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A Princesa Secreta (Three Dog Knight) Tori Phillips [Família Cavendish – Vol. 1] CAPÍTULO UM “E o cão terá seu dia.” William Shakespeare Hamlet Wolf Hall Northumberland, Inglaterra Outubro de 1487 _É uma mocinha de pernas compridas - observou sir Giles Cavendish, conde de Thornbury. - Parece um potro de primavera. O tutor da menina, sir Edward Brampton, forçou um sorriso, embora a avaliação do conde quando a sua querida Alícia nasceu o fizesse temer pelo futuro dela. Em voz alta, replicou:

A Princesa Secreta

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Livro de romance e compaixão.

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A princesa secreta

A Princesa Secreta

(Three Dog Knight)

Tori Phillips

[Famlia Cavendish Vol. 1]

CAPTULO UM

E o co ter seu dia.

William Shakespeare

Hamlet

Wolf Hall

Northumberland, Inglaterra

Outubro de 1487

_ uma mocinha de pernas compridas - observou sir Giles Cavendish, conde de Thornbury. - Parece um potro de primavera.

O tutor da menina, sir Edward Brampton, forou um sorriso, embora a avaliao do conde quando a sua querida Alcia nasceu o fizesse temer pelo futuro dela. Em voz alta, replicou:

_De fato, e num belo dia ter se tornado uma beldade. J notou que ela herdou a estatura do pai. Pois possui tambm a legendria beleza da famlia.

Sem dvida, Alcia era a cara de seu real progenitor, ainda que no gozasse da proteo de um nascimento legtimo. Um arrepio frio percorria a espinha de sir Edward simples idia do que aconteceria com a protegida se os espies de Henry Tudor descobrissem sua existncia. O primeiro primo dela, o pobre dbil conde de Warwick, j definhava na Torre ao prazer do novo rei.

O conde desviou o olhar da criana de cabelos dourados que se divertia com um jogo de cama de gato no fundo do salo.

_A mocinha sabe dos pais? - inquiriu. Sir Edward moveu a cabea negativamente.

_No, pensa que a famlia eram pequenos agricultores que morreram da praga quando ela era beb. - Abriu um largo sorriso. - Acredita que minha esposa e eu sejamos o ourives de York e sua esposa. Achei mais seguro esconder- lhe a verdade at que atinja a maioridade.., ou se case. Permitiu ltima palavra pairar no ar entre eles.

Sir Giles bebeu cerveja da caneca de estanho.

_Por que escolheu minha famlia? - questionou. - No seria melhor para a menina casar- se dentro de sua prpria classe e perder- se no azfama de York?

Sir Edward franziu o cenho.

_Foi precisamente por esse motivo que vim ao senhor. Ela nasceu mais elevada do que qualquer comerciante de York. Embora o pai levantasse saias da Frana s fronteiras escocesas, foi tambm nosso ltimo rei Edward, que Deus tenha sua alma. - Fez um rpido sinal da cruz.

Sir Giles o imitou.

_Amm. - Olhou para sir Edward, ao mesmo tempo que tamborilava com os dedos o tampo da mesa de tbuas largas. - Contou- me uma histria interessante, lorde Brampton. Gostei principalmente da parte em que o rei Edward o chamou a sua barraca antes da batalha de Bosworth e confiou- lhe o rebento do irmo. - Inclinou-se para a frente na cadeira. - Mas que prova tem?

Sir Edward reteve o flego. Os minutos seguintes selariam o destino de Alicia.

_Conhecia bem o rei Edward? - indagou, remexendo a fivela na gasta bolsa de couro em seu colo.

_Sim, tanto quanto minha prpria esposa de memria abenoada. - O velho conde riu. - Minha senhora jurava que eu preferia a companhia de Edward dela. As vezes, eu preferia mesmo, pois a mulher era uma resmungona. - Com um suspiro, tomou outro gole de cerveja. - Agora que partiu para o merecido descanso, sinto sua falta. Agora, o que me diz, meu senhor?

Sir Edward tirou um saquinho de veludo azul da bolsa.

_Por acaso reconhece isto? - Tinha um broche na palma da mo.

Sir Giles arregalou os olhos diante do esplndido rubi oval incrustado em ouro, com uma grande prola em forma de lgrima pendente.

_Sim, e uma alegria rev-lo. Era o adereo favorito de Sua Graa para enfeitar o barrete. Exibe- o num retrato que escondi.

_Um dote adequado a sua ltima filha. - Sentindo que estava prximo do objetivo, sir Edward baixou a voz. - O rei Richard deu-me uma bolsa de moedas de ouro para acompanhar o broche. No queria que Alcia se unisse ao marido como indigente.

O conde olhou- o feio.

_A jia basta, embora as moedas possam aliviar minha carga de impostos. Que os Tudor e seus comparsas apodream no inferno! Vo esmagar o pas com seus malditos impostos. Mal consigo fechar as contas. Meus arrendatrios j esto sem recursos.

_Eu sei, tem sido igualmente difcil para ourives honestos, meu senhor. - Sir Edward ergueu o broche. A luz do fogo na lareira deu vida ao rubi. - Vamos cas-los, ento? Seu filho e minha querida Alcia, filha de Edward IV?

Sir Giles coou o queixo.

_Tenho trs filhos homens.

_Alcia s precisa de um para marido.

Edward olhou para a menina no banco. Os fracos raios de sol atravs da alta janela de arco refletiam- se em seus cabelos dourado- avermelhados, transformando- os num halo de fogo em torno do rosto em forma de corao. Um anjo, comparou, cheio de orgulho. Igualzinha a todos os Plantagenetas. Bom Jesus, proteja- a do pretensioso Tudor.

O conde pigarreou.

_O mais velho, John, tem quase vinte anos. J se casou uma vez, mas a mulher morreu. Quando se casar de novo, ter de ser com uma... parenta legtima, uma vez que ele ser o conde de Thornbury depois de mim.

_Perfeitamente. - Sir Edward bebeu bastante cerveja da caneca a fim de no revidar o insulto velado do conde.

_William, o segundo, j est prometido para uma das filhas de Bedford. Ele terrvel. Aos dezesseis anos, j emprenhou duas mooilas da aldeia.

Pelo tom do conde, sir Edward concluiu que ele estava era orgulhoso da virilidade do garoto. Pigarreou.

_Alcia precisa de um brao forte e de um corao leal para proteg-la.

Quero que seja amada e protegida, clamava seu corao, assim como a amei e protegi desde que me foi confiada.

Thornbury suspirou e esvaziou a caneca.

_Resta Thomas. - Mordiscou o lbio. - Tem s catorze anos, mas j est do tamanho dos outros dois. Cavalga bem. O melhor espadachim de todos.

_Parece promissor...

Qual era o problema?, imaginava sir Edward. O garoto teria sfilis? Com mau pressentimento, esperou o conde prosseguir.

Sir Giles encheu as canecas de ambos com mais cerveja do jarro de cermica.

_Thomas ... to honesto e confivel quanto o dia longo. Penso que ele no sabe mentir. Diz o que pensa... Isto , quando decide falar.

Sir Edward piscou.

_O que quer dizer, meu senhor?

O conde afundou-se no estofado da cadeira.

_Penso que a me o mimou demais. Desde pequeno, Thomas sempre evitou a companhia dos irmos e de meus protegidos. Fechou- se ainda mais depois que minha mulher morreu de parto. Hoje em dia, passa a maior parte do tempo fora, ou treinando no ptio, ou caando na floresta.

Sir Edward retinha o flego. Alcia precisava da proteo de uma famlia forte, leal causa de York. Se seus planos se concretizassem, a menina seria meia- irm do rei de direito. O jovem Richard de York achava- se escondido no interior de Flandres, aguardando atingir a idade necessria para reclamar seus direitos. Mediu com cuidado as palavras seguintes.

_Seu filho Thomas parece o par perfeito para minha protegida.

Sir Giles massageou o nariz.

_Meu filho Thomas pode ter a fora de um boi, mas tem tambm o crebro de um. Quase no fala. Quando o faz, com um de seus malditos cachorros. Para ser franco, meu terceiro filho um parvo.

_Oh. - Sir Edward sentiu- se como a bexiga cheia de um idiota depois que algum infeliz nela sentou- se.

Cus, como poderia prometer Alcia a um dbil mental? Que outra opo tinha? Devia mcula em seu nascimento, ela seria uma pria na corte de Borgonha, onde moravam os simpatizantes de York. Deveria envi-la fronteira com a Esccia, ou a um convento? Tanto numa como noutro, ela definharia. No, jurara solenemente ao rei Richard casar Alicia bem, no dia em que ele fora cruelmente assassinado pelo co Tudor que agora usava sua coroa.

Um riso feliz interrompeu os pensamentos sombrios de sr Edward. No fundo do salo, Alcia escorregava ao cho a fim de interceptar um filhote de mastim cor de damasco. Ele correu para ela com suas patas desmesuradas, a comprida lngua cor- de- rosa pendente do largo focinho negro. O filhote saudou a menina com afetuosas lambidas. O som de esporas raspando as lajes e vrias vozes masculinas falando ao mesmo tempo anunciaram a chegada dos filhos do conde.

Um dos gigantes loiros notou Alicia.

_Ora, o que temos aqui? - exclamou, guisa de cumprimento. - Um anjo que desceu terra?

Sir Giles balanou a cabea.

_Meu segundo filho, William. Esse nunca fica sem palavras...

_Bom dia, senhorita - cumprimentou o mais velho, fazendo uma pequena mesura.

Com o cozinho nos braos, Alcia levantou- se do cho com graa.

_Que Deus lhes conceda um bom dia, meus senhores - replicou, em voz clara e doce.

Embora o animal irrequieto atrapalhasse, executou uma bela reverncia. Sir Edward sorriu para a protegida. Tinha s sete anos, mas portava- se como uma princesa. No fosse o capricho do destino, teria sido uma de fato. Que Deus perdoasse a queda de Edward Plantageneta pelas mulheres.

William gritou pelo salo:

_Que me diz, pai? Esta minha nova noiva? Pelas estrelas, senhorita, uma criatura alta! Prefiro mulheres pequenas. So mais fceis de subjugar.

John pousou a mo no ombro do irmo.

_Est assustando a criana - repreendeu. A Alcia, acrescentou: - Bem-vinda a Wolf Hall.

A menina sorriu esperta.

_Este um dos terrveis lobos? - indagou, erguendo o cozinho.

_Ele meu. - Saindo das sombras, o terceiro filho tirou o animal das mos dela.

Deus do cu! O garoto era bonito, concluiu sir Edward. Mais loiro do que os irmos, com traos bem definidos, ainda que no abenoado por um fio de barba, Thomas Cavendish lembrava um anjo vingador cinzelado em marfim. Aos catorze anos, o terceiro filho do conde j era to alto quanto os irmos mais velhos. Os ombros largos e membros longos sugeriam o homem poderoso que se tornaria na maioridade. Procurou no rosto do rapaz algum sinal de incapacidade mental. Surpreso, no viu nenhum. Em vez de retirar- se com o cozinho, Thomas mantinha- se diante de Alcia como que enraizado no lugar.

_Entende o que quero dizer? - murmurou o conde ao visitante. - Ele no diz nada.

Chamou os filhos para perto. Os dois mais velhos obedeceram. Thomas ou no viu o pai chamar ou preferiu ignor-lo. Deixou Alcia acariciar o filhote.

_John, William, este ...

_Mestre Roger Broom, ourives, meus senhores - adiantou- se sir Edward, reassumindo o disfarce cotidiano. Curvou- se com a deferncia de um comerciante diante da nobreza. - Estou honrado.

_Isso mesmo - murmurou o conde. - E a menina Alicia Broom.

_Minha filha - esclareceu sir Edward.

_Uma lindeza - elogiou William, admirando- a por sobre o ombro.

Sir Edward no apreciava o brilho interessado nos olhos de William. Graas a todos os santos, Alcia ainda era nova demais para ser seduzida. Do contrrio, o rapaz tentaria desencaminh-la. S podia louvar a prudncia de sir Giles em comprometer o segundo filho o quanto antes. Agora, o conde no tinha como oferecer Willam para Alcia. Um marido lascivo assim tornaria um inferno a vida de qualquer mulher.

