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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO P AULO F ACULDADE DE DIREITO KARINA QUINTANILHA FERREIRA A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR SÃO PAULO 2012

A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

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Trabalho de Iniciação Científica sobre desenvolvimento da democracia nos meios de comunicação enfocando o contexto do rádio pós-ditadura militar

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Page 1: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

KARINA QUINTANILHA FERREIRA

A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA

DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO

BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

KARINA QUINTANILHA FERREIRA

A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA

DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO

BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

Trabalho de Iniciação Científica do Programa

Institucional de Bolsas de Iniciação

Científica da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo produzido sob a

orientação do Professor Mestre Airton

Andrade Leite.

SÃO PAULO

2012

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À comunidade sem voz:

pela construção de

uma existência digna, a todos nós.

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Agradeço ao Professor Ivan Llamazares Valduvieco por ter me inspirado a dar

continuidade aos estudos de teoria política.

Ao Professor Amálio, pela solidariedade em ter concedido algumas tardes

preciosas para me auxiliar com questões que iam além do universo jurídico e pelas críticas

construtivas que me servirão de apoio para novas reflexões a serem desenvolvidas

ulteriormente.

Ao Professor Antonio Rago Filho, pela maestria com que transmite os

conhecimentos sobre a história e a arte humanistas e, sobretudo, por trazer um sopro de

esperança de emancipação social à comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo.

À Anna Claudia Pardini Vazzoler e Sérgio Gomes, por terem me ajudado tão

prontamente em momentos em que uma decisão havia que ser tomada para o seguimento do

trabalho.

Ao Eduardo Quintanilha e Adriana Quintanilha, por terem gentilmente, e de

forma muito carinhosa, me auxiliado na finalização do texto por meio de comentários

pertinentes e sagazes.

Aos meus amigos(as) da PUC, por terem compartilhado momentos de alegrias e

tristezas, de indignação e de utopia na prainha e na curva do rio durante os cinco anos de

faculdade.

À minha família, mesmo que por vezes distante, pela insistência naquela palavra

chamada: companheirismo.

Agradecimentos especiais aos meus pais, Carolina e Itamar, pelo amor, compreensão,

apoio sempre presente e amizade, sem os quais nada disso teria significado.

Ao Professor Airton Andrade Leite, orientador dessa iniciação científica, por ter

sempre as palavras certas para me encorajar e por ter me deixado livre para criar, sem deixar

de orientar com a mesma admirável dedicação.

Muito Obrigada

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Acredite apenas

“Acredite apenas no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem!

Também não acredite no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem!

Saiba também que não crer algo significa algo crer!”

(BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956/ Bertold Brecht; seleção e

tradução de Paulo César de Souza - São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 80)

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SUMÁRIO

RESUMO _______________________________________________________________________________ 8

1. INTRODUÇÃO _________________________________________________________________________ 9

2. A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA OCIDENTAL NA FASE

DESCENDENTE DA BURGUESIA _________________________________________________________ 14

2.1. A desconfiguração da questão social pela democracia burguesa do século XIX __________________ 14

2.2. A naturalização das desigualdades socioeconômicas no contexto da democracia burguesa do século XIX

19

2.3. Breve histórico do surgimento do monopólio dos meios de comunicação de massa _______________ 23

2.4. O “consenso fabricado” pelo paradigma liberal através dos meios de comunicação de massa _______ 28

3. AS BARREIRAS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL APÓS A

DITADURA MILITAR ____________________________________________________________________ 32

3.1. A história da introdução do direito à comunicação na Constituição Federal Brasileira de 1988 como

afirmação do Estado Democrático de Direito _________________________________________________ 36

3.2. O embate entre empresariado e movimentos sociais em torno da regulação da radiodifusão no Brasil a

partir da transição para o regime democrático ________________________________________________ 43

3.3. A disputa entre o discurso hegemônico e o discurso contra-hegemônico na esfera pública da

comunicação social eletrônica no Brasil pós 1985 _____________________________________________ 55

3.4. A relação entre o serviço público de radiodifusão e o poder político no Estado democrático de direito no

Brasil________________________________________________________________________________ 63

3.5. A desconstrução da política como meio popular de transformação social durante a ditadura militar: uma

crítica à atual política nacional de direitos humanos ___________________________________________ 69

3.6. A atual resistência à privatização do público no contexto da mercantilização da radiodifusão no Brasil:

as rádios comunitárias em ação ___________________________________________________________ 76

3.7. O modelo de negócios tende a configurar as políticas públicas: crítica ao modelo de televisão digital

adotado pelo Brasil _____________________________________________________________________ 85

4. A SOCIOLOGIA DO DIREITO COMO METODOLOGIA DE ESTUDO __________________________ 95

5. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ABORDAGEM HISTÓRICA DA COMUNICAÇÃO SOCIAL NOS

CENTROS DE PESQUISA DA AMÉRICA LATINA ___________________________________________ 103

6. CONSIDERAÇÕS FINAIS ______________________________________________________________ 109

BIBLIOGRAFIA ________________________________________________________________________ 115

REFERÊNCIAS ________________________________________________________________________ 122

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Artigos de Jornais _____________________________________________________________________ 122

Publicações periódicas _________________________________________________________________ 122

Eventos _____________________________________________________________________________ 122

Documentos eletrônicos ________________________________________________________________ 123

Documentário ________________________________________________________________________ 125

ANEXOS ______________________________________________________________________________ 126

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RESUMO

O processo de democratização dos meios de comunicação eletrônica no Brasil, em

especial o rádio e a televisão, apresenta muitas barreiras relativas não apenas à esfera

legislativa, como também a outras, concernentes à problemática da concepção liberal da

democracia ocidental, de uma determinada realidade socioeconômica e de uma formação

legalista-formal em torno das declarações de direitos humanos. O objetivo central deste

trabalho, fundamentado em pesquisa bibliográfica, é, por meio de uma abordagem

interdisciplinar, problematizar, genericamente, que barreiras são essas e, especificamente, em

que medida contribuem para a não efetivação do direito à comunicação na sociedade

brasileira, tendo como recorte espacial e temporal o contexto da radiodifusão no Brasil pós-

ditadura militar. A relação entre o serviço público de radiodifusão e o poder político, bem

como a desconstrução da política como meio popular de transformação social durante o

regime militar, resultaram na monopolização da comunicação social eletrônica. Ademais, a

noção liberal da propriedade privada contribuiu para que fosse perpetuado um discurso

dominante baseado na apropriação do espaço público pelo agente privado, em plena

contradição com os princípios de liberdade e igualdade. A concretização do direito à

comunicação faz parte da afirmação do Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual a

democratização dos meios de comunicação tem sido pauta essencial dos movimentos sociais

na esfera da contra-hegemonia.

Palavras-chave: Emancipação; Regulação; Direitos humanos.

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1. INTRODUÇÃO

Por mais estranho que possa parecer, sinto que uma das maiores dificuldades ao longo

deste trabalho esteve relacionada com a elaboração da introdução. Para ser sincera, somente

após desenvolver o conteúdo da pesquisa, e ter inclusive finalizado as considerações finais, é

que comecei a escrever a parte introdutória.

A introdução me pareceu um desafio não apenas por representar o pontapé inicial de

todo um estudo que foi materializado durante, em realidade, os cinco anos de faculdade, mas

principalmente por ter a função, de certa forma, de convidar e, quem sabe, seduzir o leitor que

entre em contato com o trabalho.

Consciente disso, acredito ser importante expressar, ainda que brevemente, um

pouquinho dos devaneios que levaram à existência desse estudo que agora apresento.

Nas aulas de teoria política que foram brilhantemente ministradas pelo Professor Ivan

Llamazares na Universidad de Salamanca no ano de 2010, tive o privilégio de adentrar num

espaço de conhecimento vivo em que se discutia desde conceitos como política, liberdade,

comunidade, (des)igualdade, autoridade e revolução, até outros como nação, feminismo e

multiculturalismo. Os debates eram sempre precedidos da leitura de obras clássicas como “O

príncipe” de Nicolau Maquiavel; “Leviatã” de Thomas Hobbes; “Discurso sobre a origem e os

fundamentos da desigualdade entre os homens” de Jean Jacques Rousseau. Também outras

obras consagradas como “A ideologia alemã” de Karl Marx; “O conceito do político” de Carl

Schmitt e “Eichmann em Jerusalém” de Hanna Arendt.

Aos poucos, fui me libertando das burocráticas sombras do direito positivado,

incapazes de fornecer uma base sólida para explicar e oferecer soluções para certas

contradições da nossa sociedade, e uma visão mais ampla e otimista sobre as possibilidades

históricas de uma emancipação social começaram a surgir no horizonte, ainda que distante.

Ao retornar à faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo já

com planos de projetar algumas ideias concebidas durante o período de estudos na Espanha,

através da indicação de colegas do curso, tive o prazer de conhecer o Professor Airton

Andrade Leite, orientador desta iniciação científica, cujas pesquisas anteriores se voltaram à

questão da comunicação social contra-hegemônica. Em trabalho desenvolvido junto ao núcleo

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de projetos sociais do Escritório Modelo Evaristo Arns da PUC-SP, cuidou especialmente do

tema relativo às rádios comunitárias.

Foi então que, após diversos encontros tomados por indagações e reflexões, chegamos

à conclusão de que um estudo que pretenda abordar a comunicação social deve conter uma

perspectiva multidisciplinar da realidade em que se insere. Por isso, nos permitimos à

miscigenação entre autores, e autoras, das variadas áreas de conhecimento, com especial

interesse pela filosofia e sociologia.

Diante de uma verdadeira biblioteca infinita de livros sobre o tema desse trabalho, o

percurso que levou ao afunilamento do objeto de estudo passou por uma verdadeira

revolução.

Digamos que uma importante linha de raciocínio começou a ser trilhada, no início do

segundo semestre do ano passado, junto com as aulas lecionadas de forma inesquecível pelo

Professor Antonio Rago Filho no curso de História e Arte da faculdade de História da PUC-

SP. Percorrendo desde François Rabelais, Mikhail Bakthin, Rousseau, até Walter Benjamin e

Marshall Berman, a proposta do curso era apresentar aos alunos as curiosas redes que ligam a

história e a arte humanista, e mais do que isso, resgatar uma proposta crítica de

desestabilização da hierarquia social com base na cultura popular.

A partir de então, alguns conhecimentos básicos sobre o pensamento jurídico

moderno, a teoria política e a história foram sendo cruzados a fim de permitir a reflexão sobre

um novo paradigma da comunicação social que correspondesse aos anseios emergentes de

emancipação social. Para tanto, foi imprescindível desconstruir as bases do paradigma

dominante que se espelham na história da democracia burguesa.

Os estudos realizados até aquele ponto me fizeram crer que eu deveria abordar a

problemática da monopolização da radiodifusão no Brasil não apenas como um problema

decorrente da realidade socioeconômica brasileira, mas como resultado de uma crise

paradigmática, qual seja a da concepção liberal da democracia nas sociedades ocidentais no

período pós Revolução Francesa. O salto qualitativo da pesquisa, a partir dessa constatação,

posso dizer que foi significativo e exigiu um grande esforço no sentido de alinhar a

bibliografia.

A elaboração de um eixo de pesquisa que atendesse a essas expectativas me permitiu

entrar em contato com questões teóricas até então obscuras para mim, mas fundamentais para

a discussão do tema, como a problemática da abstração e da universalização de direitos, a

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“ilusão jurídica”, a naturalização das desigualdades sociais e o deslocamento da questão social

para a questão do indivíduo. Após ter problematizado tais fenômenos da democracia ocidental

contemporânea, pude reconhecer o quanto a ignorância das atuais teorias de conhecimento

pela realidade socioeconômica decorre de uma ideologia que desconsidera o social em

detrimento do individual e reflete um modelo de democracia que marginaliza a participação

das classes subalternas nas instituições políticas.

Diante desse material teórico, que remete ao período da história em que a burguesia

tomou o poder, posso dizer que a maior dificuldade foi criar uma linha condutora para

relacionar a crítica à concepção liberal da democracia na fase descendente da burguesia com a

problemática da concentração da radiodifusão no Brasil pós-ditadura militar.

A estratégia utilizada, então, foi a de tentar organizar as ideias em capítulos e

subcapítulos de forma a criar uma parte teórica e outra prática que permitisse o movimento no

texto sem perder a sua característica orgânica, sempre que possível contextualizando o

período histórico.

Sem mais devaneios, faço agora uma breve introdução dos capítulos, que foram

divididos entre os itens 2, 3, 4 e 5.

Logo no item 2, a fim de problematizar a concepção liberal da democracia na fase

descendente da burguesia entraram em cena autores como Domenico Losurdo, com as suas

indagações sobre a democracia e a tradição liberal; José Chasin para abordar o fenômeno da

abstração e da universalização dos direitos; o Mészáros para discutir a ideologia liberal; a

Chaui e o Lyra Filho para questionar a liberdade e a igualdade no Estado democrático de

direito da sociedade capitalista; o Meksenas para fazer a ponte entre cidadania, poder e

comunicação. Situamos, ainda nesse capítulo, o momento do surgimento do monopólio dos

meios de comunicação de massa com o intuito de demarcar o período histórico em que a

burguesia abandonou o seu ideal de livre formação da opinião pública. Ressaltamos também o

fenômeno identificado por Orwell de “censura voluntária em sociedades livres” e aquele

denominado por Chomsky como “consenso fabricado” como forma de levantar um

questionamento sobre a legitimidade da democracia representativa.

Pontuamos tais questões na tentativa de obtermos embasamento teórico para a

argumentação do que entendemos por democratização dos meios de comunicação. Com base

nessa ideia, a concepção liberal da democracia, de caráter superficial, baseada na

representatividade e na igualdade formal-abstrata, bem como na centralização política, não

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encontra seu locus de identidade nesse trabalho. Pelo contrário, a democracia participativa, de

caráter popular, com a descentralização das tomadas de decisão, e com a efetivação dos ideais

de liberdade e igualdade se mostra como norteador da democracia que defendemos.

Com base nisso, já no item 3, discutimos as dificuldades do processo de

democratização da comunicação social eletrônica no Brasil, que deveriam ser vistas

criticamente tanto como fruto do coronelismo eletrônico, como decorrentes de um paradigma

dominante fundamentado no direito à propriedade individual do social.

Argumentamos que a concentração dos meios de comunicação constitui em uma

afronta à democracia como um todo, e é particularmente oposta aos direitos de liberdade e

igualdade de todos os cidadãos em concreto. Impede, em última instância, a livre formação da

opinião pública, bem como inutiliza o direito à comunicação.

Como referência histórica demarcamos a dominação do serviço público de

radiodifusão no Brasil por poucas famílias aristocratas e políticos, que deu origem a uma

verdadeira oligarquia multimidiática, muitas vezes chamada de coronelismo eletrônico, o que

nos permitiu substituir a nomenclatura de Estado democrático de direito por Estado

oligárquico de direito.

Para situarmos o objeto de estudo no espaço e no tempo, nos esforçamos para fazer um

recorte do contexto da radiodifusão no Brasil no período que se estendeu após a ditadura

militar, com tudo o que sobrou dela. O rádio e a televisão foram escolhidos por ainda

constituírem, muitas vezes, a única fonte de contato com a esfera pública por grande parte da

população brasileira, motivo pelo qual ainda são considerados poderosos agentes de

convencimento e de formação do senso comum.

Recorremos ao pensamento lúcido de Paulo Arantes para obtermos um panorama

realístico da sociedade brasileira contemporânea, especialmente no que diz respeito à atual

política nacional de direitos humanos. Para fazer o diálogo entre democracia, poder e

comunicação no Brasil nos baseamos, primordialmente, em Paulo Meksenas, Paulo Freire e

Marilena Chaui.

No tocante ao conceito jurídico do serviço público de radiodifusão e o seu tratamento

constitucional foi utilizada a doutrina de Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de

Melo e José Afonso da Silva. Ainda, com relação à abordagem multicultural do direito à

comunicação sob uma perspectiva contra hegemônica, emprestamos a análise de Boaventura

de Sousa Santos, leitura que foi obrigatória ao longo de toda a pesquisa.

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Verificamos que, apesar do poder institucional da comunicação exercido pelos

latifundiários da informação perpetuarem um discurso (des)emancipatório da democracia,

como se a apropriação do público pelo privado fizesse parte do processo democrático, não se

trata de um poder hegemônico.

Através do conflito, seja com as instituições políticas, seja com as burocráticas

legislações e tribunais que criminalizam e dificultam a participação cidadã no serviço público

de radiodifusão, o poder popular, em conjunto com os movimentos sociais, vem a questionar a

naturalidade por detrás dessa dominação e vem ocupando cada vez mais espaços públicos

como forma de exercitar a cidadania.

No item 4, a sociologia do direito foi apresentada como metodologia de estudo a fim

de dar embasamento teórico à forma como o trabalho foi realizado, além do que nos serviu

para problematizar o direito a partir de uma visão social dialética.

Por fim, no item 5, desde uma perspectiva interdisciplinar, apresentamos a abordagem

histórica da comunicação social nos centros de pesquisa da América Latina para que o leitor

seja contextualizado a respeito da relevância dos estudos originados em terras latino-

americanas após a introdução do rádio e da televisão. Esse item foi importante para

deflagramos que, desde cedo, os pesquisadores latinos perceberam que os modelos de análise

e crítica importados do primeiro mundo não se encaixavam nas peculiaridades do nosso solo

mestiço, e que deveriam ser reformulados a partir de uma ótica do Sul.

Observamos que a mediação histórica foi utilizada por todo o percurso, não como

símbolo do progresso, mas para demonstrar como o ocultamento de determinados aspectos da

história revelam, na verdade, um viés ideológico.

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2. A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA

DEMOCRACIA OCIDENTAL NA FASE DESCENDENTE DA

BURGUESIA

Nesse capítulo, pontuamos as primordiais circunstâncias históricas da Modernidade

que contribuíram para que o processo de democratização iniciado após a Revolução Francesa

rumasse para a categoria dos “universais abstratos” e para uma concepção de social como

sinônimo de “soma de indivíduos”, na medida em que o senso crítico de toda a estrutura

econômica se banalizava para ocultar a complexidade por detrás da concretização da

democracia substancial1.

De forma plural e não estática buscamos, na interdisciplinariedade entre diversos

autores de variadas áreas do conhecimento, verificar como que a perspectiva liberal da

democracia almeja à emancipação de uma classe social e não à emancipação humana

integralmente, a princípio imaginada por alguns ideólogos iluministas.

Por considerar a livre formação da opinião pública como uma conquista fundamental

para a democracia real, recorremos à problemática da concentração dos meios de

comunicação desde o surgimento do capitalismo monopolista para analisar como a ideologia2

dominante marginaliza a participação das classes subalternas nas instituições políticas.

2.1. A desconfiguração da questão social pela democracia

burguesa do século XIX

O caráter (des)emancipatório da análise liberal que tomou forma após a Revolução

Francesa não leva em consideração a relação entre a questão social e as instituições político-

sociais, deslocando a discussão para a problemática do livre-arbítrio do indivíduo, ou seja,

1 As diferenças entre a democracia formal e a democracia substancial podem ser encontradas em Losurdo

(2004: 257-261).

2 Segundo Lyra Filho (1987: 123), ideologia é “uma crença falsa, uma 'evidência' não refletida que traduz uma

deformação inconsciente da realidade (...) Raciocinamos a partir dela, mas não sobre ela, de vez que

considerá-la como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da

direção superadora, isto é, iniciaria o processo da desideologização”.

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legitima a exploração de uma classe mediante o princípio da justiça, conforme o mérito

pessoal de cada ser individualmente considerado.3

O individualismo liberal, como assinala Losurdo (1998: 204): “tende a dissolver a

questão social em um problema atinente exclusivamente, ou em primeiro lugar, ao indivíduo,

a um problema que não põe tanto em causa a objetiva configuração das relações jurídicas e

sociais, mas a capacidade, as atitudes e também a disposição de espírito do indivíduo afligido

pela pobreza”.

Na contramão do liberalismo (des)emancipador que estava por vir, Hegel, antes

mesmo de Marx, tendo observado que a desigualdade, acima de um grau tolerável, anula a

liberdade do indivíduo, teorizou sobre a existência de “direitos materiais” irrenunciáveis, sem

os quais a liberdade concreta e os direitos não podem subsistir.4

Ainda no contexto de uma Inglaterra aristocrata Hegel denunciou a irracionalidade

com que se equiparava o direito à vida ao direito de propriedade no momento de atribuir

penas de morte tanto aos crimes de assassinato quanto de roubo na Inglaterra anterior a 1848.

Também adquiriu preocupação central na crítica de Hegel o aspecto formal da liberdade em

que uma minoria da aristocracia inglesa se apropriava da esfera pública para utilizar dos

direitos políticos atribuídos por uma quantidade bem maior de pessoas.

Com a burguesia no poder pouco, ou nada, mudou para avançarmos no sentido da

emancipação humana, até então idealizada pelos teóricos do iluminismo. Foi no período

posterior à Revolução Francesa (1789), exemplo consolidado da luta de classes em que as

estruturas sociais foram obrigadas a mudar, que as pretensões liberais de liberdade e igualdade

do período ascendente da burguesia5, que sustentaram a Declaração dos Direitos do Homem e

do Cidadão em 1789, foram abandonadas em troca de uma ideologia acrítica com relação à

ordem socioeconômica e política capitalista.6

3 MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 491.

4 LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, Estado. São Paulo:

Editora UNESP, 1998, p. 184.

5 Chaui (2010: 99) relata que “Esse otimismo da classe burguesa ascendente desaparecerá quando, no século

XIX, os movimentos populares e proletários revelarem a injustiça das leis e a inexistência concreta dos

direitos declarados nas várias revoluções. Os trabalhadores são vistos como “classe perigosa” e dão medo”.

6 “Reparem, por exemplo, no caso da burguesia: como classe ascendente, quando estava na vanguarda,

enriqueceu o patrimônio jurídico da humanidade. Quando chegou ao poder deu a “coisa” por finda, isto é,

quis deter o processo para gozar os benefícios e se recusou a extrair as consequências de sua revolta contra a

aristocracia e o feudalismo. Ficou, portanto, uma contradição entre a libertação parcial, que favoreceu os

burgueses, e o prosseguimento da libertação, que daria vez aos trabalhadores”. (LYRA FILHO, 1987: 176)

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Desde então, a burguesia, naquilo que pode ser concebido como a sua fase

descendente, se ancorou na corrente do cientificismo positivista a fim de barrar qualquer

indício de transformação radical do status quo.

A concepção original do cientificismo positivista estava vinculada às grandes

expectativas de um otimismo evolucionista um tanto simplório.

Compreensivelmente, a repetida erupção de crises capitalistas na segunda metade do

século XIX pôs um fim em tudo isso. Resultou disso a remodelação da ideologia do

cientificismo em um molde profundamente cético, se não completamente pessimista.

Sua abordagem anti-histórica dos problemas encontrados tornou-o extremamente

adequado à “eternização” e legitimação ideológica do sistema estabelecido,

especialmente porque também apresentava a ilusão de temporalidade: uma ilusão

diretamente emanada da própria ciência. (MÉSZÁROS, 2010: 254).

