginação, um exercício tênue de visibilidades”

(CARVALHO, 2006), s/p)

3.3.1. Cores e luzes, espaços etempos

No jogo proposto por Carvalho, o cenário é peça fundamental, por ser o espaço

onde a narrativa se move, por se constituir no elemento que preenche a extensão da tela

durante boa parte da obra – a exceção são os planos fechados, com focalização nos atores ou

objetos – e, principalmente, por ser responsável pelo primeiro contato do telespectador com a

proposta artesanal da minissérie, conforme abordamos ao analisara primeira cena. É aquela

primeira imagem, ainda, a responsável por introduzir o telespectador no universo espacial da

obra, que é o sertão. Convém esclarecer que embora haja figuras que inequivocamente

apontam para a representação do sertão nordestino, há outros espaços do interior do país

figurativizados na obra, sendo assim, quando falamos em sertão aqui, estamos considerando

as regiões pouco habitadas, de maneira geral.

O que interessa dizer sobre o espaço da minissérie, é que ele não é o sertão

neorrealista de Vidas Secas (filme de Manoel Pereira dos Santos, 1963) ou de O auto da

Compadecida (minissérie e filme de Guel Arraes, 1999). É, sim, um espaço que é “a

representação emocional de uma determinada realidade”, como esclarece Carvalho (2006). E

a plasticidade da fotografia e da produção de arte muito contribui para o efeito proposto,

conforme se vê já na primeira cena, cujo cenário é uma paisagem pintada à mão.

O sertão onde está plantada a moradia de Maria, e onde a história começa e termina, é

um cenário de vegetação pobre, concebido com técnicas da pintura e montagem manual de

elementos como o capim e as árvores ressequidas.64 No entanto, aos traços toscos e aos tons

64 No makingoff da produção, é possível ver a equipe de cenógrafos retocando, com pincel, este cenário.

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escuros que denotam a rusticidade do espaço, contrapõem-se a delicadeza dos papéis de seda

branca e vermelha utilizados na confecção de flores de alguns arbustos, e, sobretudo, o

impacto das cores fortes utilizadas para compor o céu, que é repintado na medida em que

muda a paisagem, em pinceladas que vão do amarelo ao vermelho, passando por tons de rosa,

lilás e azul. É o céu de uma região onde o sol descolore a paisagem, rouba as cores da terra e

as transfere para o alto, para o inatingível.

Assim é na cena dos retirantes: não fosse pelo vermelho que se denota das pinceladas

que caracterizam o céu do sertão, e no laço de fita que Maria traz no cabelo, ou pela presença

de uma luz amarela, que faz a vez do efeito do sol refletindo sobre o cenário e os personagens,

poder-se-ia dizer que temos uma cena em preto e branco. O amarelo, aqui, refletido sobre o

branco, aliado ao preto com que se coloriram os galhos secos e que escurece o vermelho do

céu, confere à cena um aspecto envelhecido, desbotado, aspecto este que perpassa toda a obra.

Dessa maneira, as cores não apenas contribuem para a construção do espaço, mas também

para confirmar o sentido proposto pela expressão “Era uma vez...” que distancia, ou ao menos

indetermina, o tempo em que a história se passa.

Há que se observar, ainda, o efeito da iluminação e das cores na caracterização do

tempo do discurso narrativo, pois conforme definiu Gérard Genette, há “o tempo da coisa

contada e o tempo da narrativa” (1979, p. 31). A diegese – outro termo usado por Genette

para definir a história contada –, se inscreverá sempre num tempo cronológico, uma vez que a

narração se constitui essencialmente do encadeamento de acontecimentos que se sucedem. Já

na narrativa, ou seja, na história construída, é possível alterar a ordem dos acontecimentos, o

que em linguagem televisual, é feito graças à técnica da montagem.

Em Hoje é dia de Maria, não obstante a sucessão linear dos acontecimentos estar

implícita no próprio andamento do conteúdo, há, também, no plano de expressão, elementos

que confirmam tal cronologia. Dessa maneira, a paisagem é em amarelo suave no início da

jornada de Maria, e o amarelo torna-se intenso durante a travessia do País do Sol a Pino,

indicando o início da tarde, quando o sol é mais forte, e ganha tons de laranja e vermelho nas

passagens de final de tarde. Na sequência em que finalmente Maria encontra a noite, primeiro

no bosque florido, depois na carvoaria, o azul substitui o amarelo na composição do céu. É,

no entanto, um azul escuro, contaminado da cor preta que cobre de sombras toda a cena. É

também azul a luz que incide sobre o branco que cobre a paisagem, quando a maldição do

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diabo faz Maria enfrentar a neve, longe do País do Sol a Pino e longe da estação seca:

novamente o tempo e o espaço sendo traduzidos em cores e luzes.

Conforme se vê, a narrativa é construída predominantemente no tempo cronológico.

Mesmo quando Maria passa de criança a mulher de um momento para outro, ou quando volta

a ser criança e retorna para casa, não é por efeito de recursos de flashback ou flashforward. As

respectivas cenas acontecem dentro do fluxo narrativo linear, por efeito da interferência de

um ser mágico, o demônio. Há, no entanto, duas cenas que quebram o andamento natural dos

acontecimentos e às quais já nos referimos no item anterior: uma em que o Pai tem uma visão

com a família e outra em que Maria recebe a chavinha mágica de sua mãe. Se nesta o recurso

do flashback é inquestionável; naquela não se pode afirmar que se trate de um recuo no

tempo, pois a reação do Pai antes e depois da cena sugere muito mais uma alucinação do que

propriamente uma lembrança passada.

A cena em questão mostra o Pai, bêbado, no cenário desolador já descrito, lamentando

a família desfeita. Quando ele fecha os olhos, num grito de dor, os sons de pássaros que

compunham o plano sonoro tornam-se mais claros, e logo dão lugar a uma música

instrumental suave. O Pai, então, abre os olhos e vê, ao longe, dois meninos correndo,

passando de uma paisagem de céu amarelo para outro de fundo azul, onde encontram a figura

da Mãe coberta por uma luz branca. A imagem granulada e a luz intensa comprometem a

nitidez da cena e reforçam a possibilidade de visão sobrenatural. Por outro lado, os tons

claros, o azul do céu e uma presença maior de verde na vegetação, podem indicar a lembrança

de um tempo de prosperidade que ficou no passado. Sendo assim, tal sequência fragmenta o

andamento natural da narrativa, inserindo elementos pertencentes a outro tempo, seja ele

realidade ficcional ou apenas alucinação do personagem.

Já na passagem em que Maria recebe o objeto mágico de sua mãe, não há alteração

substancial na iluminação e nas cores, a não ser pelo fato de que, por se tratar de ambiente

interno, não há interferência da luz do sol. A indicação de que se trata de um recuo no tempo

da narrativa está na presença da Mãe – já falecida, no início da trama – pelo espaço em que a

cena se desenrola – a casa do sítio –, e pelo contorno do rosto e das mãos de Maria indicando

uma criança mais nova, além, é claro, do diálogo que esclarece a origem de um objeto de que

já se tem notícia.

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3.3.2. Bonecos, cordas e excessos no palco de Hoje é dia de Maria

Sylvia Nemer, em artigo intitulado Espaço e teatralidade na minissérie “Hoje é dia de

Maria” (2009) chama a atenção para a “intenção de teatro”65 presente na obra. Tal intenção é

clara e se manifesta em vários aspectos da composição estética de HDM, tais como o cenário,

o figurino, a interpretação e entonação dos atores, a caracterização de personagens e animais

em cena e, claro, a própria origem da narrativa, já que a oralidade se baseia,

fundamentalmente, na gestualidade e na voz, matéria prima do teatro. Todos esses

empréstimos da dramaturgia são antecipados na cena inicial da abertura, conforme analisamos

no capítulo II, cuja imagem é uma cortina se abrindo para um palco de bonecos. Dessa

maneira, conforme reflete Nemer, a referência às narrativas tradicionais não é uma mera

transposição de uma linguagem para outra:

Trata-se, ao contrário, da busca de uma linguagem de articulação entre expressões orais e audiovisuais, feita através da música, do gestual, do uso de marionetes, do figurino, da maquiagem, da iluminação, do cenário e do recurso a acervos técnicos próprios ao meio audiovisual com destaque para a técnica de montagem de atrações características do cinema das origens. (NEMER, 2009, p. 131)

Ao mencionar o cinema das origens, a autora refere-se aos filmes de Georges Méliès,

cuja linguagem estava ainda muito próxima do teatro, pelo mesmo motivo que a televisão

também recorreu à interpretação teatral em suas primeiras produções ficcionais. Ou seja, na

ausência de uma linguagem teledramatúrgica, particularizada, buscou-se apoio no tipo de

encenação até então disponível, que era o teatro. Desnecessário dizer que, por mais próxima

que a linguagem de Méliès ou dos primeiros diretores de televisão tivesse com a dos palcos,

não se tratava de uma expressão teatral pura, pois uma vez submetida a novas técnicas, tal

expressão iniciava, no meio audiovisual, o seu caminho rumo a uma linguagem nova.

Assim, na estética de HDM, ao mesmo tempo em que Carvalho volta ao cinema e à

TV de origem, ele, por outro lado, vale-se de toda a evolução que a linguagem

cinematográfica sofreu ao longo de mais de um século, seja pelas experimentações, seja pelo

avanço tecnológico, para criar uma obra que, ao mesmo tempo em que dialoga com as origens

da cinematografia, também aponta para uma nova possibilidade no meio televisual. “Há,

portanto, uma proposta clara de articulação entre forma e conteúdo, entre a estética da

minissérie e o seu enredo” (NEMER, 2009, p. 130). 65 O termo entre aspas é de Paul Zunthor, em Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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Um bom exemplo disso é a montagem das sequências narrativas, permeadas pela

presença de Maria, que confere unidade a uma estrutura fragmentada, característica do teatro

de atrações66, também comum na cinematografia de Méliès, em que, conforme lembra Nemer,

“cada atração visa captar, por meio da surpresa, do susto, do riso, a atenção máxima do

espectador” (NEMER, 2009, p.130)

Dessa maneira, o espaço cênico onde as sequências se desenvolvem é mesmo um

palco – a estrutura circular, palco da terceira edição do Rock in Rio – onde os cenários são

substituídos à medida que a narrativa avança pelo espaço dramático67. Como no teatro, na

minissérie não há uma preocupação em fazer parecer verdade: a imaginação é acionada para

além do caráter ficcional da narrativa, chegando ao plano de expressão, para se revelar nas

marcas deixadas pela criação humana, como, por exemplo, pequenas lâmpadas coloridas

penduradas no alto, simulando

estrelas no céu68, nas cabaças

de que são feitos os patos com

que Maria brinca, nos

cavalos/bonecos movidos a

rodinhas utilizados pelos

cangaceiros, ou nas cordas

com as quais se imprime

movimento ao pássaro que

acompanha Maria em sua

jornada.

O que se percebe é que ao mesmo tempo em que, no plano do conteúdo, a obra vale-se

da magia dos contos de encantamento, buscando uma aproximação com questões reais,

produzindo, assim, uma atualização temática; no plano da expressão, o que se propõe é

aproximar as técnicas audiovisuais – movimento de câmera, montagem e edição – e teatrais, a

fim de criar o maior distanciamento possível da imitação naturalista. Dessa forma, mesmo o

impacto causado, por exemplo, pela tentativa de abuso sexual de um pai contra uma criança,

66 Espetáculo constituído de várias atrações curtas. 67Nemer (2009), citando Pavis, 2007 e Gardies (1993), diferencia espaço cênico, dramático e fílmico, da seguinte maneira: o primeiro é o local de realização das filmagens; o segundo, aquele que se refere ao enredo e aos recursos de representação utilizados para desenvolvê-lo. Já o espaço fílmico é o que resulta dasoperações de câmera , processos de edição, etc. 68 Cena de Maria no bosque, quando ela encontra a noite.

Figura 28 – O pássaro de lata suspenso por cordas

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acaba sendo minimizado pela presença de um protetor figurativizado por um

pássaro/marionete.

A simples presença de um pássaro como ajudante da heroína não causaria surpresa,

dada a aproximação que o conteúdo da minissérie mantém com os contos maravilhosos – tipo

de narrativa que não apenas aceita, como requer a presença do insólito – e cuja proposta, a

esta altura, já está clara no contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário. A surpresa

está no fato de que o pássaro não é representado por uma ave natural, mas por um boneco de

lata, manipulado por cordas, enquanto pai e filha são interpretados por atores de carne e osso.

Essa interação atores/objetos, recorrentes no teatro devido às limitações que o meio impõe ao

processo de criação, não é comum na televisão, onde os recursos técnicos disponíveis

permitiriam a utilização de um pássaro real, por exemplo.

É o contraste, portanto, a mistura de elementos de linguagens de manifestação

incomuns na TV – neste caso, a do teatro de bonecos – com outros do universo natural do

qual a televisão busca uma aproximação maior, o que dá o tom na linguagem estética utilizada

na construção da obra. Com isso, ao final do primeiro episódio já está claro que o recurso à

inverossimilhança predominará em toda a obra. E a fantasia que tal recurso suscita no

telespectador, nesse episódio de apresentação da narrativa, é fundamental para “arredar a

tristeza” que ronda a protagonista ao longo dos quase 50 minutos de programa, pois apesar da

sucessão de experiências dramáticas vividas pela heroína, momentos agradáveis são

vivenciados, graças ao hibridismo de linguagens de que se constitui o plano de expressão,

aliada à promessa latente de mudança de rumo no destino de Maria, conforme vimos no item

anterior.

Na cena em que Maria brinca com patos, por exemplo, logo no início do capítulo, não

obstante ser aquela praticamente a única em que a menina parece realmente feliz no primeiro

episódio, é também a primeira em que há

uma interação ator/bonecos. Até então

tivemos uma cena de desenho ilustrando a

voz da narradora, e a interpretação de atores

em um cenário artesanal, o que já apontava

para o tom lúdico da obra. A inserção de

bonecos/personagens parece ser o elemento

que faltava para confundir – ou surpreender

Figura 29 – animais domésticos feitos de cabaça

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– o telespectador naquele início de programa. Essa cena, assim, nos parece essencialmente

importante para inserir o público na proposta geral da obra e prepará-lo para as sequências

dramáticas que virão, sem lhe tirar a expectativa de entretenimento.

De fato, a teatralidade, que é algo inerente na narrativa principal, terá o seu auge a

partir do 5º episódio, quando Maria encontra e se junta aos irmãos Rosa e Quirino, donos de

uma companhia de teatro mambembe. Da mesma maneira que a obra apresenta narrativas

menores dentro de uma narrativa principal, a performance do grupo de saltimbancos se

constitui de pequenas intervenções teatrais e circenses dentro de uma encenação maior.

Responsável por alguns dos momentos mais belos e divertidos da minissérie, o teatro, assim,

reafirma a sua força de persuasão e entretenimento, especialmente quando em versões

populares, como é o caso em Hoje é dia de Maria.

3.3.3. A presença do cinema: do clássico ao pós-moderno

Embora o diretor Luiz Fernando Carvalho conteste os argumentos de quem classifica

de cinematográfica a linguagem de suas obras para televisão, conforme mencionamos no

primeiro capítulo, ele não nega que a sétima arte foi a sua escola e que seus mestres foram

diretores como Glauber, Vertov, Buñuel, entre outros. As influências do cinema na minissérie

é tema do artigo A televisão brasileira em nova etapa? Hoje é dia de Maria e o cinema pós-

moderno, no qual Renato Luiz Pucci Jr. (2010) sugere que o caráter agregador da minissérie é

resultado de um pós-modernismo levado ao extremo pelo seu criador, pois:

Ao passo que filmes modernistas, de qualquer variante, criam graves problemas para a inteligibilidade e a apreciação da parte do público que não possua o repertório ou o treinamento necessário, o produto pós-moderno acentua a operação com elementos familiares ao grande público (...) Recursos de linguagem absolutamente clássicos, embora mesclados a outros de origem modernista, ajudam a tornar inteligível a trama da microssérie. (PUCCI JR, 2010, p. 13-14)

No estudo em questão, o crítico elegeu como objeto de análise a aproximação que a

linguagem adotada por Carvalho em HDM mantém com o cinema pós-moderno, na medida

em que ao mesmo tempo em que adota elementos típicos da cinematografia clássica –

especialmente no que se refere à edição –, rompe com ela, ao aproximar-se, por exemplo, do

expressionismo alemão da década de1920, com seus cenários estilizados, bem como do

artificialismo acentuado de cineastas como Resnais e Fellini.

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Pucci Jr. chama a atenção para o pouco potencial que a personagem Maria teria de, por

si só, envolver o público adulto:

Ela é a encarnação de um ideário ético e sentimental, tão desgastado na atualidade que, em geral, é visto como pueril. Essa característica da personagem e, por consequência, da história poderia constituir um problema para a recepção da microssérie uma vez que esta não é dirigida às crianças. (...)a resolução desse problema (como veicular de forma impactante um ideário tão desgastado para o público urbano?) encontrou sua solução no estilo adotado, ou seja, na peculiar forma narrativa e composição audiovisual de Hoje é dia de Maria.(PUCCI JR., 2010, p. )

Ao enquadrar Hoje é dia de Maria dentro da linguagem cinematográfica pós-moderna,

o crítico chama a atenção para um dos princípios dessa estética que é justamente a não

exclusão de espectadores em função da bagagem cultural destes. O índice de audiência da

minissérie, segundo Pucci Jr., foi possível pelo fato de o programa ter sido “construído de

modo que, ao escapar ao espectador comum com a enorme quantidade de referências

intertextuais, assim como a sofisticação de linguagem, ainda assim seja possível seguir a

história.” (PUCCI JR., 2010, p.13). Em outras palavras, à medida que rompe com o modelo

de narrativa naturalista, recorrente na televisão, Hoje é dia de Maria torna atraente uma

temática que, se apresentada numa linguagem clássica, poderia se mostrar desgastada; por

outro lado, é a familiaridade da temática que garante que o público consiga acompanhar a

narrativa.

Há que se destacar, também, que, se por um lado, ao dialogar com outras

manifestações artísticas, Carvalho busca a expressividade máxima de cada uma delas, a ponto

de pintar um cenário à mão, ou deixar à mostra os fios com que manipula

bonecos/personagens; por outro lado, ao utilizar tais elementos na figurativização de questões

da realidade, ou mesclá-los a elementos naturais, como sons da natureza e atores conhecidos

do grande público, o diretor parece encontrar um meio termo, um ritmo ora acelerado pelo

inusitado da cena, ora desacelerado pela aproximação com o universo conhecido do

telespectador. O resultado dessa elaboração é uma obra que surpreende sem chocar, que

emociona sem comprometer a intelecção.