John cutucou o irmo no estmago.

_Perdoe as maneiras de William, mestre ourives. Penso que esqueceu- se de coloc-las com o chapu pela manh.

O conde suprimiu uma praga.

Sir Edward executou nova reverncia.

_Coisas da juventude, meu senhor.

_Avante, os dois! - rechaou sir Giles, estalando os dedos.

_Desejamos conferenciar com Thomas... em particular. - William gargalhou.

_No me diga! Pretende colocar Tom como aprendiz de ourives? Que hilrio!

_Fora! - ordenou sir Giles. - Thomas, quero falar com voc. E ponha esse maldito cachorro no cho!

_Ou melhor, case- o com a filha do ourives! - zombou William, acossado por John rumo escadaria no fundo do salo. - Quando precisar de instrues na arte da seduo, Tom, pode me chamar...

John calou o irmo com um sonoro tapa no pescoo. Trocando xingamentos, os dois desapareceram na galeria acima.

Sir Giles encheu a caneca pela terceira vez.

_O demnio apossou- se de todos os meus filhos. Temo que minha famlia faa gavies parecerem mansos como tordos. Thomas, venha c! - A Brampton, murmurou: - Agora entende o que quero dizer. um bom menino, mas nada esperto.

Alicia aproximou- se do rapaz alto.

_Se for do seu agrado, meu senhor, eu poderia tomar conta de seu cachorro enquanto fala com seu pai. - Estendeu as mos. - Vamos todos juntos.

Thomas devolveu o filhote Alicia.

_Ele se chama Georgie.

O cozinho deu outra lambida no rosto de Alicia. Ela riu e ps Georgie debaixo do brao, enganchando o outro no de Thomas. Surpreso com o contato, o garoto pareceu querer fugir. Alicia deu- lhe um sorriso inocente. Sem uma palavra, apresentaram- se a sir Giles.

Formavam um belo par, entusiasmou- se Brampton. Um gigante corado de sol e uma princesa dourada. S ento reparou num machucado na bochecha esquerda do rapaz. Deve ter tropeado nos ps grandes...

Sir Edward pigarreou.

_Minha filha, Alicia Broom, meus senhores.

Mais uma vez, Alicia executou uma mesura perfeita, sem largar o cozinho sapeca.

_Estou muito honrada, meu senhor conde - declarou, em tons vivazes. Ento, sussurrou: - Por favor, meu senhor, pode mandar servir a refeio?

Sir Edward tossiu, advertindo. No devia ter comentado com a menina a possibilidade. Rogava para que o conde lhe perdoasse a indiscrio. Como filha de um simples comerciante, ela nunca conhecera ningum da alta nobreza.

Antes que sir Giles se recuperasse da surpresa, Thomas adiantou- se.

_Gosta de torta de ma?

Alicia fechou os olhos, extasiada. Passou a lngua cor- de- rosa nos lbios.

_Adoro!

_Ento, vamos para a cozinha - convidou o rapazola. - Estou faminto.

Alcia riu e abraou o cozinho.

_Assim como Georgie, penso.

Thomas inclinou a cabea para o pai.

_Podemos?

Sir Edward notou o medo nos belos olhos azuis do garoto antes que os baixasse ao cho. Pensando no machucado em seu rosto, Brampton imaginou se sir Giles costumava espancar os filhos, Thomas em especial.

O conde tossiu, assoou o nariz e dispensou os jovens.

_Leve-a cozinha. D mocinha todas as tortas que conseguir comer. No fique a parado feito um pateta, Thomas, caia fora!

Pela primeira vez desde a chegada, o garoto sorriu. Sir Edward mal acreditou na mudana ocorrida no rosto do jovem Tom. Ele olhou de soslaio para Alicia, que lhe sorriu em resposta.

_Vamos, antes que seu pai mude de idia - sussurrou ela.

Thomas concordou. Com mesuras apressadas, o casalzinho se foi.

_Gosta de torta com creme? - indagou Thomas, a caminho da porta.

_Com bastante creme! - informou Alicia.

_Eu tambm...

O conde os acompanhou de olhos arregalados. A seguir, esgotou a cerveja.

_Deus do cu! Viu isso? Nunca ouvi Thomas falar tanto! De que mgica capaz sua pequena?

Amor e aceitao, desejou sir Edward responder ao pai abismado. Em vez disso, esquivou- se.

_No imagino, meu senhor. Alcia tem jeito com pessoas... e com animais tambm.

Sir Giles bateu no tampo da mesa.

_Se aceitar Thomas, podemos cas-los. Vamos redigir o contrato... aps a refeio que sua menina espevitada requisitou. Deus do cu! Ela tem o charme do progenitor real...

Sir Edward expirou aliviado.

_Tem minha palavra, meu senhor. Quando Alcia completar dezoito anos, eu a trarei a Wolf Hall para desposar Thomas.

Sir Giles levantou- se e estendeu a mo.

_Acordo fechado, Brampton. - Olhou para o visitante com penetrantes olhos azuis. - Disse que a mocinha tem jeito com bichos?

_Pde testemunhar, meu senhor.

O conde de Thornbury riu.

_timo, pois vai viver num canil deplorvel!

CAPTULO DOIS

Wolf Hall

Incio de agosto de 1497

_Meu senhor, tem visitas. - Dane Stokes bateu na grossa porta carvalho da pequena biblioteca. - Meu senhor?

Thomas Cavendish, o novo conde de Thornbury, encolheu- se mais ainda na nica cadeira do cmodo. Fingia ler o texto latino que tinha nas mos. Talvez, se ignorasse o chamado por tempo suficiente, Stoke desistisse e mandasse embora os visitantes indesejados. Uma larga tarja de luto escorregou- lhe pelo brao at o cotovelo. Zangado, puxou- a para cima.

Maldito destino! Nunca quisera ser conde. Jamais sequer considerara a idia ridcula. Pouco mais de um ms antes, seu pai estava vivo e com sade, William e a esposa brigavam feito gatos, mas isso entre eles era normal, e todos preparavam- se para o casamento de John com uma jovem e rica herdeira, a ser celebrado no Festival da Colheita, em setembro.

Despreocupado, ele passara os brilhantes dias de sol perseguindo texugos.

_Pegamos muitos, no? - comentou com o pequeno terrier marrom e branco de pedigree misto aninhado em seu colo.

Taverstock levantou as orelhas e lambeu a boca do dono em resposta.

Stokes bateu na porta outra vez.

_Sir Thomas, um distinto e poderoso lorde que o aguarda no salo. Ele e duas senhoras.

Thomas grunhiu. Mais mulheres, no! Uma bastava. A esposa cara de furo de William, Isabel, recusava- se a aceitar a viuvez com classe. Adoraria que a bruxa arrumasse as arcas e voltasse para o pai.

_Deixe- me em paz - gritou, afagando a cabea lisa da cadela galgo castanho- amarelada em miniatura reclinada ao lado da cadeira. Estava prenha.

Vxen olhou para o mestre com evidente afeto nos olhos castanho- escuros.

_, Vixen, voc a nica mulher da minha vida - afirmou Thomas, massageando as orelhas aveludadas.

Impaciente com a ateno dispersa do mestre, Taverstock encostou o focinho mido na pgina aberta da cara cpia de As Comdias de Planto de Thomas. Repreendendo- o, Thomas fechou o livro e pousou- o na mesa.

Stokes bateu de novo.

_Meu senhor Cavendish, est me ouvindo? - insistiu. - O que fao com eles?

Mande o distinto e poderoso lorde para o inferno, seguido das senhoras. Thomas suspirou.

_As coisas no so mais como antes, no , Tavie?

O terrier lambeu- lhe a boca outra vez, rosnando.

_Por favor, meu senhor. Os visitantes viajaram muito para v-lo.

_Quem? - inquiriu Thomas ao administrador insistente.

A voz alta acordou o mastim que cochilava no canto prximo. O co levantou o focinho de pintas cinzentas e bocejou, exibindo duas fileiras de grandes dentes pontiagudos.

_So sir Edward Brampton e a esposa. Sir Edward pede uma reunio urgente com o senhor.

_Nunca ouvi falar dele - disse Thomas aos trs companheiros caninos. - O que acham que ele quer? - Mais alto, indagou a Stokes. - Para qu?

_No sei, meu senhor. S sei que a dama mais jovem trouxe todos os seus pertences. Sir Edward pediu- me para avisar...

_O qu? - berrou Thomas.

_Que trouxe sua... sua...

_Despeje logo, homem! O que foi que ele trouxe?

_Sua prometida! - gritou Stokes, atravs da madeira. - E sir Edward est com muita pressa de ir embora.

Thomas j ia xingar o empregado, mas uma lembrana distante o deteve. Uma menina alta e magra de vestido de l azul liso com os cabelos ruivo- dourados cobertos por uma larga fita azul e veuzinho branco. A filha do ourives. William cansara- se de provoc-lo citando o improvvel compromisso. Na ocasio, pela primeira vez agredira e deixara inconsciente um dos irmos. O conde lhe dera uma boa sova a seguir, mas o castigo compensara. Os irmos nunca mais ousaram irrit- lo. Quanto menina, presumira que desposara o filho de um outro comerciante. No ouvira mais falar dela desde seu nico encontro, anos antes. Alicia era seu nome.

_Aposto que engano - disse Thomas a Vixen. - O que um distinto e poderoso lorde como esse tal de Brampton estaria fazendo com a filha de um ourives? No, j deve ter corrido a notcia de que o novo conde de Thornbury solteiro e rico. - Sorriu para o temer em seu colo. - E tambm meio ruim da cabea, no devemos nos esquecer disso. Ser que lorde Brampton o primeiro de uma fila de potenciais sogros? Que Deus me proteja!

_Meu senhor? - chamou Stokes pelo buraco da fechadura. - O que quer que eu faa?

_Entre! - rugiu Thomas.

O trinco de lato se ergueu e Stokes enfiou a cabea pela fresta.

_Sim, meu senhor?

_A bruxa. Como ela ?

O administrador sorriu tmido. Lembrava a Thomas um cisne apaixonado na manh de primeiro de maio. A viso bastava para deixar um homem sem apetite.

Stokes suspirou.

_Doce e jovem, meu senhor. Loira e alta. Um rosto de anjo. A voz de uma cotovia. O porte de um salgueiro. A...

_Pare com essa ladainha, seu bobo! - ralhou Thomas.

Bolas! A pequena feiticeira j encantara seu administrador.

Mas teria que suscitar todo o charme do inferno para enred-lo.

Raios e troves! No precisava de mais uma encrenqueira.

Estalou os dedos para os trs melhores amigos.

_Vamos, Georgie! Ao encontro dessa... mulher que me reclama.

Thomas encontrou lorde Brampton andando para l e para c diante da lareira apagada no salo. Os taces metlicos das botas de montaria do visitante raspavam- se contra as lajes. A grossa capa de l preta jogada por sobre o ombro deixava ver suas vestes de veludo marrom. Eram roupas finas.

Uma senhora, provavelmente a impaciente esposa do lorde, estava sentada numa cadeira prxima. Sua capa de viagem tinha manchas de lama, sinais de uma dura jornada. Seu rosto plido externava uma expresso ansiosa. Ergueu a taa de vinho com mo trmula.

Diante do mestre, Taverstock eriou os plos da nuca. Rosnou uma ou duas vezes em desafio. Vixen recostou- se na perna esquerda de Thomas. Georgie estacou, levantou o focinho, estremeceu e ento, com um Latido sonoro, atravessou o salo rumo aos visitantes perplexos.

A senhora gritou quando o cachorro se aproximou. O marido postou- se diante dela e sacou a espada.

_Georgie! - chamou Thomas, correndo atrs do animal. O que dera nele? A espada de Brampton parecia afiada.

_Georgie? - Uma moa alta colocou- se sob o sol que adentrava pela janela, os raios dourados captando o fogo em seus cabelos. Rindo deleitada, caiu de joelhos e estendeu os braos para o grande mastim. - Aps tantos anos, mesmo o pequeno Georgie? - Enterrou o rosto no grosso pescoo peludo.