Essa nova tendência de pensamento intelectual foi responsável por garantir a

propagação da teoria liberal que sustentava a abstração das categorias de liberdade e

igualdade. Durante esse período, o desenvolvimento pleno do capital acentuou a contradição

entre os interesses da burguesia e o interesse geral. Os limites expostos pela propriedade

privada evidenciaram a sectarização entre tais interesses. Com o tempo, as próprias conquistas

da burguesia, como o sufrágio universal e a liberdade de imprensa, foram paulatinamente

sendo reprimidas em nome do capital e da dominação.

Como forma de protestar contra a democracia burguesa de sua época, respeitadas as

divergências ideológicas com Hegel e Marx, Lassale teve razão em observar que: “Os direitos

que o liberalismo pretende... nunca os quer para o indivíduo enquanto tal, mas sempre para

um indivíduo que se encontre numa situação particular, que pague certas taxas, seja provido

de capitais etc.”.7

Assim, a racionalidade contida na representação liberal da democracia subsume a

discussão da problemática de classes à ideologia liberal de uma suposta igualdade formal

entre indivíduos forjada por categorias de termos universais.8

A corrente liberal, quanto mais degenerada, se apropria de universais abstratos, de

maneira que a análise em concreto é substituída pela generalização em abstrato através da

utilização da categoria social como “soma dos indivíduos”.

Segundo Chasin (2000: 82) “... na medida em que o social é a soma de indivíduos, o

jurídico não pode deixar de ser a aparência que elide a desigualdade concreta”. Tal precedente

7 LASSALE, Ferdinand apud LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade,

igualdade, Estado. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 186.

8 CHASIN, José. A Determinação Ontonegativa da Politicidade. Ensaios Ad Hominem - edição especial,

Tomo III - Revista de Filosofia/ Política/ Ciência da História. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem,

2000.

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encontra suas raízes nas relações de troca de mercadorias, já que a ideologia liberal coisifica

as relações humanas em troca de garantir a igualdade formal entre os indivíduos.

A expressão “soma dos indivíduos” deve ser compreendida no contexto do formalismo

jurídico abstrato em que se ampararam os teóricos liberais da democracia burguesa. Para

Santos (2010: 284):

A teoria política liberal - o máximo de consciência teórica da modernidade

capitalista - sempre privilegiou, como dispositivo ideológico, o universalismo

antidiferencialista que accionou politicamente através das ideias da cidadania e dos

direitos humanos.

Nessa concepção liberal, protege-se legalmente o universal, formal e abstrato, para

mistificar a (des)emancipação de cada ser individual concretamente considerado.9 A

abstração, portanto, se mostra como uma contradição da própria estrutura social estabelecida,

motivo pelo qual supõe seja a categoria dos direitos um campo independente e auto-

regulado.10

No intuito de situar o momento da incorporação da teoria da abstração dos direitos

pela ideologia apologética, nos valemos do jurista José Afonso da Silva (2008: 117), para

quem o Estado de Direito:

(...) é uma criação do liberalismo. Por isso, a doutrina clássica repousa na concepção

do Direito natural, imutável e universal, daí decorre que a lei, que realiza o princípio

da legalidade, essência do conceito de Estado de Direito, é concebida como norma

jurídica geral e abstrata.

Nesse Estado de direito, o direito humano de liberdade é sinônimo de direito humano

da propriedade privada, motivo pelo qual sucumbe em utopia o direito à autonomia real do

'ser social' teorizado por Marx.11

Na concepção marxiana o Direito faz parte de um 'processo

social' de 'libertação permanente' do homem, em que “(...) esse 'ser real' - esse homem na

sociedade - não é apenas um boneco sem vida que as forças sociais movimentam. Ele se

conscientiza, reage e se liberta dos condicionamentos”.12

9 Como assinala Chasin, ao se referir ao pensamento de André Vachet: “O individualismo não é

indiferenciado, nem abstrato, identifica-se com um conteúdo determinante, a propriedade, que toma um

caráter absoluto e definitivo. É representado como a raiz das manifestações da pessoa: a liberdade, a

igualdade e a segurança. Resume positivamente os interesses, os poderes, os direitos e deveres, determina os

valores e as significações e caracteriza o indivíduo como totalidade. /.../ A propriedade, sobretudo a

propriedade-capital /.../ obtém assim uma posição imperialista capaz de submeter a outros direitos e valores

/.../ Em todos os setores a propriedade terá a posição de primeiro princípio”.

10 MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 506.

11 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 50.

12 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 175.

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18

Chaui (2010: 100) observa que, para Marx, o Estado de Direito nas sociedades

capitalistas é sempre uma abstração, uma vez que a igualdade e a liberdade reivindicada pela

sociedade civil e formalizada pelo Estado em forma de lei não existem.

Nessa perspectiva, os direitos do homem e do cidadão, além de ilusórios, estão a

serviço da exploração e da dominação, não sendo casual, mas necessário, que o

Estado se ofereça como máquina repressiva e violenta, provocando medo nos sem-

poder, uma vez que o Estado e o direito nada mais são do que o poderio particular da

classe dominante sobre as demais classes sociais.13

Para os ideólogos liberais, a garantia em abstrato da igualdade e liberdade pelo Estado

é suficiente para que cada indivíduo tenha iguais condições de negociar o contrato social.

Oculta-se, através do campo jurídico em abstrato, ou melhor, das constituições liberais

protetoras dos direitos formais de primeira, segunda e terceira geração, a hegemonia da classe

dominante.

A ficção legal criada em torno da igualdade ao nível dos direitos abstratos é

denominada de “ilusão jurídica” que, para Mészáros (2008: 163):

é uma ilusão não porque afirma o impacto das ideias legais sobre os processos

materiais, mas porque o faz ignorando as mediações materiais necessárias que

tornam esse impacto totalmente possível. As leis não emanam simplesmente da

'vontade livre dos indivíduos', mas do processo total da vida e das realidades

institucionais do desenvolvimento social-dinâmico, dos quais as determinações

volitivas dos indivíduos são parte integrante.

A negação do fetichismo jurídico, por sua vez, nos ajuda a compreender que a

centralidade do debate está na estruturação contraditória das relações jurídicas e sociais14

, e

não apenas na questão da formalidade dos direitos estabelecidos sob a égide da propriedade

privada.

Detemo-nos um instante para refletir sobre como o teor ideológico da análise liberal

resvala na crença daqueles que não conseguem imaginar um mundo civilizado em que seja

garantido o direito à propriedade privada15

dos meios sociais de produção para todos e

acabam por ser coniventes com o controle e as disparidades sociais, por medo de uma

qualquer teoria do caos e perda de poder, como o próprio Rousseau imaginou:

13 CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a

ed., 2010, pp. 100-101.

14 Com base em Marx, Lyra Filho (1987: 175) afirma que: “As relações sociais - inclusive as relações de

produção - constituem relações entre homens, e não entre peças duma máquina. Aliás, se não fosse assim, se

tudo fosse aparelho, precisaríamos de um 'deus dos aparelhos' para movimentar a História e fazer com que a

'máquina' funcionasse”.

15 Segundo Chaui (2010: 103): “É preciso que os não-proprietários dos meios sociais de produção também

sejam considerados proprietários - do seu corpo, de sua pessoa, dos bens necessários à vida e, evidentemente,

de sua força de trabalho -, sem o que os indivíduos não se acham validados para as relações firmadas em

contratos (...)”.

Page 19: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

19

É certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos da

cidadania, e até mais importante, em alguns aspectos, que a própria liberdade: a

propriedade é a base verdadeira da sociedade civil, e a garantia real dos

empreendimentos dos cidadãos, pois, se a propriedade não fosse adequada às ações

pessoais, seria muito fácil burlar os deveres e rir das leis. (ROUSSEAU apud

MÉSZÁROS, 2008: 202).

Os teóricos liberais partem do pressuposto de que essa realidade social é formada por

indivíduos naturalmente egoístas ou de que a alienação decorre das “instituições sociais

perversas” insuperáveis, motivo pelo qual os cidadãos devem legitimar o Estado como

instância separada e superior que possui direito de coagir mediante leis estabelecidas pelos

próprios homens, no melhor estilo do “uso legal da violência” pelo Estado a que se refere

Weber.16

Sob essa perspectiva, as categorias de liberdade e igualdade serão sempre ideais

abstratos.17

A ideologia liberal rejeita, portanto, a tese de que essa abstração é fruto das

contradições do próprio sistema. Não vislumbra que a alienação e a impossibilidade de

aplicação real dos direitos fundamentais decorrem da questão social, qual seja a relação

desigual de trabalho imposta por uma estrutura dominante de opressão.

Para superar o universalismo abstrato, Santos (2010: 21) propõe: “um universalismo

concreto, construído de baixo para cima, através de diálogos interculturais sob diferentes

concepções da dignidade humana”.

2.2. A naturalização das desigualdades socioeconômicas

no contexto da democracia burguesa do século XIX

Para compreender como a estrutura econômica18

imposta pelo capital dificulta a

problematização da democracia além do seu aspecto meramente formal e alimenta o

pensamento jurídico contemporâneo conservado na distinção entre Estado político e

sociedade civil, situamos brevemente o período histórico em que se desenvolveu a democracia

burguesa no século XIX.

16 CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a

ed., 2010, p. 94.

17 MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 159-161.

18 Mészáros (2008: 164) explica que, para Marx, a estrutura econômica da sociedade “não é uma entidade

material bruta, mas um conjunto de relações humanas determinadas, que, precisamente como tais, estão

sujeitas a mudanças, e até mesmo à mudança mais radical proveniente de uma deliberação humana

socialmente consciente (socialista)”.

Page 20: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

20

No século XIX, o processo de industrialização alavancado pela nova classe social fez

emergir uma fase histórica da modernidade em que a mercadoria se torna o centro das

relações pessoais. Nessa conjuntura, verificamos um processo de mercantilização que atinge

grande parte das criações humanas, como a arte e a literatura.

Como referência de pensamento crítico sobre a modernidade, evocamos os

desdobramentos teóricos benjaminianos. Walter Benjamin, integrante que foi da Escola de

Frankfurt, analisou a história cultural desse período através do estabelecimento de relações

entre o desenvolvimento da cidade, meios de reprodução e produção literária. Disso resultou o

seu estudo das modificações do modo capitalista, suas implicações na vida e na história.

Escreveu sobre como a Europa no século XIX, pela primeira vez até então, se deslocou

motivada pelo desejo de possuir mercadorias.19

As exposições universais transfiguram o valor de troca das mercadorias. Criam uma

moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo plano. Inauguram

uma fantasmagoria a que o homem se entrega para se distrair. A indústria de

diversões facilita isso, elevando-o ao nível da mercadoria. O sujeito se entrega às

suas manipulações, desfrutando a sua própria alienação e a dos outros.

(BENJAMIN, 1985: 35).

A troca generalizada de mercadorias colocou em evidência, de forma inaugural, a

relação social trabalho. A centralidade da categoria trabalho, no entanto, passou a ser

problemática quando inserida num contexto de exploração pelo poder através da divisão de

classes sob o critério da propriedade privada.

Marshall Berman, escritor já do século XX, em sua obra “Tudo que é sólido

desmancha no ar”, também refletiu sobre o impacto do processo de modernização burguesa

sobre a sociedade. Berman se baseou em Marx para afirmar que existe uma relação dialética

entre burguesia, processo de modernização20

, que implica todo o conjunto de transformação

de uma sociedade agrária em uma sociedade urbano-industrial em que o capital é o centro das

relações, e o processo de modernidade, caracterizado pelo fluxo de transformações

permanentes em que as relações humanas são fluídas, dinâmicas e instáveis, dada a

necessidade da expansão permanente do sistema econômico para a reprodução do capital. A

reflexão do autor deflagra, assim, um processo de modernização em que o capital só é capaz

de se reproduzir mediante a sua própria expansão desenfreada.

19 Das diversas acepções que a palavra mercadoria pode receber, Benjamin se refere à matéria envolta de valor

superfaturado pelo fetichismo e exposta como objeto de luxo em galerias.

20 Processo de modernização no sentido dado por Berman (2007: 158), como “um complexo de estruturas e

processos materiais - políticos, econômicos, sociais - que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem

por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana”.

Page 21: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

21

A partir da Revolução Industrial, a alienação gerada pelo modo de produção capitalista

produziu a fragmentação da capacidade humana através da dominação material e espiritual

dos meios de produção sociais.

(...) a alienação predomina em todas as ocupações e sobre todas as facetas da vida,

desde o funcionamento das estruturas econômicas fundamentais até as relações

pessoais mais íntimas dos indivíduos que constituem a sociedade. (MÉSZÁROS,

2008: 158)

O capital se apoderou o quanto pôde, tanto do poder concreto das forças produtivas,

pelo qual o proletariado está sujeito à divisão de trabalho, quanto do domínio abstrato, ou

seja, busca limitar, pela via da determinação econômica, mas não apenas, a liberdade sobre as

criações do espírito humano. Dessa forma, há quem defenda, como Mészáros e Chaui, que os

homens, despidos de real liberdade e igualdade, se tornaram menos livres após a Revolução

Francesa, por terem sido subjugados ao poder das coisas (contratos privados),

independentemente de sua vontade de ingressar nesse contrato social.21

A liberdade e a igualdade do iluminismo foram transformadas em categorias de classe

em detrimento da perpetuação da dominação por meio da propriedade privada.22

Nessa

conjuntura, a crise da teoria liberal clássica é fruto das contradições da implantação do capital,

com a consequente perda da legitimidade do Estado burguês.

A exploração do trabalho humano e a miséria, que se instaurava na mesma medida em

que aumentava o desagrado do povo frente a essa (des)emancipação das pretensões burguesas

do período iluminista, culminaram nas revoluções populares de 1848.

A organização da Comuna de Paris, como ilustração histórica da auto-organização do

povo, se destacou pela agilidade através da qual o movimento popular articulou a

transformação do descontentamento com a burguesia na imposição da vontade das classes

subalternas.

O triunfo do poder revolucionário, de 18 de março à 28 de maio de 1871, inspirado no

Manifesto Comunista, foi responsável pela abolição das estruturas permanentes, como o

Estado e o exército, e instauração de formas de poder democrático através da destruição da

burocracia estatal. Não foi muito duradoura devido à violência com que foi suprimida e o seu

21 De acordo com Chaui (2010: 96): “Os autores clássicos afirmam que, por natureza, os homens não

conseguem garantir seus direitos naturais; para garanti-los, recorrem ao contrato social, a partir do qual

decidem alienar seus direitos naturais a uma instância soberana que os transforme em direitos civis e

positivos, por meio das leis. Essa instância é o Estado”.

22 Para Lyra Filho (1987: 178): “A grande inversão que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar

as normas como Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas às normas do Estado e da

classe e grupos que o dominam”.

Page 22: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

22

caráter localizado, seguida de um massacre de parisienses de proporções jamais vistas naquele

século (HOBSBAWN, 2006: 126).

No final do século XIX, a constante necessidade de expansão do capital resultou no

capitalismo exercido em sua vertente monopolista, exigindo que a dominação implicasse em

naturalizar as contradições da burguesia através de uma defesa apologética desse sistema.

Essa naturalização consiste em omitir e deturpar a conscientização em torno da exploração de

uma classe pela outra, bem como combater com violência o poder revolucionário.23

A filosofa

Chaui (2010: 100) reparte esse ocultamento em duas linhas de frente, quais sejam:

O primeiro ocultamento da divisão de classes se dá no interior da sociedade civil

(isto é, dos interesses dos proprietários privados dos meios sociais de produção) pela

afirmação de que há indivíduos e não classes sociais, de que esses indivíduos são

livre e iguais, relacionando-se por meio de contratos (...) O segundo ocultamento da

divisão de classes se faz pelo Estado, que, por meio da lei e do direito positivo, está

encarregado de garantir as relações jurídicas que regem a sociedade civil,

oferecendo-se como pólo de universalidade, generalidade e comunidade imaginárias.

Nesse período, a burguesia dá início ao projeto de supressão das ideias socialistas a

fim de garantir a supremacia da propriedade e do lucro. Para tanto, reduziu a amplitude

democrática de suas próprias instituições, dentre elas o direito ao sufrágio universal, os

direitos civis e a liberdade de imprensa, com o intuito de possibilitar o fortalecimento do

Poder Executivo e retomar o controle sobre os negócios privados.

Com efeito, são os anos nos quais a burguesia é forçada a recorrer, como vimos, a

instrumentos políticos suplementares (imposição legal de taxas onerosas e garantias

para a publicação em órgãos de imprensa), com o objetivo de reduzir ao máximo ou

cancelar inteiramente a influência ideológica das classes subalternas. (LOSURDO,

2004: 153).

Os teóricos liberais, após terem abandonado a crítica da estrutura econômica e das

formas superestruturais correspondentes de dominação do homem pelo homem, se limitaram,

numa espécie de reificação, ao questionamento da esfera política. Nesse aspecto, a

democracia advinda do modelo liberal é conduzida como imagem e semelhança de uma

superestrutura jurídica fundada na generalização abstrata.

(...) o argumento é que a “abstração” que testemunhamos não é apenas um traço da

teoria jurídica, que em princípio poderia ser remediado através de uma solução

teórica adequada, mas uma contradição insolúvel da própria estrutura social.

(MÉSZÁROS, 2008: 159).

23 Ao se referir ao pensamento de Marx, Chaui (2010: 100) discorre que “a sociedade capitalista, constituída

pela divisão interna de classes e pela luta entre elas, requer para seu funcionamento, a fim de recompor-se

como sociedade, aparecer como indivisa, embora seja inteiramente dividida”.

Page 23: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

23

A crítica marxiana24

tem contribuição central nesse debate, por compreender que a

sociedade civil é a condição material de existência das relações jurídicas e das formas de

Estado. No Estado burguês, a sociedade civil forma uma indivisível categoria histórico-social

em que a força produtiva revela ser o mais importante elemento para o desenvolvimento

humano. Nesse sentido, o rompimento com a ideologia liberal clássica se dá pela percepção

de que a existência social do ser humano é que determina a sua consciência, e não o

contrário.25

Lembramos, com Marx, que consciência é conscientização; e também que liberdade

é libertação; isto é, consciência não é uma coisa que nós temos, porém que vamos

construindo, vamos livrando do que nossos dominadores botam lá (ideologia); e

liberdade também não é uma coisa que nós possuímos; pelo contrário: ela vive

amarrada e nós temos de cortar os nós. (LYRA FILHO, 1987: 175).

A teoria crítica de Marx trata de visualizar, em cada caso concreto, a relação entre a

estrutura social e política e a produção, já que o material, ou seja, a condição de vida dos

indivíduos, é o determinante para o materialismo histórico.

Quando a análise política fica alienada de sua forma econômica ou social o resultado é

a perpetuação de uma análise totalizante que desagua na crise da generalidade abstrata.26

Por

isso, a distinção entre Estado político e sociedade civil é parte fundamental para a superação

desse processo político alienante.

2.3. Breve histórico do surgimento do monopólio dos

meios de comunicação de massa

Como já foi dito aqui, num contexto de monopólio do controle dos meios de produção

material, a classe dominante se esforça para controlar também os meios de produção

24 Santos (1988: 70) enaltece a importância da teoria marxista para o pensamento de transformação social e

aponta que devemos “fertilizá-la com os resultados científicos de outras tradições teóricas, numa atitude

científica pluralista, ainda que não eclética, e sem abrir mão da lógica (que não apenas das categorias) da

teoria marxista (para o que terá de atender-se a condições tão diferentes como o nível cultural dos

participantes em debates democráticos cada vez mais amplos e a materialidade das condições políticas de

cada país)”.

25 Para reforçar essa imagem, Freire (2006: 12) afirma que: “O mundo da consciência não é criação, mas sim,

elaboração humana”.

26 CHASIN, José. A Determinação Ontonegativa da Politicidade. Ensaios Ad Hominem - edição especial,

Tomo III - Revista de Filosofia/ Política/ Ciência da História. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem,

2000.

Page 24: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

24

espiritual. Por seus amplos poderes de persuasão e desinformação, os mass media27

, como são

atualmente chamados, nas mãos dos maiores interessados na manutenção dessa ordem social e

na reprodução do capital, possuem central relevância no processo de (des)emancipação da

democracia burguesa.

A fim de viabilizar a livre formação da opinião pública, Marx, ainda antes do

surgimento do capitalismo monopolista, ressaltava a importância da existência de uma

imprensa livre para a prática social, e consequentemente para o processo democrático.

A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo

nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a

cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza as

suas formas brutas. (MARX, 2010: 60)

A definição de imprensa livre idealizada por Marx é semelhante à visão que Hegel

tinha da imprensa de sua época. Para este, a imprensa era como um meio de exercício da

cidadania, por aproximar o individual ao coletivo na formação de consciência.28

Foi o caso da função primordial exercida pelo jornal durante a Revolução Francesa

que serviu de instrumento do Terceiro Estado na promoção de debates e na articulação da

sociedade civil. Também há relatos de que o estilo rabelaisiano de crítica política ressurgiu

nesse período com o uso da pornografia contra a realeza, a nobreza e o clero, constituindo em

uma arma importante de ridicularização dessas figuras.29

Ainda nesse momento, o baixo custo

de produção e publicação permite o acesso das camadas populares aos meios de informação.

O papel revolucionário da imprensa escrita, fundamental nos levantes revolucionários

do século XVIII e XIX, fez com que, depois desses eventos, a burguesia acentuasse o rigor

das multas e penas, contra os jornais populares, previstas nas leis de imprensa além de onerar

as garantias em espécie que deveriam ser depositadas para o registro de um órgão de

imprensa. Tem-se notícia de que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário, a partir de

27

Chaui (2010: 80) revela que: “Em latim, meio se diz medium e, no plural, media, os meios. É essa palavra

latina que aparece na expressão inglesa mass media (cuja pronúncia, em inglês, é mídia), que, literalmente,

significa dar a perceber as coisas por intermédio de imagens visuais e sonoras, isto é, por meio de signos ou

sinais”.

28 ARBEX, José. A escola Goebbels. São Paulo, 2006. Artigo disponível em

<http://www.apropucsp.org.br/revista/revista_25.htm>. Acesso em 15 de dezembro de 2011.

29 O estilo rabelaisiano de crítica política ressurgiu na Revolução Francesa pelo uso da pornografia contra a

realeza, a nobreza e o clero como uma arma importante de ridicularização dessas figuras. Nesse período “(A

mídia radical) moldou a opinião pública de duas maneiras: fixando o descontentamento em impressos

(preservando e propagando a palavra) e o inserindo em narrativas (transformando a conversa em discurso

coerente)”. (DARNTON apud DOWNING, 2002: 203)

Page 25: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

25

então, também passaram a tratar com mais rigorismo as penas impostas, em especial contra a

imprensa operária30

.