3.3.4. Diálogos intertextuais

Jean-Marie Floch, em estudo sobre a obra do pintor alemão Immendorf, refere-se

àquele artista como um bricoleur, termo com que Claude Levi Straus (1976) designa aquele

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que se expressa com os meios de que dispõe: “o bricoleur coleciona portanto um certo número

de elementos de significação, isto é, de signos, para, a partir deles, realizar um conjunto

estruturado”.(FLOCH, 2004, p. 248). No estudo em questão, Floch aponta a recorrência de

elementos colhidos da História alemã, assim como de obras e artistas contemporâneos, nos

quadros de Immendorf, o que permitiria dar à sua técnica a designação de bricolage: “Ele se

contenta, se é que se pode dizer assim, com as figuras e motivos que encontrou em sua

história pessoal e que conservou, com a ideia de que isto sempre pode servir”. (FLOCH, 2004

p.248 – grifo do autor)

Sobre as recorrências de um mesmo elemento em mais de uma obra de Carvalho,

voltaremos a discorrer no último capítulo desta tese. Por enquanto, parece-nos oportuno

mencionar o estudo de Floch e o conceito de bricolagem, de Levi Strauss, para embasar as

referências intertextuais presentes em HDM, que, conforme já mencionou Pucci Jr., são

muitas, e vão do cinema de Glauber Rocha ao de Fellini; do teatro de Brecht ao mambembe;

da pintura renascentista à modernista. A obra do autor, de maneira geral, é resultado de

recortes recolhidos de seus mergulhos na história da arte, do teatro e da filmografia mundial,

além, é claro, da cultura popular universal e brasileira. Assim, na impossibilidade de apontar

todas elas, citaremos três exemplos: a pintura renascentista, a modernista e o cinema de

Ingmar Bergman.

Figura 30 – A Madona, de Rafael

Figura 31 – A mãe, em HDM

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No primeiro caso, um bom exemplo –

embora não único – é a construção da cena em que

a mãe de Maria aparece numa visão do pai desta, e

na qual é evidente uma referência à imagem da

madona, recorrente durante o Renascimento69 e

reproduzida sistematicamente até os dias de hoje.

Embora possivelmente apenas um público restrito

consiga relacionar tal cena ao estilo pictórico

renascentista, a imagem da mãe com o filho nu ao

colo, com um manto na cabeça é imediatamente

ligada à imagem bíblica de Maria com seu filho Jesus.

Independentemente de saber a qual estilo ou época essa

imagem é devida, o público a reconhece

graças ao culto religioso e à reprodutibilidade

técnica da obra de arte, que Benjamim (1992)

discutiu e à qual nos referimos no primeiro

capítulo desta tese.

Quanto ao modernismo, convém

lembrar que a obra de Cândido Portinari foi,

assumidamente, uma das principais fontes das

quais o diretor se alimentou para compor o

universo de Maria. Em texto de apresentação

divulgado em site da Rede Globo consta que “Toda a equipe da minissérie participou de um

seminário sobre a obra de Cândido Portinari (...). A iniciativa de Luiz Fernando Carvalho

pretendia familiarizar todos os envolvidos no projeto da minissérie com o universo do qual ela

tratava.” 70. Visitando a obra de Portinari, não é difícil identificar a recriação de muitas telas

do pintor modernista nas cenas de Hoje é dia de Maria, como o Menina com tranças e laços,

recriado na personagem Maria, ou os retirantes, na cena em que Maria encontra os retirantes

da seca. 69 A figura 30 refere-se à tela Madona Mackintosh ou Madona da torre (1509-1511), e é apenas uma das inúmeras madonas representadas pelo pintor italiano Rafael. Óleo sobre madeira transferido para tela78,8 x 64,2 cm. Disponível em: www.pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_pinturas_de_Rafael . Acesso em 08/09/2013 70 Disponível em http://memoriaglobo.globo.com

Figura 32 – Os retirantes, de Portinari

Figura 33 – Os retirantes, em HDM

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A citação ao primeiro quadro na concepção física de Maria é tão direta que é a

fotografia da tela de Portinari que ilustra a capa do encarte que acompanha o DVD da

minissérie. Quanto aos retirantes, Portinari não tem uma, mas uma série de obras retratando o

tema, em diferentes suportes e técnicas, como o desenho a lápis grafite, o desenho a lápis de

cor, a gravura, o óleo sobre madeira ou sobre tela. Comparando o painel a óleo71, – que é o

que mais se aproxima da cena audiovisual – com a sequência dos retirantes, na minissérie,

percebe-se que as duas, embora apresentem muitos pontos de disjunção, mantêm, por outro

lado, elementos convergentes, que possibilitam ler a cena da minissérie como uma paráfrase

da pintura. Em ambas, predominam as cores preta e branca, com a diferença de que em

Portinari predominam os tons escuros, que conferem maior dramaticidade ao quadro;

enquanto Carvalho inverte essa proporção.

Tais escolhas se explicam pelo fato de que o pintor faz um retrato do Brasil pelo olhar

maduro do homem que está por trás do artista, enquanto Carvalho dirige a minissérie com o

filtro do olhar da infância, que tem o poder de suavizar as situações mais dramáticas. Ao

contrário da referência à figura da Madona, o diálogo com a pintura de Portinari, se não

chegar a ser compreendido pelo telespectador, em nada interfere na leitura da cena. A

diferença é que o sentido que no primeiro caso é acionado pela familiaridade com a

reprodução de uma obra de arte, aqui é acionado pelo conhecimento de representações

fotográficas ou artísticas de uma dada realidade. Seja como for, ao recobrir o drama dos

retirantes com o olhar da criança, a figurativização dos retirantes revela-se surpreendente em

relação ao quadro que o originou, sem deixar de dialogar com ele.

Já a referência ao cinema de Bergman, especificamente ao filme O sétimo selo (1956)

é também direta na cena que antecede a morte do pai de Maria. Embora seja uma obra bem

mais atual em relação à pintura renascentista, a imagem emprestada do filme é, certamente,

menos familiar, dada a pouca (ou nenhuma) visibilidade que tem o cinema desse diretor junto

ao grande público. Entretanto, como já mencionado por Pucci Jr. (2010), ainda que algumas

intertextualidades presentes na obra não sejam apreendidas pelo telespectador, é possível

compreendê-las no contexto da obra.

71 A obra em questão é o painel a óleo/tela, 190X180 cm, 1944. Fonte: Cândido Portinari/ CatálogoRaisonné.

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Figura 34 – Imagem da morte em O sétimo selo, disponível em http://elavestiaveludoazul.blogspot.com

Na cena em questão, o Pai, já velho e cansado, depara-se com uma espécie de alter

ego, que entre outras coisas, lhe diz: “Constrói teu barco da morte, da morte bela e profunda.

Constrói teu barco para a viagem rumo ao esquecimento.”72 A caracterização do ator Osmar

Prado, o mesmo que interpreta o pai, aliada ao clima onírico, ao contexto da obra e ao texto,

não deixa dúvida de que se trata de uma representação – ou mensageiro – da morte. A

semelhança com o personagem – a morte – de Bergman não passará despercebida para quem

já viu O sétimo selo, mas a compreensão da cena absolutamente não depende disso.

Dessa forma, as referências a obras de arte, a apropriação de elementos estilísticos de

épocas ou autores, ou, ainda, a utilização de linguagens de outras manifestações artísticas,

aparecem na obra de maneira a enriquecê-la sem, no entanto, torná-la hermética. E isso se dá

graças ao mecanismo da bricolagem, que mobiliza diversas referências para submetê-las a

uma nova unidade de sentido e uma forma própria de expressão.

Numa conclusão ainda preliminar sobre a análise dessa primeira jornada de HDM,

pode-se adiantar que os vários aspectos citados aqui imprimem à obra um ritmo ora acelerado,

ora desacelerado, garantindo a conjunção entre enunciador e enunciatário, na medida em que

emociona e comunica ao mesmo tempo. Tal característica permite aproximar o estudo aqui

empreendido aos conceitos apresentado por Zilberberg no artigo Louvando o acontecimento

(2007)73. Para chegar ao conceito de acontecimento, o semioticista relaciona-o à linguagem

estética, em oposição, por exemplo, aos fatos históricos:

72 Fala do personagem. Episódio 7. 73 Zilberberg parte da estrutura mínima: “dizer é dizer alguma coisa a alguém”, em que “dizer” corresponde à enunciação, “alguma coisa” corresponde ao predicado e “a alguém”, à comunicação. Lembrando que no que se refere às modalidades veridictórias, a comunicação é privilegiada em relação ao predicado, o teórico francês

Figura 35 - O mensageiro da morte do Pai, em HDM

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o fato é o enfraquecimento das valências paroxísticas de andamento e tonicidade que são as marcas do acontecimento. Em outras palavras, o acontecimento é o correlato hiperbólico do fato, do mesmo modo que o fato se inscreve como diminutivo do acontecimento. (...) É como se a transição, ou seja, o “caminho” que liga o fato ao acontecimento se apresentasse como uma divisão da carga tímica (no fato) que, no acontecimento, está concentrada. (ZILBERBERG, 2007, p.16)

Ainda de acordo com o teórico, enquanto o acontecimento suscita a surpresa, no

momento mesmo em que o sujeito entra em contato com o objeto e é absorvido por ele,no fato

o objeto é que é absorvido pelo sujeito. O estudo empreendido por Zilberberg parte, assim,

dos modos de eficiência, existência e de junção, considerando a noção apresentada pelo

dicionário francês Micro-Robert, segundo o qual modo é a forma particular pela qual se

apresenta um fato.

O modo de eficiência, que Zilberberg assume ter tomado de empréstimo aCassirer74

está ligado à asserção ou maneira pela qual uma grandeza se instala num campo de presença.

Se esse processo for efetuado a pedido, segundo o desejo do sujeito, nesse caso teremos a modalidade do conseguir. Se a grandeza se instala sem nenhuma espera, denegando ex abrupto as antecipações da razão, os cálculos minuciosos do sujeito, teremos a modalidade do sobrevir. Do ponto de vista paradigmático, o modo de eficiência é estruturado pela distinção do conseguir e do sobrevir. (ZILBERBERG, 2007, p. 18)

Para melhor entendimento das diferenças entre conseguir e sobrevir, Zilberberg

relaciona o primeiro ao estilo clássico, cuja simplicidade e aproximação com a natureza

tornam o conteúdo previsível e facilmente acessível ao sujeito; ao passo que o segundo modo

de existência, ele exemplifica com o estilo barroco, que com seus contrastes e excessos,

provocam surpresa ou, seguindo o pensamento de Descartes, admiração: “Assim que o

primeiro encontro de algum objeto nos surpreende e que o julgamos novo e muito diferente do

que conhecíamos até então ou do que supúnhamos que deveria ser, esse fato nos faz admirá-lo

e ficamos espantados.” (DESCARTES, 1991, pp. 108-9) O que se segue a esse encontro, diz

Zilberberg, é o sujeito de estado, “em ‘admiração’ cartesiana (...)depois, dali em diante,

marcado pelo ‘que lhe aconteceu’”(ZILBERBERG, 2007, p.22)

propõe-se a lançar um novo olhar sobre essa grandeza : “O que merece, o que vale a pena ser dito?” (ZILBERBERG, 2007, p. 14)

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Em estudo posterior, intitulado Sur la dualité de La poètique,75 Zilberberg volta ao

tema para dizer que o acontecimento, ao contrário dos fatos cotidianos, é dotado de força

sensorial e raridade (o admirável, o bizarro, o fortuito e o insólito), condicionadas pelas

subcategorias de andamento e tonicidade. Exemplificando: o Barroco é acelerado porque

causa surpresa, incômodo, e é instantâneo porque o estranhamento que suscita faz com que

ele escape ao sujeito; ao passo que o Renascimento é desacelerado pela uniformidade, é belo e

harmonioso, portanto, durável.

No capítulo seguinte, voltaremos a refletir sobre a linguagem barroca e o conceito de

acontecimento, para analisar a minissérie A Pedra do Reino. Antes disso, porém, faremos uma

breve leitura sobre a segunda jornada de Hoje é dia de Maria.

Figura 36 – Cena inicial da segunda jornada

3.4. NO SONHO DO GIGANTE

A segunda jornada de HDM foi ao ar dez meses após a primeira, em outubro de 1995.

E para quem assistiu àqueles oito episódios dos quais falamos até agora, essa segunda parte

começa com uma imagem familiar: Maria, com uma trouxinha de roupa às costas, andando

por um cenário rural, também semelhante à paisagem da primeira jornada, com a diferença de

que não há estradinha, nem casebre, apenas a vegetação econômica e os tons de amarelo no

75 O estudo foi tema de conferência apresentada na Universidade Federal Fluminense (UFF), em setembro de 2013.

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céu. Nota-se, também, maior incidência de verde na vegetação que, consequentemente, não é

tão ressequida quanto no cenário anterior. Maria anda em meio ao capim, enquadrada pela

câmara que, em movimento panorâmico, revela um tom de azul no céu e uma luz branca

intensa. Logo, surgem as primeiras ondas do mar, emoldurado, à direita, pelos contornos de

uma embarcação.

No plano sonoro, notas instrumentais da cantiga “se eu fosse um peixinho...”

reafirmam o espaço marítimo, enquanto a voz de Laura Cardoso apresenta a história: “Noite!

Antão começo ansim de supetão, dizendo pra quem crê que na vida tem muito mistério e que

o mundo ainda é império onde tudo é possível!”76 Dessa maneira, a promessa feita no final da

primeira jornada se cumpre: a segunda parte de HDM começa onde terminou aquela, ou seja,

nas franjas do mar. A menina, no entanto, está só, sem a companhia do ciganinho. Isso, mais

o fato de ela estar com a trouxa de roupa no ombro, indica que a retomada da história, embora

se dê basicamente no mesmo espaço, não configura o mesmo tempo em que a primeira

jornada foi interrompida, o que ficará claro na sequência do episódio.

Nessa cena inicial, se a voz da narradora mantém a ligação entre a obra e a literatura

oral, o conteúdo verbal, ao contrário da primeira jornada, pouco diz sobre o que virá,

nenhuma indicação sobre o tempo, o espaço e o sujeito da narrativa. Pelo contrário: fala em

mistérios, em que “tudo é possível”, sugerindo que coisas inusitadas podem vir a acontecer no

decorrer da narrativa, porém sem dar pistas sobre o rumo de tais acontecimentos. Tal

estratégia suscita a curiosidade e estimula o telespectador a acompanhar a narrativa

audiovisual, pois é pela imagem que se reconhece o espaço –primeiro o campo, depois o

litoral – e a figura da protagonista, Maria, cujo nome será citado na canção entoada pelo coro

de vozes que entrará em cena no corte seguinte.

E se no início da primeira jornada, o inusitado ficou por conta de recursos de desenho

animado e de bonecos interagindo com os atores, neste episódio, a surpresa vem justamente

na segunda sequência, no fundo do mar, onde

o elenco de atores forma um coro de vozes

que simboliza o canto do mar chamando por

Maria. A imagem de atores já conhecidos do

público de HDM, como Letícia Sabatela,

Rodrigo Santoro e Stênio Garcia,

76 HDM, segunda jornada,episódio 1.

Figura 37 – Nas franjas do mar

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caracterizados de personagens diferentes daqueles interpretados por eles na primeira parte da

obra, sugerem que a nova narrativa terá pontos de convergência e de divergência em relação à

trama anterior. A principal novidade, no entanto, é a presença física de Laura Cardoso, até

então reconhecida apenas pela voz.

À parte as antecipações que a presença dos atores nesta primeira cena representa, no

entanto – até porque há que se considerar a possibilidade de que parte dos telespectadores

pode não ter assistido aos episódios anteriores – é certo que a melodia envolvente executada

harmoniosamente pela orquestra e pelo coro de vozes, ao mesmo tempo em que atrai a

menina para o fundo do mar, também acaba por seduzir o telespectador a entrar na trama,

nesse início de programa. Novo corte e a sequência, agora em desenho animado, mostra uma

boneca77 caindo ao mar e tentando agarrar uma chave que se destaca de outros objetos, que

também afundam na água. Ouve-se a voz de Maria, gritando “Não, não!” 78, e em seguida vê-

se a boneca emergindo, batendo-se com as ondas e, no corte seguinte, a menina sendo jogada

na praia. Esta é, portanto, a situação inicial da narrativa: Maria sai de casa e encontra o mar. O

primeiro ponto de virada é quando ela é engolida e devolvida pelo mar, porém noutro tempo.

O tempo, aliás, é o elemento determinante nessa nova versão de HDM, e isso é

afirmado repetidas vezes, nesse início de história, a começar pela letra da canção: “É o tempo

de antes, lá detrás...O barco do tempo largou a terra, deixou o cais.”79 Mas é na sequência da

cena que a localização temporal se sobrepõe ao espaço. Quando Maria cai no mar e é jogada

novamente às margens deste, a narração em off é reintroduzida: “Antão, era uma vez... Faz de

conta que o mundo inicia e era o primeiro dia que Deus criou. Dentro dele tava Maria. Dentro

dela o coração estalô. Faz de conta, menina, que o tempo inicia...” 80 E na sequência, ao

sentir-se perdida, não é ao espaço que a menina se refere ao pedir ajuda a uma lavadeira que

encontra no caminho, mas ao tempo: “Dona! Dona, me acode! Tô perdida! (...) Que tempo é

esse, Dona Lavadeira? (...) Quero meu tempo de vorta!”.81

Assim, pois, temos o primeiro enunciado de estado: Maria está em disjunção com o

seu tempo e, consequentemente, com a sua família, o mesmo enunciado de estado da primeira

jornada, embora provocado por acontecimentos outros. Quanto ao objeto de desejo, há uma

inversão de valores: se, na narrativa anterior, ela deseja chegar às franjas do mar para 77 A boneca substitui a atriz na interpretação de Maria. 78 Fala de Maria, episódio 1. 79 Fragmento do canto entoado pelo elenco, simbolizando o som do mar, episódio 1. 80 Narração em off, episódio 1. 81 Fala de Maria, episódio 1.

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encontrar o amor, nesta, Maria deseja retornar, encontrar o caminho de volta. A manipulação

é feita pela lavadeira, e se dá por sedução, que é quando o manipulador manifesta um juízo

positivo sobre a competência do sujeito. Ao dizer frases como: “Segue, fia!” e “Corage! É só

dá o primeiro passo”82, a lavadeira está dizendo a Maria que ela é capaz de conseguir o que

deseja.