Taverstock uivou e deu alguns passos de lado com as pernas atarracadas. Imvel, Vixen concentrava no mestre os expressivos olhos escuros.

Ao ouvir a voz da moa, Thomas parou onde estava. Piscou. A filha do ourives, de suas fantasias juvenis, voltara como bela mulher. Tinha a voz mais grave, mas conservava o tom alegre. Stokes no exagerara. Sua figura de fato lembrava a de um gracioso salgueiro. Seu riso lembrava uma fonte clara num dia quente de vero.

_No se mexa, Alicia - sussurrou Brampton, avanando sobre os dois no cho. - Vou...

_No! - Thomas torceu o punho do visitante e a espada caiu no cho.

Taverstock latiu aprovando.

Brampton voltou- se para Thomas.

_Que espcie de cavaleiro voc? - rugiu. - Mandou seu vira- lata atacar minha filha? E isso que chama de hospitalidade?

_Edward, pare! - pediu a esposa, correndo para seu lado.

_No foi nada disso. Alcia e o co so amigos, no v? - Voltou- se para Thomas e sorriu. - Perdoe meu marido, lorde Cavendish. Chegamos de uma viagem atribulada e um tanto perigosa. Temo estarmos muito nervosos.

Thomas respirou fundo a fim de se acalmar. Com o rabo do olho, viu Georgie deitar- se e rolar de costas para que a moa lhe afagasse o ventre. O cachorro contorceu- se de prazer. Com uma pontada de cime, voltou- se para o homem que fumegava a sua frente. Brampton parecia- lhe familiar, mas no imaginava de onde...

_Queria me ver? - indagou, brusco.

Brampton apertou a mo da esposa em seu brao e endireitou a capa.

_Eu disse quele administrador insosso que queria falar com o conde. - Olhou feio para Taverstock, que lhe farejava as botas. - Voc Thomas, se no me engano?

_Sim, sou.

Brampton volveu os olhos ao teto.

_ bom rev- lo - declarou. - Agora, posso falar com seu pai?

_No, no pode - replicou Thomas. Jesus, gostaria que pudesse! Serviu- se do vinho sobre a mesa.

Brampton enervou- se.

_Pelo amor de Deus, senhor, viemos aqui com a maior urgncia! No tenho tempo para circunlquios...

_Nem eu.

Thomas sorveu o vinho. Por sobre a borda da taa, viu a moa atrair Vixen para seu crculo de influncia. O suor acumulava- se em seu sobrolho. Fazia calor demais naquele incio de outono...

Brampton bateu o punho cerrado na mesa, abalando o cntaro de vinho.

_Onde est o conde de Thornbury?

Thomas encheu de novo a taa com toda a calma.

_Est falando com ele.

Brampton deixou o queixo cair, murchando sob a capa.

_Isso piada!

_No. - Thomas puxou para cima a tarja de luto no brao. - Foi a febre. Primeiro meu pai, depois meus irmos. Contraram- na em junho, nas sesses do tribunal em York. - Com uma pausa, contraiu os lbios a fim de conter a dor nas entranhas. - Eu fiquei em casa.

_Que Deus tenha piedade de suas almas - murmurou lady Brampton, fazendo o sinal da cruz.

_Amm - murmurou Thomas.

_Amm - repetiu a moa, em voz delicada.

A emoo embutida na palavra simples cortou o corao de Thomas. No conseguia olhar para a garota.

Brampton estava em choque.

_Morreram todos?

Thomas fez que sim, incapaz de falar.

O homem mais velho olhou para a esposa antes de perguntar:

_Por acaso seu pai lhe falou de seu casamento?

O jovem conde franziu o cenho. O pai raramente lhe dirigira a palavra, a no ser para repreend-lo e a seus ces. O velho conde nunca lhe falara de seu futuro.

Thomas balanou a cabea negativamente.

_Que Deus nos acuda! - Brampton serviu- se de mais vinho e tomou- o num s gole.

Naquele ritmo, Thomas cogitou qual dos dois ficaria bbado primeiro. Prendeu a lingua enquanto observava o visitante. A experincia lhe ensinara que as pessoas se constrangiam com o silncio e despejavam qualquer coisa para preencher a lacuna. Aos poucos, descobriria os pensamentos mais ntimos de Brampton.

Sir Edward levantou- se, mas ainda assim era meia cabea mais baixo do que Thomas.

_Lamento sua perda - declarou, com voz mais firme. - Mas minha misso continua a mesma. H dez anos, seu pai e eu fechamos um acordo segundo o qual voc se casaria com minha Alicia no momento adequado. - Olhou carinhoso para a moa sentada entre os ces. - Eu planejava esperar mais um ano. Ela acaba de completar dezessete...

De repente, Thomas lembrou- se do homem.

_O senhor o ourives... Roger Broom.

Brampton arregalou os olhos.

_Cus, voc tem uma memria melhor do que eu esperava! Era um disfarce. Seu pai conhecia minha verdadeira identidade. Mas chega de conversa, pois o tempo urge. Minha esposa e eu temos que chegar costa antes que zarpe nosso navio para as Temas Baixas.

Thomas grunhiu em resposta, embora se agitasse com as novidades. Por que o disfarce? E por que tanta pressa agora?

_Com Alicia? - retrucou.

_Por acordo escrito, e considerando o dote que paguei a seu pai, Alicia dever despos-lo. - Num sussurro, Brampton acrescentou: - E, quanto antes, mais seguro para ela.

Thomas olhou para a moa. Ela sorriu. Ele perdeu o flego. Ela se levantou do cho e passou por cima de Georgie. Mas que calor! Era quase to alta quanto Brampton. Atirando a grossa trana por sobre o ombro, avanou na direo do noivo.

Com o corao aos pulos, Thomas teve a certeza de que ela podia ouvir- lhe as batidas. Transpirando de calor, notou a fileira de dentes brancos, cintilantes como prolas, atravs dos lbios entreabertos de Alicia, carnudos e vermelhos. Sentindo as mos pegajosas, deu- se conta de que nunca estivera to perto de tal perfeio em seus vinte e cinco anos.

Alicia fitou- o detidamente, os incomparveis olhos azuis risonhos.

_Diga- me, sir Thomas, sua cozinheira ainda faz as melhores tortas de ma do mundo?

Ar! Thomas precisava respirar, ou morreria ali mesmo. Desejou responder que todas as tortas de ma de Wolf Hall eram dela, mas s emitiu um som estrangulado. Desesperado, deu meia- volta e saiu do salo, seguido de Taverstock e Vixen. Georgie, o traidor, ficou para receber mais carinho de Alicia.

No corredor, Thomas nem parou ao topar com seu escudeiro.

_Atenda aos visitantes, Andrew - ordenou.

_Sim, meu senhor - respondeu o rapazola magrinho.

_Instale- a na sute real - instruiu, por sobre o ombro.

_Sim, meu senhor. Mas no est falando de Vixen, est?

_V para o inferno, Andrew! - gritou Thomas, dobrando a esquina. - E leve lorde Brampton consigo.

Escancarou a porta do ptio. Ar fresco! Enchendo os pulmes, correu pela campina at a segurana da floresta salpicada de sol

_Sou o maior idiota da Inglaterra!

Consolou- se batendo a cabea num tronco de rvore. Tavie e Vixen acomodaram- se entre as folhas secas para ver o mestre se martirizar.

Sir Edward atirou o chapu no cho.

_Raios e troves! Que uma praga o leve! Minha vontade ir atrs do cabea- dura e traze-lo de volta para implorar seu perdo! A que simplrio eu a uni, Alicia?

Lady Katherine segurou o brao do marido.

_Calma, meu marido. Penso que o jovem lorde esteja consumido de dor pela perda sbita. Tanta desgraa pode abalar a mente de uma pessoa.

_A cabea dele j no era das melhores h dez anos - vociferou sir Edward, fitando a porta aberta. - Mas tive esperana de que melhorasse com o tempo. - Ps um brao nos ombros de Alicia. - Perdo, minha querida. Fiz a voc e seu real progenitor um pssimo servio.

Alicia afligiu- se.

_No, papai... quero dizer, Edward. Lembro- me de que sir Thomas foi gentil comigo quando eu era criana. Penso que a idia de uma esposa em sua soleira tem muito a ver com sua perturbao. - Riu brandamente. - Lembra- se de Peter Martext, o filho do cortineiro? Quando ele ia a nossa loja e eu perguntava se podia ajud-lo a escolher uma corrente de ouro, ele s ficava me olhando. Voc dizia que ele no sabia conversar com mulheres. Talvez esse seja o caso de sir Thomas...

O tom leve de Alicia no combinava nada com o temor em seu corao. E se seu prometido fosse mesmo ruim da cabea? Embora ele parecesse possuir a fora de seus ancestrais viquingues, que seria dela se o marido no fosse capaz de proteg- la?

O garoto tmido transformara- se num belo homem. Alicia jamais vira ombros to largos na vida. A cala preta justa que ele usava deixava pouco imaginao feminina. A cintura esbelta se ligava a quadris estreitos. As meias retesavam- se contra msculos poderosos, denunciando um homem que vivia sobre a sela. O veludo preto do gibo realava- lhe os cabelos loiros e os brilhantes olhos azul- safira. Olhos que no refletiam loucura, mas choque.

Lady Katherine ainda apertava o brao do marido.

_Querido, acho que Alicia chegou ao fundo do problema.

Edward bateu as luvas de montaria contra a palma da mo.

O grande mastim olhou- o com interesse.

_O que vou fazer agora? Temos que fugir da vingana do rei, mas temo deix-la aqui sozinha, querida. Voc tem que ficar em segurana.

Alicia correu o olhar pelo salo. Os lambris de carvalho pareciam mais escuros do que o castanho natural. Em continuidade ao revestimento, as paredes de gesso, antes caiadas, estavam cobertas de fuligem. Os pilares entalhados, tambm enegrecidos pela fumaa, adentravam a escurido do teto abobadado. Uma desbotada bandeira vermelha de batalha, em trapos, pendia torta da chamin. Fazia muito tempo que Wolf Hall no gozava de uma boa faxina. O que o pobre novo conde precisava era de algum que lhe trouxesse vida sol e ar fresco.

_Wolf Hall parece slido o bastante para resistir a um Exrcito - opinou Alicia, tentando parecer mais corajosa do que se sentia.

_Os nicos inimigos que vejo aqui so a sujeira e o descaso.

Sir Edward abraou- a. Era alta o bastante para olh-lo nos olhos e ver sua apreenso.

_Sempre foi prtica, minha pombinha, mas grossas muralhas no a salvaro das garras de Tudor, se o corao regente neste castelo for fraco.

Antes que Alicia pudesse responder, ouviu- se uma tosse seca a distncia.

Um rapaz vestido na ltima moda em tons de cinza e preto fez uma reverncia.

_Meu senhor Brampton, lady Brampton, arta. Broom, bem- vindos a Wolf Hall.

Sir Edward afastou Alicia e aproximou- se do jovem.

_Quem voc?

O rapaz curvou- se novamente.

_Andrew Ford, meu senhor. Tenho a honra de ser o escudeiro do conde de Thornbury.

Brampton grunhiu e cochichou com a esposa:

_A farsa piora a cada instante. Um urso idiota servido por um pavo fresco.

Sem se intimidar, Andrew Ford achegou- se famlia. No devia ter mais de dezesseis anos. Com os cabelos castanhos lisos altura do queixo, no disfarava o divertimento no olhar.

_Peo perdo pela sada apressada de meu mestre, meu senhor. Sir Thomas no est acostumado a pessoas, em especial a damas to encantadoras. - Fez nova reverncia a lady Katherine e Alicia.

Alicia tambm se divertia. Esse deve passar mel em tudo o que come e manter os alfaiates de York ocupados o tempo todo.

Sir Edward adotou sua postura mais digna. Alicia raramente conhecera esse seu lado em todos aqueles anos vivendo sob seu teto. Ela ainda mal acreditava que ele fosse um nobre, e que ela mesma era...