Com a conquista do direito ao sufrágio universal pelas lutas populares, a possibilidade

de participação política e a ascensão da camada subalterna se transformaram em uma

preocupação constante da classe dominante. Por esse motivo, os efeitos da crise do

liberalismo na democracia se estenderam para além da problemática da propriedade privada, o

que corroborou para aniquilar o próprio núcleo das pretensões emancipatórias do período

iluminista, como aconteceu com o ideal da livre formação da opinião pública a ser tratado em

tópico posterior.

Às vésperas da derrocada generalizada das restrições censitárias que se seguiria à

Primeira Guerra Mundial e à Revolução de Outubro, Lenin analisa de que modo,

apesar da grande extensão do sufrágio conquistada através de uma longa luta, as

instituições políticas continuam a excluir ou marginalizar as classes subalternas: por

um lado, há 'a organização puramente capitalista da imprensa cotidiana'; por outro,

alguns aspectos menores na legislação eleitoral desestimulam os pobres 'a participar

ativamente da democracia' (Lenin, 1965b, p. 918ss.). (LOSURDO, 2004: 330)

O início da formação do monopólio privado da comunicação data da segunda metade

do século XIX e propiciou, juntamente ao processo de modernização, o surgimento de uma

comunicação de massa.31

Segundo Hobsbawn (2006: 82), nos anos de 1890, um jornal na

Inglaterra alcançou a marca de um milhão de exemplares vendidos.

A transição para o capitalismo monopolista não apenas dificultou a utilização dos

meios de comunicação como aparatos contra-hegemônicos, como também possibilitou a

utilização desses veículos como fonte de controle e censura estatais e privados.

Como vimos, após ter abandonado o projeto liberal clássico em nome da

modernização em favor de uma classe, a burguesia deu início ao projeto de naturalização das

contradições socioeconômicas, fortalecida pela disseminação daquela ideologia apologética

através dos meios de comunicação.

O desenvolvimento de tecnologia cada vez mais sofisticada e de alto custo, atrelada à

constante necessidade de expansão do capital, permitiu aos donos dos meios de produção a

dominação dos veículos de comunicação de massa.

30

LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, pp. 148-151.

31 Temos comunicação de massa quando a Fonte é única, centralizada, estruturada segundo os modos da

organização industrial; o canal é um achado tecnológico que influi sobre a própria forma do sinal; e os

destinatários são a totalidade (ou um número muito grande) de seres humanos em diferentes partes do globo.

(Eco, 1984: 171)

Page 26: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

26

Os sindicatos, partidos populares e operários, desarticulados pela institucionalização

de suas categorias e enfraquecidos pela publicidade conservadora, que lhes taxava de

manipuladores de uma massa “criança” e repressores do “indivíduo”, também foram vítimas

do projeto de extirpação da política como forma de libertação das classes subalternas.32

Isso

sem falar das legislações contemporâneas que dificultam, por meio da burocratização, a

mobilização popular pelo uso dos meios de comunicação, especialmente no que se refere às

rádios comunitárias.

A categoria de “massas”, no entanto, não pode ser restringida à problemática do

mundo moderno e da modernidade, sob pena de recair na análise liberal que sustenta o

absenteísmo político da “multidão criança”, como acabou fazendo a teoria crítica de Adorno

ao longo do tempo, que deixou de lado a relação entre o popular e a estrutura do capital,

negligenciando a dimensão do popular. Mais útil é a análise de Benjamin que descobriu na

mediação histórica entre os meios de produção e a cultura popular a chave para pensar a

experiência social.

A partir disso é lícito dizer que, não apenas o processo econômico é que se mostra

determinante para a desarticulação do processo de emancipação política em torno de uma

imprensa revolucionária, como comenta Losurdo (2004: 157):

O domínio da burguesia não estará suficientemente sólido e garantido enquanto o

monopólio da força armada não estiver completado pelo monopólio da produção

espiritual, isto é, pela supressão seja dos meios de informação, seja dos partidos que,

por causa da sua organização e da sua relação com classes sociais antagônicas em

relação às dominantes, se configuram, ou não suscetíveis de se configurar, em

situações de crise, como uma alternativa de poder.

A classe dominante, exercendo o domínio, a princípio, da imprensa escrita, depois do

cinema, do rádio e da televisão, por meio do patrocínio das empresas de publicidade, e muitas

vezes do Estado, descobriu um potente mercado consumidor que poderia servir tanto como

fonte de lucro quanto de publicidade para os ideais liberais e reprodutor da cultura

hegemônica33

.

Para além da censura estatal pré-existente em diversos países ao longo da história, em

maior ou menor grau, sob o pretexto de proteger o interesse público, a consolidação do

capitalismo imperialista foi o divisor de águas para o aparecimento, em escala global, do

32 Losurdo, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, pp. 159-165. 33

Para Santos (2010: 295), com o deslocamento da sociabilidade real para uma sociabilidade virtual: “em

sociedades de consumo dominadas pela cultura de massas e pela televisão, a escola deixou de ter o papel

privilegiado que dantes tivera na socialização das gerações mais jovens”.

Page 27: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

27

fenômeno denominado “censura voluntária em sociedades livres”, expressão que foi

concebida na introdução da obra A revolução dos bichos escrita por George Orwell.34

A expressão “censura voluntária”, a que nos referimos acima, serve para identificar um

fato social das sociedades contemporâneas em que se cria um ambiente favorável para que

algumas ideias sejam silenciadas. Nas palavras de Orwell, ao se referir à Inglaterra livre de

seu tempo, afirmou que a censura é: “amplamente voluntária. Idéias impopulares podem ser

silenciadas e fatos inconvenientes podem ser mantidos na ignorância, sem necessidade

nenhuma de proibição oficial.”35

.

O termo “censura” é assim empregado para designar uma circunstância em que a

classe no poder, com o domínio da mídia, não necessita de uma proibição oficial para que

algum fato contrário a seus interesses seja abafado, basta que ele não ganhe os holofotes da

imprensa. E o termo “voluntária” quer dizer que, a sociedade civil, mesmo no exercício da

liberdade de agir sob um regime aparentemente democrático, aceita a subordinação aos

detentores dos meios de comunicação de massa, o que gera um ciclo vicioso de controle da

opinião pública, pelo poder privado, segundo os ditames do discurso da competência e do

consenso fabricado, como observa Chomsky.36

Nesse ambiente de hegemonia capitalista, segundo Downing (2002: 45), merece

destaque a reflexão sobre o poder, o capitalismo e a cultura elaborada por Gramsci, que

sempre buscou ressaltar que:

a) a hegemonia nunca é um cadáver congelado, sendo constantemente negociada

pelas classes sociais superiores e subordinadas, b) a hegemonia cultural capitalista é

instável e sujeita a graves crises intermitentes, ainda que, ao mesmo tempo, c) possa

desfrutar longos períodos de uma normalidade raramente questionada.37

A autocensura dirigida pelos profissionais da mídia tradicional também foi tema da

análise do pensamento gramsciniano, que propõe um ativismo dos comunicadores em

conjunto com as classes trabalhadoras38

, e nos fornece suporte para discutir o papel da mídia

radical alternativa39

como fonte de contrainformação. Ramos (2007: 39) dá destaque a essa

34 CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 203.

35 ORWELL, George apud CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,

2006, p. 202.

36 CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 205.

37 DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo:

SENAC São Paulo, 2002, p. 50.

38 Ibid, p. 48.

39 Para Downing (2002: 41), que afirma a mídia radical como uma alternativa ao paradigma hegemônico; “A

cultura popular é a matriz genérica da mídia radical alternativa. Ela também se entrelaça com a cultura de

massa comercializada e com as culturas de oposição. Nas audiências ativas, multiculturais, podemos ver os

co-arquitetos - juntamente com os produtores de texto - dos significados da mídia, surrupiando, às vezes, o

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ideia de aparelhos privados de hegemonia, contida em Gramsci, e esclarece que: “(...) a Mídia

é, no sentido teórico gramsciano que aqui se aplica à análise de suas funções socioculturais e

político-econômicas, parte integrante, e fundamental, da sociedade civil”. A partir disso

podemos indagar como podemos democratizar uma instituição que emerge da própria

sociedade civil.

2.4. O “consenso fabricado” pelo paradigma liberal

através dos meios de comunicação de massa

Como nenhum aspecto da vida social poderia ficar de fora do controle do capital, os

processos educacionais passaram também a refletir os processos sociais de reprodução

segundo uma lógica global de um determinado sistema de produção. Afirma Emir Sader

(apud MÉSZÁROS, 2010: 16) que: “O enfraquecimento da educação pública, paralelo ao

crescimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a socialização se deslocou

da escola para a mídia, a publicidade e o consumo”.

O estímulo à passividade e ao entretenimento supérfluo propagados pelos veículos de

comunicação hegemônicos se torna a combinação perfeita para a segurança da perpetuação da

reprodução social burguesa.

Se, por um lado, a passividade ensinada nas escolas, na imprensa e nos núcleos

familiares ignoram a prática social e garantem a camuflagem da irracionalidade por detrás da

desigualdade gerada pela propriedade privada; por outro, a indústria do entretenimento e a

mídia se responsabilizam pela criação de desejos artificiais e pela conformação acrítica do

ócio, desenvolvendo uma relação entre persuador e persuadido. Esclarece Meszáros (2008:

30) que “a exploração capitalista do ‘tempo dedicado ao lazer’ levada hoje à perfeição sob o

domínio do ‘espírito comercial’ mais atualizado, parecia ser a solução, sem que se alterasse

minimamente o núcleo alienante do sistema”.

O caráter manipulador da imprensa na criação de desejos artificiais e na dissuasão da

opinião pública, dominada por uma elite com motivos para ser desonesta com o povo, foi

identificado por Noam Chomsky (2006: 222) como um produto histórico desde a Primeira

Guerra Mundial sob a alcunha de “consenso fabricado”. A expressão serve para indicar que a

que desejam dos produtos da mídia e subvertendo os valores originalmente pretendidos. Por sua vez, alguns

desses co-arquitetos, recorrendo aos movimentos populares e às culturas de oposição, podem tornar-se, eles

próprios, produtores da mídia radical e, então, expor-se ao risco dos larápios de texto.”.

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29

censura estatal e o uso da violência contra o povo são dispensados quando a comunidade

empresarial, que exerce o domínio sobre a imprensa escrita e sobre o serviço público de

radiodifusão na maioria dos países democráticos, é unânime quanto ao fato de que alguns

pensamentos devem ser eliminados da esfera social.

Segundo Chomsky, a disseminação do controle da sociedade pela propaganda no

século XX se deu primeiramente pelas agências de propaganda do Estado, que experimentou

o auge da perversão através das experiências realizadas por Joseph Goebbels, o ministro da

propaganda da Alemanha nazista, e depois pelas grandes indústrias de relações públicas,

publicidade e cultura de massa. Como observa Losurdo (2004: 299), Goebbels:

estava plenamente convencido da eficácia de uma propaganda baseada no modelo de

publicidade comercial, da repetição sistemática e destituída de argumentos racionais.

No entanto, desenvolvendo-se entre dois conflitos mundiais e na preparação de uma

guerra total, a propaganda nazista (e fascista) não pode deixar de ser imediata e

explicitamente ideológica. E, ao contrário, é no âmbito do bonapartismo soft e dos

períodos de normalidade que a propaganda política tende não só a se modelar de

acordo com a publicidade comercial, mas a se identificar com ela40

.

O impacto da propaganda sobre a opinião pública durante a Segunda Guerra Mundial

recebeu os holofotes dos doutrinadores da moderna democracia política. Pouco depois do fim

da guerra, Edward Bernays publicou um manual da indústria de Relações Públicas, em que

sustentava ser o consentimento manipulado pela “minoria inteligente” a base do processo

democrático.41

Dessa forma, a existência de uma subordinação voluntária ao poder, inclusive à mídia,

nas sociedades contemporâneas, foi analisada por Chomsky. Esse fenômeno remete a uma

crítica à democracia representativa, referindo-se à problematização de uma “submissão

implícita” dos governados a um pequeno grupo de governantes, já traçada há mais de dois

séculos por David Hume.

Chomsky polemiza a submissão do povo ao “clero secular”, termo batizado pelo

filósofo Isaiah Berlim para designar o grupo formado por intelectuais da elite que apostam

num sistema de democracia no qual as decisões devem ser tomadas pelos detentores da

“sabedoria”. Conclui o autor que, quanto mais livre um governo, maior será a tarefa do “clero

40

Losurdo utiliza o termo “bonapartismo soft” para se referir à incorporação da democracia burguesa com

elementos do bonapartismo que veio a caracterizar o cenário político do século XX. A base teórica desse

regime, fixado no fortalecimento do Executivo, encontra-se na tradição liberal de discriminação de amplas

classes sociais da participação política.

41 Chomsky, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 226.

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secular” de limitar ao máximo a liberdade de agir do povo, que apresenta considerável poder

sobre uma superpotência.42

Em um ensaio publicado no Brasil, Chomsky (1996) questiona a premissa maior do

pensamento progressista moderno de que o povo deve se submeter, ou seja, nas sociedades

democráticas os governados possuem apenas o direito ao consentimento. O pensamento de

Chomsky rebate a teoria dos ideólogos liberais da esfera política que considera o público

como meros espectadores e não como participantes e continuam a disseminar a teoria da

massa “criança”, que necessita ser governada para o seu “bem”, bem como a problemática da

distinção entre Estado e sociedade civil idealizada pela doutrina liberal.43

A democracia

representativa da concepção liberal de política e economia é um problema pois, de acordo

com Chomsky (2006: 230):

o regime neoliberal solapa a soberania popular, transferindo o poder decisório dos

governos nacionais para um 'parlamento virtual' de investidores e credores,

organizados principalmente em instituições corporativas. Esse parlamento virtual

pode brandir o 'poder de veto' contra o planejamento governamental, por meio da

fuga de capital e de ataques à moeda, graças à liberalização dos fluxos financeiros,

que fez parte do sistema de Bretton Woods, instituído em 1944.

Assim, constatamos que, uma vez que o moderno capitalismo monopolista acentua as

contradições das categorias de liberdade e igualdade, o controle e a manipulação das massas

se fazem cada vez mais presentes, tanto quanto necessários, para a omissão da crise de

legitimidade dessa democracia representativa. Por uma via, requer um Estado capaz de

reprimir e desarticular a sociedade civil; pela outra, depende do poder sobre os meios de

comunicação para a propagação da ideologia dominante.

Desse modo, os grupos concentrados, amparados por legislações, ora sem eficácia

jurídica, ora protetoras dos interesses hegemônicos, são fortalecidos pela carência de pressão

popular para coibir a formação de monopólios e garantir o direito à comunicação, reduzindo o

potencial democrático das tecnologias de comunicação e omitindo a guerra travada pelo

controle global dos conteúdos informativos e de entretenimento.

Podemos dizer, portanto, que assistimos à descaracterização da liberdade de expressão

cidadã em favor de uma liberdade de expressão comercial, em outros termos, a

42 A visão daqueles que creem nesse modelo de democracia representativa remete às ideias defendidas por

Locke e Benjamin Constant que compartilhavam o pensamento de que os indivíduos das classes

trabalhadoras são como crianças, sem tempo e habilidade para se aculturalizar (Losurdo, 1998: 212).

43 Chomsky, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 225-230.

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31

mercantilização da esfera pública.44

Após a consolidação do capitalismo imperialista rumamos

à consolidação da dependência econômica, social e cultural do capital, representado pelo

mercado global.

À medida em que a emancipação social está relacionada com uma organização política

através de uma comunicação democrática, certamente o caminho para a conquista de uma

democracia real passa pela desvinculação entre a mídia e o sistema político, o sistema

produtivo e a publicidade comercial.45

Por fim, diante do reconhecimento histórico de que os direitos civis e sociais não

foram meras concessões do regime liberal46

, mas conquistas das lutas populares, a contragosto

dos ideólogos da moderna democracia burguesa, especialmente no que diz respeito ao direito

à representação das classes subalternas, compreendemos também que os meios de

comunicação contra-hegemônicos representam um veículo essencial de manifestação popular

para a construção de novas formas de participação e democracia. E ainda mais do que isso, a

partir do momento em que o sistema democrático liberal não é capaz de demonstrar a sua

legitimidade, as suas instituições devem ser submetidas ao controle do povo.

Por outro lado, para que as garantias formais da consulta ao povo sejam

legitimadoras, é preciso não só que se façam sem as restrições capciosas de leis

cheias de manhas, como também permitam o trabalho de conscientização popular

pelos líderes progressistas, sem restrições de pessoas e correntes, no acesso livre aos

meio de comunicação e organização de massas. Isso é uma questão jurídica também.

(LYRA FILHO, 1987: 170).

Nesse sentido, a comunicação deve ser compreendida como meio constitutivo da

condição humana. A soberania da comunicação midiática hegemônica, portanto, não pode

prevalecer no enfoque do debate, sob o risco de assumirmos, bem como a análise liberal, a

condição de inferioridade da comunicação humana, em que a alienação, produto da

racionalidade mercantil, deturpa a consciência social. Em resumo, não se trata apenas de

denunciarmos a dominação institucional e o poder do mercado da comunicação social. A fim

de avançarmos na análise desse poder que tem a pretensão de ser hegemônico, necessário

considerar o poder da comunicação contra-hegemônica para a emancipação social.

44 SEL, Susana. Politicas de comunicacion en el capitalismo contemporaneo: America Latina y sus

encrucijadas/ coord. Susana Sel ; Daniel Hernandez ... et al. Buenos Aires: CLACSO, 2010, p. 9.

45 ZOLO, Danilo. apud LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do

sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, p. 329.

46 Adverte Chaui (2010: 111) que: “É evidente que a classe dominante moderna, liberal ou conservadora,

jamais foi nem pode ser democrática, e, se as democracias fizeram um caminho histórico, isto se deve

justamente às lutas populares pelos direitos que, uma vez declarados, precisam ser reconhecidos e

respeitados. A luta popular pelos direitos e pela criação de novos direitos tem sido a história da democracia

moderna”.

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3. AS BARREIRAS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA

RADIODIFUSÃO NO BRASIL APÓS A DITADURA MILITAR

Desde que a democracia burguesa47

abandonou seus ideais do liberalismo clássico e se

desintegrou para um processo (des)emancipatório de uma democracia baseada na

representação de uma classe dominante, na apropriação do espaço público pelo privado e na

dicotomia entre sociedade civil e Estado, fundamentados no direito à propriedade privada,

assistimos ao esvaziamento da politização e da referência ao poder popular que, como vimos,

não ocorreu apenas por determinismos econômicos.

Assim, por concepção liberal da democracia nos referimos a um modelo de

representação política baseado em uma superestrutura jurídica arquitetada sob a igualdade e a

liberdade formal abstrata de uma universalidade de indivíduos em que a estrutura de poder

reflete a sua estrutura econômica.

Como foi exposto no capítulo precedente, a abstração se tornou uma característica das

ordenações jurídico-formais contemporâneas. Especialmente nos anos que seguiram à

Segunda Guerra Mundial, a decadente democracia burguesa encontrou, na “ilusão jurídica” da

legislação dos direitos humanos e nas Constituições liberais, uma maneira de atender, em

nível abstrato, aos anseios da luta popular por direitos sociais e econômicos, sem a

necessidade de tocar na questão da concentração da propriedade e na questão social como

forma de opressão decorrente de uma estrutura econômica desigual.48

A questão social foi negligenciada pela ideologia liberal, a qual defende a ideia de que

os direitos institucionalizados são mais essenciais para a diminuição das desigualdades do que

a participação ativa dos sujeitos na vida política.49

No campo jurídico, essa ideologia

dominante se expressa pelo pragmatismo positivista ou iusnaturalismo metafísico baseados no

estímulo à institucionalização de direitos formais, ainda que continue sem solução a questão

47 De acordo com Ramos (2007: 32): “A idéia ocidental de democracia é semente que começou a germinar nos

países capitalistas centrais há pouco mais de 200 anos, na esteira do pensamento iluminista e das revoluções

burguesas na Inglaterra e França, e da guerra de independência dos Estados Unidos. Nesses três cenários

formou-se o conceito moderno de democracia representativa, republicana ou monárquica, parlamentar ou

presidencialista, politicamente liberal e economicamente capitalista.”.

48 Lyra Filho (1987: 169) recorda que: “De qualquer maneira, em sistema capitalista ou socialista, a questão

classista não esgota a problemática do Direito: permanecem aspectos de opressão dos grupos, cujos Direitos

Humanos são postergados, por normas, inclusive legais. Já citamos a questão das raças, religiões, sexos - que

hoje preocupam os juristas do marxismo não dogmático”.

49 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 72.

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em torno da efetivação desses direitos, em detrimento da criação de alternativas a esse estado

das coisas com base na crítica ao modelo socioeconômico e na participação do cidadão na

esfera pública50

.

A conversão da política numa prática social específica atingiu a culminância na

teoria política liberal, pois tanto impunha o controle da incorporação/exclusão da

classe operária no exercício do poder político capitalista. A ideia de cidadania ficava

à porta da fábrica para que a política das relações de produção não se reconhecesse

nas relações de produção política. (SANTOS, 1988: 74).

Para Mészáros (2008: 159), uma vez que esse sistema não é capaz de garantir

liberdade e igualdade real para todos os indivíduos, “(...) essa insistência sobre 'os direitos do

homem' não é mais que um postulado legalista-formal e, em última instância, vazio”.

Embora a relação entre os direitos fundamentais e a liberdade real tenha sido teorizada

inclusive por autores liberais, como Bobbio e Arendt, não pode ser compreendida sem a

tradição cultural e política que propõe a superação da divisão de classes. No plano jurídico

internacional acontece que, por meio de marcos legais protetores de todas as formas de

dignidade humana, cria-se a ilusão de estarmos evoluindo para uma democracia substancial

global, enquanto no mundo real verificamos algo mais parecido com uma democracia formal

constantemente ameaçada pelo estado de exceção, para citarmos um estado de organização

jurídico-social extensamente trabalhado por Giorgio Agambem51

.

Assim, em nossas sociedades, a lei e o Estado, que devem proteger a propriedade

privada, porque esta é um direito do homem e do cidadão, só poderão defendê-la

contra os sem-propriedade, de sorte que a defesa do direito de alguns significa a

coerção, a opressão, a repressão e a violência sobre outros, no caso sobre a maioria.

(CHAUI, 2010: 101)

Se ainda há aqueles que resistem em reconhecer que essa relação de opressão, narrada

por Chaui, decorre, principalmente, da exploração de uma classe sobre a outra por meio do

trabalho, uma coisa é certa, não é uma estrutura que pode a longo prazo se manter.

50 Alguma relação entre os direitos formais e a sociedade da aparência, esta ensaiada pela nobreza há séculos

atrás como pode ser constatado pela leitura da obra Lazarillo de Tormes, demonstra como muitas vezes o ser

humano busca meios de maquiar a realidade, difícil de digerir, através de mecanismos superficiais. Na

analogia com o ordenamento jurídico formal e a sociedade contemporânea, podemos dizer que

frequentemente a institucionalização dos direitos humanos na forma de um papel torna menos aparente a

desigualdade desse sistema e a ausência de concretização de direitos materiais.