Dessa maneira, a competência da menina, pelo menos por enquanto, é apenas

subjetiva. A imagem da chave se perdendo no mar é uma alusão ao objeto mágico com que

Maria realizou sua performance na primeira jornada. Aqui, no entanto, a referência a ela é

feita de maneira bastante sutil, insuficiente para estabelecer um sentido que relacione esse

objeto à competência principal nessa nova narrativa, especialmente para o espectador que não

tenha acompanhado a primeira jornada de Maria.

Encorajada pela lavadeira, a menina dá o primeiro passo e se encontra com um Pato

que tenta voar, e uma Cabeça de marionete. Ela segue caminho com os dois até se depararem

com o Gigante adormecido, em cujo sonho habita o mundo, conforme é revelado pela Cabeça:

“Quando inda não tinha mundo, nem gente, nem bicho, nem nada, tinha um gigante muito

poderoso que um dia dormiu e sonhô. Sonhô com rio, montanha, mata, bicho de toda

colidade. Sonhô com tudo do mundo. Sonhô até com nós.”83 É assim que a menina – e, por

extensão, o telespectador – fica sabendo que ela está dentro de um sonho e que a única

maneira de sair dele é acordando o gigante. A despeito do alerta da Cabeça e do Pato, de que

o mundo acabará quando o gigante acordar, Maria tenta fazê-lo e é engolida, cai em um lixão

e reencontra a menina Carvoeira, de quem recebe de presente um binóculo antigo, detentor de

poderes mágicos. Maria, assim, está munida de mais uma competência, desta vez concreta,

para seguir adiante em busca do caminho que a levará de volta para casa. E o que ela vê

através das lentes do binóculo, nesse primeiro momento, é a cidade grande.

Tão logo experimenta o binóculo, Maria já está em meio à confusão da cidade e lá se

depara com obstáculos similares àqueles que ela encontrou no sertão da primeira jornada: a

fome, a exploração de trabalho infantil e tentativa de exploração sexual, por exemplo. As

situações em que tais problemas se lhe apresentam, no entanto, são adaptadas ao espaço

urbano: o seu oponente principal continua sendo Asmodeu, porém aqui ele é Cartola, o dono

do teatro de variedades que explora o trabalho da criança, primeiro como faxineira, depois

82 Fala da lavadeira, episódio 1. 83 Fala da Cabeça, episódio 1.

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como bailarina e, por fim, tentando submetê-la à prostituição. Dessa maneira, as narrativas

mínimas que compõem a narrativa principal pouco se inspiram na cultura popular – a não ser,

eventualmente, por frases feitas, alguma cantiga de roda e, claro, a narração oral.

3.4.1 A dona da voz

Há que se destacar, aliás, que a voz da narradora, nessa narrativa, tem presença mais

constante e incisiva do que na primeira jornada, não se limitando a abrir e fechar os episódios,

como naquela, mas interferindo sistematicamente na história, a ponto de interagir com os

personagens em alguns momentos e dizer-lhes o que fazer. É o que acontece, por exemplo,

quando dois bêbados comentam, em frente a um cartaz que anuncia Maria como a mais nova

atração do teatro, sobre a sorte da menina em ter ficado famosa e rica da noite para o dia,

momento em que se ouve a voz da narradora, indagando “E a infância, onde é que fica? Tira o

nome de Maria da boca que dessa estória louca ocês num sabe um á! Vão andá! Pega a trilha!

Minha réiva num é pouca, co’essa história à revelia!”84

Pela expressão corporal dos atores, vê-se que a voz é ouvida pelos bêbados, mas estes,

confusos, ignoram-na e seguem cambaleantes. Noutra sequência, no entanto, já no segundo

episódio, quando Maria encontra Dom Chico Chicote (Rodrigo Santoro) pela primeira vez, e

este se apresenta como um servidor dos sonhos, do amor e da poesia, novamente a narradora

intervém, travando com Chico o seguinte diálogo:

NARRADORA: E vamo parando nesse tanto, que tô saindo do meu canto pra vê mió essa estória... DOM CHICO CHICOTE Quem vem lá? NARRADORA Ara, quem?!!! Sô eu, seu Dom Chico Chicote! Aquela que tá contando a estória d’ocês, ué!85

Dentre as classificações de pontos de vista apontadas por Norman Friedman (2002), a

narradora de HDM se aproxima mais do tipo “onisciente intruso”. Entretanto, Friedman, ao

falar sobre as intromissões e generalizações do narrador, referia-se a digressões que muitas

vezes mais afastam do que aproximam o narrador (e consequentemente, o leitor) da história

84 Fala da narradora, episódio 2. 85 Episódio 2.

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narrada, propriamente86. Embora também afirme que o autor intruso possua “um ponto de

vista ilimitado – portanto, difícil de controlar” (FRIEDMAN, 2002, p. 173), ele não previu

que essa flexibilidade pudesse chegar ao extremo de colocar o narrador em contato com os

personagens, como uma espécie de interlocutor extradiegético.

Dessa maneira, ao que parece, HDM inaugura uma nova possibilidade de narrador

intruso, que pode ser explicado justamente pelos empréstimos que a narrativa faz da literatura

oral, onde aquele que conta – e muitas vezes, (re)inventa – uma história oralmente, se concede

o direito de intervir, de dirigir-se aos personagens com conselhos e repreensões, até porque

muitas vezes o ouvinte – especialmente sendo uma criança – é feito protagonista da ação

narrada, como é o caso da minissérie. A proximidade que a narradora demonstra ter com os

personagens e a liberdade que ela assume para interferir nas ações daqueles será esclarecida

ao final da trama, quando a dona da voz é figurativizada na avó que conta histórias para a neta

doente, que é a própria Maria.

Diferentemente da primeira jornada, que apresenta uma superposição de isotopias, o

que faz com que o discurso inteiro possa ser lido de, pelo menos, duas maneiras diferentes,

nessa segunda jornada, embora a pluri-isotopia também se faça presente, há claramente a

articulação de duas isotopias independentes, apontando para duas narrativas paralelas, o que

fica evidente a partir da cena em que a narradora oral se torna personagem. A presentificação

da narradora, portanto, e de duas caracterizações da mesma Maria, indicam, ora uma narrativa

em que a menina é ouvinte, e que chamaremos aqui de “realidade ficcional”, ora outra

narrativa, que é um “faz de conta”, fruto do sonho da menina, uma representação ficcional

daquilo que vai sendo narrado e que é, portanto, uma ficção dentro da ficção, da qual Maria é

protagonista.

Vale a pena ressaltar, ainda, que as figuras dessa narrativa paralela87 são elementos

que apontam um tempo e um espaço mais modernos, onde há luz elétrica e chuveiro, por

86Segundo explica Arnaldo Franco Júnior, “O narrador que utiliza esse foco narrativo se interpõe entre o leitor e os fatos narrados, elaborando pausas frequentes (digressões) para a apresentação de sua opinião e de seu posicionamento, seja em relação à história e aos elementos que a constituem, seja em relação aos comportamentos e/ou valores sociais aos quais a história narrada faz referência e com os quais dialoga.” (FRANCO JUNIOR, 2009, p. 42). 87 Estamos considerando como paralela a narrativa que se revela ao final da trama; e principal, a história de “faz de conta”, uma vez que esta apresenta-se mais completa e complexa do que aquela.

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exemplo. Da mesma maneira a composição do espaço – urbano, talvez88 – e dos personagens,

se aproxima do naturalismo que esteve ausente até então, na minissérie, constituindo a

isotopia da “realidade ficcional”, em oposição ao caráter de “faz de conta”, este conferido

principalmente pela teatralidade predominante na linguagem utilizada na construção da

narrativa principal.

Vale a pena ressaltar, ainda, que nessa segunda jornada a fantasia inerente aos contos

populares que inspirou a maioria das sequências, na primeira parte de HDM, é substituída

pela predominância de questões da realidade, mesmo na narrativa de faz de conta. Porém, na

mesma proporção em que os dramas sociais quebravam o tom fantástico na primeira jornada,

nesta, é a fantasia que quebra o ritmo por vezes excessivamente realista do enredo. Essa

inversão de valores é introduzida no diálogo entre Maria e a menina Carvoeira, ainda dentro

da barriga (lixão) do Gigante, pouco antes desta presentear aquela com o binóculo mágico:

CARVOEIRA Nesse lugar fica tudo o que a cidade joga fora, até as pessoa. MARIA Entonce, nóis tamo mermo no meio do pesadelo do Gigante? CARVOEIRA Não, Maria, tamo é no meio da realidade do mundo.89

Seguindo essa proposta, a família que Maria vê ceando, pela janela de uma casa,

quando ela própria está perambulando pelas ruas, sem teto e sem comida, foi composta em

desenho animado com bonecos feitos de massinha; a bailarina que, por não conseguir mais

dançar é jogada na rua por Cartola, leva o nome de Boneca, porque realmente é uma90, assim

como são de brinquedo as armas usadas pelos soldados, nas sequências de guerra. A guerra,

por sua vez, não é fruto de atos humanos, mas consequência do despertar do gigante e da

ganância do demônio. Dessa maneira, a fantasia contribui para suavizar as sucessivas

situações dramáticas que a protagonista encontra nesse passeio pela cidade grande.

Voltando ao encadeamento dos acontecimentos, no segundo capítulo Maria faz

sucesso como bailarina, mas ao descobrir a verdadeira identidade de Cartola, ela foge e volta

para as ruas, onde conhece Dom Chico Chicote a quem a narradora confere o papel de

88 Embora o roteiro da obra indique que a casa de Maria, na narrativa paralela, esteja localizada na periferia de uma cidade, pelo audiovisual é impossível afirmar isso, já que o conforto da eletricidade, atualmente, estende-se também a grande parte das moradias rurais. Dessa maneira, a localização espacial dessa narrativa fica por conta da leitura de cada um. 89 Episódio 1. 90 A Boneca, neste caso, é interpretada pela atriz Inês Peixoto. Sobre isso falaremos um pouco mais no próximo item.

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proteger Maria. Essa figura, uma clara alusão ao Dom Quixote, de Miguel de Cervantes,

assume, assim, a função de adjuvante da heroína. É, no entanto, uma relação de troca, pois a

menina também desempenha o papel de adjuvante para o desajeitado Chico Chicote, já que a

partir desse encontro, torna-se impossível separar o percurso narrativo de um e outro.

Chico Chicote, ao mesmo tempo em que auxilia a menina, é também sujeito das boas

ações que ela desempenhará daí por diante, para merecer encontrar o caminho de volta para

casa. Além disso, se, na trajetória de Maria, há uma ênfase no resgate da infância, é através de

Chico Chicote que o tema do amor romântico – objeto da busca da heroína na primeira

jornada – é retomado, por meio de seu encontro com a espanhola Alonsa, batizada por Chico

de Rosicler (Letícia Sabatela). Os três, por seu turno, pregam e praticam o amor universal, um

dos grandes temas dessa narrativa, e também competência para vencer o mal.

Dessa maneira, se Chico Chicote garante comida e companhia para Maria e encoraja-a

a continuar acreditando no ser humano, Maria defende o amigo em um julgamento e é quem o

salva quando, depois de perder Alonsa/Rosicler na guerra, ele se joga no mar do

esquecimento. Depois disso, mesmo sem se lembrar da menina, já que perdeu toda a

memória, Chico Chicote toma-a como guia. Ao reafirmarem a amizade que os une, a força da

emoção dos dois acaba por provocar a queda do gigante e abrir uma brecha num muro, por

onde se insinua a paisagem campestre do início da jornada. Maria finalmente encontra a saída

que a levará de volta ao campo, mas antes de sair, levando o amigo consigo, ela professa: “As

contas do meu rosário são bala de artilharia, que combatem os infernos gritando: Ave-Maria.”

O amor e a fé se revelam, assim, as principais armas com que Maria encontra o caminho de

volta, já que o binóculo que a trouxe à cidade fora pisoteado e destruído pouco depois de

Chico Chicote revelar que tal objeto serve para revelar o invisível do mundo, que é justamente

o amor, pois “O mundo não é o que a gente vê. O mundo é o que ele esconde.”

Seja como for, durante o percurso dos dois amigos em solo sertanejo, quando a

narrativa já caminha para o seu desfecho, novos adjuvantes surgirão e, com eles, novas

competências: são os cavaleiros da aurora e do dia, que lhes concedem a realização de dois

desejos, o primeiro de livre escolha, o segundo, a justiça. Com o primeiro, Maria abdica do

sonho de voltar para casa e pede que Chico Chicote finalmente realize seu sonho de voar. Ele

consegue, mas acaba caindo e morrendo. Apesar deste desfecho de disjunção com a vida, a

sanção final para Dom Chico Chicote é de junção com o amor, pois ao morrer, ele reencontra

Rosicler.

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Para Maria, a jornada não acabou ainda: após dormir por cem anos, ela acorda de novo

fora do seu tempo, recupera a chavinha que estava perdida e enfrenta uma nova prova, quando

encontra a guardiã da escuridão, que tenta lhe cortar o fio da vida. A narradora, nesse

momento, se materializa na figura de guardiã da vida, e encoraja Maria a seguir em frente. Ela

encontra apenas resquícios do que foi o sítio, e vai reconstruindo, na memória, fragmentos da

primeira jornada, quando vivia com o pai, a mãe e os irmãos. Por fim encontra o ciganinho a

quem entrega a chave do amor e dá adeus ao mundo encantado.

É a partir daqui que a narrativa se desdobra em duas. Maria delira, e a avó, que é a

narradora em ambas e também a guardiã da vida na narrativa fantástica, segue lhe contando a

história, enquanto amassa ervas com que tenta conter a febre da menina. Nos dois percursos, a

avó é aquela que instiga a menina a não desistir, de voltar para casa em um, e de vencer a

febre, no outro: “O remédio cura o corpo, mas o que cura a alma são as história. Acorda,

Maria. Escuita! Lá longe evém vindo o terceiro cavaleiro!”91

Voltamos, então, para a narrativa principal, no momento em que aparece, ameaçador,

o cavaleiro da noite, a quem Maria enfrenta e pede que lhe seja concedido o caminho de volta.

Quando está prestes a atravessar a cerca que a separa do sítio, ela ainda tem um desafio a

encarar: Asmodeu reaparece e ela o enfrenta com o benefício da justiça, concedido

anteriormente pelo cavaleiro do dia. Atingido por flechas, Asmodeu se transforma em um

inofensivo e crente peregrino, a quem Maria dá o nome de Seu Zé do Riachinho. A exemplo

da primeira jornada, também nesta a grande performance de Maria para merecer seu prêmio é

vencer o mal, representado por Asmodeu, no mundo encantado, e pela doença, na vida “real”.

Quando Maria finalmente vence o último obstáculo e segue em direção a casa, é na

narrativa paralela que ela reencontra a família, acordando do delírio provocado pela febre.

Assim, o retorno de Maria, que numa narrativa significa reencontrar o sítio, na outra significa

voltar à vida. E é voltando ao começo, que a minissérie termina, ao mesmo tempo em que une

definitivamente as duas narrativas. A voz que narra é a mesma do início, no entanto, o plano

visual constitui-se de outro tempo e outro espaço, que é o de agora da protagonista. Numa

casinha simples, a menina convalescente, deitada em uma cama, ouve atenta a voz pausada da

avó que lhe acaricia lentamente os cabelos, enquanto (re)inicia a história:

No cumeço de tudo, a vida era fortaleza e todo vivente era estrela na beleza do céu.(...) Vai daí que seguiu muitas eras... O mundo envelheceu, o mal

91 Fala da avó, episódio 5.

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campeou e um Gigante com dentes de fera desandou todas as coisas em desespero, descrença e confusão. Mai, em argum lugar, no fundo do humano coração, morava a inocência. E ela clamou pela renovação do mundo. Longe, num lugar ainda sem nome, era uma vez uma menina chamada Maria. 92

3.5. LUZ E SOMBRAS, MÚSICA E DANÇA EM RITMO DE SONHO

Pela análise que fizemos até agora, já é possível notar que a ideia de que as aventuras

vividas por Maria são, na verdade, fruto de um sonho, refletem sobremaneira no ritmo da

obra. As narrativas mínimas são, muitas vezes, marcadas por descontinuidades, ou seja,

sucedem-se umas às outras sem que tenham concluído todas as fases, o que, por vezes, chega

a causar certo nonsense ou, pelo menos a ideia de que se perdeu alguma coisa.

A título de exemplo, temos, no terceiro capítulo, uma situação em que Nossa Senhora

Aparecida é levada presa por soldados logo depois que Maria, pelo binóculo mágico,

reconhece-a na lavadeira. Diante do desespero da menina, Chico Chicote promete libertar a

santa. Após uma longa sequência musical, em que o amigo conclama Maria e as pessoas na

rua a seguirem com ele em busca de justiça, Chico se vê sendo seguido por um grupo de

transeuntes. Ao avistar Asmodeu Cartola, a menina se perde do grupo, enfrenta-o com uma

cantiga que fala de fé, e logo já está noutra cena, na beira de um cais, sendo tentada por outro

disfarce de Asmodeu, o Marinheiro, a se jogar no mar do esquecimento. Novo corte e a cena

agora é na praça, onde Chico está sendo julgado.

Dessa maneira, a sequência narrativa que começa com a prisão de Nossa Senhora não

se conclui, pois a tentativa de libertá-la foi interrompida por novos acontecimentos dos quais,

ao contrário, não se conhece o início, tal qual acontece nos sonhos. Por que Dom Chico

Chicote está sendo julgado? Por tentar salvar a Santa oupela sua postura ao longo da

narrativa? A resposta é uma acusação imprecisa, proferida por Asmodeu, aqui no papel de

Juiz, que tanto pode indicar um quanto o outro motivo: “Está aberto o julgamento, Senhores!

Pra que precisamos desse tipo de gente? Em que ele é útil à nossa cidade? Cultiva ideias

antigas, utópicas, perturba a ordem pública e agita esse povo miúdo, sem nome nem

sobrenome, que vive pelas beiras!” 93

92 Fala da avó, episódio 5. 93 Fala de Asmodeu Juiz, episódio 3.

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Seja como for, ao contrário da primeira jornada, em que uma sequência era sempre

costurada à seguinte, por meio de provas, sanções e competências, nesta jornada, as

sequências são marcadas pela descontinuidade. Assim, ao ser condenado ao mar do

esquecimento, Chico é salvo, não por uma competência sua ou de Maria, mas pelo início de

uma nova situação dramática: o despertar do Gigante que dá início à guerra. Apesar de

descontínuas, as narrativas mínimas apresentam elementos que conferem unidade à história,

quais sejam as dificuldades e opressões enfrentadas por Maria e Chico na busca pelo objeto de

desejo.