Alicia tentou esquecer- se um pouco de sua verdadeira identidade. Deveria esquecer- se para sempre. Quanto antes trocasse o nome Broom por Cavendish, mais segura estaria. Depois, esperava poder enterrar o perigoso segredo de sua existncia bem no fundo de Wolf Hall. Rogava para que sir Thomas honrasse a palavra do pai e a desposasse.

No queria enclausurar- se num convento pelo resto da vida. Ansiava pelo amor e companhia de um marido, e filhos para nutrir e criar. Amava o sol. As flores. E principalmente os animais. Olhou para Georgie, que fitou- a esperanoso. Afagou- lhe as orelhas fulvas, fazendo- o suspirar de satisfao.

Sir Edward imps- se ao rapazola.

_Da prxima vez que abrir a boca, mestre Ford, faa-o com algum firme propsito. Seu senhor tratou- nos da pior maneira possvel e desonrou a prpria noiva. E um ignorante.

Andrew refutou o insulto, sem jamais apagar o sorriso.

_Meu bom senhor, em seu corao, entenda. Meu mestre um homem bom, forte e confivel. Jamais pretendeu desrespeitar, muito menos uma donzela como a srta. Broom. - Voltou o sorriso para Alicia.

Ela continuava afagando Georgie. Melhor no incentivar o rapaz. Ele parecia do tipo que se apaixonava todos os dias da semana e duas vezes aos domingos.

Sir Edward estalou os dedos vrias vezes.

_Desembuche, escudeiro! Como posso ter certeza de que minha protegida estar a salvo se eu a deixar neste... - Olhou para o co. - Neste canil? comum seu mestre abalar- se desse jeito? Ele consegue emitir mais do que um rosnado? Tem capacidade mental para se casar? Ir tomar conta de minha preciosa menina?

_Sim, meu senhor, o conde capaz disso e muito mais. A srta. Broom estar segura em Wolf Hall. Tem a minha palavra.

_Ha! - escarneceu sir Edward. - A palavra de um papagaio empavonado? Diga- me, mestre Ford, a lmina j ameaa sua barba?

Duas manchas vermelhas surgiram nas bochechas do rapaz. Seu sorriso enfraqueceu, mas ainda no desapareceu.

_Meu senhor, peo desculpas se minha aparncia e maneiras o ofendem. Tive a honra de passar meus anos de formao em casa do duque de Buckingham, onde aprendi como deve se conduzir um cavalheiro. Mesmo servindo a sir Thomas no agreste de Northumberland, procuro manter meus poucos refinamentos. Quando atingir a idade adulta, espero conseguir um lugar na corte. Nesse nterim, no pretendo me tornar um brbaro s por residir no interior.

Alicia escondeu o sorriso com a mo. Desconfiava de que Andrew Ford podia ser boa companhia naquele velho castelo negligenciado.

Sir Edward tirou uma boa medida do rapazola.

_Pois bem, sir Bufo, deixarei Alicia.., a seus cuidados. Se eu souber que ela foi destratada por seu mestre ou qualquer um de Wolf Hall, irei em pessoa atrs do senhor. Quando tiver acabado, eu o enfiarei, com suas finas maneiras e roupas principescas, numa pele de enguia, para dar aos porcos. Estamos entendidos, escudeiro?

Andrew agitava o pomo- de- Ado na garganta. Endireitou os ombros estreitos na tnica de matelass.

_Sim, meu lorde Brampton, perfeitamente. Ser uma honra servir condessa, assim como agora sirvo ao conde.

Alicia piscou. Claro! Seria condessa aps o casamento. Seu mundo viram de pernas para o ar do dia para a noite. Umedeceu os lbios secos. Uma semana antes, atendia clientes numa loja de ourives perto de Micklegate. Agora, j no existia a filha do comerciante. Ao mesmo tempo, a nova condessa de Thornbury ainda era produto de sua imaginao. Quem era Alicia Broom? A perseguida inimiga do usurpador do trono da Inglaterra. A mo tremeu- lhe ao afagar o plo spero de Georgie.

Lady Katherine aproximou- se de sir Edward.

_Amor, o sol comea a descer no cu. Temos que correr.

Sir Edward grunhiu do jeito costumeiro. Alicia sabia que ele no estava satisfeito com a deciso tomada. Seus amados pais adotivos teriam que correr como o vento, ou no alcanariam o navio a tempo. Se ela se encontrava em perigo, que dizer daquelas pessoas queridas a quem chamara de pai e me por tanto tempo?

Deixou Georgie cochilando e abraou- lhes as cinturas.

_Precisam partir. Estarei em boas mos. Penso que sir Thomas precisa s de um pouco de tempo.

_Ele precisa de mais do que isso - resmungou Brampton.

Alicia beijou- o no rosto.

_J tm a palavra de mestre Ford de que serei bem cuidada. Prometo escrever- lhes sempre e contar...

Sir Edward apertou- a e sussurrou:

_No, no deve nos escrever de jeito algum, minha querida. Uma carta interceptada pode provocar a morte de seu meio- irmo.

Alicia recordou o rosto de Dickon, to parecido com o seu. No via o pequeno prncipe desde que ele fora despachado pelo mar do Norte mais de uma dcada antes. Quatro anos depois, disfarado de garoto flamengo chamado Perkin Warbeck, Dickon voltara ao sul da Inglaterra e exigira que Henry Tudor lhe entregasse o trono. Durante seis anos, Dickon vira sua fortuna minguar.

Havia duas semanas, Dickon fora capturado pelas foras de Henry e aprisionado na Torre de Londres, onde j vivera confinado na infncia. Sua nica esperana de vida estava no fato de ningum saber que ele era o verdadeiro Richard, duque de York, e herdeiro do trono por direito. Sir Edward esperava que Dickon fosse libertado, a exemplo de outro pretendente ao trono, Lambert Simnel. Dickon clamara ter sido engrupido por gananciosos. Que Deus o salvasse.

Alicia baixou o rosto.

_Eu tinha me esquecido. Perdo, papai... meu senhor.

Sir Edward estreitou- a.

_No sou senhor para voc, querida. Embora eu jamais pudesse tomar o lugar de seu estimado pai, rogo para que sempre pense em Katherine e mim como seus pais.

Alicia sentiu as lgrimas arderem, mas no tornaria a despedida ainda mais dificil. Teria muito tempo para chorar depois.

_Como os amo! - declarou: - Eu me lembrarei de vocs para sempre...

Katherine beijou- a na testa.

_E voc estar sempre em nossos pensamentos e oraes, filha.

_Se precisar nos escrever, faa- o por mensageiro, algum de confiana, mandando- o a Bruges, aos cuidados da Sociedade dos Ourives. Mas s escreva se for caso de vida ou morte. Oh, minha querida! - Sir Edward beijou- a na testa. - Saiba que deixo meu corao com voc. Tome conta dele at eu voltar.

Alicia mordeu o lbios para que no tremesse.

_E quando ser?

Sir Edward tornou- se sombrio.

_Se seu irmo conseguir escapar e voltar corte da tia na Borgonha, logo nos reencontraremos. Se no...

Alicia passou o dedo pelo sobrolho dele, desejando poder alis-lo.

_No vamos pensar no pior. Vou rezar por vocs e por Dickon.

_Se Deus ouve as preces de algum, com certeza ouve as suas, minha filha. - Sir Edward beijou e abraou Alicia mais uma vez, pegou o chapu no cho e berrou ao escudeiro: - Sir, responsvel por ela sob todos os aspectos!

Andrew fez outra mesura caprichada.

_Depositou sua confiana sabiamente, meu senhor.

_Fico imaginando em quem... - desdenhou Brampton.

_Em meu bom mestre, sr Thomas Cavendish, meu senhor _replicou o jovem. - E em mim, como seu fiel servo.

Murmurando uma praga, sir Edward pegou a esposa pelo brao e encaminharam- se porta de sada. Sob o arco, ele olhou uma ltima vez para Alicia. Ela sorriu e acenou, sentindo o corao se despedaar.

_Jesus, voc era um pingo de gente quando a segurei nos braos pela primeira vez... Quem podia imaginar o anjo que se tornaria?

_Papai...

Eles se foram.

Alicia segurou- se para no cair em prantos ali mesmo. No podia demonstrar fraqueza agora, ainda mais diante do escudeiro de seu prometido.

Andrew ofereceu- lhe o brao.

_A primeira noite a pior - consolou.

Alicia afugentou as lgrimas.

_Como?

_A ausncia dos pais. - Andrew a fez enganchar o brao no dele. - A primeira noite a pior. Depois, a gente se acostuma. Eu sei.

Ela fungou.

_Como sabe? Sentiu saudade em casa do duque de Buckingham?

Orapaz sorriu. De certa forma, lembrava- lhe Dickon.

_No, foi quando cheguei aqui para ser escudeiro de sir Thomas. Chorei como um beb na primeira noite.

_Verdade? - Alicia imaginou se choraria a noite toda. Achava que sim.

_Verdade. Quando um dos outros em servio queixou- se a sir Thomas de que minha choradeira no o deixava dormir, o mestre deixou- me ficar na cama de reserva em seus aposentos.

Alicia ficou curiosa.

_E no deixou sir Thomas dormir?

Andrew riu.

_No. Ele que no me deixou dormir, contando as histrias mais divertidas, at eu pegar no sono. Pela manh, encontrei Vixen junto de mim. Ela me aqueceu a noite toda.

Alicia horrorizou- se.

_Como sir Thomas pde promover tal devassido? Quem essa Vixen, posso saber?

Andrew riu mais alto.

_Vixen a pequena galgo, srta. Alicia. J a viu com meu mestre. Penso que gostar dela...

Mas ser que Vixen vai gostar de mim?, imaginou Alicia. E quanto ao belo mestre da cadelinha?

CAPTULO TRS

_O qu? - Lady Isabel Cavendish atirou um urinol contra a trmula camareira. - Est mentindo, verme! - O assento estofado de uma banqueta juntou- se aos cacos do objeto cermico.

Meg esquivava- se como podia.

_No, a mais pura verdade, minha senhora. - Isabel pegou um de seus chinelos de seda da desordenada pilha de calados no cho.

_Thomas... Noivo? Equivale a dizer que vamos pegar cotovias quando o cu cair. Meg, no estou com esprito para piadas.

A camareira recuou para a porta.

_No sou de fofoca, minha senhora. Vi a mulher com meus prprios olhos. Chegou de mala e cuja. Mestre Andrew instalou- a na cmara real e ela l permanece. Vim direto contar- lhe, minha senhora.

Isabel baixou o chinelo.

_E Thomas? O que ele disse?

_Nada. - Meg escondeu o riso atrs do avental. - Ou melhor, gaguejou e babou como um lcio no anzol, depois saiu correndo do salo.

Isabel sorriu. Ento, a visita inesperada era uma surpresa para seu cunhado tanto quanto para ela. Sem dvida, o grande conde de Thornbury no momento escondia- se no parque com seus ces imundos. No deveria voltar antes do pr- do- sol. Melhor ainda. A bruxa atrevida bem poderia estar j voltando para casa quando Thomas voltasse a pensar nela. Sorriu malvola.

_Traga- a a mim! - ordenou. - Lidarei com esse inconveniente eu mesma.

Meg fez uma reverncia.

_Como queira, minha senhora. - Deu meia- volta.

_Meg?

A camareira deteve- se.

_Sim, minha senhora?

_No conte. a ningum sobre meu encontro com a mulher. Entendeu? - Isabel estreitou o olhar sobre a criada sonsa. - Uma palavra, e se dar muito mal.

Meg engoliu em seco.

_Sim, minha senhora. - Aps nova mesura, foi- se.

Isabel contornou as pilhas de roupas descartadas que atravancavam o cho de seus aposentos. Diante da grande folha de caro cristal veneziano que William importara especialmente para ela, torceu o nariz ao prprio reflexo. Odiava usar negro. Fazia- a parecer uma andrajosa vtima da praga. Quem naquele castelo abandonado se importaria com o que ela vestia? Nem que percorresse nua os corredores Thomas a notaria...

Passou as mos pelos seios, descendo cintura fina. William sempre elogiara sua esbelteza. Reconhecia a beleza quando a via. Ao contrrio do pai, o velho conde. Eis tudo o que o homem jamais lhe dissera:

_Quando vai cumprir seu dever, senhora? Quando vou ter nos braos meu neto?