51 Nesse mesmo sentido, Losurdo (2004: 327) denuncia que: “A teoria política mais recente concebe a

democracia, precisamente, como a investidura competitiva de um líder ao qual são concedidos poderes tão

amplos que ele pode autonomamente envolver todo o país em aventuras bélicas. O bonapartismo soft se

desenvolveu tendo particularmente presente o estado de exceção, por ocasião do qual o líder se transforma

tranquilamente num ditador, pelo menos no sentido romano do termo”.

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A crise de legitimidade, agravada pela crise financeira, por que passa a atual

democracia, segundo a qual uma maioria, de que nos fala Chaui no trecho acima citado,

concede livremente o seu poder político a uma minoria detentora do “conhecimento” que se

intitula competente para as decisões da esfera pública, se explica pela agudização das

contradições socioeconômicas que coloca em cheque esse modelo de representatividade

política.

A concepção liberal desse modelo político trata, portanto, de omitir que a democracia

representativa de uma realidade social e econômica injusta, na qual o direito de propriedade

prevalece sobre os demais direitos, apenas perpetua um modelo de desigualdade e

impossibilita a realização dos ideais de liberdade e igualdade para toda a coletividade.52

Dessa maneira, conforme Mészáros (2010: 490), a questão da igualdade real, teorizada

por Babeuf e Buonarte no século XVIII, que se desenvolveu nas categorias de liberdade e de

autonomia pessoal real53

na teoria marxiana, se mostra incompatível com as teorias liberais, já

que estas não admitem a superação histórica da exploração de classe.

Para endossar o pensamento liberal, consciente ou inconscientemente, os detentores

dos meios de produção espiritual, como é o caso do monopólio do mass media, na tentativa de

racionalizar o que é irracional, qual seja a oposição da sociedade entre aqueles que possuem

propriedade e os que não a possuem, expandem a sua ideologia apologética fundamentada na

normalização das contradições socioeconômicas e no comportamento apolítico da sociedade.

Essa forma liberal de organização sociopolítica fantasiada de democracia, que cada

vez mais incorpora características do bonapartismo soft54

, não apenas distancia as classes

populares e movimentos sociais do controle social dos mecanismos de formação da opinião

pública; como também faz com que o capital, representado pelos proprietários dos meios de

comunicação de massa, dite as regras sobre a esfera política e cultural.

52 Não se pretende aqui inferir que a Justiça Social será alcançada apenas com o aniquilamento do regime de

propriedade privada. Como nos ensina Lyra Filho (1987: 170) trata-se de um processo histórico em que a

carga jurídica deve ser responsável por organizar e articular os princípios básicos da libertação do homem:

“De toda sorte, a garantia democrática é parte do problema da realização do Direito, e não basta substituir a

disciplina legal da propriedade para chegar ao socialismo autêntico: resta saber que posição real têm as

classes na determinação do sistema, em que medida os trabalhadores efetivamente comandam o processo e

que canais políticos ficam abertos para evitar o enrijecimento do Estado e o domínio burocrático-policial da

estrutura por um conjunto de agentes repressores”.

53 Mészáros (2008: 164) esclarece que “Marx se preocupa com as condições da liberdade pessoal, entendida

como um controle significativo das relações interindividuais pelos próprios indivíduos, e totalmente em

oposição às condições determinadas de existência que escapam a sua vontade”.

54 Ver seção 2.4.

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35

No entanto, é inegável que, como todo o meio que se pretenda hegemônico, o espaço

eletrônico de comunicação de massa55

, sobre o qual vamos nos debruçar a seguir, também fez

emergir novas formas de resistência e de contra-hegemonia por meio das inter-relações

estabelecidas com esses novos instrumentos de comunicação, motivo pelo qual seria

equivocado afirmar que o capital sempre domina todas os aspectos da convivência humana.

No Brasil, em 1963, antes mesmo da consolidação da televisão como meio de

comunicação hegemônico em nossa sociedade, Fernando de Azevedo (apud RAMOS, 2006:

49) afirmou, em sua obra A Cultura Brasileira, que “entre os principais elementos de difusão

e de conservação da cultura, os que mais concorreram nestes últimos anos, no Brasil, foram

incontestavelmente o cinema e o rádio, que exercem por toda parte profundas influências no

sistema de relações humanas.” E ainda ressaltou que:

De todas as invenções do espírito científico, o cinema e o rádio não são apenas as

mais belas, as mais carregadas de espírito poético e as que abrem novos horizontes à

arte e ao pensamento. Poderosos instrumentos educativos e culturais, de informação,

de propaganda e de ensino, fatores de educação popular, de primeira ordem, pelo seu

extraordinário poder de sugestão, desempenham um papel tão importante que a sua

influência não só não se pode comparar, mas já se considera superior à do jornal

diário, sobretudo em países onde são ainda numerosos os iletrados. (AZEVEDO

apud RAMOS, 2006: 50).

Deixaremos para tratar mais detalhadamente da insurgência da cultura popular

brasileira através do rádio, cinema e televisão em uma próxima oportunidade, por ora, nos

restringiremos a observar como a crise de legitimidade das democracias contemporâneas,

fundamentadas na concepção liberal da democracia, influencia as relações de poder no campo

da radiodifusão no Brasil e faz emergir um discurso contra-hegemônico, que afirma o direito

humano à comunicação. Tendo como referência o período histórico posterior ao regime

militar, buscamos refletir também sobre as dificuldades para a concretização do direito à

comunicação na sociedade brasileira que, em última instância, impedem a livre formação da

opinião pública e, consequentemente, a viabilidade do próprio Estado democrático de direito.

55 Assim como Ramos (in Chagas, 2006: 63), quando nos referimos aqui à comunicação social eletrônica

queremos indicar o rádio, a televisão, e os novos meios de tecnologia digital de transmissão de sinais,

previstos na Constituição Federal, no Capítulo da Comunicação Social, arts. 220 a 224.

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3.1. A história da introdução do direito à comunicação

na Constituição Federal Brasileira de 1988 como

afirmação do Estado Democrático de Direito

O marco histórico da Revolução de 1789, que deu origem à Constituição francesa de

1793, foi o precursor das Constituições liberais contemporâneas que refletem os interesses de

uma democracia de classe, ao mesmo tempo em que se pretendem antidiferencialistas e

universalistas, como conjectura Lukács (1980: 43):

A democracia burguesa data da constituição francesa de 1793, que foi a sua mais

elevada e radical expressão. O princípio que a define é a divisão do homem em

Cidadão de vida pública e Burguês da vida privada - o primeiro agraciado com

direitos políticos universais, o segundo expressando interesses econômicos

particulares e desiguais.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, promulgada com 245 artigos, enquanto

Constituição liberal, não pôde deixar de ser influenciada pela trajetória (des)emancipatória da

democracia burguesa. Como ensina o jurista Dalmo Dallari (2010), uma análise histórica da

nossa “Carta Magna” demonstra que ela foi inspirada, primordialmente, nas duas grandes

revoluções burguesas do século XVIII, quais sejam, a independência das colônias inglesas e a

Revolução Francesa.

A grande influência da Constituição francesa na construção da nossa Constituição

“humanista” de 1988 veio a confirmar a consagração do direito à propriedade (“Burguês de

vida privada”), como o seu próprio fundamento, ao mesmo tempo em que estabeleceu a

justiça social como finalidade do Estado democrático de direito, fundamentada na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão (“Cidadão de vida pública”). Como explica Chaui

(2010: 94), o ato de declarar direitos é próprio da modernidade e:

significa, em primeiro lugar, que não é um fato óbvio para todos os homens que eles

são portadores de direitos e, por outro, que não é um fato óbvio que tais direitos

devam ser reconhecidos por todos. Em outras palavras, a existência da divisão social

(por exemplo, os grandes e o povo em Maquiavel, as classes sociais em Marx)

permite supor que alguns possuem direitos e outro, não. A declaração de direitos

inscreve os direitos no social e no político, afirma sua origem social e política e se

apresenta como objeto que pede o reconhecimento de todos, exigindo o

consentimento social e político de todos. Esse reconhecimento e esse consentimento

dão aos direitos a condição e a dimensão de direitos universais.

A nossa Constituição “cidadã”, que deve receber os méritos pelo avanço na questão

ambiental e no reconhecimento de direitos difusos, após ter sofrido mais de sessenta emendas

constitucionais desde a sua promulgação, especialmente no período de

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desconstitucionalização que norteou a política entreguista do governo de Fernando Henrique

Cardoso, foi qualificada por Dallari como típica de um Estado de mera legalidade formal,

para ser otimista, ou de um Estado à beira de uma ditadura constitucional, sendo pessimista56

.

Com uma cidadania voltada para os interesses da elite no poder de cada época, que

continua a combater com violência os exemplos de resistência das classes populares, a

efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição de 1988 foi colocada em segundo

plano em detrimento de um modelo de políticas públicas de caráter favoritista. O caráter

privado da esfera pública, segundo Meksenas (2002: 57), é uma peculiaridade da sociedade

brasileira, pois:

Enquanto na Europa burguesa e revolucionária os direitos se afirmavam pela

distinção entre o público e o privado, como bem assinalou Marx, no Brasil os

direitos são subsumidos na posse da propriedade que subverte a relação do público

com o privado, produzindo a administração do bem comum como um bem de

família.

Se de um lado a conquista popular dos direitos sociais integrados na Constituição

Federal exigem um redimensionamento da participação cidadã nos espaços públicos; do

outro, uma sociedade com raízes no autoritarismo impede o exercício dessa cidadania de

forma democrática.

A grande dificuldade do exercício da cidadania no Brasil, como aponta Chaui (2010:

105), encontra-se na carga autoritária que se estabeleceu na hierarquia social desde os tempos

em que o “senhor (de escravos)-cidadão” consolidou no imaginário coletivo a ideia de uma

cidadania como privilégio da classe dominante. Assim, as relações de favoritismos e

agraciamentos se estendem para dentro e fora do Estado, dando origem a um autoritarismo

político e social.

A violência com que se trata a questão social, a reforma agrária não consolidada e

outros exemplos da desigualdade estrutural que aflige a sociedade brasileira, segundo Chaui

(2010: 111): “torna impossível a existência de cidadãos, torna inexistente a figura do poder e

da lei exigidos como pressupostos da Declaração dos Direitos Humanos; consequentemente,

no Brasil, ocorre uma espécie de impossibilidade estrutural para o estabelecimento, o respeito

e a manutenção dos direitos humanos”.

No campo da comunicação social, a influência das relações patrimoniais e da

apropriação do serviço público de radiodifusão pelo setor privado no Brasil é também um fato

56 ARANTES, Paulo Eduardo. 1964, O ano que não terminou. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir

(orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010, p. 213.

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histórico abordado por Chaui (2010: 106). De acordo com a filosofa, na sociedade brasileira

“a esfera pública nunca chega a constituir-se como pública, definida sempre e imediatamente

pelas exigências do espaço privado, de sorte que a vontade e o arbítrio são as marcas dos

governos e das instituições 'públicas'”.

A concentração dos meios de comunicação de massa tem sido uma tendência mundial,

como demonstra Matta (2011), devido à “incorporação do capital financeiro, gestão

empresarial, poder dos acionistas e integração das indústrias das telecomunicações com os

meios de cultura”. A peculiaridade da sociedade brasileira nesse quesito está no fato de que,

nela, além dos fatores descritos por Matta, o direito à comunicação na radiodifusão é

usurpado por uma oligarquia de cerca de oito famílias que, há décadas, são detentoras do

monopólio da informação e do entretenimento na comunicação social no país.57

Os “coronéis” da mídia se beneficiam das legislações ultrapassadas e da omissão

inconstitucional do Congresso Nacional na elaboração de uma legislação específica sobre o

direito de resposta, a proibição de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social

e a produção e programação58

exibida pelos veículos, previstos na Constituição Federal.59

(...) por meio do controle oligárquico dos meios de comunicação, a classe dominante

opera para manter a hegemonia, erguendo obstáculos à constituição de uma esfera

pública das opiniões como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e

classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. Os mass media monopolizam a

informação, o consenso é confundido com a unanimidade, e a discordância é posta

como ignorância ou atraso. (CHAUI, 2010: 138)

Isso ocorre principalmente devido à estreita relação entre os proprietários dos meios e

o lobby político, bem como por conta das legislações protetoras dos interesses dominantes,

como trataremos em tópico posterior.

57 Cf. Gonçalves (2006: 32): “A maioria absoluta do sistema de mídia no Brasil é controlado por oito grupos

(Globo, RBS, Abril, Bandeirantes, SBT, Record, Folha, Estado)”.

58 Moraes (2007: 268) afirma que: “quase nada do que prevê a Constituição em relação aos princípios que

devem ser respeitados pela programação do rádio e da TV viabilizou-se em leis. O tema da regionalização da

programação, por exemplo, é objeto de projeto de lei que tramita há mais de dez anos na Câmara dos

Deputados”. Tal projeto de lei é o PL 256/91, de autoria da deputada Jandira Feghali (PC do B/RJ), e que

após aprovação recente na Câmara dos Deputados tramita agora no Senado Federal (PL 59/03).

59 A Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão, ADO n° 9, proposta pelo Professor Fábio Konder

Comparato em 2010 através dos legitimados FEDERAÇÃO INTERESTADUAL DOS TRABALHADORES

EM EMPRESAS DE RADIODIFUSÃO E TELEVISÃO – FITERT e a FEDERAÇÃO NACIONAL DOS

JORNALISTAS – FENAJ, foi arquivada pela ministra Ellen Grace em decisão monocrática sem a análise do

mérito. Esse instrumento jurídico foi utilizado com o objetivo de que o Supremo Tribunal Federal reconheça

a omissão inconstitucional dos congressistas na elaboração de lei referente aos artigos 5°, inciso V; 211; 220,

§3°, II; 220, §5°; 222, §3°, todos da Constituição Federal, na tentativa de conferir eficácia aos artigos da

Constituição que garantem o direito à comunicação. A decisão pelo arquivamento e o acompanhamento do

recurso interposto por Comparato podem ser encontrados em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo

/verProcessoAndamento.aspnumero=9&classe=ADO&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulga

mento=M> . Acesso em 04 de fevereiro de 2012.

Page 39: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

39

Por ora, uma retrospectiva histórica do “direito à comunicação” no âmbito

internacional nos mostra que tal expressão foi primeiramente mencionada pelo francês Jean

d'Arcy em 1969 ao conferir a necessidade de maior amplitude ao art. 19 da Declaração

Universal dos Direitos do Homem60

que reconhece apenas o direito do homem à

informação61

:

Artigo 19. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este

direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e

transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de

fronteira.

Referências ao direito à comunicação também já estavam presentes anteriormente nas

leis de imprensa da Baviera e de Hesse desde 1949, bem como na Constituição Federal da

Alemanha, no mesmo ano, que em seu art. 5°, 1, estabeleceu que “todos têm direito de

expressar e divulgar livremente o seu pensamento por meio da palavra, por escrito e pela

imagem, bem como de se informar, sem impedimentos, em fontes de acesso geral”.62

Matta (2011) relembra que: “no processo de afirmação dos direitos à comunicação

como parte dos direitos humanos, a ciência jurídica realizou uma síntese que considera a

liberdade de expressão um direito de mão dupla: individual e social”.

A Comissão Internacional de Estudo do Problema da Comunicação da Unesco

(Comissão MacBride) lançou relatório em 1980, denominado “Um Mundo e Muitas Vozes -

comunicação e informação na nossa época”, em que reconheceu o direito à comunicação

como um direito individual e coletivo de maior importância para o processo democrático.

Em 2011, a Comissão MacBride divulgou novo relatório sobre o assunto em que

ofereceu uma perspectiva do que a organização entende por democratização dos meios de

comunicação:

A ideia de uma mídia livre, independente, plural e diversificada passa a se fixar

como o ideal a ser alcançado para que o direito à liberdade de buscar, difundir e

receber informações possa ser realizado em sua plenitude. Encontrar o formato

adequado da participação do Estado Nacional na equação que busca fomentar

60 Chaui (2010: 95) ao se referir à coincidência que costuma cercar a declaração de direitos e situações

revolucionárias, como por exemplo as revoluções inglesas de 1640 e 1688, a independência norte-americana,

a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917, adverte que também a Declaração Universal

dos Direitos Humanos de 1948 confirma o fato de que “as declarações dos direitos ocorrem nos momentos de

profunda transformação social e política, quando os sujeitos sociopolíticos têm consciência de que estão

criando uma sociedade nova ou defendendo a sociedade existente contra a ameaça de sua extinção”.

61 GONÇALVES, Bruno Lupion. Marcos Regulatórios e Democratização da Mídia: O Direito de Antena.

Monografia apresentada para obtenção do diploma de graduação em Direito na Universidade de São Paulo.

São Paulo, 2006, p. 71.

62 LOPES, Vera Maria de Oliveira Nusdeo. O direito à informação e as concessões de rádio e televisão. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 184.

Page 40: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

40

sistemas midiáticos com essas características, rapidamente, configura-se em uma das

peças mais relevantes desse quebra-cabeças. (MENDEL, 2011: 5).

No mesmo ano, a UNESCO lançou também um estudo que teve como temática a

questão da regulação da mídia e da liberdade de expressão no Brasil.63

Em poucas palavras,

reconhece a importância da elaboração de um marco regulatório que atribua uma realidade

democrática à comunicação social eletrônica e possibilite a entrada de novos competidores.

A importância da ampla garantia à liberdade de expressão e direito à informação para a

democracia foi reconhecida pela Assembleia Nacional Constituinte da Carta de 88, como pode

ser constatado pelo relatório do Anteprojeto da Carta Maior:

A Comunicação social é essencial na construção das formas pelas quais a sociedade,

como um todo, pensa a respeito de si mesma, define seus projetos estratégicos,

estabelece seus padrões morais, éticos, políticos, etc (...) Do acesso à informação, de

seu processamento pelos mais variados meios, de sua distribuição eficiente depende

toda e qualquer decisão de grupos ou instituições sociais na sociedade moderna. (...)

A liberdade de informar tem sua contrapartida na liberdade de ser informado.

(Relatório e Anteprojeto apud GONÇALVES, 2006: 52).

No entanto, o direito à comunicação que, segundo Farias (apud LIMA FILHO, 2005:

2), compreende o direito de informar, o direito de ser informado e o direito de se informar,

não foi, a princípio, reconhecido pela Constituição de 1988. Segundo Matta (2011), o direito à

comunicação:

Implica o direito a difundir informação e o direito dos demais cidadãos em recebê-la

sem qualquer discriminação ou censura. Não se trata de um direito declamatório, e

sim de contar com os meios técnicos para seu exercício. Supõe uma dimensão do

direito individual e coletivo que obriga o Estado a promovê-lo - justamente porque

se trata de um direito que possibilita a deliberação pública, a expressão das

diferenças e o questionamento da aparente neutralidade.

A introdução do direito à comunicação no ordenamento jurídico pátrio, pode-se dizer,

deu-se apenas em 1992 com a ratificação pelo Estado brasileiro do Pacto de São José da Costa

Rica. No período, o presidente Itamar Franco foi o responsável pela promulgação do Decreto

Legislativo n° 27/92. O referido pacto, concebido na Convenção Americana de Direitos

Humanos em 1969, foi importante marco legal para a comunicação social a nível

internacional. Em seu art. 13, §§1° e 5°, institui que:

Artigo 13

Liberdade de pensamento e de expressão

63 O estudo é composto por uma série de análises, denominado “Debates em Comunicação e Informação”, e foi

dividido em três volumes: “O ambiente regulatório para a radiofusão: uma pesquisa de melhores práticas para

os atores-chave brasileiros”, “Liberdade de expressão e regulação da radiofusão” e “A importância da

autorregulação da mídia para a liberdade de expressão”.

Page 41: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

41

§1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito

inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer

natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma

impressa ou artística ou por qualquer meio de sua escolha.

§5. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais

como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de

freqüências radioelétrica ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de

informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a

circulação de idéias e opiniões.

A prevalência, no entanto, de uma estrutura desigual econômica e de representação

classista da sociedade civil, em que os direitos são postulados formais abstratos, impedem que

esses direitos sejam concretamente exercidos, de modo que a atual luta dos movimentos

sociais pela democratização dos meios enfrenta as dificuldades na aprovação de um marco

regulatório compatível com os dispositivos da Constituição Federal no campo do direito à

comunicação, como abordaremos mais à frente.

Entendemos que a ineficácia do dispositivo protetor desse direito no ordenamento

jurídico brasileiro e o problema da concentração dos meios de comunicação estão diretamente

relacionados com a concepção liberal da democracia. Por essa razão, a efetivação do direito à

comunicação, mesmo quando previsto na Constituição, fica prejudicada pelo caráter liberal da

democracia que reflete nos marcos regulatórios dos meios de comunicação nacionais e

internacionais, limitando-se a estabelecer o direito à comunicação como mais um direito

formal e não preveem, em sua maioria, formas democráticas de acesso popular ao espectro

eletromagnético.

A ótica liberal, que por depender da realização de uma concreta liberdade e igualdade

para todos os indivíduos sucumbe a justiça social a uma folha de papel, pretende que o direito

humano à comunicação, e portanto o direito à liberdade de expressão, seja o direito humano

daqueles que são os detentores da propriedade dos meios de comunicação. Nas palavras de

Chomsky (1996):

A democracia não é uma simples questão de sim ou não; ela tem muitas dimensões.

Tomemos a questão da igualdade. No estudo que fundou a teoria democrática,

Aristóteles argumentou que um Estado democrático deve ser ''uma comunidade de

iguais, que visa a melhor vida possível'' para todos. A democracia terá graves falhas

se não forem eliminados os extremos de riqueza e pobreza e se todos não puderem

participar em termos iguais. Uma democracia deve assegurar a ''prosperidade

duradoura dos pobres'', por meio da distribuição de ''verbas públicas''. Ela deve ser

um Estado de bem-estar social. Esse conceito persiste através das revoluções

democráticas modernas e do liberalismo clássico. Em seu célebre estudo sobre a

democracia na América, Tocqueville enfatizou a importância crucial da igualdade de

condições e alertou que a democracia não sobreviveria se a ''aristocracia

manufatureira'' ganhasse poder demais, como ela mais tarde fez, ultrapassando de

longe seus piores temores. Um século mais tarde, o mais importante filósofo social

dos EUA, John Dewey, aplicou o mesmo raciocínio tradicional à era contemporânea.