Embora as interrupções do nível narrativo provoquem, por vezes, certa aceleração no

ritmo do conteúdo da obra, é no plano de expressão que o andamento se mostra mais intenso,

reforçando, assim, a atmosfera onírica que predomina na obra. É o que acontece no final do

segundo e início do terceiro

capítulos, quando Chico tenta

voar com asas mecânicas em

pleno meio da rua. A sequência

visual é marcada por distorções

provocadas por luzes intensas,

tons escuros, excessos de

objetos de cena e,

principalmente, por planos

muito fechados, movimentos de

câmara bruscos e cortes

abruptos no processo de

montagem; enquanto, no plano sonoro, nota-se a sobreposição de sons diversos: acordes

metálicos na música, buzinas, barulho de engrenagens, som de vozes.

Cabe aqui retomar os conceitos de Ivana Fechine, aos quais já me referi no segundo

capítulo desta tese, segundo os quais o ritmo no audiovisual é determinado pela combinação

de três pares categoriais, “pelo modo como operam com a duração, a frequência e a

combinação no tempo de elementos sintáticos dos dois sistemas, o musical e o visual”

(FECHINE, 2009, p. 349). Nas cenas que compõem a sequência narrativa tomada como

exemplo, o que se percebe é que tanto o plano visual quanto o auditivo são marcados pela

intensidade, na categoria do andamento; pela descontinuidade, na categoria da frequência; e

Figura 38 – Chico Chicote tentando voar, com operadores de luz ao fundo

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pela acumulação, no que se refere à combinação de elementos. O ritmo dessa sequência,

portanto, é extremamente acelerado, passível de causar certo estranhamento, ou mesmo

incômodo, no telespectador que se sente ofuscado pelo acúmulo e rapidez com que os

recursos do plano de expressão preenchem o espaço da tela, por vezes ofuscando umconteúdo

que, afinal, é extremamente simples: Chico Chicote está tentando voar, porém se dá mal, é

ameaçado pelos veículos que transitam na rua e ridicularizado pelas pessoas que o assistem.

Há que se destacar, ainda, a metalinguagem que acompanha toda a composição dessa

jornada de Maria, e que se revela já no primeiro corte quando, na cena do fundo do mar,

veem-se atores (ou membros da equipe técnica), manipulando os mecanismos que dão

movimento às placas de plástico utilizadas na composição das ondas do mar. Da mesma

maneira, na sequência em que Chico Chicote tenta voar, são visíveis os canhões de luz – e

seus operadores -que ofuscam o personagem, simulando os faróis dos carros. Ao trazer

procedimentos da composição das cenas para dentro do enquadramento, a produção de HDM

abre mão de qualquer possibilidade de aproximação da narrativa com uma simulação da

realidade, assumindo, ao contrário, a função poética tal qual a definiu Roman Jakobson, ou

seja, “aquela que promove o enfoque da mensagem por ela mesma” (JAKOBSON, 1969, p.

128.).

Foi, portanto, em nome desse descompromisso com o mundo natural, que Dom Chico

Chicote foi caracterizado com um livro no lugar do cabelo e penas coloridas como bigode,

além do andar robotizado; seus amigos são de sucata, o cachorro de rua é uma marionete; e a

Boneca, mesmo sendo interpretada por uma atriz, gesticula de forma mecânica. Não podemos

deixar de referir, ainda, que a boneca que afunda no mar, no início do primeiro episódio

substitui a figura da atriz Carolina Oliveira na interpretação de Maria. Embora o uso de

bonecos e marionetes tenha sido um recurso recorrente na construção da primeira jornada,

nessa nova versão, eles apresentam algumas novidades, como a função de dividir com uma

atriz a interpretação de um mesmo personagem, ou de, ao contrário, serem interpretados por

atrizes, como acontece com a Boneca (Inês Peixoto) e a Cabeça (Fernanda Montenegro).

Para finalizar essa breve análise sobre a jornada de Maria, não podemos deixar de citar

o caráter musical adotado para a produção dessa jornada. Tendo como característica principal

o uso do canto ao invés de diálogos, na interlocução entre personagens, os musicais, famosos

nos palcos da Broadway e, posteriormente, em muitos filmes hollywoodianos, têm pouca – ou

nenhuma - tradição no Brasil.

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Nessa segunda jornada de HDM, a maioria das sequências foi composta

musicalmente, o que acaba por conferir à narrativa um andamento mais lento, já que muitas

vezes uma situação que poderia ser resolvida rapidamente, por meio de um diálogo

convencional, estende-se por minutos, na linguagem da música e, às vezes também da dança.

Tal opção, que por vezes pode provocar encantamento no telespectador – como na sequência

do fundo do mar, por exemplo –, noutras pode resultar enfadonha para um receptor pouco

acostumado com tal linguagem. Assim parece ser, por exemplo, a sequência em que Asmodeu

se transfigura em gato, para enganar Maria.

Na primeira situação, a presença da música tal qual se apresenta capta o telespectador

pela surpresa, por ser a primeira sequência musical da obra e, claro, pelo equilíbrio rítmico

com que se dá a sincretização dos planos visual e sonoro. No plano imagético, a jornada de

Maria começa em solo sertanejo, conforme já dissemos, uma paisagem familiar ao

telespectador, abrindo-se depois para o espaço litorâneo, desejado pela menina na primeira

jornada e onde ela fez jus à sanção de conjunção com o amor.

Assim, pois, a imagem do início dessa nova caminhada de Maria, inevitavelmente

levará o telespectador ao final da última, constituindo-se numa promessa de continuidade de

uma narrativa cheia de aventuras e com final feliz. A música, que se inicia com suaves notas

instrumentais de flauta e piano, abarca outros instrumentos, assim como o coro de várias

vozes, masculinas e femininas, entoando em perfeita harmonia, o refrão que diz “Ah, mar...

Amar! O maior mistério da vida é amar!” A letra da canção, como se vê, reafirma a atmosfera

de mistério a que a narradora se referiu no texto de apresentação, com um acréscimo

importante: se o maior mistério é o amor, então se pode esperar uma história que também fale

de amor, tema sedutor por si mesmo.

No plano visual, após Maria se colocar de frente para o mar, já ao som das primeiras

notas musicais, tem-se um corte revelando um fundo azul. Um movimento de câmara de cima

para baixo, suave como a melodia, vai aos poucos enquadrando os donos das vozes,

começando pelo rosto de Laura Cardoso, cuja presença física se constitui novidade nesta

jornada. Na medida em que os demais rostos vão aparecendo, outra surpresa: eles estão presos

por alças, como bonecos, naquilo que parece ser o casco de uma embarcação. O movimento

simula ondas que se movimentam ao ritmo da melodia e, aos poucos, em panorâmica, a

câmara revela os músicos executando seus instrumentos, e homens manipulando engrenagens,

como aquela que dá movimento às ondas do mar. É tudo novo e familiar ao mesmo tempo.

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Novo porque são novos personagens

em novo espaço; e familiar pela

presença de Maria, pelos traços de

uma estética já conhecida e pela

promessa de sequência de uma

narrativa também conhecida e que, a

julgar pela recepção do público e da

crítica, foi plenamente aprovada.

Já na segunda situação, que

vai ao ar no final do quarto episódio,

o espaço é a cidade devastada pela guerra. No plano visual, temos um cenário saturado pelos

tons escuros e a sobreposição de objetos, tais como ferros retorcidos e escombros, produzindo

um efeito de acumulação. Acentuando o ritmo visual da sequência, a montagem das cenas é

constituída de cortes sucessivos e descontínuos, em que predomina os de planos de detalhes

que focalizam,por exemplo, a maquiagem sombria dos olhos do gato.

No plano sonoro, há um contraponto na base instrumental da música, onde se alternam

trechos marcados pela superposição de sons metálicos, produzindo um efeito de acumulação e

descontinuidade, com outros segmentados, ou seja, “marcados por uma maior ‘economia’ de

elementos sonoros” (FECHINE, 2009, p. 355). Tais trechos, de andamento mais lento,

acompanham a entonação da letra das canções que compõem a sequência, ora suave na

acolhida de Maria, ora eufórica na advertência dos soldados, ora pausada e marcada pelas

intenções duvidosas do gato. Dessa maneira, o ritmo musical é composto de acelerações e

freadas, movimento este que contribui para que a indisposição do telespectador frente a mais

uma investida de Asmodeu contra a heroína Maria se intensifique. A presença de Maria, no

entanto, e tudo o que ela representa de inocência e bondade, é o elemento que garante a

conjunção do enunciatário com a obra, mesmo em cenas como esta, em que o ritmo parece

não proporcionar o mesmo efeito agradável94 produzido por tantas outras sequências da

primeira e segunda jornadas.

Para finalizar essa breve análise sobre a segunda jornada de Hoje é dia de Maria, vale

destacar que a intertextualidade volta a ser destaque na composição de cenários e figurinos, 94Retomamos a ideia de Angel Rodriguez, citado na Introdução desta tese, segundo a qual o ritmo é responsável pelo efeito agradável ou desagradável que o obra suscita no espectador.

Figura 39 – Asmodeu disfarçado de gato na cidade devastada

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conforme apontou Marcela Ribeiro Casarin, no artigo Hoje é dia de Maria: a influência das

artes visuais nas direções de arte e fotografia (2008). A composição de Dom Chico Chicote,

por exemplo, se, pelo aspecto psicológico, herdou os sonhos e delírios de Dom Quixote,

fisicamente, além do figurino que lembra as armaduras das novelas de cavalaria, empresta da

pintura The Librarian95, de Giuseppe Arcimboldo, os traços alongados do rosto, a

cabeleira/livro e o bigode/pena. Já para atingir o tom opressor e caótico do espaço urbano, “as

pinturas do norte-americano Robert Rauschenberg e as esculturas de ferro do suíço Jean

Tinguely foram usadas como base para a cenografia.” (CASARIN, 2008, p. 9).

De maneira geral, percebe-se, nesta jornada, mais do que na primeira, o efeito de

colagem, ou bricolagem como quer Floch (2004), na medida em que se notam fragmentos de

outras obras coladas à nova composição textual e imagética. É o caso de versos do poema O

lutador, de Carlos Drummond de Andrade, usados na letra da canção com que Chico Chicote

conclama o povo a libertar Nossa Senhora. No plano visual, há recortes de filmes de guerra

colados às sequências de lutas, bem como cenas da primeira jornada ilustrando o retorno de

Maria ao sítio. O banquete imaginário entre um rei e um faminto, presente no filme Lavoura

arcaica, do mesmo diretor, é repetido com Chico Chicote e Maria; e a cena em que Maria, ao

voltar para casa encontra um canavial no lugar do sítio, deixa entrever a experiência pessoal

de Carvalho no reencontro com a casa onde sua mãe passava férias, na infância96. A exemplo

da primeira parte da minissérie, nesta, a bricolagem não chega a constituir obstáculo à

intelecção da obra, embora o maior número de sobreposições, visuais e sonoras, possa causar,

por vezes, algum desconforto. De maneira geral, no entanto, a junção de fragmentos diversos

ajusta-se à proposta narrativa, de forma a ser absorvida por todos e por cada um, moldando-se

à bagagem e à sensibilidade de quem a assiste.

95A imagem utilizada nesta página está disponível em pt.wikipedia.org/wiki/Giuseppe_Arcimboldo 96 A experiência em questão é relatada em entrevista sobre o filme Lavoura Arcaica, e refere-se à viagem feita pelo diretor a Maceió, onde encontrou o antigo sítio da família de sua mãe coberto pela monocultura da cana-de-açúcar. (CARVALHO, 2002, P. 28)

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Figura 41 – Chico Chicote

Figura 40 – The Librarian, de Arcimboldo

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IV -A PEDRA DO REINO: “ROMANCE ENIGMÁTICO DE CRIME E SANGUE”

A designação colocada entre aspas, no título acima, foi transcrita da introdução do

Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, de Ariano Suassuna,

que deu origem à minissérie A pedra do Reino. Essa é apenas uma das muitas tentativas de

definir o gênero desta obra cuja extensão do título faz jus às 742 páginas de texto do romance.

O próprio narrador, e ao mesmo tempo autor fictício, Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, à

medida que a narrativa se desenrola, parece não estar bem certo do gênero da obra:

“compêndio narrativo do peregrino do Brasil”, “romance de instrução criminal”, “romance

heroico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa

e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertaneja” ou, ainda, de “uma espécie de

Sertaneida, Nordestíada ou Brasiléia” são algumas das definições que Dinis Quaderna dá

àquela que ele pretende será a obra que o nomeará o grande gênio da raça brasileira.

A escritora Rachel de Queiroz, que assina a apresentação97 da primeira edição da obra,

confessa sua dificuldade em definir o seu gênero:

A primeira vez que Ariano Suassuna me falou na Pedra do Reino disse que estava escrevendo “um romance picaresco”. (...)

Mas o paraibano me enganou. Picaresco o livro é – ou antes, o elemento picaresco existe grandemente no romance, ou tratado, ou obra, ou simplesmente livro – sei lá como é que diga! Porque depois de pronto A Pedra do Reino transcende tudo isso, e é romance, é odisseia, é poema, é epopeia, é sátira, é apocalipse. (QUEIROZ, 1971, in SUASSUNA, 2007, p. 15)

97 O texto em questão, de 1971, encontra-se reproduzido na 9ª edição (2007) utilizada para este trabalho.

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Dessas poucas informações já é possível imaginar que A Pedra do Reino, de Ariano

Suassuna, não é exatamente uma obra de fácil leitura, pelo menos se comparada aos contos

populares dos quais se originou a minissérie Hoje é dia de Maria. Mas obras literárias de

difícil leitura não precisam, necessariamente, dar origem a obras audiovisuais também de

difícil leitura, a não ser quando os criadores da segunda procuram, na medida do possível, ser

fiéis à primeira.

O termo fidelidade é constantemente questionado pelos críticos que se ocupam de

adaptações de obras literárias para o cinema e a TV e, se dependesse deles, seria mesmo

abolido. A crença mais defendida, possivelmente herdada de Roman Jakobson, quando este

diz que “só é possível a transposição criativa” (JAKOBSON, 1969, p. 64), é que toda

adaptação – ou transposição intersemiótica, como prefere o teórico russo - implica em uma

nova obra e, consequentemente, em uma nova autoria, dispensando, portanto, a tão polêmica

fidelidade. Para resumir essa posição, transcrevemos uma fala de Evaldo Coutinho, em que

defende a autonomia da linguagem audiovisual em relação à literatura.

O princípio da fidelidade à obra de literatura, o respeito à sua integridade, haveria de receber sérias transgressões, primeiramente em virtude daquela faculdade de revelação direta, do poder do resumo ainda mais requintado pelo emprego do subentendimento. (COUTINHO, 1989, p.107)

São inquestionáveis as particularidades que uma obra adquire ao ser submetida às

coerções de uma linguagem diferente daquela na qual foi originalmente concebida.

Entretanto, se não é possível falar em fidelidade stricto sensu, é possível, por outro lado,

identificar uma maior ou menor proximidade entre uma recriação e a obra de origem. E na

produção de Luiz Fernando Carvalho, não obstante o fato de serem – à exceção das novelas

e da recente série Suburbia – todas originárias da literatura, pode-se afirmar que há uma

tentativa máxima de aproximação, pelo menos no que diz respeito à estrutura narrativa e à

linguagem verbal, com o texto fonte. Basta assistir ao filme Lavoura Arcaica, cujas falas

dos narradores e interlocutores foram extraídas ipsis literis do romance homônimo de

Raduan Nassar, a ponto de dispensar a elaboração de um roteiro; ou a minissérie Capitu em

que “não há uma única palavra ou vírgula que não seja de Machado” (CARVALHO, 2009,

s/p). Sobre esse aspecto, Carvalho diz ainda:

Não acredito em adaptação, no sentido ortodoxo do termo, como injetar num romance novos personagens, palavras, tramas explicativas e paralelas ou mesmo desfechos que não existam. Sou completamente contra esse tipo de assassinato. Procuro entrar no livro como um leitor e extrair uma resposta criativa a essa leitura. (CARVALHO, 2009, s/p)

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Assim, pois, é que possivelmente a dificuldade de intelecção e aceitação de APR pode

ter origem na proximidade que ela mantém com a obra de Suassuna, risco que o diretor

conhecia e mesmo assim assumiu. É o que ele declara em entrevista concedida por ocasião do

lançamento de Capitu.

Trago as costas cheias de cicatrizes por ter feito A Pedra do Reino como fiz, e, sinceramente, buscava a mesma comunicação que busquei agora com Capitu, de Machado de Assis. (...) Em A Pedra do Reino, tinha total consciência de que se tratava de um romance hermético, mas instigante em seu universo humano e estético, portanto, além de homenagear o aniversário de seu autor, era fundamental presentear ao país seu universo poético sem desfigurá-lo. Não faria o menor sentido enxertar quinze personagens para saírem explicando o livro, ou soltar piadinhas aqui e ali, para transformar Quaderna num palhaço palatável para a classe média. Quaderna está ali, com todos os seus espinhos, que são a sua filosofia e sua mitologia. Quando me aproximei d’A Pedra do Reino, de universo hermético, centrado na cultura do Nordeste, o espectador do Sul pode se perder. Mas também pode se perguntar: “o que será Guerra de Princesa?” e, a partir daí, aprender sobre seu próprio país. É um ganho infelizmente não computável. (CARVALHO, 2009, s/p)

Tentar identificar os elementos responsáveis pelo hermetismo de A Pedra do Reino,

seja no plano do conteúdo, seja no plano da expressão, é o que faremos nas páginas que

seguem.

4.1. AS AVENTURAS DE UM QUIXOTE SERTANEJO ENTRE A FICÇÃO E A HISTÓRIA

A Pedra do Reino narra as aventuras, delírios e desventuras de Pedro Dinis Ferreira

Quaderna, um sertanejo contador de histórias – que se autointitula cronista-fidalgo, rapsodo-

acadêmico e poeta-escrivão – que recorre a seus antepassados e a suas memórias para lidar

com as inquietações existenciais e inspirar a escrita de uma grande obra literária que expresse

a verdadeira identidade nacional. Em seu “estilo régio” de enxergar e contar o mundo, ele usa

a imaginação para dar novo colorido à realidade. Assim é que ficção e fatos da história do

Brasil se misturam na narrativa.