Deus sabia o quanto ela tentara engravidar. William a procurara quase toda noite, duas vezes ao dia no incio do casamento. Suspirou lembrana. Era verdade que reclamara muito do marido, mas agora sentia falta dele. Thomas no devia chegar aos ps de William, mas no tinha opo. Ou desposava o cunhado, ou voltava para a casa do pai, disputando com um batalho de irms cada migalha de comida sobre a mesa. Adeus vestidos caros, jias ofuscantes e espelhos nos quais se admirar. Agitou as pregas da saia de damasco negro. Como atrairia Thomas se parecia um corvo atormentado?

A suas costas, algum pigarreou. Isabel girou nos calcanhares. Uma moa alta de vestido de l verde liso fez uma reverncia. Apesar da estatura e da aparente condio inferior, a desconhecida exibia uma postura perfeita, mesmo ao reerguer- se. Isabel reteve o f~o1ego. A mulher era uma gigante! Devia ter ps grandes como ps, nada parecidos com os seus, graciosos. Relaxou um pouco. Nada a temer daquela compridona. Os homens da famlia Cavendish gostavam de mulheres pequenas.

_Sou lady Isabel Cavendish - apresentou- se, sentando- se na nica cadeira do quarto. Espalhou a saia ao redor. - Meu marido era sir William, o segundo filho do conde de Thornbury.

- Aps uma pausa, corrigiu- se. - O finado conde, quero dizer.

_Que Deus tenha piedade de sua alma, e da alma de seu caro marido que se foi - replicou a moa, em voz baixa.

Isabel mexeu na bolsa e retirou um lencinho de cambraia de linho e renda, apertando- o contra os olhos secos.

_Pobre William! - lamuriou- se. - Di- me pensar nele.

Era verdade. Parara de chorar por sua partida inconveniente quinze dias antes. Agora, tinha outras distraes para consolar o pesar.

A estranha apreciou a pequena cena de Isabel.

_Tem meus mais profundos sentimentos, minha lady Cavendish.

Isabel gostaria de ter aprendido a chorar sempre que tivesse vontade, como vrias de suas irms eram capazes. Tratava- se de um mtodo extremamente eficaz de se conseguir qualquer coisa de um homem. Rogava que a mulher a sua frente no notasse a falta de lgrimas. De volta ao negcio.

_Quem e o que quer em Wolf Hall? - Isabel agitou o lencinho no ar, como se a visitante cheirasse mal. - Pode falar abertamente, pois sou a castel de sir Thomas.

A moa enrubesceu levemente, o que, infelizmente, a tornava ainda mais bela.

_Srta. Alcia Broom, minha senhora. Meu... meu pai ... era o ourives de Micklegate, na cidade de York.

Isabel quase deu uma gargalhada. A filha de um comerciante clamando ser a prometida de Thomas? No era de admirar que o homem fugisse para a mata. Era bvio que deixara para a cunhada a desagradvel tarefa de despachar a meretriz.

Fingiu bocejar, mal cobrindo a boca com a mo. Que a tola filha do ourives tivesse uma boa viso das gemas coloridas enfeitando seus graciosos dedos.

_Receio que tenha feito uma longa viagem para nada, senhorita. Como v, estou de luto e sem o menor esprito para comprar quinquilharias. Volte no Advento. Talvez eu lhe ceda uma roupa em honra estao natalina.

A moa tinha o rosto vermelho agora, mas ela no alterou o tom de voz.

_Temo que se engane, minha senhora. No vim aqui vender as mercadorias de meu pai, mas para assumir meu lugar de direito em Wolf Hall. - Empertigou- se ainda mais. - Estou comprometida como noiva de sir Thomas Cavendish.

Desta vez, Isabel no pde conter o riso. Imaginar aquela varapau como a condessa de Thornbury era ridculo.

_Agradeo- lhe, senhorita, por me permitir um pouco de riso para alegrar este momento to triste.

_No estou brincando, minha senhora - garantiu a filha do comerciante, a voz um tantinho mais fria. - O contrato foi assinado e o dote, pago, h dez anos, entre meu pai e o finado conde. Posso entender seu espanto, mas...

_Mas nada! - rosnou Isabel. Como aquela criatura se atrevia a invadir seus domnios e reclamar algo seu? - Ou est terrivelmente desinformada, ou deliberadamente requisitando um lugar que no seu, nem por nascimento, nem por direito. Tem sorte por eu ser bondosa, ou a apresentaria ao beleguim sob acusao de logro, fraude, simulao e...

Devia algo mais de que poderia acusar a srta. Broom. Traio, talvez? A palavra sempre inspirava terror.

Os olhos azuis da outra faiscaram.

_A lei est do meu lado, minha senhora. Tenho uma cpia do contrato de noivado para provar minha requisio.

Como se atreve a desafiar- me? Isabel levantou- se, mas mal alcanava os ombros da moa.

_O que meu lorde Cavendish tem a dizer sobre esse desatino?

A srta. Bloom mordiscou o lbio, mas no baixou os olhos, conforme Isabel esperara. Precisava de uma boa sova para perder algo daquele orgulho.

Isabel lanou para trs os cachos castanho- escuros.

_Penso que ele no disse nada. Tpico! Thomas detesta discusses. Deixa tudo para eu resolver. Pois bem, filha do ourives, escreva o que vou dizer. Estou comprometida a desposar Thomas assim que encerrarmos o perodo de luto.

A srta. Broom arregalou os olhos ante a nova atitude prfida. Mas Isabel ainda no terminara.

_Um mensageiro j seguiu ao encontro do arcebispo de York com um pedido de dispensa para que eu e meu cunhado possamos nos casar. A cerimnia ter lugar antes do Advento. Sendo assim, sugiro que se retire imediatamente, antes que

meu querido Thomas volte, para que ele no fique ainda mais furioso do que eu.

A filha do ourives ergueu o queixo.

_Primeiro falarei com meu lorde Cavendish - declarou.

_Se ele me mandar embora, irei. J se ele me disser para ficar, assumirei o lugar que me foi prometido. Tem a minha palavra, com Deus como testemunha. Bom dia, lady Cavendish.

Sem pedir permisso para retirar- se, a srta. Broom deu meia- volta e saiu do aposento. Nem se importou em fazer reverncia mulher de grau mais elevado.

Isabel foi at a mesa com jarro de vinho e vrias taas. Tomou um bom gole da bebida, mas no se satisfez.

Que o diabo a carregasse! Mas era bem do tipo que atraa Thomas. Que ser de mim, ento?

Thomas estreitou o olhar sob os raios vermelho- alaranjados do sol poente. A silhueta escura de Andrew bloqueou a beleza da paleta celeste.

_O que ? - berrou ao escudeiro.

_A srta. Broom est instalada na cmara real, conforme instruiu, meu senhor.

O rapazola sentou- se num tronco prximo ao senhor. Vixen meteu o focinho por baixo de seu brao e apoiou a cabea em seu colo. Fechou os olhos contente quando Andrew comeou a afagar- lhe o lombo.

Thomas respirou fundo.

_O que acha dela? - indagou, sem olh-lo diretamente.

Andrew era perspicaz demais e podia interpretar a expresso do mestre to facilmente quanto Thomas lia poesia grega.

O escudeiro riu.

_E bonita, loira, combina perfeitamente com o senhor... principalmente na cama. Quadril com quadril, joelho com joelho...

Thomas o esbofeteou. O rapaz caiu do tronco de costas. Vixen lanou ao dono um olhar reprovador por ter feito Andrew interromper a massagem.

_Morda a lngua quando falar da srta. Alcia - rosnou Thomas. - Lembre- se, ela est sob minha proteo.

Pensou nos lindos olhos dela adentrando- lhe a alma, em seu corpo esguio em veste verde. Sentiu a virilidade endurecer entre as pernas. Cus, que feitio Alicia lhe lanara em to pouco tempo?

Andrew espreguiou- se no cho folhoso em que se encontrava. Entrelaando os dedos, usou- os como apoio para a cabea. Vixen aninhou- se a seu lado.

_Sim, meu senhor, lady Isabel que o diga de seu cavalheirismo. Penso que ela j derramou algo de seu veneno na orelhinha cor- de- rosa da srta. Alicia.

Thomas grunhiu. No fosse a declarao da cunhada de estar doente de pesar, a teria despachado numa diligncia postal para a casa do pai logo aps os funerais. A mulher dava- lhe arrepios. Para piorar, ela detestava cachorros, e o sentimento lhe era retribudo multiplicado por dez pelos trs representantes da espcie.

_Quer dizer que a mulher- aranha j lanou sua teia? Como foi?

Andrew respirou fundo.

_No sei. Lady Isabel chamou Alcia a seu covil para uma conversa em particular. Quando consegui me aproximar o bastante para ouvir alguma coisa, j tinham terminado. - Ergueu o tronco e sentou- se. - Vi que a srta. Broom quase chorava ao deixar a cmara de minha senhora. Quase me derrubou no caminho. Mas ento...

Thomas encarou- o.

_Ento o qu?

S lhe faltava aquele almofadinha apaixonar- se por sua prometida. Raios, Alcia pertencia- lhe!

O escudeiro piscou.

_Bem, ela parou e me pediu desculpas, como se eu fosse o senhor prefeito de York. Alcia pode ser filha de um comerciante, mas tem as maneiras de uma nobre senhora.

_Sei... - Thomas mordiscou o lbio. - Apenas lembre- se, verme, a srta. Alicia ser a condessa de Thornbury. - O ttulo soava estranho quando o pronunciava.

_No por vontade de Isabel - advertiu Andrew.

_O que quer dizer? - irritou- se Thomas.

_Penso que ouvi lady Isabel dizer que se casaria com o senhor antes do Advento. E chamou- o de querido Thomas - completou, com uma careta. - Saiba, meu senhor, que eu no misturaria meu sangue com o dela numa bacia, muito menos na cama. No sei como seu irmo a suportava...

_Eles combinavam - murmurou Thomas, fazendo Tavie se levantar.

Andrew dispensou o casal canino com um gesto gentil.

_E, dizia- se que combinavam perfeitamente em questes amorosas. - Abaixou- se quando Thomas tentou agredi-lo de novo. - Paz, meu senhor. Eu s falo a verdade. Se pretende casar- se com a srta. Alicia, est na hora de se dedicar ao esporte do leito. Tenho alguma experincia no assunto, senhor. E um passatempo muito agradvel.

Thomas arranhou o ventre de Tavie, fingindo ignorar a observao do escudeiro. S Andrew sabia de sua opo pelo celibato, porm, sensato, guardava a observao para si. Todos os outros em Wolf Hall, do administrador lavadeira de pratos, pensavam que o novo conde era um garanho to fogoso quanto os irmos, quando, na verdade, morria de medo da fmea das espcies.

Andrew levantou- se do cho e espanou as folhas e agulhas de pinheiro das roupas caras.

_Hora do jantar, meu senhor.

Reconhecendo uma de suas palavras favoritas, Tavie latiu vrias vezes e lambeu a mo do dono.

Thomas sorriu para o menor de seus animais.

_Meus parabns, Andrew. Taverstock no me dar sossego enquanto no se postar sob a mesa.

Levantou- se da tosca tora de navio que lhe servira de refgio a tarde toda e massageou as costas.

_Imagino que as damas estejam a minha espera para jantar em sua companhia?

Os olhos do escudeiro brilharam.

_Sim, meu senhor. Penso que j traaram suas estratgias de batalha. Suas armas sero aparncia sedutora e inteligncia aguda. Ser um espetculo e tanto.

Thomas grunhiu.

_Talvez faa a refeio no meu quarto...

_Covarde - sussurrou o rapazola, fugindo do alcance do senhor.

Thomas assistiu ao crepsculo em progresso no cu. A estrela Vsper piscou- lhe.

_Tem razo, Andrew. Nunca fugi de uma briga e no fugirei agora. Leve- me a essas mulheres guerreiras, mas, pelo amor de Deus, no me deixe sozinho com elas!