Page 42: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

42

Argumentou que não pode existir uma democracia real quando o país é governado

pelas ''empresas visando o lucro privado, por meio do controle privado dos bancos,

da terra e da indústria, reforçado pelo comando da imprensa, dos agentes de

imprensa e de outros meios de publicidade e propaganda''; ''quem detiver sua posse

governará a vida do país'', e a política será ''a sombra lançada sobre a sociedade

pelas grandes empresas''. Por razões semelhantes, o principal arquiteto do sistema

constitucional, James Madison, havia observado que ''sem um povo informado ou

que tenha meios para adquirir informação, um governo popular não passa de um

Prólogo a uma Farsa ou a uma Tragédia, ou possivelmente a ambas''. A CNBB

(Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) chegou à mesma conclusão alguns

anos atrás, quando pediu medidas para democratizar a mídia nacional para que ela

não funcione como instrumento de conglomerados privados ou do poder do

Estado.64

Do que foi visto até agora, observamos que a inscrição de direitos na Constituição,

como foi o caso da incorporação do direito à comunicação no ordenamento jurídico pátrio, é

importante instrumento da sociedade contra a tirania do capital e do Estado, mas não encerra a

discussão em torno da real democracia, uma vez que depende de uma ação afirmativa do

Estado (regulamentação e políticas públicas) e envolvimento da sociedade civil para a sua

concretização. Concluímos que a mera normatização não basta, uma vez que entre a produção

da lei e a sua aplicação existe um limbo tortuoso que a justiça, por si só, não é capaz de

sanar.65

64 CHOMSKY, Noam. Entrevista de Noam Chomsky ao jornal Folha de São Paulo em 1996, “A privatização

da democracia”. Tradução Clara Allain. Fonte:<

http://reocities.com/Athens/aegean/9837/chomskydemocraciabrasil.html> Acesso em 10 de setembro de

2011.

65 De acordo com Santos (1988: 74), “Só uma crítica paradigmática poderá conferir um sentido socialista e

autenticamente radical a estas questões. Para que tal crítica seja possível, são necessárias armas teóricas de

que por ora não dispomos. Daí que a frente cultural seja neste momento uma das mais decisivas para as

forças socialistas. É uma frente de muitas frentes que envolve a crítica de múltiplas categorias, distinções,

evidências de senso comum, postulados pseudocientíficos e largamente partilhados, que o paradigma do

progresso soube infiltrar no mais fundo do nosso processo de socialização. É por isso uma frente difícil, já

que os elementos operativos do discurso e da comunicação estão inscritos nas nossas estruturas mentais, são

“naturais” a nosso modo de pensar e é extremamente penoso pensar sem eles”.

Page 43: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

43

3.2. O embate entre empresariado e movimentos sociais

em torno da regulação66 da radiodifusão no Brasil a

partir da transição para o regime democrático

O tema da liberdade de expressão no sistema da radiodifusão tem cada vez mais

ganhado relevância perante os organismos nacionais e internacionais. Conta Matta (2011) que

no ano de 2007, a relatoria de liberdade de expressão da ONU recomendou aos Estados que

legislassem no sentido de garantir a existência de três setores de radiodifusão: privado,

público e comunitário sem fins lucrativos.

Em 2009, a Relatoria da Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de

Direitos Humanos incluiu em seu relatório um capítulo sobre radiodifusão e liberdade de

expressão. E no ano de 2010 o relatório abrangeu alguns critérios para a utilização livre e

plural do espectro eletromagnético. Na esfera global, a Relatoria Especial para a Liberdade de

Opinião e Expressão da ONU também introduziu a temática no segundo relatório apresentado

ao Conselho de Direitos Humanos. Afora isso, como já tratamos em tópico anterior, a Unesco

lançou diversos estudos sobre a regulação da mídia e liberdade de expressão, tendo inclusive

publicado no ano de 2011 uma série específica para o setor da radiodifusão brasileira.

No Brasil, desde a introdução do rádio e da TV na década de 20, o império midiático

mantém o seu controle no país, tratando de dissociar os setores favoráveis a sua

democratização, que se mobilizam desde a ditadura militar em torno da quebra dos

monopólios e do direito à comunicação.

O processo de democratização dos meios de comunicação trata, como não se pode

ignorar, de disputa política, que dependerá da mobilização popular para o seu sucesso. O

atraso brasileiro na legislação que concerne ao tema fica evidente quando comparada a países

desenvolvidos, como Inglaterra e Alemanha, países onde a existência de um órgão regulador é

fundamental para a garantia, ao menos, de um mercado de radiodifusão menos concentrado há

décadas.

66 Tomamos o sentido de regulação empregado por Ramos (in Chagas, 2006: 64) em seu artigo Crítica do

ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica brasileira: fragmentação política e

dispersão regulamentar, em que afirma que o conceito de regulação por ele utilizado “é convergente com o

conceito de regulação econômica, isto é, de ação do Estado sobre os mercados em favor de maior equilíbrio

entre oferta e demanda de produtos e serviços, mas dele se afasta por acentuar mais os aspectos políticos da

regulação, em especial as instâncias políticas reguladoras e o conjunto de normas a partir dos quais atuam”.

Page 44: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

44

Nos Estados Unidos, a preocupação no controle do abuso de poder econômico, deu

origem ao Communications Act em 1934, responsável por restringir a formação de

conglomerados da comunicação social em mais de um Estado, contando com a fiscalização da

Federal Communications Comission.

No entanto, críticos ao modelo de comunicação de massa norte-americano alertam

para um certo grau de manipulação social contida na regulação existente nos EUA. Herbert I.

Schiller (apud Santos e Silveira, 2007: 66), em 1973, apresentou cinco mitos centrais que

imperam no ideário liberal norte-americano no setor da comunicação social eletrônica:

a) o mito da individualidade e escolha pessoal, que tem a função de barrar a

organização social coletiva através da visão de que os interesses individuais superam

os interesses coletivos;

b) o mito da neutralidade do estado como intermediário entre sociedade e mercado,

que pressupõe a crença de que os governos em geral e as suas partes constituintes

(os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) são exclusivamente íntegros e

apartidários;

c) o mito da imutável natureza humana, que neutraliza questões políticas e

econômicas a partir de imagens totalitárias sobre a natureza humana. Por exemplo,

quando a programação televisiva mostra excessos de sensacionalismo, o faz porque

é isso que o público quer ver. Desta forma, a empresa se exime de qualquer

responsabilidade sobre toda influência social que possa ter;

d) o mito da ausência de conflito social, que difunde uma imagem unificada e

pacífica do american way of life;

e) o mito da pluralidade da mídia, baseado nos números de radiodifusores ou

programas sem destinar importância às características de similaridade entre eles.67

Tais críticas são importantes à medida em que a regulação do setor de radiodifusão e a

quebra de monopólios pode não significar democratização real do espectro eletromagnético,

questão que tem sido levantada ao longo desse trabalho.

O atraso brasileiro também sobressai quando comparado aos vizinhos latino-

americanos, como é o caso da Argentina68

. Em 10 de outubro de 2009 foi aprovada a

conhecida Lei de Meios, Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (Lei n° 26.522/09), em

substituição ao Decreto 22.285, sancionado em 1980 durante a ditadura militar argentina, que

foi reconhecida como um avanço pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu

67 Santos e Silveira (2007: 67) mencionam que a referência original desse texto é SCHILLER, Herbert I.

“Manipulation and the Packaged Consciouness”. In: The mind managers. Boston: Beacon Press, cap. 1, 1973.

p. 8-31, 192-193. Foi utilizada a versão apresentada no primeiro volume da coletânea The Political Economy

of Media, editada por Peter Gonding e Graham Murdock (412-437).

68 Carrano (2012) em entrevista com Natalia Vinelli narra a experiência do movimento piqueteiro na Argentina,

que surgiu na primeira década do século XXI, e conquistou um canal de televisão aberto para transmitir

programas junto aos trabalhadores da fábrica ocupada IMPA.

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45

relatório anual sobre liberdade de expressão declarou que: “essa reforma legislativa representa

um importante avanço em relação à situação anterior no país”.69

A nova lei de meios aprovada na Argentina contou com forte respaldo popular e com

realização de consulta pública sobre a sua elaboração e exigências. Trata de exemplo a ser

seguido em muitos aspectos, em especial no que toca à:

quebra dos monopólios e oligopólios ao determinar, por exemplo, que 'nenhum

operador terá permissão para fornecer serviços a mais de 35 por cento da população

do país' e que uma empresa concessionária de um canal aberto de TV não poderá ter

um canal a cabo na mesma localidade. (CAROS, 2011: 6).

Matta (2011) enfatiza que os principais objetivos da lei vigente na Argentina são:

“regular os serviços de comunicação audiovisual; garantir o direito universal de todos os

cidadãos de receber, difundir e pesquisar informações e opiniões; constituir-se como

verdadeiro pilar da democracia e promover a pluralidade, a diversidade e a efetiva liberdade

de expressão; colocar os meios a serviço do aprofundamento da participação democrática da

cidadania; desconcentrar e democratizar a propriedade dos meios; favorecer um federalismo

que fortaleça o local, proteja os bens culturais e defenda os trabalhadores e criadores pelo

fomento do acesso à informação e a conteúdos alternativos”.

No Brasil, como não poderia deixar de ser, o debate em torno da democratização do

sistema de radiodifusão é alvo de grande especulação econômica, e simbólica, do espaço

público. Como já ressaltamos, a confusão entre o espaço público e o privado na sociedade

brasileira favorece a ingerência do poder privado, de caráter oligárquico patrimonialista, no

domínio público. Matta (2011) revela que:

De acordo com o sociólogo Armand Mattelart, os processos atuais de concentração e

monopólio dos meios de comunicação são determinados pela incorporação do

capital financeiro, gestão empresarial, poder dos acionistas e integração das

indústrias das telecomunicações com os meios e a cultura. Essa integração de caráter

horizontal, vertical e multimídia constitui polos regionais e nacionais das indústrias

da cultura e da comunicação. As políticas estatais favorecem a construção de

grandes grupos nacionais de comunicação (Clarín, Televisa, Globo) capazes de

rivalizar com outros gigantes do mercado global e se inserir em outros âmbitos

financeiros.

Por isso, embora tanto os representantes do poder institucional quanto do poder

popular defendam a liberdade de expressão, cada um a sua forma, os latifundiários da

informação no país apresentam grande resistência quando o tema é a criação de um marco

regulatório das concessões e frequências de rádio e TV, já que isso pode significar a perda de

69 MATTA, Maria Pía. Mídia e democracia na América Latina. Artigo publicado no Le Monde Diplomatique

Brasil, Ano 5, número 49, Agosto de 2011.

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46

grande parte de seus lucros pela quebra da propriedade cruzada e entrada de novos agentes

comunicadores para repartir o espectro público da radiodifusão. Os coronéis da mídia,

omitem, assim, seus interesses diretos na perpetuação da ausência de regulação estatal para a

comunicação social sob a falácia de que estariam sendo reprimidos em sua liberdade de

expressão.70

O que a direita e o empresariado da comunicação esquecem ou fingem esquecer ao

levantar a tese de que a regulação estatal é o mesmo que a censura, é que a

comunicação social é um direito fundamental e, em alguns casos, um serviço

público, devendo atender, portanto, a funções públicas, e ser regularizado de acordo

com essas funções. O serviço público de radiodifusão, por exemplo, está previsto em

nossa Carta Magna como objeto de autorização, permissão e concessão estatais (CF,

art. 21, XII, a). E ainda que não houvesse tal previsão, como ocorre com a mídia

imprensa que é a aberta à livre iniciativa, se a comunicação é considerada

fundamental para todos e todas não há um porquê racional para que ela fique nas

mãos e sob o alvedrio de uma pequena aristocracia. (LIMA FILHO, 2005: 5).

O argumento utilizado pela mídia tradicional em contraposição à regulação

democrática dos meios de comunicação no Brasil é o mesmo do qual se valia o chamado

“clero secular”.71

Nesse sentido, os coronéis da mídia propagandeiam estar mais bem

preparados do que o povo para deliberar sobre o tema, como se tratasse de assunto de

“especialista”, devendo ser distanciado ao máximo da população que é diretamente afetada

por elas.

No campo jurídico infraconstitucional, devido à persistente omissão inconstitucional

do Congresso Nacional, denunciada pelo jurista e professor Fábio Konder Comparato no

Supremo Tribunal Federal, na regulação dos artigos 5°, inciso V; 211; 220, §3°, II; 220, §5°;

222, §3°, todos da Constituição Federal, há ainda quem sustente que a regulação das

concessões de radiodifusão se baseia até hoje na Lei 4.117 de 27 de agosto de 1962, que

instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT).

A aprovação, à época do CBT atendeu ao lobby dos interesses corporativos das

emissoras que, de tão vitorioso, forjou a criação da Associação Brasileira de

Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT). Na oportunidade, a ABERT conseguiu o

feito inédito de fazer com que os parlamentares derrubassem 52 vetos do então

presidente da República, João Goulart, tornando o CBT a expressão de seus

interesses corporativos. (GONÇALVES apud INTERVOZES, 2006: 52).

70 A relação entre a regulação da radiodifusão no Brasil e o discurso apologético dos detentores da mídia de

massa sobre a restrição da liberdade foi avaliada pelo Prof. Venício Lima da seguinte maneira: “Quando

penso em regulação, eu estou pensando em regulação de mercado. O que não existe no Brasil é a regulação

de mercado, não existe no Brasil a competição. Existe a concentração da mídia porque no Brasil nunca houve

controle, por exemplo, sobre a propriedade cruzada dos meios, ou seja, um mesmo grupo empresarial, em um

mesmo mercado, controlando rádio, televisão, jornal, revista, provedor de internet.” (LIMA apud DINIZ,

OBSERVATÓRIO, 2010).

71 Ver seção 2.4.

Page 47: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

47

Dentre os 52 vetos do chefe do Executivo à época que foram derrubados pelos

parlamentares, como expressão de um lobby entre mídia e política jamais antes visto na

história do país, podemos citar: “os prazos de 15 anos para as concessões de emissoras de

televisão e de dez anos para os canais de rádio, com renovação por períodos iguais e

sucessivos; a automática manutenção desses prazos para as emissoras de radiodifusão já em

operação; a possibilidade de divulgação, sem qualquer tipo de penalidade, de notícias falsas

com retificação, ou críticas contra atos dos poderes de Estado; ou a possibilidade de a

emissora que se sentisse lesada, por qualquer sanção do governo, pleitear junto ao Poder

Judiciário sua reparação foram excluídos da legislação aprovada pelo Congresso Nacional”72

.

Através do CBT foi consolidada a retirada do poder de outorga das concessões por

Estados e Municípios, fundamental poder centralizador da União durante a ditadura, de modo

que somente os grupos do agrado do governo federal receberiam a outorga para a exploração

do rádio e da televisão.

Apesar do ineditismo histórico, o Código Brasileiro de Telecomunicações marcou o

início da farra das concessões públicas de rádio e TV no país. Também foi com a

aprovação do novo código que a União se tornou responsável pela exploração dos

serviços de telecomunicações, de forma direta ou através de concessões. (CAROS,

2011: 15).

Foi através da Lei 5.250 de 1967, a repressora Lei de Imprensa, e do Decreto-Lei 236

de 1967 que o governo ditatorial confirmou a ideologia conservadora do governo baseada no

uso discricionário do que o Executivo entendia por “interesse nacional”73

. Sob esse pretexto,

previa diversas punições aos veículos de comunicação e aos profissionais que infringissem tal

disposição, de acordo com o julgamento amplo e abstrato do governo do que se poderia

entender por interesse nacional.

As mudanças promovidas pelo Decreto-lei 236 de 1967 com vistas a impedir a

formação de monopólio no setor de radiodifusão aberta e, além disso, evitar o

controle da opinião pública, na prática, contribuíram para institucionalizar um

sistema de monopólio - e mais -, com garantias constitucionais. (CORREIA, 2011:

103)

O Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) - primeiro organismo brasileiro

de regulação para o setor - fruto do CBT, que seria responsável por elaborar o Plano Nacional

72 RAMOS, Murilo César. “Crítica ao ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica

brasileira: fragmentação política e dispersão regulamentar” In CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas et

alli. Classificação indicativa no Brasil (desafios e perspectivas), Brasília, Ministério da Justiça/UNB, 2006,

p.53.

73 A respeito da utilização do termo “interesse nacional” na legislação, cabe esclarecer a diferença entre defesa

do interesse nacional, que corresponde à intervenção arbitrária do Estado; e defesa do interesse público, que

deve respeitar os princípios constitucionais da legalidade e está subordinado ao interesse do povo, em se

tratando de uma república democrática.

Page 48: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

48

de Telecomunicações, fiscalizar a prestação dos serviços e os processos licitatórios, dentre

outras atribuições.

O Contel era diretamente subordinado ao presidente da República e seus membros,

que deveriam ser nomeados pelo chefe do poder executivo, deveriam ser constituídos de: “um

diretor do Departamento dos Correios e Telégrafos; três membros indicados, respectivamente,

pelos ministros da Guerra, Marinha e Aeronáutica; um membro indicado pelo chefe do

Estado-Maior das Forças Armadas; quatro membros indicados, respectivamente, pelos

ministros da Justiça e Negócios Interiores, da Educação e Cultura, das Relações Exteriores e

da Indústria e do Comércio; três representantes dos três maiores partidos políticos, segundo a

respectiva representação na Câmara dos Deputados no início da legislatura indicados pela

direção nacional de cada agremiação; o diretor da empresa pública que terá a seu cargo a

exploração dos troncos do Sistema Nacional de Telecomunicações e serviços correlatos, o

qual pode ser representado por pessoa escolhida entre os membros de seu Gabinete ou

Diretores da empresa; o diretor-geral do Departamento Nacional de Telecomunicações, sem

direitos a voto”74

.

O ponto a destacar aqui é o de que o Contel enquadrava-se na categoria de

organismo de regulação centralizado no Poder Executivo, de tradição corporativa,

diverso, por exemplo, do modelo de organismo de regulação descentralizado entre

os poderes Executivo e Legislativo, como era a Federal Communications

Commission estado-unidense, existente desde 1934. (RAMOS In CHAGAS, 2006:

55).

O Contel foi substituído pelo Ministério das Comunicações em 1967, durante o

governo de Castelo Branco, responsável pela edição do decreto-lei 200 que incorporou as

funções desempenhadas pelo Contel, Dentel e Empresa Brasileira de Telecomunicações, de

modo a centralizar ainda mais o poder nas mãos do regime militar golpista. Apesar da

estrutura do Ministério das Comunicações prever, inclusive, um Conselho Nacional das

Comunicações, este nunca pôde ser instituído por falta de interesse do Executivo influenciado

pela Abert.75

Na opinião de Paulino (2007: 193):

A existência de Conselhos de Imprensa não deve ser o único mecanismo de

reparação de prejuízos causados pela mídia, pois a atuação dos Conselhos não repara

todos os eventuais danos morais causados por um comportamento antiético ou a

74 RAMOS, Murilo César. “Crítica ao ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica

brasileira: fragmentação política e dispersão regulamentar” In CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas et alli.

Classificação indicativa no Brasil (desafios e perspectivas), Brasília, Ministério da Justiça/UNB, 2006, p.

54.

75 RAMOS, Murilo César. “Crítica ao ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica

brasileira: fragmentação política e dispersão regulamentar” In CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas et alli.

Classificação indicativa no Brasil (desafios e perspectivas), Brasília, Ministério da Justiça/UNB, 2006, p.

54

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49

questões relacionadas à necessidade de desconcentração de propriedade nas

instituições de comunicação, mas a existência dessa esfera de intermediação pode

coibir possíveis infratores e auxilia na reparação e encaminhamento de queixas dos

usuários da mídia.

Com a Emenda Constitucional n.° 03, de 15 de agosto de 1995, os serviços públicos de

telecomunicações e radiodifusão foram definitivamente distinguidos, como fica evidenciado

pelo artigo 21 da Constituição Federal, assim modificado:

Art. 21. Compete à União:

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os

serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização

dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a)os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens.

O professor Murilo César Ramos (2006: 58) revela que a alteração do artigo 21 já

fazia parte de uma política de abertura das telecomunicações ao capital estrangeiro iniciada

com o governo de Fernando Henrique Cardoso em outubro de 1994 e com o ministro das

Comunicações, Sérgio Motta, no comando.

Essa nova redação trouxe importantes modificações, além da possibilidade de

outorga ao capital privado a exploração dos serviços de telecomunicações: a criação

de um órgão regulador, autônomo, para o setor; a reforma do Sistema Telebrás,

preparando-o para a competição - na época não se falava abertamente na sua total

privatização; e uma terceira grande modificação, mais surpreendente, que foi a

separação entre os serviços de telecomunicações e os serviços de radiodifusão, até

então unidos constitucionalmente. (RAMOS In CHAGAS, 2006: 59).

Atualmente não há mais como sustentar a vigência do CBT, uma vez que a própria

Constituição distinguiu claramente o serviço de telecomunicações e o sistema de comunicação

social eletrônica, que deve ter um marco regulatório próprio. No entanto, alguns ainda

afirmam que o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, foi revogado apenas no

tocante às telecomunicações por conta da Lei Geral das Telecomunicações (Lei n° 9.472 de 16

de julho de 1997), mas continua vigente no que diz respeito aos serviços de radiodifusão.76

Por essa razão, o Conselho Nacional de Telecomunicações não tem mais competência

para atuar no setor de comunicação social, e qualquer órgão regulador autônomo criado para

as telecomunicações, no caso a Anatel instituída pela Lei n° 9.472 fica restrito aos serviços

prestados pelas empresas de telefonia.

No campo jurídico constitucional, também damos destaque ao artigo 49, inciso XII, da

Constituição Federal que determina a competência do Congresso Nacional para “apreciar atos

76 Ibidem.

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50

de concessão e renovação de emissoras de rádio e televisão”. Tal artigo deve ser visto à luz do

artigo 223 também da Carta Maior que prevê:

Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e

autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o

princípio da complementariedade dos sistemas privado, público e estatal.

§2° A não renovação da concessão ou permissão dependerá da aprovação de, no

mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal.

Percebemos que o constituinte de 1988 não teve a preocupação em garantir

mecanismos de participação da sociedade civil para deliberar sobre a não renovação das

concessões em matéria de radiodifusão, muito pelo contrário, a decisão ficou a cargo dos

congressistas, que obviamente possuem interesse direto na renovação de suas próprias

concessões públicas, como veremos adiante.

A marginalização da participação da sociedade civil nos processos decisórios faz parte,

como constatamos, da concepção liberal da democracia. Nesse sentido, Chaui (2010: 137)

assevera que:

O bloqueio do espaço público é ativamente produzido, fazendo com que a lei não

deva figurar e não figure o polo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca

definindo direitos e deveres dos cidadãos porque sua tarefa é a conservação de

privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem como

inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para ser transgredidas e não para ser

transformadas.

Sem o envolvimento político da sociedade em torno da esfera pública, a elaboração de

uma lei para a regulação do mercado de radiodifusão, se torna ineficaz no combate ao

monopólio e ao oligopólio do meio, conforme explicação do constitucionalista José Afonso da

Silva (2008: 95):

Essa prática abusiva, que decorre quase espontaneamente do capitalismo

monopolista, é que a Constituição condena, não mais como um dos princípios da

ordem econômica, mas como um fator de intervenção do Estado na economia, em

favor da economia de livre mercado. Pupulam leis antitrustes, sem eficácia. O que

cumpre reconhecer, na verdade, é que não existe mais economia de mercado nem

livre concorrência, desde que o modo de produção capitalista evoluiu para as formas

oligopolistas.