Narrador/personagem da trama, Dinis Quaderna é bisneto de João Ferreira Quaderna,

o Execrável, personagem inspirado na história real do líder sebastianista João Ferreira, que se

proclamou legítimo rei do Brasil e causou a morte de muitos fiéis em nome da ressurreição de

Dom Sebastião, o rei português desaparecido em 1578, na batalha entre mouros e cristãos, em

Alcácer-Quibir, no Marrocos. O derramamento de sangue referido na obra teria ocorrido de

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fato em 1838, aos pés de duas rochas compridas e paralelas, conhecidas como Pedra Bonita –

nome primitivo da Pedra do Reino, na obra–, na região de São José do Belmonte, em

Pernambuco. A seita comandada por João Ferreira, formada por fanáticos religiosos, defendia

que D. Sebastião só ressuscitaria se a Pedra Bonita fosse banhada com sangue, de homens e

animais. Após muitas mortes, os fanáticos foram presos ou mortos pela polícia.

Quaderna junta à história de seu suposto bisavô, outro acontecimento trágico – a morte

misteriosa de um tio-padrinho, o rico fazendeiro Pedro Sebastião Garcia-Barreto, a quem se

refere também como rei. Depois de pesquisar a árvore genealógica da família, ele conclui que

sua família, tanto do lado paterno quanto materno, remonta ao rei português Dom Sebastião.

Influenciado pelas histórias de realeza e pela cultura sertaneja em que foi criado, convivendo

com cantadores, poetas populares, folguedos e cavalhadas do sertão, Quaderna passa a sonhar

com um novo reino, do qual será ele o titular. Ele então vai à Pedra do Reino e, com uma

sucata encontrada dentro de uma lagoa, e que teria pertencido ao Execrável, coroa a si mesmo

como herdeiro legítimo do trono do sertão e do Brasil.

Disposto a escrever uma grande obra e “passar a perna” em seus mestres, Samuel

Wandernes e Clemente Ravasco, que também aspiram ao título de Gênio da Raça, Quaderna

forja uma denúncia contra si mesmo, a fim de ser convocado a prestar depoimento. Sua

atitude justifica-se: devido a uma proeminência óssea que ele tem no final da coluna, o

“cotoco”98, Quaderna não pode ficar sentado por muito tempo, o que lhe impedia de escrever

sua epopeia. Uma vez intimado a depor, poderia contar, em pé, toda a saga de sua família e

depois, então, tirar cópia dos autos, aproveitando-os para fazer apenas os ajustes literários.

A partir daí é que ele se junta com o conservador Samuel e o comunista Clemente para

criar uma Academia de Letras sertaneja. Das conversas travadas com os colegas

“acadêmicos”, Quaderna dá início ao projeto de escrever sua grande obra, na qual pretende

reunir referências eruditas, políticas e populares. Para tanto, mescla conhecimentos sobre

genealogia, astrologia, política, literatura e cultura popular. É dessas matérias que a obra se

constitui.

Das influências que recebe, por um lado, de Samuel, que é direitista, fidalgo dos

engenhos do Recife, apaixonado pela aristocracia e pelos brasões armoriais e que declara

98 Ele se refere à protuberância, possível porquanto rara, constituída de pele e gordura, no final do cóccix, chamada em biologia de falso rabo. Informação disponível em diariodebiologia.com/2008/11/rabo-humano-ou-rabo-vestigial/

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fidelidade a Plínio Salgado, o fundador do movimento ultranacionalista Ação Integralista

Brasileira; e por outro lado, de Clemente, um advogado e historiador negro-tapuia, esquerdista

e partidário do líder comunista Luís Carlos Prestes, e que sonha com novas revoluções como

as de Zumbi dos Palmares e de Canudos, Quaderna passa a se denominar como “monarquista

de esquerda”. E na busca pela real identidade do Brasil, defende que a verdadeira base do

povo brasileiro está na miscigenação dos povos europeu, africano e indígena.

Assim é que o narrador-personagem passa a relatar a história que tem como pano de

fundo uma cavalgada que conduz um jovem e enigmático Rapaz do Cavalo Branco, Sinésio,

filho caçula do tio-padrinho assassinado misteriosamente, e que teria sido sequestrado. A

longa trama envolve dezenas de personagens e acontecimentos fictícios que dividem espaço

com fatos históricos, como a Guerra de Princesa de 1930, a Revolução Comunista de 1935 ou

o Golpe do Estado Novo, em 1937. Costurando tudo isso, está a fértil imaginação e as

trapalhadas quixotescas de Pedro Dinis Quaderna, temperadas com elementos da cultura

popular nordestina: cavalhadas, violeiros, cordelistas, crendices e superstições, além de um

suposto tesouro enterrado e de demandas por herança.

Ao final do confuso depoimento, o Juiz Corregedor, exasperado, conclui que o

depoente é louco e o libera para voltar para casa, mas Quaderna pede-lhe que o deixe preso,

para que possa terminar seu livro e angariar o título de injustiçado, o que cai bem a todo

herói.Ao final, já envelhecido, como que inserido em um sonho, é sagrado rei da Távola

Redonda da Literatura do Brasil, numa cerimônia conduzida pelo poeta Olavo Bilac, sob os

aplausos de toda a população taperoense.

4.1.1. “Foi estranho”

Se a obra literária, onde todos esses desdobramentos são descritos

minuciosamente, é, ainda assim, de difícil leitura – pelo próprio acúmulo de informações e

personagens, pelo fluxo não linear dos acontecimentos, e principalmente pelo caráter

metafórico do discurso –, a tradução para o audiovisual numa versão de cinco episódios,

relativamente curta em relação a outras minisséries99 adaptadas da literatura, acaba por

acentuar o hermetismo da narrativa literária, já que além de manter as características que 99 Da estreia do formato, na década de 1980 até início do século atual,as minisséries adaptadas de obras literárias eram bem mais extensas, como é o caso de Os Maias (2001), da obra de Eça de Queiroz, também dirigida por Luiz Fernando Carvalho, com 44 capítulos. A partir dessa década, no entanto, o formato diminuiu consideravelmente, chegando ao atual modelo, que geralmente não passa de dez capítulos.

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estruturam o romance, a elas se somam os cortes que o tempo audiovisual requer e as opções

do plano de expressão que, por vezes, também contribui para uma interação eficiente – ou

deficiente – entre enunciador e enunciatário. A colunista Silvana Mascagna, do jornal mineiro

O tempo, traduziu bem a impressão que o primeiro episódio deixou no telespectador:

Foi sem dúvida uma experiência única. Em plena terça-feira, num horário quase nobre da TV brasileira, os telespectadores se viram diante de um enigmático emaranhado de cenas, que ora parecia teatro experimental, ora cinema de vanguarda. Era o primeiro capítulo de "A Pedra do Reino", minissérie de Luiz Fernando Carvalho baseada na obra homônima de Ariano Suassuna. Foi estranho. (MASCAGNA, 2007, s/p)

De fato, a escolha feita pela direção da minissérie para o primeiro episódio, aquele que

normalmente é pensado para captar o telespectador e persuadi-lo a continuar assistindo ao

programa nos dias subsequentes, foi uma aposta alta e arriscada. Quem não conhecia a obra

de Suassuna ou, pelo menos, não teve contato com o argumento da minissérie – a maior parte

do público, provavelmente – certamente sentiu-se perdido em meio aos curtos e sucessivos

fragmentos narrativos, misturando tempos, espaços e vozes.

Em A Pedra do Reino, considerando as duas obras, a literária e a audiovisual, percebe-

se que o argumento da primeira foi mantido na segunda. Assim, a narrativa em questão reúne

acontecimentos que atravessam um século – de 1838 a 1938 –, incorporando, pelo caminho, a

fértil imaginação de um sertanejo contaminado pelas histórias de cavalaria, cordel, mitos e

lendas brasileiras. Não bastasse a extensão da história narrada, Pedro Dinis Ferreira-

Quaderna, desejoso de tornar-se o gênio da raça brasileira, através da escrita de uma grande

obra literária, mergulha – levando consigo o leitor – em um emaranhando de fatos históricos e

imaginários, de manifestações culturais e acontecimentos fantásticos, de gêneros literários

orais e escritos.

Traduzida em imagens, toda a imaginação de Quaderna, especialmente no primeiro e

segundo episódios da minissérie, de fato, pareceu estranha, especialmente ao espectador de

um veículo que geralmente foca suas produções ficcionais no conteúdo da narrativa.

Conforme já mencionamos em capítulo anterior, citando Fiorin (2008b),a identificação do

sujeito com o objeto artístico pode se dar pelo conteúdo em si ou pela arquitetura deste plano

ou do plano de expressão.No caso de APR, o estranhamento causado no primeiro contato do

telespectador com a obra parece ter decorrido da opção (ousada) do diretor em colocar a

história contada em segundo plano, para destacar a história construída que se constitui da

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instauração – nada convencional - dos elementos da enunciação e do plano de expressão,

conforme veremos ao longo desta análise.

4.1.2. E o palhaço, quem é?

A sequência de abertura da minissérie começa com uma paisagem composta por um

solo desértico e um céu azul parcialmente nublado. A imagem do solo, irregular e de

contornos arredondados, remete à paisagem lunar, impressão que é reforçada pelo movimento

aéreo da câmara e pelo plano sonoro, composto de um sutil som de motor, como algo

sobrevoando a paisagem. Logo se ouve um som metálico, enquanto a câmara vai em direção

ao solo; a imagem seguinte é de um homem caindo ao chão. Juntando todos os elementos,

temos um sujeito que veio do espaço, mas não se trata de um extraterrestre, pelo menos se

considerarmos as características físicas com que geralmente se constroem esses seres, nas

ficções.

Trata-se de um palhaço, atrás do qual seguem crianças que dançam e riem com ele, ao

som da música instrumental em estilo cigano, tendo ao fundo construções que indicam que o

espaço agora é um povoado de arquitetura medieval. De um enorme portal que se abre, saem

pares que se unem à dança, formando uma alegre quadrilha em torno do palhaço. Ao final da

música, o movimento de braços dos bailarinos tanto encerra a dança, quanto anuncia o que

vem a seguir:instala-se um palco de teatro mambembe no meio da praça. A esta altura,

contagiado pela beleza da cena e pelo magnetismo da música e da dança, é possível prever um

espectador ansioso, à espera do que virá.

Figura 42 – Paisagem desértica Figura 43 – Quaderna caindo ao chão Figura 44 – Quaderna com criança

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4.1.3 Tempos, espaços, vozes e um só

“canto espantoso”

Começa a epopeia d’A Pedra do

Reino. E começa pela narração oral do

palhaço que, de cima do palco, anuncia o

“Romance enigmático de crime e sangue”, e

alguns desdobramentos que o comporão, como

uma emboscada, um assassinato, um sequestro, a existência de um reino. Um Rei e seus filhos

são apresentados como personagens da história, assim como os temas que a conduzirão:

intrigas, presepadas, enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte.

Tais informações, antecipadas pelo narrador/palhaço, e intercaladas por flashes dos

personagens e de algumas situações mencionadas, são encerradas com um convite: “Nobres

senhores e belas damas de peitos brandos, ouçam meu canto espantoso!” A expressão, o gesto

de braços apontando para a direita do palco, mais o som de tambores anunciando uma nova

atração conduzem o olhar do espectador.

A imagem que segue, no entanto, enquadrada por um lento movimento em travelling,

está desfocada e apenas deixa entrever contornos das edificações. O que está em evidência é a

voz em off, que narra em primeira pessoa. A imprecisão da imagem e o tom dramático da voz,

incoerente com o tom de galhofa que comandou a narrativa até o momento, sugerem outro

tempo. Logo a impressão se confirma: a imagem atravessa uma grade e revela o novo

narrador, que tem os mesmos traços do palhaço, porém é mais jovem e veste outros trajes,

confirmando se tratar de outro tempo, outro espaço e outra situação: ele está preso em uma

cadeia.100

Novo corte e voltamos à praça, onde um cortejo acompanha um homem que se posta

diante do palco, se dirigindo ao narrador, com autoritarismo e deboche: “Pedro Dinis-

Quaderna, és rei de fato? Foste rei de verdade?” A imagem do palhaço ouvindo atentamente a

pergunta corta para o prisioneiro que começa a responder, afirmativamente, enquanto rabisca

um manuscrito. Se havia alguma dúvida sobre a identidade dos dois, agora não há mais: um

100Ao longo dessa análise, utilizaremos a designação de Quaderna velho ou Palhaço, para nos referir ao primeiro narrador; e Quaderna jovem ou prisioneiro, para nos referir ao segundo. Lembrando que lidaremos também com um Quaderna menino.

Figura 45 – Fim da quadrilha, início do espetáculo

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só nome para dois narradores, ou melhor, um mesmo narrador desdobrado em tempos

diferentes: um jovem dramático que escreve e um velho palhaço que anuncia a encenação da

própria história. Dessa maneira um tanto inusitada, o sujeito da narrativa apresenta-se a si

mesmo.

A partir daí, a narração se alterna entre um e outro, e por vezes, materializa-se em

outras vozes, como a da tia Felipa, do cantador de cordel e de um coro de mulheres.

Alternam-se também fragmentos dos acontecimentos anunciados no texto inicial do primeiro

narrador, sempre conduzidos por uma ou mais vozes narradoras, numa ordem temporal

constituída de avanços e recuos, e em espaços alternados.

A cavalgada encabeçada por Sinésio em um cavalo branco, por exemplo, começa a ser

descrita pelo segundo narrador, e continua na voz do palhaço sob a narrativa audiovisual. Da

mesma maneira, na sequência, o Quaderna velho inicia a descrição de Sinésio, mas sugere que

só o fogo da poesia pode de fato descrever sua aura. Nesse momento, entra em cena uma

procissão de mulheres que, em coro, cantam os versos: “Dizem que uma sombra escura/ com

duas pontas na testa/ por onde o donzel caminha, ao lado se manifesta”. A imagem alternando

entre o narrador, as mulheres e enquadramentos variados de um jovem e belo cavaleiro, aliado

ao conteúdo verbal do canto, não deixam dúvida: é ele o donzel dos versos e o herói de

Quaderna.

Assim, também, a morte do pai de Sinésio e tio de Quaderna, é contada por duas

vozes, a do próprio Quaderna, travestido de palhaço, e a da sua tia Felipa; a cerimônia de

sacrifício empreendida pelo Execrável, bisavô dos dois primos, é conduzida, em versos, pelo

cantador Lino Pedra Verde, e ouvida por um impressionado Quaderna menino, no meio da

caatinga.

Na sequência do primeiro episódio, novas pequenas narrativas se sucedem: Quaderna

menino, participando de brincadeiras de roda e assistindo a uma cavalhada, já adulto, indo ao

local onde estão as pedras do suposto reino encantado, quando se envolve em caçadas

mirabolantes, encontra a parte que faltava da coroa de seu antepassado e, por fim, simula a

própria coroação, ao pé das pedras, com um discurso inflamado que encerra o primeiro

episódio.

O conteúdo da obra, até aqui, se revela denso e excessivamente fragmentado para um

programa de aproximadamente 45 minutos. Independentemente das muitas críticas que

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destacaram o caráter hermético do episódio, como a que citamos anteriormente, é fácil

imaginar um telespectador atônito, quem sabe mesmo desapontado101. O que esse início de

narrativa oferece são indicações imprecisas distribuídas em narrativas mínimas das quais só se

ficam conhecendo fragmentos, e que se alternam entre vozes, tempos e espaços diferentes: ora

na praça/palco da encenação, ora no sertão, ora na cadeia. É impossível, até o momento,

construir um sentido que una todos os fragmentos narrativos.

Apesar disso, já é possível destacar os dois principais percursos narrativos que

comporão a obra: o de Sinésio, que é o sujeito na narrativa escrita e encenada por Quaderna; e

o do próprio narrador, que vai se revelando o sujeito da narrativa principal a partir do

confronto com aquele que o interrogou, de identidade ainda não revelada, mas que embora

tenha tido uma única e breve aparição, até o momento, parece encaixar-se no papel de

antissujeito. O enunciado de estado de Quaderna é de disjunção com a liberdade, e o objeto de

desejo, pelo menos até aqui, é assumir a coroa de rei, sendo ele mesmo o destinador e tendo

como manipuladoras as histórias ouvidas na infância e na juventude, contadas pela tia e pelo

cantador Lino Pedra verde e, conforme se verá no segundo episódio, pelos mestres Samuel e

Clemente.

São esses dois personagens/manipuladores que, além de alimentar em Quaderna

sua condição de herdeiro do trono, também despertam nele um novo – e verdadeiro –

objetivo, que é se tornar o gênio da raça brasileira, através de uma grande obra literária, meio

pelo qual ele também poderia reassumir o trono sem correr risco de vida:

Sim. Eu prefiro a literatura, onde ninguém sai prejudicado. A gente escreve: “Vinham doze cavaleiros, de bandeira à frente, montados em fogosos corcéis, quando soaram doze tiros, e doze corpos rolaram dos cavalos, ensopando de sangue vermelho a poeira da estrada!...” Tá vendo? Quando se termina, não morreu ninguém, e houve uma cena belíssima, digna de José de Alencar!102

Essa passagem, portanto, a nosso ver a mais importante do segundo episódio, na

medida em que esclarece o verdadeiro objeto do protagonista, se ainda não explica o motivo

de Quaderna aparecer preso, no início da narrativa, justifica a sua atitude de estar sempre

escrevendo, na cadeia, à medida que as lembranças lhe chegam; além de indicar que a prisão

favorece a performance que o levará a realizar seu sonho. Chegar a essas conclusões, numa

101 Teresa Albuquerque, do jornal Correio Brasiliense (2007), menciona os bons números de audiência da TV Record, no horário da minissérie, sugerindo uma possível fuga de telespectadores da Globo. 102 Fala de Pedro Dinis Quaderna, 2º episódio.

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primeira leitura, no entanto, exige do telespectador televisual muito mais do que ele está

acostumado: “Desde terça-feira, quando ‘A Pedra do Reino’ começou, há gente quebrando a

cabeça para decifrar a estrutura narrativa” (FONSECA, 2007, s/p). A nota do crítico foi

publicada no dia em que iria ao ar o último episódio, demonstrando que o desafio de

acompanhar a minissérie não ficou só no primeiro capítulo.

É possível afirmar, no entanto, que a partir do terceiro episódio, a história ganha um

ritmo capaz de reequilibrar o fôlego do telespectador, proporcionando-lhe, não sem esforço, o

sentido que em princípio é o que todo enunciatário busca e que toda narrativa traz implícita.

As circunstâncias anteriores e posteriores que envolvem a cavalgada no meio da qual Sinésio

chega ao vilarejo, por exemplo, apresentada no início do primeiro episódio, ganha um novo

fragmento no segundo dia de minissérie e, finalmente, se completa no terceiro.