Diante da alta janela em arco de sua cmara, Alcia respirou fundo o fresco ar noturno, sentindo cheiros estranhos, de terra mida, de campos de feno recm- ceifado e da fumaa acre da forja do ferreiro. Tudo parecia to fresco e amplo no campo, aps toda uma existncia dentro das muralhas de York. Fitando o ponto mais longnquo do horizonte, rezou para que sir Edward e lady Katherine tivessem chegado a tempo do encontro na costa do mar do Norte. Sentiu um n na garganta. Talvez nunca mais ouvisse o cantarolar da me adotiva ao cumprir suas tarefas. Nunca mais sentiria as suas do pai adotivo em seu rosto ao dar- lhe um beijo de boa- noite. Uma lgrima ardeu- lhe.

No seja boba, Alicia. Passado passado. Olhe para o futuro. dona de seu prprio destino agora. No com lgrimas que ganhar Thomas. Tem que ser forte. Tudo depende disso.

O grande mastim a seus ps olhou- a apreensivo.

Alcia abaixou- se e afagou- lhe o lombo fulvo.

_O que foi, Georgie? Seu mestre vem vindo?

Oco levantou- se e foi at a porta fechada do quarto.

_Tem algum a fora? - indagou Alcia.

Georgie sacudiu- se, banindo os resqucios da sesta vespertina, e continuou fitando a porta.

Teria a malvada lady Isabel colocado um de seus comparsas para me espionar? Alicia percorreu o cmodo p ante p. Sem fazer barulho, ps a mo no ferrolho. Ento, rpida, escancarou a porta. Uma menina de cabelos loiros desgrenhados espatifou- se soleira. Georgie saudou- a com lambidas pegajosas.

Alicia ps as mos na cintura.

_O que significa isto? Quem voc?

A garota riu e abraou o cachorro.

_Aposto como foi Georgie quem me denunciou! - exclamou, sentada no cho.

Seu belo vestido de seda e linho cinza- claro apresentava sinais de um ativo dia ao ar livre. Havia manchas de lama j seca na barra da saia e bolotas verdes de relva nas mangas altura dos cotovelos. Dar um trabalho enorme remover essas marcas do tecido. Era inacreditvel que a responsvel pela menina a deixasse brincar numa roupa to fina.

_Georgie muito esperto - concordou Alicia. Cruzando os braos, aguardou uma explicao.

A garota abraou o animal outra vez.

_Isabel diz que ele intil porque j est velho demais, mas intil ela, que s pensa no prprio prazer. - Cruzando as mos no colo, olhou para Alcia. - Disseram que era alta...

Alcia suprimiu o sorriso. Uma vez que a menina permanecia no cho, decidiu juntar- se a ela. A julgar pela riqueza das vestes da criana e sua semelhana com Thomas, devia ser um membro da famlia, no uma criada. Talvez pudesse torn-la sua aliada. Acomodou- se no cho ao lado da pequena visitante e do cachorro.

_No to alta agora, penso - retrucou, com um sorriso.

A menina riu.

_Pena no termos nada para comer. Podamos fazer uma festa aqui mesmo. Adoro animao. - Tornou- se solene. - O castelo ficou muito triste depois que meu pai morreu.

Alcia teve o mpeto de abraar a criana, mas conteve- se. Ainda no sabia nem o nome dela.

_Que Deus tenha piedade de sua alma - murmurou. - E que os anjos da guarda tomem conta de voc.

_Amm - completou a menina, e passou a mo no lombo de Georgie.

Alicia tambm afagou o animal, que mantinha os olhos fechados, em puro xtase. Ningum disse nada por vrios minutos.

_Ouvi o que Isabel lhe disse - comentou a garota, por fim.

Alcia paralisou- se.

_Ouviu o qu?

_No acredite em nada do que ela disse. E uma cobra.

Alicia espantou- se.

_No educado falar assim de uma pessoa da famlia.

A menina desdenhou de maneira nada refinada.

_Graas ao bom Deus, no parenta de sangue. - Baixou a voz. - E nunca vai se casar com Tom. Ele no a suporta!

Alcia umedeceu os lbios.

_Como sabe? Meu lorde Cavendish lhe contou... ou ouviu pelo buraco da fechadura?

A pequena riu de novo.

_Dos dois jeitos. Eis por que deve se casar com meu irmo sem demora.

Alcia fingiu surpresa.

_Oh, mas sou apenas a filha de um ourives. Como poderia desposar um lorde?

A menina deu de ombros.

_Meu pai prometeu Thomas filha de um ourives h muitos anos. Cresci ouvindo essa histria. William vivia provocando Tom por conta dela. - Voltou os grandes olhos azuis para Alicia. - Penso que meu pai fez a escolha certa para ele...

Alcia riu.

_ mesmo? Mas ainda no sabe nem meu nome...

_Srta. Alicia Broom - declarou a criana, triunfante.

_Cus, voc tem mesmo bons ouvidos! Temo estar em desvantagem, pois no sei seu nome.

A menina afastou os cabelos rebeldes do rosto e endireitou- se.

_Sou lady Mary Elizabeth Cavendish, a seu dispor.

Sorrindo, Alicia inclinou a cabea para lady Mary.

_E um grande prazer conhec-la.

Mary bateu palmas.

_timo! Podemos ser amigas. Gosta de brincar?

Alcia espantava- se com a rpida mudana de temas.

_Bem, faz algum tempo que abandonei as bonecas. Do que gosta de brincar?

A pequena Mary suspirou de expectativa.

_De todos os brinquedos sob o sol! De peteca, de raquete, de pega-pega, de esconde-esconde, de cartas... Adoro jogos! - Contraiu a boquinha. - Isabel no gosta. Como chata! No ligue para ela. Quer se casar com Tom s para ser a condessa de Thornbury, mas no o ama. Na verdade, pensa que ele retardado...

Disfarando a apreenso, Alcia repreendeu a criana.

_No devia falar assim, lady Mary!

A menina no pareceu nem um pouco arrependida e continuou afagando Georgie.

_No fui eu quem disse. Foi Isabel. Eu ouvi.

_Pelo buraco da fechadura?

A pequena sorriu.

_De que outra maneira vou saber do que se passa sob nosso teto? Ningum me conta nada! Sua preceptora era uma bruxa?

Alicia mordiscou o lbio para no rir.

_Temo que filhas de ourives no tenham preceptoras. Foi meu pai quem me ensinou a ler e escrever.

A menina ficou boquiaberta.

_Que sorte a sua! A srta. Vive.., ou melhor, Genevieve, insuportvel!

_Tenho certeza de que ela se esfora para cumprir seu dever - replicou Alcia.

A pequena desdenhou.

_Qual nada! S pensa em cochilar e comer doces o dia todo. Quando me v, diz que nem com chicote um marido vai conseguir me pr na linha. - Torceu o nariz. - Ainda no completei doze anos. Para que marido? - Rolando de barriga. olhou astuta para Alicia. - Mas voc se sair muito bem como esposa de Tom. Gosta de ces e isso meio caminho andado.

_Fale- me de seu irmo - pediu Alicia.

Vira Thomas por poucos segundos e no sabia se o agradara ou chocara. As palavras de Andrew no aplacaram sua apreenso.

Mary sorriu.

_E o mais gentil dos homens. John tambm me tratava bem, mas passava a maior parte do tempo fora, tratando dos negcios de papai. William era... um grande fanfarro. Um tirano, na verdade. Cheguei a odi-lo, mas hoje sinto sua falta. Nunca quis que morresse...

_Tenho certeza de que no - confortou Alicia.

A menina ergueu o sobrolho.

_Confesso que lhe quis mal, sim, principalmente quando me entregava a papai ou srta. Vive, mas agora... - Estremeceu.

_Tom costuma me ler histrias de seus livros. Tambm joga xadrez, e s vezes consigo venc-lo. Deixa- me comer mais doces aps o jantar e canta com linda voz, mas s para mim e os cachorros.

_Por qu? - questionou Alicia.

_No gosta de chamar a ateno. William o destratava sempre que podia. No culpo Tom por se embrenhar na floresta at altas horas, nem por preferir a companhia dos animais. Mas no se deixe enganar, srta. Alicia. E tudo fingimento. Ele fala pouco por opo, por ser multo tmido. Se o cutucam com vara curta, porm... Thomas capaz de proferir discursos dignos do arcebispo de York!

Alcia guardou com cuidado aquela pequena informao.

_Interessante...

Soou um gongo no andar inferior, os tons reverberando entre as paredes de pedra de Wolf Hall.

A menina e o co levantaram- se num pulo.

_Hora do jantar! - Correram para a porta. - Lembre- se do que lhe disse!

_Est gravado em minha memria - assegurou Alicia, levantando- se do cho.

Espanou da saia os plos fulvos de Georgie e endireitou a trana. Bem, lady Mary Cavendish falara um bocado. S esperava conseguir lembrar- se de tudo!

CAPTULO QUATRO

Thomas ouviu o resmungo de Isabel antes mesmo de v- la. Parecia particularmente irritadia naquela noite.

_Deve estar assim por causa de nossa hspede. Desordenou- lhe a mente... - murmurou a Vixen, como sempre colada a sua perna. Acariciou a cabecinha da galgo. - No que minha cunhada tenha mente a desordenar. Que Deus me proteja.

Vixen lambeu- lhe os dedos em resposta.

_Onde est minha almofada? - gritava Isabel com o administrador. - Por que no est no meu lugar? - Deu um tabefe na orelha de Stoke.

_Ei! - protestou Thomas. Como a megera se atrevia a bater em seu empregado?

Isabel imprimiu uma expresso de prazer na cara de fuinha. Fez- lhe uma reverncia.

_Thomas! - exclamou, melosa. - Que bom v- lo to bem- disposto nesta noite. Mandei prepararem um timo jantar para .......

Ele perdeu a pacincia.

_Cale- se, mulher.

Em nove anos, desde que se mudara para Wolf Hall, Isabel nunca movera um dedo ou abrira a boca para pedir algo da cozinha que no fosse para seu prprio consumo.

_Tom! Tom! - chamou a pequena Mary, serelepe, descendo a escadaria s carreiras.

Thomas sorriu.

_O que foi agora? A srta. Vive? - No sabia quem merecia mais compaixo, se a irmzinha traquinas ou sua enjoativa preceptora.

Mary beijou Vixen entre as orelhas.

_No! - exclamou. - No adivinharia em dois meses de domingos! Alicia conhece um monte de brincadeiras e vai me ensinar uma ainda hoje depois do jantar!

Mal ouvindo a irm, Thomas fitava a escada. Ao ver Alicia emergir da sombra de um pilar, embasbacou-se. Ela estava ainda mais linda do que se recordava de seu breve encontro pela manh. Erguendo levemente a saia, descia os degraus com graciosa fluidez, como mel percorrendo uma lmina. Sua pele de seda brilhava luz dos archotes, os cabelos ouro puro.

Ao p da escadaria, Alicia executou uma bela mesura ao senhor do castelo.

_Ah, voc! - chilreou Isabel. - Aquela a porta da cozinha. Pea cozinheira que lhe d um pedao de po... e qualquer resto de comida que haja por l.

Thomas parou frente da cunhada insuflado de ira e ofereceu o brao beldade que aguardava. No conseguia pensar numa palavra que fosse adequada aos ouvidos de tal deusa.

_Thomas! - guinchou Isabel. - Essa mulher no tem posio para jantar mesa. filha de um comerciante!

_Boa noite, sir Thomas - cumprimentou Alicia, enquanto seguiam para a mesa. - Teve uma boa tarde?

Thomas fitou-a nos olhos para saber se zombava. Viu- se mergulhando nas profundezas azuis. O sorriso dela o derretia.

_Mediana - respondeu, puxando- lhe a cadeira a sua direita.

_Thomas, no ouviu o que eu disse? - protestava Isabel, sentando- se esquerda dele.

_No, querida cunhada - replicou a pequena Mary. - Nem vai ouvir, a menos que tire o fel de suas palavras.

Toda trmula, Isabel pareceu inchar de fria.

_Crianas devem permanecer caladas diante de adultos!

A menina mostrou-lhe a lngua. Vrios habitantes do castelo mesa inferior comentavam sobre a cena. Thomas lamentou a lamentvel apresentao da famlia a Alicia.