Consciente dessa realidade, na esfera da contra-hegemonia, a luta travada pelas

entidades defensoras da democratização dos meios de comunicação almeja seja aprovado um

novo marco regulatório que possibilite a criação de Conselhos de Comunicação Social e um

órgão regulador como forma de ampliar a participação da sociedade civil e garantir a

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51

fiscalização quanto ao cumprimento das prerrogativas constitucionais77

, como por exemplo a

do artigo 221, carente de regulamentação, mas que prevê:

Art.221 - A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão

aos seguintes princípios:

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II- promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que

objetive sua divulgação;

III- regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme

percentuais estabelecidos em lei;

IV- respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

De acordo com Ramos (In CHAGAS, 2006: 55), durante o período de transição

democrática, o ponto alto da discordância entre o grande empresariado da comunicação, lê-se

Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), o mais poderoso lobby

empresarial brasileiro, e a sociedade civil engajada no movimento em favor da

democratização da radiodifusão foi justamente a proposta, defendida pela Frente Nacional de

Luta por Políticas Democráticas de Comunicação, representada pela Federação Nacional dos

Jornalistas (Fenaj), de criação de um Conselho Nacional de Comunicação Social.

Essa rejeição a organismos reguladores específicos conheceria outro importante

capítulo durante o período de elaboração constitucional, após o fim do regime

militar, entre 1987 e 1988. Mais do que a presença do capital estrangeiro na

economia brasileira, mais ainda do que a eternamente polêmica, até hoje irresolvido,

questão da reforma agrária, foi a Comunicação Social a área de maior impasse

durante aquele período de discussão, elaboração e votação da nova Constituição

Federal. E, em meio à discussão sobre a Comunicação Social, a mais polêmica das

questões, a que impediu que fosse votado um texto constitucional para o setor, no

âmbito da Comissão Temática VIII, da Família, da Educação, Cultura e Esporte, da

Ciência e Tecnologia, e da Comunicação, foi a possibilidade de se introduzir na

Constituição um órgão regulador, autônomo em relação ao Ministério das

Comunicações: o Conselho Nacional de Comunicação Social.78

Segundo os idealizadores desse Conselho, caberia a ele formular “políticas nacionais

de comunicação”, de modo que, dentre outras atribuições, ficaria responsável por outorgar

canais de rádio e televisão. No entanto, contra o lobby da Abert, o máximo que conseguiu o

movimento social à época foi um acordo de compromisso, formulado na Comissão de

Sistematização da Constituição Federal, em que ficaria a cargo do chefe do Executivo

outorgar e renovar as concessões nacionais de radiodifusão, enquanto ao ministro das

Comunicações competiria outorgar e renovar as licenças locais. Em todo o caso, porém, as

77 Cf. Confecom: implementação de resoluções fica para 2011, redação da Carta Maior, disponível em

<http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16689>. Acesso em 11 de dezembro de

2011. 78

RAMOS, Murilo César. “Crítica ao ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica

brasileira: fragmentação política e dispersão regulamentar” In CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas et alli.

Classificação indicativa no Brasil (desafios e perspectivas), Brasília, Ministério da Justiça/UNB, 2006, p.

56.

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52

decisões só valeriam após apreciação e votação pelo Congresso Nacional, reduzido o papel do

Conselho de Comunicação Social a mero “órgão auxiliar do Congresso Nacional.79

Para

Ramos (2007: 45), apesar dos esforços do Fórum Nacional pela Democratização da

Comunicação a favor da participação da sociedade civil na composição do Conselho, fica

evidente que:

(...) trata-se de conselho formado por representações corporativas explícitas , e por

uma representação coletiva da sociedade civil que se pretendia descolada de

interesses empresariais ou sindicais. Na prática, o que se tem verificado, entretanto,

na composição do Conselho é a presença de uma maioria de representantes

empresariais, até no que se convencionou chamar de bloco da sociedade civil.

A regulamentação do art. 224 da Constituição (Lei n° 8.389, de dezembro de 1991)

que deu origem a um Conselho de Comunicação Social80

, como órgão auxiliar do Congresso

Nacional, veio em 1991 por um acordo celebrado entre a Abert e a Fenaj, tendo como

prerrogativas: “a realização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que

lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional”.81

Mesmo sem ter figurado como um organismo com amplos poderes de intervenção nas

decisões que envolvem a radiodifusão no país e ter contado com a imediata sanção

presidencial, o Conselho, que foi destacado como importante órgão deliberador na Lei n°

8.977/95 (Lei do Cabo), somente foi implantado e teve os seus integrantes empossados em 25

de junho de 2002.

Com isso, a regulação das comunicações brasileiras seria, até o final da década de

1990, caracterizada por um ambiente centralizado, muitas vezes abertamente

autoritário, como o foi durante o Estado Novo, de 1937 a 1947, e durante a ditadura

militar, de 1964 a 1985. Era um ambiente caracterizado por duas vertentes principais

de regulação: a regulação das telecomunicações, exercida, na prática, pela empresa

estatal monopolista, nominalmente subordinada às políticas e diretrizes emanadas do

Ministério; e a regulação dos serviços de rádio e televisão, a cargo do aparelho

burocrático do ministério, mas sob direta e intensa influência da Abert.82

79 Ibid.

80 Ramos (In CHAGAS, 2006: 57) conta que o Conselho de Comunicação Social seria composto por: “um

representante das empresas de rádio; um representante das empresas de televisão; um representante de

empresas da imprensa escrita; um engenheiro com notório conhecimento na área da comunicação social; um

representante da categoria profissional dos jornalistas; um representante da categoria profissional dos

radialistas; um representante da categoria profissional dos artistas; um representante das categorias

profissionais de cinema e vídeo; cinco representantes da sociedade civil. Os membros do Conselho, e seus

respectivos suplentes, seriam eleitos em sessão conjunta do Congresso Nacional, podendo as entidades

representativas dos setores sugerir nomes à mesa diretora do parlamento federal”.

81 RAMOS, Murilo César. “Crítica ao ambiente político-regulatório da comunicação social eletrônica

brasileira: fragmentação política e dispersão regulamentar” In CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas et alli.

Classificação indicativa no Brasil (desafios e perspectivas), Brasília, Ministério da Justiça/UNB, 2006.

82 Ibidem.

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53

Entidades da sociedade civil, como o Intervozes, defendem a criação de um conselho

nacional para a discussão de políticas públicas no setor de comunicação. Tal resolução, bem

como as demais 633 propostas, foram aprovadas em 2009 durante a Conferência Nacional de

Comunicação (Confecom), apesar da resistência dos empresários do setor, inclusive da Abert,

mas até o momento nada foi colocado em prática. Durante a conferência, Franklin Martins,

ministro-chefe da Secretaria de Comunicação do Governo Federal (Secom), estrategicamente

posicionado ao lado dos interesses da Abert, não ofereceu qualquer perspectiva de

concretização da referida resolução.

Na Assembleia Legislativa em São Paulo, no ano de 2010, durante a conferência

presidida pelo deputado Edmir Chedid, do DEM, atual presidente da Comissão de Transportes

e Comunicações, contando com a iniciativa do deputado Antonio Mentor, do PT, apresentou

um projeto que daria origem a um Conselho Estadual. Porém, a forte resistência dos grandes

empresários da mídia esvaziou o debate democrático e conseguiu barrar mais essa medida.

Até no Ceará, onde o projeto para a criação do Conselho Estadual de Comunicação havia sido

aprovado com facilidade, os grandes meios de comunicação conseguiram impedir grande

parte de sua concretização por considerá-lo inconstitucional.83

Não figurou entre os destaques apresentados pelo ministro a implantação do

Conselho Nacional de Comunicação, uma das resoluções mais comemoradas pelos

movimentos sociais na etapa nacional da Confecom. A medida foi cobrada pela

deputada Luiza Erundina (PSB-SP). “O executivo não pode criar o conselho

proposto pela Confecom?”, questionou. Na opinião da parlamentar, este seria o

espaço para dar continuidade ao diálogo entre os segmentos e para avaliar as

estratégias de implementação das resoluções.84

Bucci (2001: 12) é um dos que propõe a criação de um órgão regulador vinculado ao

Congresso Nacional, com representação na sociedade civil, com poderes normativos, mas

com regime jurídico diverso de uma autarquia, para fixar democraticamente as normas que

definam número de horas para a programação educativa, informativa e regional. Seria tal

órgão responsável pela licitação e poderia denunciar ao Ministério Público, mediante

elaboração de lei para tanto, o descumprimento dos parâmetros de concessão do serviço

público e os casos de direito de resposta.

A grande mídia, no entanto, representada pela Abert, capitaneada pelas Organizações

Globo e com o apoio do então ministro das Comunicações Paulo Bernardo, na tentativa de

83 CONTRAPONTO. Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Faculdade de Filosofia, Comunicação,

Letras e Artes da PUC-SP. 2011. Ano 11, n° 72, maio de 2011.

84 Cf. MAIOR, Carta. Confecom: implementação de resoluções fica para 2011, redação da Carta Maior,

disponível em <http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16689>.

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manter uma estrutura administrativa condizente com a proteção de seus interesses defende a

aprovação de um marco regulatório que crie uma agência nos moldes da ANATEL para a

comunicação social, cujos dirigentes seriam indicados pelo presidente, e portanto, distante de

um processo participativo, e com a mesma ineficiência histórica das agências reguladoras no

Brasil.85

A exemplo do Conselho Nacional de Comunicação que levou 12 anos para sair do

papel desde a concepção da Constituição Federal de 1988, o projeto do Executivo

denominado “Lei Geral da Comunicação Eletrônica de Massa”86

em trâmite desde 1998

continua sem definição até o momento no governo da presidente Dilma Rousseff.

Uma vez que a criação de Conselhos é uma medida acessória para a democratização

das instituições de comunicação, e portanto insuficiente para garantir a sua descentralização,

os movimentos sociais e estudiosos da comunicação continuam na luta pela elaboração de um

novo marco regulatório da mídia que realmente possa assegurar o direito à comunicação como

um direito da cidadania

Como sabemos, tanto a regulação da concentração da propriedade midiática quanto a

criação de conselhos para a fiscalização do direito à comunicação são medidas paliativas para

a democratização real dos meios, mas que podem figurar como um importante instrumento na

responsabilização daqueles que não atendam à função pública desse serviço. Além disso, o

estabelecimento de um novo marco regulatório para a radiodifusão no Brasil poderá prever

mecanismos que impeçam a formação de monopólios na comunicação social eletrônica, a fim

de permitir a representação de diversos interesses e atores sociais, como movimentos sociais e

organizações da sociedade civil, no debate público.

85 Segundo Bandeira de Melo (2009), as agências reguladoras, importadas do direito norte-americano,

aplicadas ao direito brasileiro nos mostra que o seu papel em defesa da coletividade dos usuários do serviço

público é frequentemente substituída por um sofisticado sistema de privilégios do Executivo. Inúmeras

inconstitucionalidades podem ser apontadas na legislação referente às “agências reguladoras”, como é a

tentativa de deturpar o processo licitatório, um dos pilares do Direito Administrativo na prevenção de

corrupção e favoritismos.

86 Segundo Ramos (In CHAGAS, 2006: 64): “Sem sequer valer-se do que a Constituição Federal chama de

Comunicação Social (Ver Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo V, da Comunicação Social, arts. 220 a

225), as autoridades do Ministério das Comunicações, ao tempo de Sérgio Motta, adotaram o equivocado

conceito, tanto do ponto de vista político quanto sociológico, de comunicação de massa, para caracterizar a

radiodifusão acrescida do subsegmento da televisão por assinatura”.

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55

3.3. A disputa entre o discurso hegemônico87 e o

discurso contra-hegemônico na esfera pública da

comunicação social eletrônica no Brasil pós 1985

O ideal da livre formação da opinião pública, que no século XVIII tinha a pretensão de

ser uma conquista burguesa, é um exemplo emblemático de como a democracia constituída na

base da propriedade privada e da abstração de direitos torna inviável a igualdade real de

possibilidade de convencimento.

Conta Chaui (2010: 10) que o conceito de opinião pública, nos primórdios iluministas,

"era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão

feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de

pensamento e expressão".

Com o abandono dos ideais do iluminismo, na fase descendente da democracia

burguesa, o conceito de opinião pública passou por um remanejamento que pode ser

apresentado sob três aspectos.88

O primeiro aspecto infere que o modo como se expressava em espaço público

determinado interesse ou direito de uma coletividade ou indivíduo através do uso da razão foi

substituído por uma manifestação pública de sentimentos e emoções individuais. O segundo

aspecto ressalta que o direito de expressão individual e de todos foi transformado pelo poder

que alguns exercem como formadores de opinião (mito da democracia), restrito ao “clero

secular”, artistas e jornalistas. O último aspecto, mas principal, que modificou o conceito de

opinião pública foi a abrangência e o controle dos grandes conglomerados midiáticos globais,

graças à concentração do poder econômico nos meios de comunicação de massa.89

Com

relação aos dois últimos, Chaui (2010: 103) salienta que:

Não por acaso, muitos estudiosos mostraram como, sob a aparência da

democratização do pensamento pelos meios de comunicação e de informação, o que

se produziu foi uma das mais poderosas máquinas de intimidação social, pois os

sujeitos sociais são, ao mesmo tempo, excluídos do direito de produzir

conhecimentos ou de exprimir seus conhecimentos e forçados a aceitar regras de

vida ditadas pelos especialistas, possuidores dos conhecimentos, correndo o risco,

87 “Hegemonia aqui empregada no sentido clássico atribuído por Antonio Gramsci do predomínio ideológico

de certos valores e normas sobre outras. Ou, mais precisamente, como na argumentação de Buci-

Glucksmann, citado por Carnoy (1986): [...] a hegemonia de Gramsci se expressa na sociedade como o

conjunto de instituições, ideologias, práticas e agentes que compreendem a cultura dos valores dominantes”.

(RAMOS In CHAGAS, 2006: 61)

88 CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a

ed., 2010, p. 12.

89 Ibid, p. 10-15.

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56

caso não aceitem tal imposição, de serem considerados associais, detrito, lixo ou

perigo para a sociedade.

Além do monopólio da informação exercido pela classe dominante, vimos no primeiro

capítulo como que as legislações, desde a Revolução Francesa, também contribuíram para, se

não proibir, dificultar o acesso à produção de informação e à livre formação da opinião

pública através dos meios de comunicação de massa pela classe trabalhadora e organizações

populares.

Com o desenrolar do capitalismo monopolista no século XX, a agudização das

contradições socioeconômicas e da exploração de uma classe pela outra necessitaram de um

aparato ainda mais forte capaz de transmitir um aspecto “normal” para o rumo que as

democracias liberais haviam tomado.90

Com a expansão das tecnologias no pós Guerra Fria, este que foi seguido pelo

esvaziamento dos discursos ideológicos e filosóficos, a globalização permitiu a expansão do

processo de homogeneização da cultura. A imposição de um determinado modelo de

comportamento através da propaganda pelo rádio e televisão passou a ser a estratégia de

marketing da potência hegemônica de cada época para criar novos mercados de consumo.91

Na sociedade pós-moderna, onde “tudo tende a se resolver na e pela imagem”, como

reflete o jornalista Arbex (1995), as indagações que formam a opinião pública foram

transferidas para a superfície plana da televisão, por meio de um processo minimalista de

transformação da arte e cultura em mercadorias.

Quando a reprodução imagética se torna mais importante do que a própria mensagem,

retira-se a perspectiva crítica do receptor e transfere-se o julgamento de valores para o sentido

a que o transmissor preferir atribuir segundo a sua ideologia: o espetáculo92

ganha força.

Segundo Eco (1984: 191), “Estamos nos encaminhando, portanto, para uma situação

televisiva em que a relação entre enunciado e fatos se torna cada vez menos relevante no que

90 Coincidentemente, conta Arbex (1995: 70) que os Estados Unidos sempre adotaram a opinião pública como

ponto absoluto central das políticas adotadas pelo Executivo.

91 ARBEX, José. O Poder da TV. São Paulo: Scipione, 1995, pp. 85-90.

92 Chaui (2010: 82) revela que a palavra espetáculo, derivada dos verbos latinos specio e specto, guarda relação

com a palavra latina simulacrum. Segundo Chaui, a palavra espetáculo “pertence ao campo da visão. Dessa

família de palavras, a língua inglesa guardou a lembrança, pois nela a palavra óculos se diz spetacles. E

nossas línguas acabaram por unificar a palavra grega phantásma e a palavra latina spectrum para significar o

fantasma ou o espectro como aparição, geralmente ilusória ou irreal”; enquanto que simulacro “é a imagem

de uma imagem percebida, ou seja, passamos da percepção da imagem de uma coisa à sua representação ou

reprodução em uma outra imagem, como na pintura, na escultura, no retrato”.

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diz respeito à relação entre verdade do ato de enunciação e experiência receptiva do

espectador.”.

Nesse sentido, nos ensina o ideário paulofreireano que os meios de comunicação de

massa, por desenvolverem uma postura passiva dos destinatários, consistem apenas em

instrumentos de transmissão, onde ficam impossibilitadas as relações dialógicas,

fundamentais para o fortalecimento do conhecimento popular.93

Se de um lado o discurso hegemônico94

passou a se utilizar do mass media para

propagar a sua ideologia apologética de “normalidade” e ordem, que para muitos teve início

com as experiências de manipulação midiática pelo gênio do mal Goebbels95

; por outro lado,

a utilização contra-hegemônica dos meios de comunicação para a organização de revoltas

populares e difusão das ideais socialistas se transformaram em um importante instrumento de

resistência popular, especialmente através da imprensa escrita e do rádio.96

O 'discurso competente', em que a ciência corrompe a fim de servir à dominação,

mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente, mediante o qual as

classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é mais favorável,

e tratam de impô-la aos demais, com todos os recursos de que dispõem (órgãos de

comunicação de massas, ensino, instrumentos especiais de controle sociais de que

participam e, é claro, com forma destacada, as próprias leis.97

No Brasil, a peculiaridade da construção da opinião pública está no fato de que, apesar

do forte controle social a serviço da dimensão institucional, que subordina a sociedade civil ao

Estado e ao mercado privado, existe uma condição de resistência na dimensão do doméstico e

da ação política popular que confronta o poder oligárquico e patrimonial construído desde os

tempos coloniais.98

93 Em 1920, Bertold Brecht experimentou formas dialógicas de utilizar a mídia e a arte em conjunto. Segundo

Downing (2002: 104), Brecht propunha: “o que ele chamava de cofabulação, algo semelhante a co-arquitetos

da produção, termo usado anteriormente aqui para descrever a audiência ativa -, que, na sua opinião, deixava

'os espectadores livres para concordar, discordar ou mudar qualquer parte apresentada no palco'. Dessa

forma, eles comparariam a peça com suas experiências e histórias pessoais e trariam suas próprias narrativas

para a produção.”

94 “Em suma: o discurso em questão é aquele que procura retirar os movimentos sociais da esfera pública,

relegando-lhes o lócus social de criminosos, estes, por sua vez, sujeitos que, segundo o próprio senso comum,

devem ser excluídos da participação democrática.” (LIMA FILHO, 2006: 2)

95 Losurdo (2004: 298), apesar de rejeitar a ideologia da “multidão criança” defendida por alguns componentes

da Escola de Frankfurt, afirma que: “...'Através dos mass-media inflados de maneira inaudita, a publicidade

do consumo se tornou o modelo do 'esclarecimento' político'. A observação é de Lukács, que vai adiante ao

acrescentar que Hitler já 'considerava a 'boa propaganda de sabonetes' como o modelo de qualquer

propaganda política”.

96 Ver o uso revolucionário do rádio em 1956 durante a resistência anti-colonial dos argelinos contra os

franceses na Guerra da Argélia narrada por Frantz Fanon em Sociologia de una revolución. 97

LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 123.

98 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 158-166.

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58

A opinião pública, no que diz respeito às instituições de comunicação, se instaura na

sociedade brasileira pela via do conflito entre o poder institucional dos meios de

comunicação, representado pelos interesses das famílias oligarcas e do grande capital; e o

poder popular dessa comunicação, representado por movimentos sociais e organizações da

sociedade civil. Ramos (2007: 43) afirma que: “O movimento brasileiro pela democratização

da comunicação, nascido durante a ditadura militar e que teve na hegemonia comercial e

política das Organizações Globo a sua motivação inicial de luta - o que de certo modo ocorre

até hoje - sempre assentou sua base social no que se convencionou chamar de sociedade

civil”.

Após 1985, com a introdução do regime democrático no Brasil, sem mais a oposição

na sociedade civil entre os apoiadores do regime militar e aqueles que o combatiam, Ramos

(In Chagas, 2006: 62) explica que a sociedade civil se reconfigurou para oposição:

No espaço de um ambiente normativo, cuja âncora institucional é, como visto, o

Estado Democrático de Direito, os interesses em disputa situam-se em dois pólos da

sociedade, como se assinalou em passagens diversas acima: o pólo da sociedade

voltada aos interesses de mercado e o pólo da sociedade desvinculado dos interesses

de mercado. Ao pólo da sociedade desvinculada dos interesses de mercado a

estratégia de luta pela hegemonia passa pela instituição de marcos regulatórios, dos

quais derivem modelos de instituições, seus agentes e normas, que nasçam de

ambições socialmente includentes e resultem de amplos processos de discussão e

elaboração por instâncias diversas da sociedade. Já para o pólo da sociedade voltado

aos interesses de mercado, a estratégia de luta pela hegemonia passa pela negação de

marcos regulatórios com as características anteriores, em favor de uma fragmentação

política e dispersão regulamentar que favoreçam e facilitem a regulação quase que

exclusiva pelas chamadas forças de mercado.

De um lado, o poder institucional em defesa da manutenção do monopólio midiático e

da comunicação como bem de consumo; do outro, o poder popular a favor da democratização

dos meios de comunicação, da participação popular na produção de conteúdo midiático e da

função pública dos serviços de radiodifusão.

Ocorre que o discurso hegemônico, por se beneficiar do domínio econômico sobre os

meios de comunicação de massa, é responsável pela formação de grande parte daquilo que

chamamos de senso comum. Nesse tipo de discurso, poucas vozes falam e muitos escutam

sem que exista espaço para a troca de opiniões entre as diferentes percepções de mundo.

Antes que possamos confundir o conceito de senso comum com o de conhecimento popular,

nos utilizamos da explicação de Lima Filho (2006: 3) para esclarecer a diferença:

O senso comum, em outros termos, seria o conhecimento compartilhado pelas

classes oprimidas e tomado pejorativamente por não alcançar a certeza científica da

modernidade. Não é, nem de longe, no entanto, um conhecimento disposto à

libertação dos(as) oprimidos(as), ou formador de uma consciência de classe,

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59

diferenciando-se assim do conhecimento popular.