De acordo com as concepções propostas pela sintaxe semiótica, temos

a narrativa como mudança de estado, operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca dos valores investidos nos objetos; [e] narrativa como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos. (BARROS, 1999, p. 16)

Para a autora, as estruturas narrativas trazem em si o percurso do homem tanto em

busca de valores, quanto em busca de sentido. Dessa maneira, no terceiro episódio de APR,

já é possível reunir alguns fragmentos dos capítulos iniciais e juntá-los às novas e decisivas

informações que serão fornecidas com o início do depoimento do prisioneiro, e que, a partir

desse momento, imprime alguma linearidade aos acontecimentos. Aquele que parecia ser o

oponente do protagonista, de fato o é, porém não o principal: trata-se do juiz corregedor que

investiga a morte do tio de Quaderna, este convocado a depor, depois que o juiz recebe uma

denúncia anônima contra ele.

O depoimento de Quaderna, assim, na medida em que cumpre o seu papel dentro do

percurso narrativo, que é esclarecer o assassinato do tio, acaba por ser também o elemento que

estabelece a comunicação entre o enunciador e o enunciatário, na medida em que vai, aos

poucos, completando as narrativas mínimas, outrora suspensas, e encaixando-as na narrativa

principal. Quaderna se firma, assim, como o “homem-narrativa”, nome dado por Tzvetan

Todorov ao narrador responsável por unir as sequências narrativas que se sobrepõem umas às

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outras pelo aparecimento de um novo personagem, até chegar à que as originou: “O processo

de encaixe chega a seu apogeu com o autoencaixe, isto é, quando a história encaixante se

encontra, num quinto ou sexto grau, encaixada por ela mesma.” (TODOROV, 2008, p. 124-

126).

É assim que no depoimento, que segue até o quinto e último episódio da minissérie, as

revelações de Quaderna alternam-se com cenas correspondentes aos fatos narrados por ele. E

em meio às digressões do depoente, que transitam entre os fatos ocorridos e o que sua

imaginação literária cria, Quaderna confessa ter denunciado a si próprio, com o fim de

conseguir escrever sua obra. Dessa forma, o depoimento seria a arma/competência para que

ele alcançasse o objeto de desejo, na medida em que a cópia dos autos poderia servir-lhe de

texto inicial para a obra pretendida. Essa revelação acaba por conferir ao juiz corregedor o

duplo, e antagônico, papel de oponente e adjuvante ao mesmo tempo, constituindo, assim, um

caso de sincretismo actorial que, segundo Greimas (1966), se dá quando um mesmo

personagem representa mais de um actante. Em APR, o segundo papel do corregedor é

conferido pelo próprio Quaderna:

Meu monarquismo de esquerda sonha em reunir os fidalgos ibérico-brasileiros com os fidalgos brasileiros negros-vermelhos, porque aí eu mostro que todos os brasileiros são fidalgos e nossa gloriosa história do Brasil é uma epopeia da gota-serena! É isso que eu vou conseguir com a ajuda do Senhor e de Dona Margarida.103

Dessa maneira, o juiz representa o antagonista ao ameaçar a liberdade do

protagonista, mas é justamente essa ameaça que o auxilia a vencer a dificuldade

proporcionada pela anomalia genética. Quaderna, por sua vez, pede para ser preso quando o

juiz o libera, por considerá-lo louco, o que faz do protagonista um raro caso de oponente de si

mesmo.

4.1. 4 “A obra está finda!”

Na narrativa de Quaderna, a sansão de Sinésio, cuja performance fica mal concluída, é

ir embora do vilarejo, levando a mulher amada na garupa do cavalo. O narrador, por sua vez,

recebe uma recompensa apoteótica: “Eu terminara minha epopeia, minha obra de pedra e cal, 103 Fala de Quaderna, episódio 3.

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edificando, no centro do Reino, o Castelo e marco sertanejo que tinha sido o sonho de toda a

minha vida.”104 O discurso literário continua a ser proferido na voz do prisioneiro, no

momento em que a cena corta para a prisão. Posicionada no meio da cela, a câmara enquadra

o Quaderna jovem, em primeiro plano, lendo seus manuscritos e, através das grades, em

segundo plano,segundo plano, o palco da encenação105.

Figura 46 – Quaderna na prisão e, ao fundo, o palco da encenação

Enquanto o prisioneiro faz os últimos ajustes no texto, vemos, em segundo plano, o

palhaço no palco. No corte seguinte, é este que, abrindo as cortinas, faz o anúncio final: “A

obra está finda!”. Como quem ouviu a exclamação, o prisioneiro repete, interrogativamente,

as mesmas palavras. A junção desses dois planos, o visual e o sonoro verbal, revela a

interação entre os dois narradores, o que poderia indicar que os espaços e tempos onde os

acontecimentos se desdobram pertenceriam a uma mesma e grande encenação teatral, não

fosse a impossibilidade de um mesmo ator representar, em teatro, dois papéis106 em dois

espaços diferentes, ao mesmo tempo.

104 Fala de Quaderna Velho, episódio 5. 105Cena semelhante, deinteração entre o espaço da cadeia e o espaço da encenação, acontece pela primeira vez, no segundo episódio. 106 Neste caso, os termos ator e papéis referem-se à profissão e aos personagens representados, ou seja, um Quaderna que está preso, o outro que está no palco, ambos interpretados pelo mesmo ator, Irandhir Santos.

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Outro desafio sobre a instauração do espaço cênico acontece em passagens em que

uma sequência começa em cenário natural e termina no palco da encenação, sem indício de

mudança de tempo. Um bom exemplo é a viagem de Quaderna rumo às pedras do reino. O

cenário usado para o percurso, a caçada e o encontro da coroa é o sertão da Paraíba, ao passo

que a cena de autocoroação acontece no palco, em frente a uma grande lona onde as pedras

foram pintadas.

Em meio a esse labirinto de informações, há duas maneiras de entender a minissérie: a

primeira seria atribuir a lembranças do passado – e, portanto, flashbacks –, os fatos

apresentados em espaço natural; e como projeção de uma encenação futura da obra –

flashforward –, aqueles que se desdobram na rua/palco. A segunda, e mais segura, seria levar

em conta ser a obra um híbrido de linguagens do teatro, cujo espaço por excelência é o palco,

e do audiovisual, cujo dinamismo de técnicas possibilita filmagens em diferentes espaços, de

sequências que podem se fundir numa mesa de edição. É pela mistura de linguagens, aliás,

que também se explica a duplicação de papéis pelo mesmo ator em cena.

Seja como for, não há dúvida de que estamos diante de um lunático Quaderna, que

escreve sobre o passado e prevê o futuro glorioso. A encenação teatral de sua obra, assim, é a

melhor maneira de levá-lo a ser reconhecido e reverenciado como gênio da raça brasileira. O

termo lunático, aliás, cai bem para completar o sentido da primeira cena (paisagem lunar,

Quaderna caindo do espaço), e de referências a seres fantásticos, como a Moça Caetana,

representação física da morte.

Ao dar como finda a obra, Quaderna é aplaudido pelo público, que é o próprioelenco,

e é conduzido ao palco onde é coroado “Rei da Távola Redonda da literatura do Brasil”, após

um discurso emocionado de Olavo Bilac. Com esse desfecho, o protagonista realiza seus dois

desejos, o de ser rei e o de se sagrar um grande escritor, pois, afinal, o Reino pretendido por

ele sempre foi um reino de palavras, apenas mais uma das muitas metáforas presentes na obra,

cujas referências tornariam excessivamente longa esta leitura.

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4.1.5. O tempo fragmentado

Em uma análise do plano narrativo de APR, é imprescindível fazer referência ao modo

como o tempo foi instaurado na obra. Conforme já deve estar claro, o tempo da diegese, ou da

história contada, segue um fluxo psicológico, ou seja, “é o tempo da experiência subjetiva das

personagens (...) o modo como elas experimentam sensações e emoções no contato com os

fatos objetivos e, também, com suas memórias, fantasias, expectativas.” (FRANCO JUNIOR,

2009, p. 46).

Quanto à ordem temporal da narrativa, é constituída de anacronias, que são os

desencontros entre a ordem dos acontecimentos na diegese e a apresentação destes no

discurso. Analepses e prolepses, termos utilizados por Gennete para definir recuos e

antecipações no tempo, ou flashback e flashforward em discurso cinematográfico, são

utilizadas alternadamente, especialmente nos dois primeiros episódios: “O passado invade o

presente o tempo todo na microssérie (...)Não é fácil acompanhar o vaivém”, publicou Teresa

Albuquerque (2007), no Jornal O Globo, à época da exibição do programa.

Mas qual é o tempo presente? A autora da nota não diz, talvez porque pareça óbvio: se

há um Quaderna velho e um Quaderna jovem, por uma questão de cronologia, o mais velho é

mais recente e, portanto, equivale ao presente. Mas não é tão simples: a dúvida é instaurada

pela encenação farsesca do palhaço – cuja velhice é o resultado de uma maquiagem mal

disfarçada – e acentuada a partir do início do depoimento do Quaderna jovem, quando este

assume a condução da narração.

A partir desse ponto, o desdobramento temporal é reduzido a dois: o tempo do

interrogatório e os flashbacks que encenam os relatos do interrogado, ponto em que a

narrativa se firma. Isso, mais a ideia de que toda a encenação não passa de imagens criadas

pela imaginação do narrador/autor que conta suas façanhas, levam à leitura de que o presente

é o do Quaderna que escreve, sendo o outro a projeção do que ele sonha para o futuro. Ou,

quem sabe ainda, uma terceira possibilidade, que seria a de simultaneidade: aquele que

escreve cria, simultaneamente, na imaginação, a imagem do seu alter ego, fazendo com que

os dois sujeitos da narração coexistam ao mesmo tempo.

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Seja como for, é fato que há uma alternância de tempos, correspondentes às diversas

fases da epopeia de Quaderna, com desdobramentos que remontam aos antepassados do

protagonista, no início do século XIX, passando por toda a sua vida até ali: a infância

envolvida em cultura popular, a adolescência no seminário, e a fase adulta, com experiências

de viagens, caçadas, sexo e morte. Ainda no que se refere à ordem de entrelaçamento dos

acontecimentos, temos uma trama in media res, queno dizer de Genette (1979)equivale a uma

narrativa que começa por um fato extraído do andamento da diegese.

Para encerrar esta análise sobre os elementos da enunciação em APR, recorremos a

Fiorin, que nos diz:

Todas as linguagens oscilam entre os polos da instabilidade e da estabilidade. A história da literatura mostra que as formas artísticas se aproximam ora de um polo ora de outro. Ora seguem modelos rígidos e formas fixas, ora revelam um dinamismo muito grande, uma liberdade total, pois, quando a instabilidade gera o risco da incompreensão, ocorre a estabilização e, quando esta produz uma ossificação, acontece um processo de instabilização. (FIORIN, 2008a, p. 20)

A instabilidade, segundo o teórico, depende da maneira como as três categorias

básicas da enunciação – pessoa, tempo e espaço – são instaladas no discurso, mais

especificamente quando se usa uma pessoa por outra, um tempo por outro ou uma localização

espacial por outra. Em outras palavras, a estabilidade ou instabilidade das narrativas depende

da maneira como elas são organizadas pelo enunciador. Em A pedra do Reino, os

desdobramentos de espaço, tempo e pessoa, presentes nos dois primeiros episódios, são

responsáveis pela construção de um discurso que prima pela instabilidade, gerando a

incompreensão de que fala Fiorin, e constatada pela recepção crítica que reflete, por sua vez, a

recepção do público.

Segundo HeirichWolfflin, em Conceitos fundamentais da história da arte(1989),a

mudança do estilo clássico para o barroco foi marcada pela passagem do linear ao pictórico,

da visão de superfície à visão de profundidade, de uma forma fechada à forma aberta, da

multiplicidade à unidade, da clareza absoluta dos objetos à clareza relativa. Alfredo Bosi

(2006), por sua vez, explica: “Pictórico inclui ‘pitoresco’, profundo implica desdobramento de

planos e massas; aberto denota perspectivas múltiplas do observador; uno subordina, por sua

vez, os vários aspectos a um sentido; clareza relativa sugere a possibilidade de formas de

expressão esfumadas, ambíguas, não finitas.” (BOSI, p.32-33)

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Relacionando tais conceitos ao que foi dito até aqui sobre o conteúdo de APR, não há

dúvida de que estamos diante de uma obra contemporânea, de concepção essencialmente

barroca. Tal característica, que é inerente na escrita de Ariano Suassuna e na narração (e

pseudo escrita) de Pedro Dinis Quaderna, autênticos bricoleurs107, ganham especial evidência

nas opções expressivas com que Luiz Fernando Carvalho – também adepto da bricolagem,

conforme vimos no capítulo anterior – transformou as palavras de Suassuna e Quaderna em

imagens e sons.108

A despeito dos conceitos de barroco e bricolagem, cabem aqui duas observações: a

primeira é que o termo barroco, hoje, está ligado muito mais ao estilo pessoal adotado por

alguns artistas, do que propriamente a um estilo de época. A (re)apropriação do termo com

que se nomeou a escola setecentista, no entanto, não é aleatória, mas justifica-se por uma

atitude comum entre artistas barrocos e neo-barrocos, que é a de romper com as estéticas

convencionais, lineares e, portanto, previsíveis. A segunda é que o procedimento da

bricolagem serve bem a essa concepção contemporânea de barroco, na medida em que

possibilita misturas, contrastes e excessos, conceitos devidos ao estilo setecentista, mas que,

adaptados à contemporaneidade, adquirem novos significados.

4.2. A EXPRESSÃO DO BARROCO

As palavras mais utilizadas para uma conceituação simplista do Barroco são

“acúmulo” e “contraste”. Se o Barroco, movimento que se seguiu ao Renascimento, pelo

aspecto expressivo, opõe-se à economia formal, ao equilíbrio e harmonia do seu antecessor,

pelo aspecto temático, ambos se aproximam de uma mesma fonte: a antiguidade clássica. Isso

faz com que o barroco seja considerando não como oposição, mas como continuação do

renascimento. Sobre este aspecto, A história da arte, de Germain Bazin, nos diz:

107Retomando o conceito de bricoleur, devidoa Lévi-Strauss, como aquele que produz um objeto novo a partir de pedaços e fragmentos de outros objetos, sem se preocupar em seguir um plano de composição rígido, é seguro afirmar que a obra de Ariano Suassuna é, por sim mesma, uma perfeita bricolagem, na medida em que reúne fragmentos da história do país, de mitos, lendas, cantigas e superstições da cultura popular. (LEVI-STRAUSS, 1989) 108A despeito dos conceitos de bricolagem e barroco, cabem aqui duas observações: a primeira é que o termo barroco, hoje, está ligado muito mais ao estilo pessoal adotado poralguns artistas, do que propriamente a um estilo de época; a segunda é que o procedimento da bricolagem serve bem a essa concepção barroca, na medida em que possibilita misturas, contrastes e excessos, conceitos, por sua vez, devidos ao estilo setecentista, fonte dos artistas contemporâneos que adotam tal procedimento.

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Existem na arte do século XVII duas liturgias: uma de tendência clássica e outra de tendência barroca. Mas, quer a linha seja direita, quer seja curva, os dogmas são semelhantes: tendem a transformar a existência, sob o olhar da inteligência, numa representação; para o homem deste tempo, tudo é espetáculo e, antes de mais, a sua própria vida. O sentimento de dignidade humana engendrou esta filosofia da eminência, que do universo inteiro faz um teatro sumptuosamente preparado para o monarca da criação. (BAZIN, 1953, p. 256-257)

Lidas assim, após ter atravessado os cinco capítulos que compõem A Pedra do Reino,

tais palavras parecem ter sido escritas para o herói e monarca (da criação) Pedro Dinis

Quaderna. Ariano Suassuna, ao mergulhar no emaranhado de elementos - temáticos e

linguísticos - com que compôs o mundo do seu atrapalhado protagonista, puxou com ele o

diretor Luiz Fernando Carvalho, cuja tendência à experimentação característica do barroco já

vinha se manifestando desde sua experiência com novelas (veja-se a cena de Renascer,

descrita no primeiro capítulo desta tese), com evidente progresso a partir de Hoje é dia de

Maria. A afinidade entre os dois autores e suas respectivas obras é observada por Carlos

Alberto Mattos (2007):

A Pedra do Reino é um livro-espetáculo para onde confluem a novela de cavalaria, o romance picaresco, a versalhada de cordel, a trama policial e outros tantos modelos que você imaginar aí na sua cachola. Tudo isso encontra correspondente na versão de TV, sempre na acepção farsesca que emana de um personagem heroico e covarde, perseverante e louco ao mesmo tempo. (MATTOS, 2007, s/p)

Como se vê, o barroquismo contemporâneo de Suassuna e Carvalho cumpre e amplia a

tendência ao acúmulo, peculiar do movimento pós-renascentista, pelo procedimento da

bricolagem, na medida em que, além das influências de obras clássicas, amealhou em seu

percurso temas e linguagens devidas ao Romantismo e que se perpetuaram pelo modernismo e

pós-modernismo afora, caso da cultura popular e do romance policial, conforme citado por

Mattos.

Traduzido em teledramaturgia, o espetáculo metafórico da literatura de Suassuna leva

ao extremo a vocação de agregar e misturar, na medida em que pode usufruir objetivamente –

e não apenas por meio de palavras, como faz a literatura – de elementos visuais e sonoros

emprestados da arquitetura, da pintura, do teatro e da música. Tudo isso, explorado sob o

dinamismo que as técnicas audiovisuais possibilitam, levou a um resultado dramático e

exuberante, bem ao gosto do Barroco original, que, para os conservadores da época, era

sinônimo de mau gosto, mas que os “estetas contemporâneos (...) fizeram dele sinônimo de

uma atitude artística.” (BAZIN, 1953, p.256)

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4.2.1. Sons, silêncios, acúmulos e contrastes

Os acúmulos e contrastes, palavras-chave do Barroco, estão presentes em quase toda a

extensão de APR. Há acúmulo de sons, de objetos, de paramentos nos figurinos, de

movimentos e palavras. E quando não há acúmulo, há justamente o contraste pela redução

drástica desses elementos, como uma cena silenciosa, limpa e lenta após outra carregada de

sons, movimentos e massas. É assim com a chegada da cavalgada e o que vem depois dela.

Tudo começa com as palavras de Quaderna na prisão, que inicia a narração do fato

enquanto escreve, e em seguida dá voz ao palhaço: “Escutem! Escutem!”. Quando o narrador

profere estas palavras, já é possível ouvir, ao fundo, relincho de cavalos e sons ininteligíveis

de vozes. Em seguida, um estrondo marca a abertura do portal e, simultaneamente, batidas de

instrumento de percussão, que

conferem suspense à cena. Pelo

aspecto da imagem, a sequência

começa com uma cortina de

fumaça de onde surge um cavalo

soltando fogo pelas ventas;

depois o primeiro cavaleiro

carregando uma bandeira, de cuja

lança pendem pássaros, seguido

de outros cavaleiros; animais e

algumas figuras humanas,

escondidas por trás de máscaras e fantasias, estes executando movimentos de dança africana,

à maneira das caretadas,compõem o cortejo em solo. Tudo isso ainda sob o manto da fumaça.