No entanto, a hspede parecia divertir- se.

_Gostei muito de sua irm, meu senhor - declarou, espontnea. - Conversamos bastante j nesta tarde.

Ele expirou aliviado, sempre aquecido com o sorriso da fada.

_Que bom - murmurou.

Bolas, eu devia declarar o quanto estou contente por Isabel no ter conseguido recha-la antes que eu voltasse. E como se desculparia por seu pssimo comportamento diante de sir Edward?

Andrew anunciou o primeiro prato da ceia fria.

_Enguias ao molho, meu senhor?

Evitando o sorriso maroto do escudeiro, Thomas olhou desanimado para a massa gelatinosa preta e cinza na travessa a sua frente. Perdeu o apetite. Seria Isabel incapaz de encomendar pratos mais agradveis cozinha?

_Sirva primeiro senhora - instruiu.

Andrew voltou- se para Alicia.

_Enguias, minha senhora? Garantiram- me que so as mais frescas. Eu mesmo no poria a mo no fogo, mas melhor do que passar fome...

Thomas arregalou os olhos. Como se atreve a flertar com minha noiva? Antes que pudesse repreend-lo, ou que Alicia se servisse, Isabel espetou a carne com sua faca de prata.

_Penso que est cego, Andrew - repreendeu, com doura carregada de veneno. - Ou com os ouvidos entupidos de cera. Thomas lhe disse para servir primeiro senhora!

Oescudeiro sorriu inocente.

_Mas foi o que fiz, lady Isabel...

_Xeque- mate! - exclamou Mary. - Brilhante!

Contagiado pelo bom humor de Mary, Taverstock latiu debaixo da mesa. Georgie acompanhou, em seu tom mais grave. Vixen continuou calada, mas aconchegou- se perna do dono. Thomas cortou-lhe uma fatia de enguia. Ao baix-la por sob a toalha, roou os dedos nos de Alicia, tambm com uma escorregadia poro do peixe.

Thomas prendeu o flego, enquanto Alicia se surpreendia ao contato. Indiferente ao que se passava mesa, Vixen saboreou a iguaria e lambeu os dedos de ambos at que no restasse vestgios do molho.

Thomas abriu um sorrisinho, sentindo a pele queimar no ponto em que tocara Alicia.

Ela retribuiu com um sorriso que iluminou o recanto mais obscuro do lgubre salo.

_Sua cadela tem que se alimentar bem, meu senhor, para ter filhotes saudveis - comentou Alicia, o olhar j mais vacilante. - Perdoe- me se o ofendi dando- lhe uma poro de meu prato.

Thomas sentiu o corao inchar e bater feito martelo dentro do gibo.

_De forma alguma - murmurou. - Em nome Vixen, agradeo.

_Que se podia esperar de uma vadia iletrada? - rosnou Isabel.

_Ela sabe ler e escrever - rebateu Mary, servindo- se de frango assado frio. - E quanto a voc, Isabel?

Thomas ocultou o sorriso com a mo. O conde de Bedford jamais se incomodara em educar nenhuma das onze filhas, certo de que o crebro feminino no podia compreender nmeros e letras. Era uma agradvel surpresa saber que Alicia fora alfabetizada.

_ verdade que conhece o alfabeto?

_Sim, meu senhor - confirmou a noiva. - Sei latim e ingls, e tambm aprendi a fazer contas.

_Eu duvido - sibilou Isabel. - Ela diria qualquer coisa para despertar seu interesse, Thomas. Basta um elogio para que levante as saias.

Alicia empalideceu. Toda a conversa na mesa inferior cessou. At Mary calou-se, chocada.

Thomas cerrou o punho at seu brao doer.

_Mantenha essa lingua ferina bem dentro da boca, madame, ou eu a arrancarei pessoalmente! - gritou.

Isabel assustou- se.

_Eu no quis...

_A senhora exsuda veneno por cada poro e estragou a nossa noite! - continuava ele, colrico. - No permitirei que jogue lama naqueles que partilham minha hospitalidade e que se encontram sob minha proteo. Uma vez que esqueceu- se de seu lugar em minha morada, penso que sua hora de voltar para o castelo de seu pai.

Com um pausa, ele recobrou o flego. S ento notou os rostos estupefatos ao redor. Bolas, maldito gnio o seu! A beldade a seu lado devia estar imaginando que embarcara num pesadelo. A fim de conter a raiva, enfiou uma asa de frango inteira na boca.

_Mais vinho? - ofereceu Andrew, plcido.

As ltimas palavras de Thomas ainda ecoavam nos ouvidos de Isabel. Do outro lado da mesa, Mary era pura satisfao. Maldita cunhadinha! Por que ningum lhe dava uma boa sova? Agarrou a taa de vinho como se torcesse o pescoo de Alcia.

Voltar para Bedford Chase? Para o caos no qual no passava de mais um rosto mesa? Para dividir uma cama com uma irm briguenta... talvez duas? Nunca! Tinha que haver uma maneira de permanecer em Wolf Hall e transformar o corao de Thomas de gelo em fogo pela cunhada viva. Degustando a comida com gosto de cinzas, gerava uma idia em cima da outra. Nem apreciou as pras escaldadas de sobremesa. Interrompeu a preocupao com seus problemas quando o castelo se levantou.

_Minha senhora, gostaria de dar uma volta no jardim? - perguntou ele moa magra a sua direita.

Alicia sorriu.

_Seria um grande prazer, meu senhor. Dizem que a alma de uma casa reflete- se em seu jardim.

Que petulncia! Isabel contraiu a boca. Cairia de novo nas graas de Thomas ainda naquela noite, antes que ele transformasse a ameaa de banimento em deciso irreversvel.

_Excelente idia, Thomas! - guinchou. - Est uma noite perfeita para um passeio entre as... - Raios, o que florescia no momento? Odiava tudo o que implicava sujar as mos, principalmente jardinagem. - Rosas! - completou. Tinha que haver rosas...

Thomas mal lhe dirigiu o olhar.

_Comece a arrumar suas coisas - ordenou.

Isabel estremeceu no vestido preto. William sempre a alertara quanto ao temperamento imprevisvel do irmo mais novo, mas nunca o vira perder as estribeiras assim. Devia ter tomado mais cuidado. Maldito William! Por que tivera que morrer, deixando- a em situao to desfavorvel? Wolf Hall era seu domnio por direito...

Thomas e a noiva j deixavam o salo, seguidos da cachorrada.

_Precisa de ajuda? - ofereceu- se a pequena Mary, dissimulada. - Penso que levar a noite toda para encher suas arcas...

Inclinando- se sobre a mesa, Isabel rosnou cunhadinha.

_Se no se retirar neste instante, arrancarei seus cabelos fio por fio at que esteja careca!

Plida, a menina levantou- se e correu para a escadaria. Mas parou entre o primeiro e o segundo lance.

_Uma vez que ter partido muito antes de eu acordar amanh, cunhada, desejo-lhe uma boa viagem! - exclamou.

_Que seu caminho seja abenoado com muitos raios e troves! Num insulto final, a pestinha mostrou- lhe a lngua. Os criados que tiravam a mesa nem se incomodaram em disfarar o riso.

_Que sua cama se encha de piolhos! - gritou Isabel para a figurinha que sumia

Oh, adoraria arrancar-lhe os olhos! Thomas mimara demais a irm caula. No era de admirar que tivesse maneiras to pavorosas. Ajeitou o vu cinza sobre os cabelos. Daria um jeito em Mary assim que se tornasse a condessa de Thornbury. Mas precisava tornar-se condessa primeiro, e para tanto tinha que abrir os olhos do cunhado simplrio, que caa feito bobo nas garras daquela aproveitadora...

Isabel deixou o salo acompanhada dos lacaios de sempre. Ao chegar a sua, cmara j engendrara um bom plano. Ou melhor, era sua nica esperana.

No meio do aposento, a camareira Meg seguravam uma poro de vestidos coloridos.

_Quer que eu j guarde estes, minha senhora? - indagou, hesitante.

A senhora conteve o impulso de estapear-lhe a orelha.

_No. No vou a parte alguma.

_Mas... ouvi meu senhor dizer...

_Ele logo mudar de idia - cortou Isabel. - Em breve, serei a verdadeira senhora deste monte de pedras. - Sentou- se diante da lareira e atiou as brasas vermelhas.

_Mas, como, minha senhora?

_Ele como aquele mastim dele... Late, porm no morde. - Quanto mais aperfeioava seu plano, mais Isabel se animava.

A camareira achegou-se

_O que vai fazer, minha senhora?

A patroa Sorriu malvola.

_Vou apelar para a minha barriga - sussurrou, mais para si mesma.

Meg deixou o queixo cair.

_O... o qu, minha senhora?

Isabel encarou o rosto parvo da camareira.

_Direi a meu estimado cunhado que carrego um filho de William. Thomas no me banir de Wolf Hall se eu estiver esperando o prximo herdeiro dos Cavendish.

_Mas no est grvida, minha senhora - observou Meg. - Teve suas regras h quinze dias...

Isabel inclinou o rosto, complacente.

_Est enganada, Meg. Foi h dois meses, antes de meu marido adoecer e morrer. - Rpida como um raio, levantou- se e agarrou a camareira pelo brao e sussurrou- lhe: - Eu detestaria expuls-la de Wolf Hall por espalhar mentiras. Pois mentirosos tambm roubam... Que lhe aconteceria se eu desse falta de uma ou duas jias? Seria condenada forca!

A camareira engoliu em seco.

_Eu no minto, minha senhora... - tartamudeou, duas lgrimas escorrendo pelo rosto. - E suas jias esto bem seguras no cofre. Juro pela santa cruz... Por favor, minha senhora, no faa isso. Nunca lhe fiz mal... - Cobriu o rosto com o avental

_Calma, idiota - disse Isabel. - Pare de chorar e me escute. Estou grvida de lorde William e ningum pode me contradizer, est entendendo?

_Sim, minha senhora. Est grvida.

Isabel sorriu satisfeita.

_Mas no comente nada na cozinha, Meg. Ainda no contei a sir Thomas. Acabo de descobrir...

_Sim, tem a minha palavra, minha senhora.

H! Eis uma palavra que nada valia. Pela manh, todo o castelo saberia do novo herdeiro. Agora, para completar a farsa...

_Deu- me um desejo louco de comer biscoitos com creme - declarou. - Traga- me uma tigela cheia, Meg. Se no tiver isso j, morro.

_Sim, minha senhora! - A camareira tola correu para a porta. - Trago os biscoitos num minuto!

Isabel ergueu a mo.

_Mas lembre- se: nem uma palavra sobre meu estado, a quem quer que seja.

_Juro por minha vida, minha senhora!

Isabel riu ao ouvir os passos da camareira se afastando pelo corredor. Afagou o ventre. Tinha o tero vazio. Nove anos na cama com o fogoso William, mas nem um aborto para comprovar. Seu pai, o conde de Bedford, tivera uma ninhada de filhos com sua me, j falecida, e continuava emprenhando seguidamente a pobre segunda esposa. Com um pai assim, como podia ser estril? Afastou a idia. Devia ter sido culpa de William.

Pouco importava. Engravidaria. E logo. Ningum repararia se o beb nascesse um pouco mais tarde do que o esperado. Thomas podia at saber quando sua cadela entrava no cio, mas no tinha a menor idia dos ciclos femininos. Acreditaria em qualquer coisa que a cunhada lhe contasse. A honra o obrigaria a mant-la em Wolf Hall e, devidamente manobrado, ele acabaria desposando- a. O herdeiro Cavendish deveria ter um pai Cavendish.

Descalou os chinelos e esticou as pernas na direo do fogo. No dia seguinte, enviaria ao arcebispo de York um pedido de dispensa. Melhor antecipar as providncias. Assuntos eclesisticos demoravam tanto... Suspirou. Preciso arranjar um herdeiro. Pensou em Launce, um pajem que seduzira havia alguns meses. Era alto, forte, loiro e, a exemplo do mestre Cavendish, manejava bem a espada. Procriar com ele seria divertido.