O espectro eletromagnético dominado por poucos transmite, assim, a relação de

opressão, presente em outras relações de dominação, para o campo da comunicação social

eletrônica. Por isso é que, a libertação dos homens, como teoriza Paulo Freire, deve estar

relacionada com a superação do “regime de dominação de consciências”, num contexto de

resistência popular ao monopólio da palavra por via da pedagogia que parte do oprimido.99

A livre formação da opinião pública no Brasil fica também prejudicada pela

criminalização da população pobre e oprimida pelo discurso hegemônico na mídia, que toma

a feição inclusive das fantasias e do imaginário coletivo com a discriminação contra negros,

mulheres, nordestinos e baianos.100

Esse discurso discriminatório contra a população

vulnerável, segundo Silva Filho (2006: 256) com base no jurista Zaffaroni, gera

consequências no sistema carcerário brasileiro:

'Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de seleção e

condicionamento criminalizante que se orienta por esteriótipos proporcionados pelos

meios de comunicação de massa'. Converte-se o indivíduo em um 'suspeito

profissional'. Não é preciso dizer quais seriam as características dessas pessoas:

basicamente pobres, pretos, mestiços e mulatos.

Não é diferente o tratamento conferido aos movimentos sociais. Conforme Arbex

(2010), exemplo grosseiro de manipulação e ocultamento de informações pode ser verificado

no tratamento conferido pelos meios de comunicação de massa à marcha histórica do MST de

2005 em contraste com a cobertura dada ao episódio ocorrido na Daslu, no mesmo ano.

Um grupo de pesquisa da Oxford constatou ter sido a marcha mais bem organizada

pacificamente, algo comparável a Gandhi, como constata Carter (2010: 33):

A marcha do MST para Brasília foi um evento de larga escala, comparável a outras

grandes marchas de longa distância do século XX, como a caminhada de Mahatma

Gandhi de 23 dias para a cidade costeira de Dandi, na Índia, em 1930, na qual

desafiou o domínio colonial britânico ao fazer seu próprio sal; a Jarrow Crusade,

marcha de 27 dias realizada por operários desempregados do nordeste da Inglaterra

até Londres, em 1936, em meio à Grande Depressão; a marcha de cinco dias de

Selma a Montgomery, no Alabama, liderada por Martin Luther King, em 1965, no

auge do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos; e a marcha de 34 dias

de povos indígenas da Amazônia boliviana até La Paz, em 1990, para reivindicar

direitos a terra e a proteção da Floresta Amazônica. Mas nunca, em toda a história,

houve uma marcha pacífica de protesto tão massiva, longa e sofisticada quanto esta

mobilização a Brasília.

99 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 45ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 16.

100 A questão do Apartheid Midiático foi levantada por Lima Filho (2005) no V Colóquio Internacional Paulo

Freire. Referências à manipulação do imaginário coletivo pela discriminação de negros, nordestinos e

baianos pode ser encontrada no livro “O poder da TV” do Professor José Arbex.

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60

Um instrumento fundamental para a organização da marcha foi o rádio. Conta Ghedini

(2009: 30) que: “Com uma marcha que se estendia por cerca de 6 quilômetros ao longo da

estrada, a única forma de manter todos informados e unidos eram as mensagens veiculadas

por um transmissor FM de 100 watts de potência”. Os aparelhos foram cedidos pela Abraço

(Associação Brasileira de Rádios Comunitárias) e deram origem à emissora Brasil em

Movimento - verás que um filho teu não foge à luta, auto-organizada pelo MST.

Enquanto no meio acadêmico a marcha era destacada como uma forma bem

organizada de manifestação popular pacífica, a mídia hegemônica (organizações Globo, Folha

de São Paulo, Estado de São Paulo, revista Veja, etc.) buscava meios para criminalizar e

deslegitimar o movimento:

Durante dias, a grande mídia dispendeu sua atenção nas doações de alimentos e água

realizadas pelo governador de Goiás e o prefeito de Goiânia. Os noticiários

abordaram o fato e a disponibilização de seis ambulâncias para atender os

manifestantes como um grande escândalo de corrupção política. A decisão de um

promotor público de investigar as contribuições para a marcha recebeu grande

destaque na imprensa, e levou uma repórter do Jornal Nacional, da TV Globo, o

principal noticiário do Brasil, a descrever a situação como uma 'coisa inusitada que

nós nunca vimos acontecer até agora' como a do 'Estado financiar um movimento

contra si próprio'. (CARTER, 2010: 31).

No entanto, quando a mídia imperialista tratou da sonegação de mais de 24 milhões de

reais pela Daslu, fez o que pôde para ocultar a atividade ilícita cometida pela dona da

boutique e condenou a atividade policial, dando privilégio de tempo nos noticiários aos

defensores do mega empreendimento fraudador, como o ex-governador da Bahia e ex-senador

Antônio Carlos Magalhães.

As ações da Polícia Federal acionaram alarmes em Brasília e em São Paulo. Muito

contrariado com a notícia, ACM interveio rapidamente a favor de Eliana, uma amiga

da família que tinha contratado a neta do senador para trabalhar na loja. ACM

manifestou sua indignação ao ministro da Justiça, que passou boa parte do dia

atendendo telefonemas furiosos de outros VIPs. O senador, então, telefonou para

Eliana, ainda em custódia no escritório da Polícia Federal, e chorou com ela ao

telefone. Mais tarde, fez um discurso mordaz no Senado criticando o governo Lula.

Seus comentários foram ecoados pelo colega, o senador Jorge Bornhausen,

presidente do segundo maior partido no Congresso, o Partido da Frente Liberal

(PFL), que descreveu a blitz na Daslu como um “atentado ao mercado”. A detenção

de Eliana, ele alertou, 'pode gerar uma crise econômica e afugentar os investimentos

internacionais do Brasil'. (CARTER, 2010: 35).

Para Freire (2006: 22), a forma maniqueísta, ou seja, oposição entre o bem e o mal,

com que a mídia trata da questão social é problemática pois “a sectarização é sempre

castradora (...) é mítica, por isso alienante, a radicalização é crítica, por isto libertadora”. Essa

sectarização, seja de esquerda, seja de direita, é problemática para a libertação dos homens

uma vez que se distancia da hominização. Se de direita, pretende a manutenção do estado das

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coisas; se de esquerda, almeja a instauração de um modelo predeterminado e fechado, incapaz

de conduzir o desenvolvimento sociocultural e político-econômico em vistas à emancipação

humana, como é o caso da democratização dos meios de comunicação.

Aos movimentos sociais, na seara do discurso contra-hegemônico, desarticulados pelo

cerceamento de expressão pública nos meios de radiodifusão de massa e deslegitimados pela

criminalização a que são submetidos pela mídia tradicional, resta levantar a bandeira da

radicalização da democracia em defesa da libertação dos sujeitos oprimidos com a utilização

da mídia radical, qual seja, as rádios comunitárias, a imprensa alternativa e a internet.

No âmbito dos novos movimentos sociais, que passaram a ser caracterizados a partir

da década de 70, do século passado, ocorre algo diferente e perigoso (para os

controles centrais, é claro): as pessoas criam uma identidade comum, em virtude de

sua situação de exclusão, e se reconhecem no espaço público como pessoas, com

problemas, qualidades e aspirações; tornam-se verdadeiros sujeitos, com voz

própria. (SILVA FILHO, 2006: 258).

Segundo Catalina Botero (apud MATTA: 2011), relatora sobre liberdade de expressão

na Corte Interamericana de Direitos Humanos: “o guarda-chuva da liberdade de expressão

aumentou, pois hoje não se deve proteger apenas a liberdade individual dos emissores (os

“donos dos meios”), mas toda a cidadania”.

No campo da luta pela institucionalização do direito à comunicação, a luta popular

pela democratização dos meios, durante e após a ditadura militar no Brasil, garantiu o fim da

censura estatal e contribuiu para a constitucionalização de diversos dispositivos protetores da

liberdade de expressão em favor de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, nos

termos do art. 3°, I, da Constituição.

Em 1996, com os esforços dos movimentos sociais atuantes no campo da comunicação

no Brasil, foi possível estabelecer um Estatuto Social do Fórum Nacional de Democratização

da Comunicação.101

Em seu artigo 2° prevê que:

São finalidades do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação:

I - fomentar por todas as suas instâncias e meios, a democratização da comunicação;

II- incentivar a máxima ampliação das condições de acesso de todos os segmentos

da sociedade à propriedade, posse e utilização dos meios de comunicação social.

Ramos (2007: 45) descreve que, atualmente, o movimento pela democratização da

comunicação no Brasil é representado por duas “instâncias convergentes”. A primeira, que

seria a mais importante dada a sua história atuante de mais de quinze anos, é denominada

101 FNDC. Estatuto Social do Fórum Nacional de Democratização da Comunicação. Disponível em

<http://www.fndc.org.br/arquivos/estatuto.pdf>. Acesso em: 06 de fevereiro de 2012.

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Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (www.fndc.org.br), “entidade de

caráter nacional, liderada pela Federação Nacional dos Jornalistas, e de cuja direção executiva

participam, além daquela entidade profissional, a Federação Nacional dos Trabalhadores em

Emissoras de Rádio e Televisão, a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, a

Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação, e o Conselho Federal de Psicologia. Ou

seja, o Fórum é composto por um conjunto de entidades do que se convencionou chamar de

sociedade civil.”102

A segunda instância de luta pela democratização dos meios de comunicação no país,

em exercício desde 2002, é o Coletivo Intervozes (www.intervozes.org.br), que possui relação

com a Campanha CRIS (Communication Rights for the Information Society) Brasil. Segundo

Ramos103

, embora a luta assumida pelo Intervozes adquira um caráter contra-hegemônico

decorrente do movimento iniciado nas décadas de 60 e 70 com as discussões na Unesco pelo

Direito à Comunicação, estas que tinham um viés crítico da relação capital-trabalho, a

Campanha CRIS deslocou o debate para a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação,

“conduzida pela União Internacional de Telecomunicações, sob incontestável hegemonia

empresarial”104

. A partir de uma análise crítica do Coletivo Intervorzes, Ramos afirma que:

ressurge a idéia de uma sociedade civil, no caso global, pretensamente contra-

hegemônica no que diz respeito às disputas com o capital, mas contraditoriamente

assentada sobre uma forma de luta coletiva que, como tentei demonstrar, é de

inspiração pluralista, estruturalista, neopositivista, e fragmentadora. Sua origem é

norte-americana, e seu caráter associativista e voluntário faz parte de uma cultura

política e cívica baseada no individualismo liberal, e seu conceito teria sido

cunhado, de acordo com a lúcida crítica de Montaño, por intelectuais orgânicos do

capital.105

Novas lutas pela liberdade de expressão no país e pela ampliação do movimento

contra-hegemônico a favor da democratização dos meios de comunicação são necessárias uma

vez que a livre formação da opinião pública encontra-se fragilizada.

Temos que entender que muito da injustiça social que assola a sociedade brasileira

vem do fato de que ainda são frágeis as nossas instituições democráticas, pois a

democracia que se concentra apenas no âmbito político-partidário e deixa sob

princípios nada democráticos a economia e a educação, por exemplo, não é uma

102 Ramos (2007: 46) acredita que o fato da principal disputa do FNDC ser a obtenção da maioria da sociedade

civil no Conselho de Comunicação Social demonstra uma conceituação “frágil e politicamente ingênua” pelo

movimento, do que seria a sociedade civil: “Definição ainda colada naquela originária do combate à ditadura

militar, em que o civil representava o bem na luta contra o mal militar”.

103 RAMOS, Murilo César. Politicas de comunicação: buscas teóricas e práticas/ orgs. Murilo Cesar

Ramos, Suzy dos Santos. São Paulo: Paulus, 2007, p. 46.

104 Na visão de Ramos (2007: 46) as lutas em favor de políticas democráticas de comunicação no Brasil

devem buscar a reformulação do conceito de sociedade civil, que esteja liberto da “ideia acrítica, aideológica,

fragmentadora e despolitizada de terceiro setor”.

105 Ibid.

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verdadeira democracia. O que deve ser buscado é uma via de diálogo e participação

entre o Estado e os movimentos sociais organizados, mantendo-se uma tensão

dialética constante, afinal, tanto a democracia como a própria ideia de justiça devem

sempre ser vistas como algo inacabado e um processo em curso. (SILVA FILHO,

2009).

Aqui emerge a necessidade de ser construído um paradigma que não caia, nem nos

modelos dogmáticos de esquerda, e nem nos modelos da “pureza da técnica” e da “ciência

econômica incontestável”, perpetuados pela doutrina liberal na forma de paradigma do

progresso.106

3.4. A relação entre o serviço público de radiodifusão e o

poder político no Estado democrático de direito no

Brasil

A evolução histórica do conceito de serviço público no Direito Administrativo

contemporâneo, responsável pela substituição da ideia de “poder estatal” pela ideia de

“serviço aos administrados”, demonstra como o pensamento jurídico contemporâneo avançou

na configuração de “dever estatal” conforme o interesse público, mas ainda encontra-se

arraigado àquela concepção dicotômica entre Estado e sociedade civil.

Apesar da resistência dos juristas em superar a teoria política que dá base à distinção

entre Estado e sociedade civil, o que implicaria em imaginarmos uma outra sociabilidade em

torno do poder que agora não teremos espaço para discutir, é patente reconhecer que a

definição do serviço de radiodifusão como um serviço público representou um importante

marco para almejarmos a viabilização do direito à comunicação como um direito individual e

social. No Brasil, serviço público se define por:

(...) atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à

satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados,

que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por

quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público - portanto, consagrador de

prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em favor dos

interesses definidos como públicos no sistema normativo.107

106 RAMOS, Murilo César. Politicas de comunicação: buscas teóricas e práticas/ orgs. Murilo Cesar

Ramos, Suzy dos Santos. São Paulo: Paulus, 2007, p. 47.

107 BANDEIRA DE MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 26ª Ed, São Paulo: Malheiros,

2010, p. 665.

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Atualmente, o sistema brasileiro de radiodifusão pertence a um sistema misto. Isso

significa que convivem emissoras públicas e privadas, entre entes públicos e concessionários,

sujeitos a um regime de Direito Público, ou seja, devem obediência ao interesse público e às

normas constitucionais e infraconstitucionais.108

Segundo Nusdeo (1997: 238) o modelo

brasileiro de radiodifusão se aproxima do modelo norte-americano denominado de fiduciário

público109

(trusteeship model):

Pelo trusteeship model, o espectro eletromagnético (meio físico por onde circulam

as ondas de rádio) é um bem natural, público e limitado e os radiodifusores operam

como trustees, ou fiduciários do público, sob controle governamental, que conduz o

processo de outorgas de licenças (no Brasil, concessões e permissões).

O modelo de radiodifusão importado dos Estados Unidos apresenta uma incoerência

em seu interior, qual seja: a existência de financiamento publicitário, com canais licenciados

pelo governo em número limitado, ao mesmo tempo em que deve prevalecer o interesse

público. A incoerência está no fato de estarmos umbilicalmente conectados com um sistema

de financiamento publicitário que é incompatível com o respeito ao interesse público, que

entendemos dever tratar de questões sociais, culturais, acesso universal e pluralismo de

ideias.110

A histórica relação entre o poder, a mídia e a política no Brasil permite que tanto as

legislações ultrapassadas quanto a política pública sobre o sistema brasileiro de rádio e TV

privilegiem o setor privado, em detrimento da pluralidade que pode ser alcançada com a

participação do setor público e comunitário sem fins lucrativos.

Vejamos como esse processo é ainda mais prejudicial para a democratização da

comunicação social eletrônica na sociedade brasileira. Desde o fim da ditadura militar no

Brasil, por volta de 1985, a oligopolização da mídia e a utilização das concessões de

radiodifusão como arma política funcionam basicamente arquitetados em uma concepção

108 “Existem também o 1) "modelo estatal", no qual todos os meios de comunicação são de propriedade do

Estado, remanescente apenas em alguns países do chamado "socialismo real" (Cuba, por exemplo); 2)

"modelo concorrencial ", sustentado na autoregulação do mercado, cujo maior exemplo é o inglês e o 3)

"modelo público", no qual a gestão e controle dos meios de comunicação ficam a cargo de comissões de

cidadãos”. Cf. Bruno Lupion Gonçalves. Marcos Regulatórios e democratização da mídia: o direito de

antena. São Paulo, Monografia de graduação em Direito na USP. 2006, p. 56 apud Aluízio Ferreira da Silva.

Direito à informação, direito à comunicação: direitos fundamentais na Constituição Brasileira. Dissertação

para obtenção do título de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1997, pp.

74-80.

109 Santos e Silveira (2007) destaca que “O Public Trustee é a entidade física e ou jurídica, dependendo do

país, que recebe sua porção do espectro em confiança do Estado com o compromisso de cumprir algumas

determinações em defesa do Interesse Público”.

110 SANTOS, Suzy dos; SILVEIRA, Érico. Serviço público e interesse público nas comunicações. In:

Politicas de comunicação: buscas teóricas e práticas/ orgs. Murilo Cesar Ramos, Suzy dos Santos. São

Paulo: Paulus, 2007, p. 65-66.

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liberal da democracia, tendo como agravante as particularidades regionais de um país latino-

americano de dimensões estratosféricas, que inclui um coronelismo sem precedentes.111

Com

aguçada ironia de um cientista político digno de nota, Arantes (2011: 212) critica o monopólio

dos meios de comunicação em tempos de Estado democrático de direito no Brasil:

(...) depois do período épico de remoção do chamado entulho autoritário, passamos

com sucesso ainda maior à consolidação de nossas instituições democráticas - entre

elas, a grande propriedade da terra e dos meios de comunicação de massa: quem

jamais se atreveria a sequer tocar no escândalo desta última instituição? -, que de tão

fortalecidas estão cada vez mais parecidas com um bunker.

A tradicional relação entre mídia e poder vem de longa data no país. No período de

transição para o regime democrático, os simpatizantes do regime militar descobriram na

distribuição direcionada das concessões de rádio e televisão um porto seguro para a garantia

da perpetuação do poder e manutenção do status quo. Essa foi a forma conveniente

encontrada pelos militares da ditadura para dar continuidade à divulgação de suas

“conquistas” e ideais, sem a necessidade de um grande aparato para realizar a censura prévia.

Ramos (2007: 20) relembra que a organização Globo foi a precursora do envolvimento direto

entre empresariado e política no Brasil e afirma que:

Tanto quanto seu poder econômico e cultural, o que de fato importava para as forças

democráticas brasileiras, principalmente após o fim da ditadura em 1985, era o peso

que o grupo Globo assumira na política brasileira, na relação com todos os governos

desde a ditadura em 1964, e, nesse mesmo tempo, com uma maioria expressiva do

poder legislativo.

No campo político institucional, enquanto José Sarney era o responsável pelo

apadrinhamento112

das concessões; Antônio Carlos Magalhães113

, à época ministro das

111 Segundo Gonçalves (2006): a) Pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud)

divulgada em julho de 2004 no Encontro Internacional "Democracia, Governabilidade e os Partidos Políticos

da América Latina" indicou que, no Brasil, 59% dos entrevistados não sabem qual o significado da palavra

democracia e 54% apoiariam um governo autoritário se isso resolvesse os problemas econômicos. O

levantamento mostra ainda que apenas 37% dos brasileiros apoiam a democracia, percentual mais baixo da

América Latina, e que 56% da população acha que o desenvolvimento econômico é mais importante que a

democracia.

b) Os índices mais altos de desconfiança da pesquisa "Confiança nas Instituições", do Ibope Opinião, maio de

2005, são relacionados ao exercício da democracia: 89% da população desconfiam dos políticos, 88% dos

partidos, 79% da Câmara dos Deputados e 76% do Senado Federal. 44% confiam na polícia, 62% nos

sindicatos, e 61% na televisão. No topo da lista, a Igreja Católica, com 73% de confiança, os jornais, com

74%, e as Forças Armadas, com 75%.

c) Pesquisa do Datafolha publicada no jornal Folha de S. Paulo em 27 de agosto de 2006 indicou que 57%

dos eleitores brasileiros não se lembram dos candidatos em quem votaram para a Câmara dos Deputados e

Assembleias Legislativas em 2002.

112 Com base em Komito, Capparelli e Santos (2005) esclarecem que: “o receptor dos benefícios do patronato

tradicionalmente reconhece sua dependência e espontaneamente coloca-se ao dispor dos desejos do patrão

através de atos simbólicos de deferência ou subserviência por meio dos quais o cliente reconhece sua dívida.

Há no apadrinhamento a criação de uma dimensão moral que, somada à relação pessoal, serve para disfarçar

a desigualdade que gera a necessidade de tais trocas de favores”.

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Comunicações, era ao mesmo tempo apoiador da ditadura militar e favorecido com grande

fatia da audiência do Nordeste brasileiro. Estima-se que a família de ACM e seus aliados

dominam todos os segmentos de comunicações no Estado da Bahia e, segundo Capparelli e

Santos (2005: 90), 7 das 13 geradoras e 508 das 703 retransmissoras do Estado estavam sob

influência direta do ex-senador.

José Sarney concedeu 1.028 outorgas durante a prorrogação de seu mandato

presidencial, de 1986 a 1988, municiando dezenas de deputados com meios de

comunicações próprios. Estudo divulgado na época pelo Departamento Intersindical

de Assessoria Parlamentar revelava que, dos 593 deputados eleitos em 1990, 108

tinham sido beneficiados pelas concessões. (GONÇALVES apud COELHO NETO,

2006: 40).

Conta Gonçalves (2006: 41) que a distribuição política das concessões tiveram fim no

governo Sarney mas foram retomadas com o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) a

partir de 1995.114

Com FHC no poder, deu-se início também a uma política entreguista

configurada por uma série de privatizações inconstitucionais, em franco alinhamento com a

política internacional neoliberal norte-americana.115

De acordo com Matta (2011), desde o final dos anos 80, a lógica da concentração dos

meios de comunicação se estendeu a todos os setores, discográfico, editorial, radiofônico,

televiso, no entanto foi no ano de 1998 que o processo de liberalização das telecomunicações

foi protagonizado globalmente pelos acordos na Organização Mundial do Comércio.

No mesmo ano em que FHC tomou posse, foi aprovada a Lei do Cabo (Lei 8.977/95)

que, por ter contado com a participação da sociedade civil para a sua confecção, permitiu

alguma introdução dos canais públicos e comunitários na televisão fechada. Em 1996 as

concessões passaram a ser repassadas mediante um processo licitatório, entretanto as

113 De acordo com Capparelli e Santos (2005): “Se, antes de assumir o Ministério das Comunicações do

governo Sarney (1985-1989), Antônio Carlos Magalhães era a favor de uma revisão das concessões, logo

mudou de ideia. Ele próprio havia sido beneficiado com concessões de rádio e de televisão, ele próprio

chegava ao ministério por indicação do empresariado de comunicação e ele próprio, junto com o presidente

da República, José Sarney, optou por reforçar ainda mais o clientelismo existente. Era como se os militares se

afastassem do poder deixando a mídia com pessoas próximas de suas ideias, divulgadas pelo rádio e pela

televisão”.

114 Declarou FHC que: “Se Lênin vivesse hoje ele não ia querer fazer um partido. Ele ia querer ser dono de

uma cadeia de televisão. Porque o instrumento de ação política hoje são os meios de comunicação”

(CARDOSO, Documentário/2003).