Um homem jovem e bonito em um cavalo branco se distingue dos demais. Do portal

ao figurino, tudo é excessivamente enfeitado, paramentado. Os animais são artesanais, com

destaque para o brilho dos cavalos, aparentemente feitos de lata e cobre. Ao fundo, os

detalhes da arquitetura medieval109, misturando-se com a massa em movimento. Pelo aspecto

cromático, predomina o preto, ao lado do qual uma ou outra cor se insinua, desbotada pela

incidência de luz amarela, característica recorrente na fotografia das obras assinadas pelo

109 Conforme depoimento do diretor, no making off da minissérie, as fachadas que recobrem as construções da pequena localidade de Taperoá foram inspiradas em antigos oratórios e lápides de túmulos.

Figura 47 – Acúmulos na cavalgada

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mesmo diretor. A esta altura, o plano sonoro está igualmente pesado, graças à superposição de

elementos sonoros: música, relinchos, piados, grunhidos, gritos. É uma cena densa.

A cavalgada passa pelas laterais do palco, envolvendo-o e sendo acompanhada pelo

olhar de um atento, porém melancólico, Quaderna. É nesse momento que o ritmo intenso de

outrora sofre uma desaceleração, seja pelo aspecto da imagem, seja pelo sonoro verbal e

musical: o movimento de câmera é em slowmotion; a trilha sonora é composta de notas que

lembram uma música sacra; a entonação e as palavras do narrador são de quase reverência:

“Sinésio... cavalheiro puro do alto, vento fino do céu, incauto peregrino no mundo, cerca-o

uma aura que só o fogo da poesia pode descrever” 110

À medida que as palavras são ouvidas, em off, a imagem, primeiro escura, indivisível,

vai revelando, em planos muito fechados, o cabelo comprido, o perfil do rosto ainda em

sombras, depois a face iluminada. A música, antes clássica, é substituída por batidas de

bumbo e pela voz estridente das mulheres que, em versos de cordel, seguem descrevendo

Sinésio. Aqui o quadro é mais limpo, principalmente pela reintrodução da luz, pela lentidão

do movimento de câmera e pela entonação pausada das mulheres, que permitem divisar os

elementos visuais e sonoros que o compõem.

Na sequência, pelo plano sonoro, a narrativa torna-se ainda mais lenta: a música é de

novo instrumental, estilo oriental ou new age. Dentro do enquadramento, Sinésio, que se

desliga do grupo e cuja imagem, em primeiríssimo plano, se alterna com a de uma mulher, em

planos de detalhes que se alternam entre os pés, o braço envolto no lenço que balança ao

vento, a boca, o rosto, os olhos, o cabelo, as mãos, o movimento sensual que ela faz com o

lenço. Entre um corte e outro, o foco nos olhares dos dois personagens denunciam a sedução.

O ritmo, na imagem, apesar do movimento em câmara lenta, equilibra-se pelo andamento

rápido que os cortes curtos e sucessivos, e a luz intensa, imprimem. É uma cena totalmente

contrastante com a anterior.

110 Fala de Quaderna, episódio 1.

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Pelo aspecto sonoro, a sequência é

segmentada, o que, segundo Fechine (2009)

equivale à economia de elementos, sendo,

portanto, oposta à acumulação. Na sequência

em questão, o sonoro é composto

exclusivamente pela música instrumental,

melódica, lenta. No mais, os olhares trocados

pelo casal é que revelam o não dito. Segundo

Eni Orlandi, “o silêncio não é interpretável,

mas compreensível.” (ORLANDI, 2007, p.50). Assim, as elipses, que também são formas de

silêncio, presentes em toda a minissérie, são marcantes nesta cena.

Até aquele momento pouco se sabe sobre os acontecimentos que envolvem a

cavalgada, e nada foi dito sobre a origem daquela mulher e sua relação com Sinésio, mas pela

linguagem com que a cena foi construída, é fácil concluir que ela é uma das figuras que

comporá o tema da sensualidade, previsto no início da narração. Esse é um dos poucos

exemplos, na minissérie, em que o plano de expressão contribui para a intelecção do

conteúdo.

4.2.2. O corpo e a voz

Construções, assim, em movimento lento, e marcadas por uma trilha sonora

econômica, aparecem aqui e acolá, quebrando o ritmo de uma obra excessiva tanto em

imagens quanto em sons, para o que o jorro verbal e a entonação marcada muito contribuem.

O acento no verbo e na voz, em A Pedra do Reino, encontra justificativa na reverência que

Carvalho sempre demonstra ter com a literatura, além da paixão pela palavra que move o

protagonista e, claro, da opção pela encenação teatral. Sobre esse aspecto, o jornalista

Alexandre Werneck (2007), do Jornal do Brasil, escreveu:

O Suassuna de Carvalho é gritante. E grita porque o centro da obra do diretor é a palavra. Mais que isso, o culto religioso à palavra. Assim, tudo no programa está operado para um emolduramento da fala. A começar pela cenografia, pródiga e feliz no projeto de construir um deslugar: Taperoá não é uma cidade, é um cenário, um palco abstrato para a declamação. (WERNECK, 2007, s/p)

Figura 48 – Segmentação na aparição de Heliana

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No teatro a céu aberto de Quaderna, a ênfase na entonação fica clara logo na primeira

fala do narrador/personagem, quando este abre o espetáculo. Em tom ora muito alto, ora

moderado; e em ritmo que vai do muito rápido ao muito lento, Quaderna expõe um longo

texto que começa pela apresentação resumida do conteúdo da obra, passa por uma espécie de

oração à terra, e termina com o convite ao público para que este acompanhe o seu “canto

espantoso”.

Quando o narrador é o Quaderna jovem, a interpretação por vezes é tão frenética, que

é possível ver a saliva se insinuando na boca do ator. Em outros momentos, o ritmo acelerado

da pronúncia aliado a um tom quase sussurrante, praticamente impossibilita a compreensão do

que é dito. É o que acontece, por exemplo, durante diálogo entre o juiz corregedor e o

protagonista, no início do quarto capítulo: os altos e baixos nos tons de voz de um e outro, e

as acelerações e freadas na pronúncia dos atores que interpretam os personagens acabam por

se tornar empecilho à apreensão do conteúdo que, a esta altura, já seria passível de

inteligibilidade, não fossem interferências como essa, devidas ao plano da expressão.

Para reforçar a importância dada à entonação da voz, na composição do programa,

basta dizer que tal elemento ajusta-se, quase sempre, à personalidade e às ações dos

personagens, como é comum nas representações teatrais. Dessa maneira, a voz do Execrável é

gutural e assustadora; a entonação do conservador Samuel é polida e cerimoniosa, enquanto

Clemente, esquerdista, fala com a eloquência dos revoltados.

Em contraponto, há personagens que pouco ou nada dizem, ao longo da obra, caso de

Sinésio, Heliana e Dona Margarida: o primeiro pronuncia duas ou três palavras ao longo da

narrativa, enquanto a voz de Heliana é ouvida apenas por meio do canto. Apaixonados um

pelo outro, os dois se comunicam basicamente por meio do olhar. Dona Margarida, por sua

vez, é um caso extremo de personagem que, não obstante ter um papel importante durante o

depoimento de Quaderna, como escrivã, não pronuncia uma só palavra. Apesar disso, é

possível ler em seu rosto expressões de exclamação, dúvida, surpresa, constrangimento e

emoção, ao longo do conturbado depoimento.

Segundo Barros (2010), em Os sentidos da gestualidade, citando Greimas e Jakobson:

A comunicação gestual, em geral, tal como proposta por Greimas, cumpre cinco das funções jakobsonianas da linguagem: a função fática, a função apelativa e a função emotiva, na gestualidade de comunicação direta; a

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função metalingüística (gestualidade mimética) e a função estética (gestualidade lúdica), na gestualidade de transposição.(BARROS, 2010, p. 6),

Tendo em vista que a teatralidade, linguagem do corpo, é a opção que dá o tom na

composição da minissérie, a gestualidade é, também, elemento fartamente explorado na

interpretação dos atores, e aparece cumprindo diferentes funções, confirmando a citação

acima. No caso de Dona Margarida, a ausência de voz faz com que a expressão corporal se

concentre no rosto, em movimentos que por vezes se aproximam da careta, o “que aumenta a

amplitude e a visibilidade do gesto” (ZUNTHOR, p.223), já que os movimentos faciais são

bastante limitados e o excesso de pudor da personagem inibe-a de usar o corpo.

Quaderna, por sua vez, em qualquer das quatro versões em que se apresenta – menino,

adolescente, jovem, velho – abusa dos gestos tanto quanto abusa das palavras. No palco, ele

agacha-se de costas e balança o traseiro para o público, como a debochar de si mesmo,

enquanto anuncia o excessivo, e por vezes antagônico, número de temas presentes no romance

que apresenta; no meio da caatinga, ainda menino, simula a própria coroação, após ouvir as

histórias de realeza envolvendo seu bisavô; adolescente, no seminário, desdobra-se em

movimentos de mãos, rosto e língua, dando uma exagerada ênfase à história de luta e sexo

que conta ao padre, no confessionário; e em frente ao juiz, imita o trote de um cavaleiro, antes

de começar a narrar a chegada de Sinésio.

Os exemplos mencionados – pouquíssimos, a considerar uma obra cuja representação

tem no corpo a sua matéria prima principal – servem para ilustrar a importância da

gestualidade na formação do sentido, na minissérie, seja contradizendo, ilustrando ou

enfatizando o que é dito, seja substituindo o não dito.

Figura 49 – Quaderna simulando sua coroação: mimese Figura 50 – Dando ênfase ao relato: apelação

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4.2.3. A expressão do grotesco

Antes de encerrar essa aproximação entre o plano de expressão de APR e o estilo

Barroco, é necessário mencionar a presença do grotesco dentro da obra. E para isso o melhor

exemplo parece ser a sequência narrativa em que o Rei Execrável promove um banho de

sangue em nome da ressurreição de Dom Sebastião. Na constituição imagética da cena, tudo é

excesso: a figura do personagem, cujo figurino e posição de câmera (contre-plogée ou baixa)

aumentam-lhe as proporções, é de um quase gigante de feições rudes, olhos vidrados e

grandes barbas; as cores predominantes são o preto e o dourado, contraste que acentua o

acúmulo de massas dentro do quadro, constituída de múltiplas pessoas e objetos.

A iluminação da cena, ora excessiva, ora reduzida, é constituída de um jogo de luz e

sombras que, aliado ao movimento

nervoso da câmara, alternando-se em

ângulos e movimentos diversos,

imprimem um ritmo alucinante, que

pega o telespectador de surpresa. A

surpresa se transforma em susto,

estranhamento, no momento em que

o rosto do Rei é atingido por um jato

de sangue, denunciando a primeira

execução.

Segundo Zilberberg (2013), a relação do sujeito com a arte barroca acontece sob o

signo de um “tipo de náusea”, provocando nele “insatisfação e instabilidade”. Ainda de

acordo com o semioticista francês, a aceleração da arte barroca está ligada à produção e ao

jorro, apresentando um coeficiente de “brusquidão”, que decide a orientação da foria111:

“Onde a natureza mostra uma curva, nós encontramos talvez um ângulo, e em lugar de uma

regressão ou de um aumento contínuos e regulares da luz, o claro ou o escuro aparecerá

111 O termo foria tem sua origem no grego phorós, e reporta à ideia de “levar adiante”, “transportar”. Em semiótica, a foria é o princípio sintáxico que regula a tensão resultante do contato do homem com o mundo. Assim, a euforia está ligada à continuidade, à junção do sujeito com os valores desejados, enquanto a disforia, ao contrário, representa a interrupção, a disjunção entre sujeito e objeto. (TATIT, 2001, p. 100)

Figura 51– Sangue no rosto do Execrável

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bruscamente, através da massa e sem transição.”(ZILBERBERG, 2013, s/p) Dessa maneira,

continua Zilberberg, enquanto a arte renascentista, mais suave e lenta, é mais durável, a arte

barroca tem direito apenas ao instante.

Esses conceitos retomam a reflexão do mesmo autor, à qual nos referimos no capítulo

III, em que ele afirma que o acontecimento corresponde à surpresa, ao momento em que o

sujeito entra em contato com o objeto e é absorvido por ele, seguindo-se uma diminuição do

impacto proporcionada pela apreensão do objeto. Em APR, se, pela arquitetura do plano do

conteúdo, os sobressaltos que o telespectador sofre nos dois primeiros episódios diminuem à

medida que a minissérie avança, pelo aspecto da expressão, o que se nota é que a obra segue

surpreendendo – e intrigando – o telespectador durante todo o percurso, o que acaba por

refletir na inteligibilidade do conteúdo.

Para confirmar, basta rever a sequência que marca o final do depoimento de Quaderna,

cujo diálogo é o que segue:

JUIZ CORREGEDOR

Já não sei mais se o senhor é um doido ou é um palhaço. Ou as duas coisas juntas!

QUADERNA

Ninguém é uma coisa só, senhor juiz. Arésio foi quem melhor me compreendeu. Os subterrâneos de meu sangue são povoados de desordem e mortos sangrentos, e eu os enfrento com a galhofa e o riso. Sou um palhaço, senhor juiz, um palhaço de Deus. E mesmo sendo um palhaço para divertimento do Altíssimo, mesmo assim a Onça Malhada do Divino atormenta meu corpo, com seu sopro sagrado me queima, me chama para o alto, me incinera e me consagra. E no meio da dor do mundo não verto lágrimas, eu rio!

As palavras de Quaderna poderiam ser lidas apenas como mais um jorro literário,

metafórico ou simplesmente alucinado, como tantos outros presentes na minissérie. No

entanto, não obstante a prosódia e a entonação instáveis que se repetem nessa cena, e a

sucessão de cortes e os planos em detalhes que mais omitem do que revelam, o final da

sequência mostra o juiz escorregando para o chão sob algumas páginas datilografadas,

contorcendo grotescamente a face e emitindo um som estrangulado, como que se afogando

no depoimento de Quaderna.

Este, por sua vez, abre bruscamente a camisa, revelando cortes sangrentos pelo corpo,

antes de cair desfalecido, sob as carícias de Dona Margarida. A cena, que marca o último

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ponto de virada da trama, da maneira como foi construída, revela-se metafórica também no

plano da imagem. A leitura das relações entre expressão e conteúdo imagético e verbal, no

entanto, pode ficar suspensa, devido à surpresa e estranhamento que a linguagem instaura no

telespectador. A sequência narrativa que vem a seguir, aquela em que Quaderna termina a

obra e é coroado rei, esta, sim, passível de ser apreendida sem maiores esforços, certamente

fará com que aquele que a assiste desista de compreender a anterior. Dessa maneira, aquela

cena, assim como tantas outras dentro da minissérie, de fato tem apenas – confirmando

Zilberberg - a duração do instante.

4.2.4. Pausa para a cultura popular

Figura 52 – O cantador Lino Pedra Verde, narrando a história do Execrável, em versos de cordel

A cultura popular, especialmente a nordestina, e seu espaço por excelência que é o

sertão, ganhou, a partir do Modernismo, o privilegiado papel de representar a identidade

brasileira. Sylvie Debs (2007), explica que naquela época, com o distanciamento da cultura

barroca colonial e do Romantismo, e com a decadência da aristocracia fundiária, “A única

riqueza que sobreviveu foi a cultura oral, o patrimônio folclórico e popular. A temática do

sertão se desenvolverá a partir desse fundo cultural (...) que servirá de base para a estilização

literária” (DEBS, 2007, p. 58) e, posteriormente, para o cinema e a televisão.

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Desde a implantação da televisão no Brasil até os dias de hoje, nota-se que as obras

ficcionais de temática sertaneja, às quais a cultura popular é inerente, estiveram presentes em

vários dos momentos em que a televisão esteve em paz com a audiência e a crítica, e chega à

contemporaneidade com o mesmo poder de seduzir o público. Pode-se dizer queA Pedra do

Reino, apesar de algumas rejeições por uma parte do público e da crítica, vem engrossar esse

conjunto.

Na minissérie, obra que prima pelo hermetismo, a poesia de cordel, a cantiga de roda

ou a cavalhada se apresentam como um oásis, um lugar propício para o descanso. É assim que

uma cena do menino Quaderna, reverenciando e ouvindo a cantoria de Lino Pedra Verde

sobre os feitos sangrentos de João Ferreira, representa um alívio para os olhos e ouvidos, na

medida em que quebra ao meio a encenação alucinante e grotesca da carnificina, e ao fim da

qual se segue a suavidade de uma alegre e ingênua cantiga de roda. Da mesma maneira, o

coro de mulheres que, quase em oração, cantam as características e heroísmos de Sinésio,

propiciam descanso aos olhos e ouvidos, depois de uma sequência audiovisual que prima pela

acumulação de sons e imagens.

E, ao final, para embalar o sono depois de uma semana de sobressaltos, nada melhor

do que um Quaderna palhaço, tocando rebeca no meio do sertão, enquanto encerra com versos

a sua epopeia:

Aqui morava um Rei, quando eu menino: Vestia ouro e Castanho no gibão. Pedra da sorte sobre o meu destino, Pulsava, junto ao meu, seu coração. Para mim, seu cantar era divino, Quando ao som da viola e do bordão Cantava com voz rouca o desatino, O sangue, o riso e as mortes do sertão.

A cultura popular, assim, parece ser o principal elemento responsável por eventuais

quebras no ritmo de uma obra que prima pelo andamento acelerado, devido, sobretudo, à

sobreposição de elementos desconhecidos pela maioria dos telespectadores. Em meio ao

turbilhão de informações, sonoras e visuais, a simplicidade da cultura popular contribui para

restabelecer no enunciatário o mínimo de familiaridade necessária para a conjunção dele com

a minissérie.

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Para finalizar essa análise, tomamos de empréstimo as palavras de Teresa

Albuquerque, para dizer que o ritmo “ousado, delirante, vertiginoso (assim como o romance

de Suassuna) pode até ter afastado parte do público (...). Mas que foi bonito, foi.”

(ALBUQUERQUE, 2007, s/p)

Figura 53 – O menino Quaderna numa brincadeira de roda

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após investigar os elementos responsáveis pela construção do sentido nas minisséries

Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino só podemos chegar a uma conclusão segura: há

muito ainda o que desvendar no universo encantado desses dois reinos de imagens e sons.