Decidida a deitar- se com Launce no dia seguinte, Isabel exercitou os dedos dos ps, cheia de expectativa.

O sol de final de vero persistia no cu ocidental enquanto Thomas conduzia Alcia pelo jardim murado, o castelo protegendo- os do vento. Ela se deleitava com os aromas familiares de terra recm- revolta, rosas desabrochando e hortel fresca. Cravos brancos e cor- de- rosa, ris de copa prpura, margaridas de miolo amarelo e caprichados canteiros de ervas pegaram- na de surpresa.

_Seu jardim lindo e muito bem cuidado, meu senhor - elogiou. - No pensei que Isabel gostasse de plantas...

_E no gosta - confirmou ele. - Mary quem cuida de tudo.

Alicia arregalou os olhos.

_Sua irmzinha? Estou perplexa. to pequena, mas tem muito jeito para jardinagem.

Thomas suspirou.

_Mary jovem e madura ao mesmo tempo. Ela... - Desistindo de falar, baixou o olhar do rosto da noiva para as botas lustrosas.

Ele capaz de dizer sbias palavras, mas opta por no faze-lo. Alcia agradeceu a todos os santos por ter tido aquela conversa com a pequena cunhada tarde. A menina tinha tima percepo de todos os que a cercavam.

Thomas soltou- lhe o brao e cruzou as mos s costas. Alicia disfarou a decepo. Deleitara- se com a ateno plena, ainda que discreta, que ele lhe dispensara no jantar, e com seu inesperado destempero contra a cunhada, mas esperara que falassem do casamento durante o passeio pelo jardim. Contudo, Thomas agia como se no apreciasse sua companhia. Sufocou o temor. Deus, que ele honrasse o contrato assinado pelo pai!

Alcia forou um sorriso.

_O fim da tarde minha hora favorita do dia - comentou, tentando descontrair o ambiente. - Tudo fica to em paz...

Thomas apenas grunhiu.

Umedecendo os lbios, ela prosseguiu com a conversa unilateral.

_Sua irm deve ter um dom com as coisas que crescem. As flores daqui so bem maiores do que as que minha.., me cultivava l em York.

No devia pensar no passado feliz. A dor da separao ainda machucava muito.

_... - murmurou Thomas.

Alicia imaginou a voz grave dele sussurrando doces palavras de amor ao ouvido de uma donzela. E enrubesceu. Por favor, santa Ana, que ele se apaixone por mim, ou, ao menos, que goste de mim. No suportava a idia de passar o resto da vida sem o conforto do amor. Os Brampton a haviam criado com todo seu afeto.

Georgie ultrapassou-os farejando a trilha de conchas e comeou a escavar sob uma roseira carregada de botes. Parte da terra atingiu a saia de Alicia.

Thomas estalou os dedos duas vezes. O co parou e olhou- os.

_Perdo, srta. Alcia. Sujou o vestido?

Estendeu a mo como se fosse espanar os resduos, mas conteve- se e escondeu a mo atrs das costas novamente. Balanando nos calcanhares, mirava um ponto acima da cabea de Alicia.

Ele teme tocar-me. Alcia alegrou- se um pouco. Deve respeitar-me, um pouco, ao menos.

_No chegou a sujar - declarou. - Mas o que ele est procurando? Um texugo ou uma lebre?

Thomas riu.

_No, os dias de caador de Georgie j se foram, mas receio que ele ainda no saiba. Costuma enterrar os ossos que ganha da mesa. Mary vive repreendendo- o por essa mania.

_Talvez espere ver ossos brotando, para no ter mais que implorar sobras...

Thomas riu de novo e Alicia animou- se. Tinha que faze-lo rir com mais freqncia. Desconfiava de que seu tmido noivo no estava acostumado a se expressar descontraidamente, graas perseguio do irmo mais velho na infncia.

_E sua pequena galgo, quando vai dar luz?

_Daqui a uma semana, mais ou menos.

Alcia olhou para Vixen, sempre grudada no dono.

_ uma linda criatura. Os outros filhotes que pariu tinham sua cor de mel?

Thomas constrangeu- se.

_Poucos pareciam-se com ela. Temo que Vixen no seja muito seletiva quanto aos parceiros. S sei quem o pai quando ela late, e sempre me surpreendo...

Corada, Alcia recomps- se rpido.

_J arrumou um lugar para o parto?

_J, mas Vixen sempre escolhe outro lugar. Desta vez escolheu a Lavanderia, bem no meio das roupas de cama limpas. Tive que subornar a lavadeira para no criar caso...

_Aposto como gostou do dinheirinho extra - comentou Alicia.

_Sem dvida! O dinheiro o caminho para o corao de uma mulher... - Desconcertado, deixou a frase morrer nos lbios e retomou a caminhada.

Alcia o alcanou.

_Acha que meu corao tambm foi comprado com dinheiro, sir Thomas?

Ele estacou, e Taverstock trombou com sua perna. Erguendo o cozinho, acariciou- o entre as orelhas, incapaz de encarar a noiva.

_Seu pai pagou ao meu uma grande quantia de ouro como seu dote - Lembrou. - Todas as mulheres so compradas e vendidas.

Alcia ps as mos na cintura.

_E sua irm? No lhe conceder dote?

Thomas ficou sem fala.

_Meu pai pode ter permutado meu corpo, meu senhor, mas lhe garanto que no h pilha de ouro ou monte de jias que compre meus sentimentos - desabafou Alicia. - No sou Isabel.

Thomas continuava concentrado no cozinho.

- Claro que no!. E...

_O qu, meu senhor?

Ele respirou fundo.

_Ser minha esposa. Meu pai deu sua palavra e eu a honrarei.

_S por dever? - questionou Alcia. No sentia nem um pouquinho de amor ou desejo?

Thomas pousou o pequeno terrier no cho.

_Todos temos nossas responsabilidades, senhora. Acabo de assumir as minhas e receio...

Em vez de concluir a sentena, ele girou nos calcanhares e dirigiu- se apressado ao porto dos fundos. Vixen e Tavie dispararam atrs. Georgie preferiu ficar com Alcia. Com um n no estmago, ela observou a figura do jovem conde se afastando sob os tnues raios da meia- lua. Cus! Fugiria assim dela porta da igreja no dia do casamento?

Thomas deteve- se por um segundo antes de dobrar a esquina.

_Estou feliz que tenha vindo a Wolf Hall, Alicia.

E desapareceu.

Alicia sentiu as pernas bambas e sentou- se no meio da trilha. Ele falara srio, ou fora apenas cortesia? Georgie achegou- se e lambeu- lhe o rosto. Ela lhe afagou as orelhas em retribuio.

_Ao menos sei o quanto gosta de mim, Georgie - murmurou, alisando- lhe os plos do pescoo. - Agora, vamos dormir, mas amanh cuidaremos do tmido conde de Thornbury... a comear por suas refeies. Georgie, como conseguiu comer aquilo que nos serviram nesta noite? No de admirar que mi Thomas ande to mal- humorado. E nosso prximo desafio, companheiro. No dizem que o caminho para o corao de um homem passa por seu estmago? Venha!

Levantando- se do cho, Alcia estalou os dedos, conforme vira Thomas fazer. O co seguiu- a obediente de volta ao castelo.

Naquela noite, Alcia no conseguiu dormir. Deitada no meio da imensa cama de quatro postes, fitava o dossel de veludo azul sob as macias cobertas puxadas at o queixo. Praticamente afundava- se no colcho macio. A vida toda, dormira numa cama estreita sob o telhado da casa do ourives. De sua janela sob o espigo, apreciara a melodia noturna da cidade de York, gatos miando, ces Latindo em resposta e taces grossos batendo nas lajes quando um fregus de taverna retardatrio voltava para casa. Sobre um estofado de palha cheirosa e protegida por cobertor de l liso, na noite anterior dormira bem.

Lgrimas lhe afloraram aos olhos ao recordar cada recanto e rachadura do nico lar que j conhecera. Onde estariam seus amados guardies? Rezou para que cruzassem em segurana as guas at Flandres e agarrou-se beirada da coberta, num esforo para no ceder tristeza que a consumia.

Esta cama grande demais. Podia se perder entre suas ricas dobras e nunca mais ver a luz do dia. Por que Andrew a instalara numa cmara to luxuosa? No se sentia vontade em meio decorao de seda e ouro. At a criada que lhe iluminara o caminho at ali sabia que a filha do ourives teria se sentido melhor num aposento mais simples. Isabel talvez desejasse a pompa das cortinas de veludo e do delicado entalhe na cabeceira da cama, mas ela sentia- se desconfortvel.

Exatamente quando o guarda na muralha anunciou a meia-noite, Alcia ouviu um barulho junto porta. Embora no acreditasse em duendes nem em fantasmas, encolheu- se mais sob o cobertor. A arma mais prxima era o castial de lato mesa lateral. Arrastou- se sobre o colcho para mais perto dele.

Garras arranharam o cho do corredor e ento ouviu- se uma fungadela ao p da porta. Alcia soltou o fi3lego retido. Era Georgie, tinha certeza, uma vez que Taverstock andava mais rpido com suas patinhas e Vixen no fazia nenhum barulho. Nunca tivera um co at agora. Devia acostumar- se com as andanas noturnas dos trs que habitavam o castelo, se pretendia mesmo tornar- se a esposa de sir Thomas.

Um agudo estalar de dedos interrompeu a investigao do mastim. Alicia paralisou- se e olhou para a porta, tentando ver, ao luar plido, se a tranca se erguia. Prendendo de novo a respirao, concluiu que Thomas devia estar logo ali. E se ele invadisse o quarto e exigisse uma amostra da noite de npcias?

Era direito dele, bem o sabia. Enterrou os dedos no colcho de penas de ganso. Katherine Brampton educara a filha adotiva para ser uma moa recatada, modesta. Sua nica experincia com o sexo oposto consistira num beijo roubado por Peter Martext no ltimo Primeiro de Maio, quando ele apenas roara os lbios em seu rosto. Pela manh, durante uma breve parada na viagem, Edward a prevenira quanto aos apetites lascivos dos Cavendish, o olhar estreito ao recordar o momento em que conhecera John e William. Thomas devia ser igual aos irmos.

Mordendo o lbio, Alicia continuava de olho na tranca.

Mais dois estalidos de dedos e o co afastou- se pelo corredor.

Na beirada da cama, afastou as cobertas e levantou- se. O cho frio flagelou- lhe os ps descalos. Pegou o castial, aproximou- se de mansinho da lareira e acendeu a vela na brasa que restava e encostou o ouvido na slida folha de carvalho da porta. Nenhum som l fora.

Alicia juntou toda a coragem, girou a maaneta e abriu uma fresta. Ergueu o castial bem alto. Nada bloqueou a luz. Com um profundo suspiro de alivio, fechou a porta e aninhou- se de novo na cama enorme. Aps soprar a luz amiga, escorregou para baixo das cobertas principescas. Em pouco tempo, adormecia.

Pouco antes do amanhecer, Alicia despertou ao canto de um galo: A princpio, no se lembrou de onde estava. Ento, viu o escudo desbotado sobre a lareira, a cabea de um lobo bravo sobre fundo vermelho. O braso da famlia Cavendish. A prometida manh chegara, e ainda encontrava- se em Wolf Hall. Levantou-se, lavou o rosto com gua fria e desembaraou os cabelos.

Devia vestir-se rpido e ir cozinha antes que os cozinheiros se adiantassem demais nos preparativos para o jantar. Jurara que Thomas e os demais moradores daquele lgubre castelo comeriam melhor de agora em diante. O conde no a mandaria embora se lhe agradasse o estmago. Graas a todos os santos, Katherine lhe ensinara a cozinhar e cuidar de uma casa. Educao mais til do que a de uma princesa, concluiu, amarrando os cordes do corpete.

Na pressa de sair, quase no viu o pedao de papel dobrado no cho junto porta. Podia jurar que no o vira no meio da noite, e o luar banhara aquele ponto. Abriu a mensagem misteriosa e foi para perto da janela, a luz matutina ajudando-a a distinguir as letras. Perdeu o flego ante as palavras escritas em grande e bela caligrafia.

inigualvel Alicia,