Não é, portanto, sem alguma frustração – pelo muito que não foi dito – que decidimos colocar

um ponto final nesta tese. Mas é necessário concluir, e para isso, faremos algumas

considerações.

Antes de qualquer coisa, convém refletir sobre os dois elementos centrais e

unificadores do plano figurativo das duas obras analisadas, que são também recorrentes na

produção do diretor Luiz Fernando Carvalho: o sertão e a cultura popular. No segundo

capítulo desta tese já mencionamos a influência que o espaço sertanejo exerce no imaginário

dos brasileiros, e sua presença constante nas narrativas ficcionais e nas artes em geral.

Acrescentaremos apenas algumas informações que, a nosso ver, complementam e justificam

tais constatações.

Em Cinema e Literatura no Brasil. Os mitos do sertão: emergência de uma identidade

nacional, a pesquisadora francesa Sylvie Debs (2007), chama a atenção para o fato de que

desde o descobrimento do Brasil – leia-se a famosa carta de Pero Vaz de Caminha – as

características exuberantes das regiões interioranas são exaltadas como fatores de

diferenciação desta em relação a outras terras além-mar. Mais tarde, românticos, realistas e

modernistas voltaram sucessivamente ao interior do país para buscar ingredientes que

garantissem a originalidade nas letras e a tão desejada identidade nacional. Não podemos

deixar de mencionar, ainda, os muitos registros feitos por naturalistas europeus, em viagem

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pelointerior do Brasil, a maioria dos quais, segundo nos conta Osmar Pereira Oliva, “foi

publicada na Europa, gerando admiração e curiosidade a respeito do sertão”. (OLIVA, 2009,

p. 185)

Em meio a uma extensa região pouco habitada, de Norte a Sul do país, o Nordeste

acabou por se destacar, porque “apresenta a particularidade de ter sido tratado por uma dupla

perspectiva: regional e nacional, tanto por escritores do Sul quanto do Nordeste” (DEBS,

2007, p. 41). Dessa forma é que a presença do Nordeste na literatura, impulsionada pela obra

Os sertões, de Euclides da Cunha (1902), ganha força com o Modernismo, passando a ser

desenvolvida, na literatura e no cinema, a partir de temas que se situam entre o folclore e a

denúncia. (DEBS, 2007, p. 58)

A autora citada não é a única a relacionar o sertão nordestino com a cultura popular.

Joseph Luyten (1984), ao definir literatura popular, situa-a dentro de uma cultura popular que,

a despeito de abranger todos os setores da vida de um povo, indica certa oposição à cultura

erudita, e “se manifesta com maior vigor em sociedades nas quais a divisão de classes é

acentuada.” (LUYTEN, 1984, p. 9) Isso explica porque, no Brasil, a “cultura nordestina está

se tornando sinônimo de cultura popular brasileira” (LUYTEN, 1984, p.10), mesmo a

despeito de o país ser, ele todo, um celeiro de tradições e costumes.

Seja como for, o fato é que o paradoxo de um sertão infértil, devido à ação de seguidos

períodos de seca, e ao mesmo tempo rico em sua diversidade cultural atravessou o pós-

modernismo literário, foi o tema preferido do movimento Cinema Novo – primeiro a dar

visibilidade à produção cinematográfica nacional –, esteve presente em vários das produções

televisuais de maior sucesso junto ao público e à crítica, e chega à contemporaneidade com o

mesmo poder de seduzir o público interno e representar o país no exterior. Pelo menos é o que

se pode concluir de exemplos como o filme Central do Brasil(Walter Salles, 1998) e a

minissérie Hoje é dia de Maria, ambos agraciados com muitos e importantes prêmios.

Se o sertão e sua cultura é tema recorrente na ficção literária e audiovisual brasileira,

no currículo de Luiz Fernando Carvalho, ele é quase obrigatório: “... eu acho que a figura da

terra eu não tenho como negá-la, é sem dúvida a imagem mais primordial para o meu

trabalho...” (CARVALHO, 2001, p. 33). Da busca pelas origens maternas, no Nordeste

brasileiro, Carvalho descobriu a força da terra, e nela encontrou-se com a cultura popular.

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Assim é que para contar as aventuras da menina Maria, a narrativa se apropria de

elementos folclóricos e místicos presentes em contos e cantos populares, lendas e anedotas,

além de incorporar outras formas de manifestação cultural, como danças, cerimônias

religiosas, festas, folguedos, enfim, costumes diversos que estão na própria origem do

brasileiro, porque herdados dos povos indígena, africano e europeu. Essa cultura é o que dá o

tom na primeira jornada de HDM; e também está presente, ainda que em menor proporção, na

segunda jornada. Nesta, embora o espaço predominante seja a cidade grande, o sertão é o

ponto de partida e de chegada da menina Maria, que ao mergulhar no tumultuado e barulhento

universo urbano, leva consigo– como uma espécie de amuleto –, a simplicidade e o poder das

cantigas e crenças populares.

Em A Pedra do Reino, o espaço é novamente o sertão e a cultura popular é também

fonte importante na construção da narrativa. Entretanto, não obstante o fato de que o gênero

principal usado na composição da obra é a poesia de cordel – gênero típico da região

nordestina – cujo alcance é menor do que os contos, cantigas e lendas predominantes em

HDM, a cultura popular em APR ocupa um espaço bem menor em relação à obra que a

precedeu. Ao lado dela, aparecem questões históricas pouco conhecidas de grande parte dos

brasileiros, como a Guerra de Princesa, as circunstâncias da morte do então ministro do estado

da Paraíba, João Pessoa, a revolução de 1930, além da já mencionada carnificina empreendida

por João Ferreira, em 1838, cuja história se confunde com a do protagonista Pedro Dinis

Quaderna. Ao lado disso tudo, estão as histórias fantasiosas inventadas por um aspirante a

escritor.

É importante lembrar que, nas duas jornadas de HDM, a cultura popular também não

está fechada em sua simplicidade e magia. Entretanto, ao invés de compartilhar espaço com

fatos históricos e/ou políticos pertencentes ao passado remoto do sertão nordestino, nessa obra

o que vem à tona são questões da realidade atual, dramas sociais pertencentes ao meio rural

ou urbano, de qualquer região ou país, presentes nos noticiários e nas narrativas ficcionais

contemporâneas. Esse fato, aliado ao próprio caráter dos contos de encantamento, de não se

prenderem a tempos e espaços, faz com que o sertão em HDM transcenda o regional para

adquirir estatuto universal.

Já que estamos falando em espaço diegético, ampliaremos nossos comentários para os

espaços cênicos e fílmicos em cada uma das minisséries estudadas. Conforme já abordamos

no último capítulo desta tese, a cenografia em APR foi construída em dois espaços principais:

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o sertão neorrealista da Paraíba e a verídica vila de Taperoá, também na Paraíba, mas que, ao

receber novas fachadas por parte da produção da obra, acabou por perder o estatuto de

realidade para entrar na categoria de cidade ficcional. No centro do povoado, por sua vez, está

instalado o palco onde vários cenários se sucedem simulando uma ficção dentro da ficção. Já

em HDM, a teatralidade prevalece no espaço cenográfico, todo ele construído manualmente

sobre um palco circular. A substituição gradativa e sequencial dos cenários garante

linearidade ao andamento da narrativa.

A instância do espaço é, segundo Fiorin (2008a), a que menos interesse vem

recebendo dos semioticistas. A maioria dos estudos sobre o tema, até o momento, diz ele,

foram realizados por estudiosos da literatura, que se ocupam da semântica, da ambientação, e

não exatamente da sintaxe do espaço. Para a análise de um objeto que tem a imagem como

linguagem principal, entretanto, a observação do espaço é fundamental. Se o espaço, enquanto

lugar onde decorrem as ações narradas pode, a exemplo das narrativas verbais, não ser tão

importante quanto pessoa e tempo, como afirma Gennete (1972), há que se pensar,

inevitavelmente, na maneira como o enunciador preenche a tela onde as imagens se projetam:

é o espaço fílmico.

Este, portanto, constitui-se naquilo que será mostrado e como será visto pelo

espectador, e se articula, ainda segundo Fiorin, em torno das categorias interioridade vs

exterioridade, fechamento vs abertura, fixidez vs movimento. Da exploração do espaço onde

se enquadram as imagens, é que decorrerão as categorias de intensidade vs extensidade,

continuidade vs descontinuidade e acumulação vs segmentação mencionadas por Yvana

Fechine (2009).

Com base nisso, conclui-se que no que se refere à sobreposição de elementos, pode-se

dizer que tanto as duas jornadas de HDM quanto APR se encaixam, pelo aspecto visual, na

categoria de acumulação, reafirmando as características do estilo barroco no qual o diretor

vem se firmando. Entretanto, é notório que o procedimento de sobrepor elementos apresenta

um considerável crescimento, da primeira jornada de HDM para a segunda e desta para APR.

A primeira parte de Hoje é dia de Maria, mesmo não negando sua filiação ao barroco,

mantém laços estreitos com o estilo clássico, presente na harmonia das imagens, na

profundidade dos campos – relembre-se a presença da pintura renascentista – na linearidade

do tempo, nos movimentos de câmera, na montagem das sequências, além, é claro da clareza

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do conteúdo, boa parte organizado de acordo com uma estrutura canônica. Pelo aspecto

sonoro, pode-se dizer que a obra prima pela segmentação, ou seja, pela harmonia. A própria

utilização de cantigas tradicionais, executadas por instrumentos clássicos, como violino, flauta

e piano, garante a doçura com que Zilberberg se refere ao estilo clássico. Por mais paradoxal

que possa parecer, pode se dizer que os elementos tradicionais prevalecem numa obra

essencialmente barroca. Dessa maneira, enquanto a uniformidade de um garante uma eficiente

apreensão, o inusitado do outro instaura a surpresa, resultando em um ritmo equilibrado e, por

isso, extremamente agradável para quem assiste.

Na segunda jornada de HDM, nota-se que Carvalho deu uma acelerada – metafórica e

semioticamente falando – na associação de elementos utilizados na composição da obra. Pelo

plano do conteúdo, pode-se dizer que continua acessível, uma vez que ele mantém a dualidade

fantasia/realidade, apenas adaptando a porção realista ao espaço urbano. A clareza deste

plano, no entanto, fica relativamente ofuscada por descontinuidades nas narrativas mínimas e,

principalmente, por opções do plano de expressão que imprimem maior velocidade aos

quadros, como a acentuada sobreposição de elementos, – sucatas, escombros, luzes – maior

movimento das cenas – planos curtos e fechados, cortes abruptos – e uma linguagem –

inspirada em musicais – pouco consumida pelo público de televisão, no Brasil. O plano

sonoro repete, a maior parte do tempo, a opção pelo acúmulo, com sons metálicos e

descontínuos, emprestados do rock, buzinas, freadas, além do próprio canto que quase sempre

substitui os diálogos e que, por sua vez, agrega novos sons provenientes dos arranjos

musicais.

Em A Pedra do Reino, pode-se dizer que Carvalho atinge a velocidade máxima no que

se refere a acúmulos e contrastes, tanto no plano do conteúdo, quanto no da expressão. No que

se refere ao conteúdo, toda a engenhosidade criativa que mistura uma multiplicidade de temas

e figuras foi herdada da obra literária. O que o diretor da minissérie fez foi manter, na medida

do possível, as referências históricas, políticas, anedóticas e fantásticas, através de relatos

destituídos de qualquer linearidade temporal, característica também presente no romance de

Suassuna.

Mas se a fragmentação temporal é fator determinante de instabilidade no discurso

literário, quando submetida às elipses requeridas pela adaptação à linguagem audiovisual,

tende a gerar maior complexidade, já que os fragmentos narrativo-temporais se tornam

menores, gerando o efeito de intensidade que faz com que o telespectador se perca do objeto

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em cena, conforme aprendemos com Tatit (1997). Assim, pode-se dizer que as anacronias

temporais, fartamente presentes nos dois primeiros episódios, constituem-se, nesse início de

minissérie, no principal responsável pela surpresa causada no telespectador. Principal, mas

não único. Ao lado de flashbacks e flashforward, aparecem o desdobramento das vozes

narrativas e recursos expressivos intensos – os quais atravessarão toda a minissérie –, como a

gestualidade, as descontinuidades provocadas por movimentos irregulares de câmera, e a

acumulação decorrente da sobreposição de imagens e simultaneidade de ações, pelo aspecto

imagético; e a prosódia, a irregularidade nas entonações de vozes, e a sobreposição de sons,

pelo aspecto sonoro.

Entretanto, há que se destacar a trilha sonora como elemento à parte na composição

sonora de APR, pois ainda que apresente misturas – música cigana, sacra, oriental,

“incelenças”112 e outros cantos da cultura popular nordestina – a música é sempre marcada

pela extensidade, que é a categoria caracterizada por maior atonia, menor pulsação, intervalos

maiores, “batidas” mais espaçadas, enfim, andamento mais lento, o que garante durabilidade.

(FECHINE, 2009, p. 351).

Para finalizar, não podemos deixar de mencionar o fato de que as minisséries

estudadas constituem-se em híbridos de linguagens audiovisuais – inerentes ao próprio

veículo no qual as obras foram exibidas – e teatrais. O recurso à teatralidade nos parece

uniforme nas duas jornadas de Maria e na encenação de Quaderna: em todas elas é recorrente

o uso de cenários artesanais, bonecos representando atores e animais, e enfoque no uso do

corpo e da voz. Há que se assinalar, no entanto, que enquanto na primeira jornada de HDM, o

tom lúdico predomina em todos os aspectos da encenação; na segunda, a presença do teatro de

variedades – com número de vedetes – aponta para uma mudança de direção, do universo

infantil para o adulto; enquanto em APR, as encenações se aproximam ora do teatro bufo, ora

das tragédias gregas.

Como se percebe, por este aspecto também há uma gradativa mudança de “tom” de

uma obra para a outra: mais simplicidade e familiaridade na primeira, maior complexidade e

menos familiaridade na terceira, e um nível intermediário na segunda jornada de HDM.

Resumidamente, podemos dizer sobre a relação entre enunciador e enunciatário nas

minisséries Hoje é dia de Maria e A Pedra do Reino: 112 Pequenos cânticos entoados à cabeceira dos moribundos, substituindo a extrema-unção, ou em virtude de falecimentos.

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a) A cultura popular, pelo seu poder de encantar mais do que de falar à razão, se constitui

em elemento de aproximação entre as obras estudadas e os telespectadores, porque

“nas sociedades modernas uma mesma pessoa pode participar de diversos grupos

folclóricos, é capaz de integrar-se sincrônica e diacronicamente a vários sistemas de

práticas simbólicas: rurais e urbanas, suburbanas e industriais, microssociais e dos

mass media.” (CANCLINI, 2008a, p. 220)

b) A instauração do novo e do já conhecido em Hoje é dia de Maria e A pedra do reino é

feita em proporções dissemelhantes. Na primeira, prevalece o já conhecido revestido

de novidade, na segunda prevalece o novo, obscurecendo o já conhecido. O resultado

disso se reflete no ritmo e, consequentemente, na intelecção dos enunciados pelos

enunciatários.

c) A montagem, ou seja, as estratégias do enunciador na instauração das instâncias da

enunciação (pessoa, tempo e espaço) constituem elementos decisivos na recepção de

Hoje é dia de Maria e A pedra do reino.

d) Elementos do plano de expressão como a organização dos espaços cenográficos e

fílmicos, movimentos de câmera, cortes, luz e cores, são fundamentais na definição do

andamento das duas minisséries, pois ainda que as opções referentes a tais aspectos

respondam por certa unidade estilística do diretor, nota-se que elas aparecem em

proporções crescentes da primeira para a segunda parte de HDM e desta para APR.

e) O antinaturalismo instaurado pela presença da linguagem teatral, que é, ao mesmo

tempo, o que reforça o caráter ficcional das narrativas, é fator de aceleração crescente

da primeira à última minissérie analisada. A dissemelhança no resultado do uso da

linguagem se deve à diversidade dos modelos teatrais utilizados: mais populares na

primeira obra e mais sofisticados e pouco acessíveis ao grande público, na segunda e

terceira.

f) Para finalizar, retomamos as noções de enunciatário e telespectador para concluir que,

enquanto o enunciatário presumido para a primeira jornada de HDM responde ao

perfil de telespectador que se interessa pelo formato e horário do programa

apresentado; em APR, ao contrário, pode-se afirmar que a enunciação prevê um

enunciatário incompatível com o público de televisão que, conforme vimos com

Duarte (2004), geralmente não está disposto a acompanhar programas que exijam

absoluta atenção. Quanto à segunda jornada de HDM, os perfis de enunciatário e

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telespectador se correspondem, porém em proporção mediana, o que pode ser

atribuído, pelo grau de complexidade intermediário entre as outras obras estudadas.

Conforme lembra Jan Mukarovský (1997), uma determinada obra não costuma ser a única

de um determinado autor, e é natural que o método de criação de cada um evolua ao longo do

percurso. “No entanto (...) a sua continuidade não é perturbada nem mesmo pelas mudanças

mais radicais; há sempre uma tensão entre o que muda e o que se conserva”.

(MUKAROVSKÝ, 2007, p. 137) Essa afirmação serve bem às reflexões que ora finalizamos,

após exaustivos – e sempre inconclusos - estudos sobre a composição de Hoje é dia de Maria

e A Pedra do Reino, pois embora a marca da autoria de Carvalho perpasse cada episódio de

cada uma delas, é evidente também que houve uma certa acentuação nos movimentos com

que ele rege a orquestra de APR, tornando mais nítidas e intensas as notas dessa composição.

Conforme lembra Jan Mukarovský (1997), uma determinada obra não costuma ser a única

de um determinado autor, e é natural que o método de criação de cada um evolua ao longo do

percurso. “No entanto (...)a sua continuidade não é perturbada nem mesmo pelas mudanças

mais radicais; há sempre uma tensão entre o que muda e o que se conserva”.

(MUKAROVSKÝ, 2007, p. 137) Essa afirmação serve bem às reflexões que ora finalizamos,

após exaustivos – e sempre inconclusos - estudos sobre a composição de Hoje é dia de Maria

e A Pedra do Reino.

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113 Todas as críticas de jornal utilizadas nesta tese foram compiladas e gentilmente cedidas por Luiz Fernando Carvalho. As cópias, digitalizadas, não contém números de páginas, razão pela qual não estamos indicando esse dado nas respectivas referências.

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114 A autora é uma das participantes de debate com o diretor Luiz Fernando Carvalho, no teatro Ipanema, em 2 de outubro de 2001, do qual resultou a obra citada. O termo entre parênteses é da autora desta tese.

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