115 Na segunda metade do século XX, quando operou-se a tentativa de desconstrução do conceito

emancipatório do serviço público pelos países cêntricos com o objetivo de diminuir os gastos públicos, deu-

se origem à leva de privatizações inconstitucionais em grande parte dos países subdesenvolvidos, como foi o

caso do Brasil. Esse plano fez parte do projeto que buscou alcançar a plenitude da livre iniciativa e da auto-

regulação do mercado. No melhor estilo liberal norte-americano, tais políticas foram amparadas pela

campanha de marketing dos conglomerados financeiros sob o codinome de “globalização” e “reforma do

Estado”, através da superação do Direito Administrativo historicamente afirmado. Cf. BANDEIRA DE

MELO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 26ª Ed, São Paulo: Malheiros, 2010.

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emissoras educativas continuaram sendo de competência concedente do Executivo, o que

gerou uma série de escândalos sobre negociações das concessões públicas.

Sylvio Costa lembra que o critério de distribuição das 1.848 outorgas de estações

retransmissoras de TV, até 1997, privilegiou os “amigos” do presidente candidato à

reeleição da seguinte forma: 268 foram entregues a políticos; 342, ao grupo SBT;

319, à Rede Globo; 310, à Rede Vida, ligada à Igreja Católica; 252, à Bandeirantes;

226, à Manchete; 151, à Rede Record, da Igreja Universal do Reino de Deus; e, por

último, 125, às TVs educativas. (CAPPARELLI; SANTOS, 2005: 89).

Antes do término de seu mandato, o governo FHC condecorou o capital internacional

com a criação da Lei 10.610/02, que possibilitou a participação do capital internacional no

serviço público de radiodifusão.

A abertura para a exploração financeira pelo capital estrangeiro do serviço público

nacional, inclusive das empresas de radiodifusão sonora e de sons e imagens, facilitada pela

Emenda Constitucional 36/2002, somente foi possível, segundo o jurista Bandeira de Melo

(2009: 668):

por emendas constitucionais ou audaciosas manobras políticas patrocinadas pelo

grande condutor deste movimento de desnacionalização (acompanhado de

escândalos notórios, mas muito eficientemente acobertados): o Sr. Fernando

Henrique Cardoso, a quem, de todo modo, não se pode negar o reconhecimento de

ser o maior e mais bem-sucedido líder do pensamento da direita na esfera econômica

que o País já teve em toda a sua História.

Nesse mesmo ano, artigo publicado na Folha de São Paulo denominado “FHC

distribuiu rádios e TVs educativas para políticos”, descortinou que:

Em sete anos e meio de governo, além das 539 emissoras comerciais vendidas por

licitação, FHC autorizou 357 concessões educativas sem licitação. (...) A

distribuição foi concentrada nos três anos em que o deputado federal Pimenta da

Veiga (PSDB-MG), coordenador da campanha de José Serra, esteve à frente do

Ministério das Comunicações. Ele ocupou o cargo de janeiro de 99 a abril de 2002,

quando, segundo seus próprios cálculos, autorizou perto de cem TVs educativas.

Pelo menos 23 foram para políticos. A maioria dos casos detectados pela Folha é em

Minas Gerais, base eleitoral de Pimenta da Veiga, mas há em São Paulo, Rio de

Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Roraima e Mato

Grosso do Sul. (LOBATO in LIMA, 2007).

Durante o governo Lula, também não tivemos significativas mudanças desse

quadro.116

A esperança de uma política de desenvolvimento social para o setor da

116 “A verdade é que nós temos nove ou dez famílias que dominam toda a comunicação deste país. A verdade é

que você viaja pelo Brasil e você tem duas ou três famílias que são donas dos canais de televisão. E os

mesmo são donos de rádio e os mesmos são donos dos jornais. Discutir isso é uma necessidade da nação

brasileira. Uma necessidade dos empresários, dos especialistas, dos jornalistas, ou seja, de todo o mundo para

ver se a gente se coloca de acordo com o que nós queremos de telecomunicações para o futuro do país”

(LULA apud LOBATO, 2010).

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68

comunicação social eletrônica não foi, e continua não sendo, matéria prioritária do governo

petista. Na matéria denominada “Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos”,

publicada em 2006 na Folha de São Paulo, foi denunciado que:

O governo Lula reproduziu uma prática dos que o antecederam e distribuiu pelo

menos sete concessões de TV e 27 rádios educativas a fundações ligadas a políticos.

(...) Entre políticos contemplados estão os senadores Magno Malta (PL-ES) e Leonel

Pavan (PSDB-SC). A lista inclui ainda os deputados federais João Caldas (PL-AL),

Wladimir Costa (PMDB-PA) e Silas Câmara (PTB-AM), além de deputados

estaduais, ex-deputados, prefeitos e ex-prefeitos. Em três anos e meio de governo,

Lula aprovou 110 emissoras educativas, sendo 29 televisões e 81 rádios. Levando

em conta somente as concessões a políticos, significa que ao menos uma em cada

três rádios foi parar, diretamente ou indiretamente, nas mãos deles. (LOBATO in

LIMA, 2007).

A situação da concentração dos meios de comunicação no Brasil aponta que, de um

modo geral, 90% dos meios de comunicação de massa no país ainda são controlados por

alguns grupos familiares.117

Tanto por isso, os movimentos sociais que militam em prol da

democratização dos meios de comunicação encontram imensas dificuldades na aprovação de

projetos de lei de caráter progressista nesse campo. Patente está o poder de influência dos

radiodifusores dos veículos de massa no Congresso Nacional e o próprio interesse dos

parlamentares nesse jogo político. Segundo pesquisa realizada pela Universidade de Brasília

(UNB):

Em 2009, o Laboratório de Políticas de Comunicação da Universidade de Brasília

(Lapcom-UNB) realizou um levantamento pelo qual é possível medir a dificuldade

para a aprovação de projetos polêmicos envolvendo a radiodifusão. Os dados do

trabalho (MARTINS, 2009) apontam que 37,% dos membros da Comissão de

Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados

(CCTCI) são proprietários de emissoras de Rádio e TV ou parentes de controladores

destes tipos de veículos. Na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação,

Comunicação e Informática do Senado (CCT) esse índice sobe para 47%.

(CORREIA, 2011: 139).

Na composição da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática

(CCTCI), em 31 de dezembro de 2004, 14 deputados titulares (28% do total) e 6 suplentes

(12%) detêm ou são parentes de detentores de radiodifusão, pelo que constamos da lista de

acionistas do Ministério das Comunicações.118

Aquilo que foi batizado de coronelismo

eletrônico119

demonstra que, até 2001, 37,5% da distribuição de concessões da mídia televisa

117 LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e Política.São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a ed., 2004.

118 CAPPARELLI, Sérgio; SANTOS, Suzy dos. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um novo

conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz;; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira (orgs.). Rede Globo 40 anos de

poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005.

119 Segundo Capparelli e Santos (2005), a expressão “coronelismo eletrônico”: inclui a relação de clientelismo

político entre os detentores do poder público e os proprietários de canais de televisão, o que configura uma

Page 69: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

69

no país pertenciam ao Partido da Frente Liberal (PFL)120

, vertente política que representa o

interesse dos grandes latifundiários no país.

3.5. A desconstrução da política como meio popular de

transformação social durante a ditadura militar:

uma crítica à atual política nacional de direitos

humanos

No ano passado, Arantes iniciou a sua exposição na aula inaugural da semana de

jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a seguinte afirmação: a

democracia brasileira é fruto de uma violação estrutural ao direito de liberdade.

A provocativa frase é seguida de uma retrospectiva dos resquícios de um estado de

exceção, recente e que permanece, que, pelo menos em tese, deu origem ao Estado

democrático de direito por meio da Constituição Federal de 1988.

Arantes (2011) se utiliza de fatos históricos para mostrar como tal democracia

continua a reproduzir diversas aberrações do período do regime militar. Exemplos para

ilustrar a afirmação inicial não faltam, como é o caso da lei de anistia, da política de reforma

agrária e da lei de imprensa editada em 1967, no auge da censura estatal.

Apesar da lei de imprensa ter sido declarada, tardiamente, pelo Supremo Tribunal

Federal no ano de 2009 como incompatível com os princípios democráticos, e portanto não

recepcionada pela Constituição Federal de 1988; o obsoleto Código Brasileiro de

Telecomunicações (CBT), instituído pela lei 4.117 de 1962, pouco antes do golpe, completa

50 anos de vigência em 2012.

Traçamos a seguir um breve panorama histórico do período que compreende a

transição para o regime democrático no Brasil a fim de denunciar como a atual política

nacional de direitos humanos, que inclui portanto o direito à comunicação, arquitetou-se a

partir do projeto de contrarrevolução dos militares.121

barreira à diversidade representativa que caracterizaria uma televisão na qual o interesse público deveria ser

priorizado em relação aos interesses particulares”.

120 CAPPARELLI, Sérgio; LIMA, Venício A. de. Comunicação e televisão desafios da pós-globalização.

Pesquisa realizada pela assessoria do PT em 2001. São Paulo: Hacker Editores, 2004, p 30.

121 Silva Filho (2006: 238) remete à história da colonização para destacar a figura do primeiro defensor dos

direitos humanos na América Latina, que teria sido Bartolomé de las Casas. “(...) embora a postura de Las

Casas seja assimilacionista ela partiu de um princípio menos encobridor do que a visão da metodologia

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70

O período do pós 2ª Guerra Mundial, com a vitória antifascista e consolidação do

Welfare State (Estado de bem estar social) nos países desenvolvidos do Norte, deu início a um

processo político caracterizado pelo modelo populista de governo, cuja forma política

inspirou-se na social democracia.122

A Segunda Guerra Mundial termina com uma nova expansão da democracia, e não

só por causa do colapso das ditaduras fascistas: o sufrágio feminino triunfa em

países como a Itália e a França; com o desaparecimento dos traços residuais de voto

plural, afirma-se com vigor, até na Inglaterra, o sufrágio universal igual e o princípio

“uma cabeça, um voto”; nos Estados Unidos, começam a ser recolocadas em

discussão as discriminações contra os negros e os brancos pobres do século XIX; a

volta à representação proporcional na Itália democratiza ainda mais o sistema

eleitoral e político, barrando o caminho às tentativas de retorno ao regime de

notáveis anterior à Primeira Guerra Mundial e à Revolução de Outubro.

(LOSURDO, 2004: 257).

Na América Latina do pós-guerra, contudo, o forte desemprego e a histórica

desigualdade ainda reproduziam os resquícios da exclusão e segregação gerados por uma

colonização escravocrata sangrenta, transformada em imperialismo desde então.123

O grande teorizador da desigualdade na modernidade capitalista é, sem dúvida, Karl

Marx (1970). Segundo ele, a relação capital/trabalho é o grande princípio da

integração social na sociedade capitalista, uma integração que assenta na

desigualdade entre o capital e o trabalho, uma desigualdade classista baseada na

exploração. (SANTOS, 2010: 280).

Na ausência de trabalho assalariado, o Estado-Providência, como também é chamado,

delineado para regular uma realidade em que a integração dos indivíduos na sociedade se dá

pelo trabalho, se mostrou incompatível com a sociedade latino-americana da época e,

portanto, impossibilitou a distribuição mínima de riquezas pelo Estado enquanto garantidor do

pacto social-democrático.124

A conquista de direitos sociais e a sua efetivação pela intervenção do Estado nos

países desenvolvidos, permitiu que a segunda metade do século XX viabilizasse uma

tábula rasa, reconhecendo o índio como sujeito na medida em que exige a sua compreensão e aceitação

racional, e não apenas uma submissão. Além disso, há que se considerar que, ao pedir um tratamento mais

humano para os índios, mesmo sob termos assimilacionistas, fez a única coisa que, em nível imediato era

possível para mitigar o sofrimento dos habitantes originais daquelas terras”.

122 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo: Para Uma Nova Cultura Política. São Paulo:

Cortez, 3a ed., 2010.

123 Uma interessante e muito proveitosa crítica ao processo de colonização latino-americano e sobre como o

projeto eurocentrista de modernidade buscou transformar a identidade cultural do “outro” (colônia) em

identidade de “si mesmo” (Europa) pode ser encontrada na leitura de Silva Filho (2006). O autor se utiliza

principalmente de Dussel e Zaffaroni para identificar como o sistema penal latino-americano é fruto de uma

dominação colonialista exercida desde o início com o desprezo da civilização originária e de sua cultura.

124 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo: Para Uma Nova Cultura Política. São Paulo:

Cortez, 3a ed., 2010, p. 286.

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conjuntura propícia para a reorganização da luta armada, formação de sindicatos, partidos

trabalhistas, comunistas e socialistas inclusive nos países do Sul.

A gestão controlada das desigualdades e da exclusão não foi, em nenhum momento

uma iniciativa ou uma concessão autônoma do Estado capitalista. Foi antes o

produto de lutas sociais que impuseram ao Estado políticas redistributivas e formas

menos extremas de exclusão. (SANTOS, 2010).

Descreve Arantes (2011), porém, que a peculiar dinâmica da realidade brasileira pré-

golpe esteve muito mais ligada com a guerra civil regionalizada que se passava no cone Sul

desde a década de 50 e com a interrupção do modelo “desenvolvimentista” liberal.125

Ao contrário do que alguns historiadores defendem, assegura Arantes (2010: 219),

com base na tese de Greg Grandin, que o regime ditatorial aqui instituído não foi fruto direto

da Guerra Fria. Para o filósofo brasileiro, esta apenas refletia um embate mais antigo entre

revolução e contrarrevolução iniciado em 1920, sob a liderança norte-americana, pelos países

vitoriosos da Primeira Guerra Mundial. E, por isso mesmo, leciona Arantes (2011) que o

golpe de 1964 não se tratou de um alinhamento necessário com os Estados Unidos na

polarização ideológica mundial que se seguiu, mas sim de colocar em prática o projeto de

extirpação da política enquanto motor de transformação da realidade social através da

instauração do terror, a fim de deixar o caminho livre para a expansão desenfreada do capital

por meio da exploração do trabalho humano.

As condições em que se têm dado as novas formas de politização do processo de

acumulação encontram no regime ditatorial a matriz política mais adequada à sua

reprodução, o que se concretizou em geral na década de setenta. O agravamento das

condições de reprodução da força de trabalho (degradação dos salários reais e dos

benefícios sociais) e o aprofundamento das desigualdades sociais fizeram com que

só pela repressão brutal se pudesse manter a “paz laboral” particularmente exigida

por um processo de industrialização relativamente acelerado. (SANTOS, 1988: 69).

Com a implantação da ditadura militar, a desestabilização da resistência popular

organizada no país se deu através de execuções, torturas e desaparecimentos de qualquer

suspeito de envolvimento com ativismo político.

Essa nova figura - o desaparecimento forçado de pessoas - desnorteou os primeiros

observadores. A rigor, até hoje. Ainda no início dos anos 1980, um Paul Virilio

perplexo se referia às ditaduras do Cone Sul como o laboratório de um novo tipo de

sociedade, a “sociedade do desaparecimento”, onde os corpos agora, além do mais -

e, sabemos tudo o que este “mais” significa -, precisam desaparecer, quem sabe, o

efeito paradoxal do estado de hiperexposição em que se passava a viver.

(ARANTES, 2010: 207).

125 ARANTES, Paulo Eduardo. Aula inaugural da semana de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

São Paulo. 2011. “Liberdade no Brasil Contemporâneo”.

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Lima (2010: 41) observa como, em meados dos anos 70, o contexto repressivo da

ditadura militar esteve conectado com “o início das transmissões diretas de TV para todo o

país, o recrudescimento da economia política, a censura e a internacionalização da economia”.

Essencial para o sucesso desse modelo teria de ser, como o foi, o controle dos meios

de comunicação, o que aconteceu tanto pela imposição da censura quanto,

principalmente, pela adesão voluntária, por afinidade ideológica, do empresariado de

comunicação ao regime militar. Adesão da qual seriam “pontas de lança” o jornal, o

rádio e a recém-inaugurada televisão do grupo Globo, de Roberto Marinho.

(RAMOS, 2007: 20).

Desde então, o governo atuou ao lado da grande mídia, contando com especial

colaboração da família Marinho responsável pelas transmissões da maior emissora do país, a

Rede Globo (Anexo).126

Em contrapartida, ao mesmo tempo em que a organização das esquerdas se

decompunha no Brasil, novas formas de luta surgiam. Como, por exemplo, a criação em 1967

da Comissão de Justiça e Paz que funciona como imperativo político e moral dos direitos

humanos no combate às torturas e mortes.

Em nível global, tal vertente é representada até hoje pela Anistia Internacional, voltada

para a libertação de prisioneiros de consciência, independente se de esquerda ou de direita,

pouco importando se acusado de terrorismo pelas autoridades e pela mídia.

A principal característica dessas entidades, que fazem parte da nova construção dos

direitos humanos, é a adoção de uma linha emergencial para cuidar de indivíduos em situação

extrema de violação física, moral e psicológica. Nas palavras de Arantes127

, a nossa ditadura

pariu a democracia dos direitos humanos.

Tendo iniciado com o projeto de contrarrevolução desde meados do século XX,

triunfou, em escala mundial, o plano estratégico das classes dominantes de desconstrução da

política como meio de emancipação da sociedade.

Seja como for, algo se rompeu para sempre quando a brutalidade rotineira da

dominação, pontuada pela compulsão da caserna, foi repentinamente substituída

pelo terror de um Estado delinquente de proporções inauditas. A tal ponto que até

Hobsbawm parece não saber direito em qual dos extremos do seu breve século XX

incluir este último círculo latino-americano de carnificinas políticas, no qual não

hesitou em reconhecer a “era mais sombria de tortura e contraterror da história do

Ocidente”. (ARANTES, 2010: 208).

126 Ver anexo documento publicado no Jornal O Globo em 07 de outubro de 1984 escrito por Roberto Marinho

em que explicita o alinhamento das organizações Globo com os anseios da Ditadura Militar, revelando o

apoio irrestrito ao regime autoritário.

127 ARANTES, Paulo Eduardo. Aula inaugural da semana de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

São Paulo. 2011. “Liberdade no Brasil Contemporâneo”.

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Nesse sentido, assevera Chaui (2010: 101) que “somos forçados a reconhecer que as

declarações modernas de direitos humanos trazem consigo a violência e tornam-se fonte de

medo, em vez de fonte de emancipação”. O medo a que se refere a autora diz respeito à

dicotomia criada entre vítimas (donos de propriedade privada) e violadores (sem propriedade

privada). Ou seja, instituiu-se uma esfera de direitos humanos de viés eminentemente

repressivo e punitivo que desconsidera a conjuntura econômico-social e defende os direitos

humanos apenas de uma determinada classe, condenando os setores mais vulneráveis da

população.

(...) os instrumentos criados para repressão e tortura dos prisioneiros políticos foram

transferidos para o tratamento diário da população trabalhadora e que impera uma

ideologia segundo a qual a miséria é a causa de violência, as classes

“desfavorecidas” sendo consideradas potencialmente violentas e criminosas.

(CHAUI, 2010: 108).

Sob este aspecto, a transição democrática no Brasil foi similar ao que ocorreu no Chile

e na Argentina que resultaram, hoje, no confronto entre duas realidades antagônicas no

tocante aos direitos humanos, quais sejam, Estado democrático representativo de raiz

ditatorial combinado com uma política econômica neoliberal. Ramos (2007: 30) admite que

esse Estado de Direito na realidade reflete o radical neoliberalismo, que nega categoricamente

a necessidade do envolvimento político na economia, e ainda acrescenta que:

Ele seria o Estado de Direito revestido do dever legal único de assegurar a liberdade

dos mercados. Um Estado de capitalistas e consumidores, sem qualquer

possibilidade de mediação social conduzida pelas ideias de direitos humanos e

cidadania. De algum modo, essa perspectiva, que pode limpidamente ser qualificada

de reacionária, porque mais do que conservadora, materializou-se, nas décadas de 80

e 90 do século XX, em regimes autoritários do capitalismo periférico asiático e

latino-americano, na Indonésia, Malásia, Hong Kong, Tailândia, e Chile, por

exemplo.

Alguns respeitáveis estudiosos evidenciaram como as marcas deixadas pela ditadura

brasileira são ainda mais profundas e não se restringiram ao campo político. Apenas em

termos constitucionais, conta Arantes (2010: 212) que nos resta uma vasta herança desse

período no texto da nossa Constituição, designada “cidadã”, de 1988.

O termo “cidadã” aparece entre aspas para identificar a peculiaridade da Carta de 1988

que, se de um lado progressista, apesar da supremacia do direito de propriedade, do outro foi

permissiva com a carga autoritária que restou da Doutrina de Segurança Nacional no

ordenamento jurídico pátrio, ignorada pelos nossos congressistas e políticos. Conta Zaverucha

(2010: 45) que

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A nova Constituição descentralizou poderes e estipulou importantes benefícios

sociais similares às democracias mais avançadas. No entanto, uma parte da

Constituição permaneceu praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967 e

à sua emenda de 1969. Refiro-me às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas,

Polícias Militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança pública em

geral.

A militarização da segurança pública, sancionada por FHC em 2001, está entre os

resquícios mais vivos e influi diretamente sobre a política nacional de direitos humanos128

.

Decorre da sua promulgação por meio da Carta outorgada em 1967, e de sua emenda de 1969,

ainda vigentes no que diz respeito às cláusulas referentes às Forças Armadas, polícias

militares e segurança pública.

Como afirma Arantes (2010) o grande legado, ainda vigente, do aparato administrativo

da ditadura militar no Brasil permite que a lógica “desenvolvimentista” dos golpistas

permaneça viva com a militarização da segurança pública no ordenamento jurídico.

As agências não judiciais do sistema penal atuam mediante uma estrutura

disciplinar, uma organização militarizada, fato que no Brasil tornou-se mais palpável

com o processo de militarização das polícias neste século. (...) Essa autoridade, ou

poder, é recrudescida por vários fatores externos, tais como a não-ingerência dos

órgãos judiciais em muitas questões - o que se faz por motivos políticos, por um

'corporativismo de inércia', situação em que, visando à manutenção de certo status, é

melhor 'não se meter' -, as campanhas de lei e ordem e o papel dos meios de

propaganda, que a todo momento exaltam a atuação policial e exibem, como sinal de

triunfo sobre a criminalidade, uma pilha de cadáveres. (SILVA FILHO, 2006: 256).

A relevância e a complexidade da discussão acerca do Estado de exceção brasileiro

nos obriga deixarmos, por hora, essa questão em aberto para ser estudada em uma próxima

oportunidade. Por enquanto nos limitamos em reconhecer a existência de um Estado de

128 Exemplos recentes na história nacional de utilização do aparato militar para “tratar” da questão social

podem ser encontrados no caso da desapropriação violenta de mais de 6 mil pessoas da área do Pinheirinho

em São José dos Campos, no estado de São Paulo, no dia 22 de janeiro de 2012, a favor dos interesses de um

megaespeculador, Naji Nahas, que estima-se, segundo o senador Suplicy (apud LEMES, 2012), ter um débito

junto ao governo federal de cerca de R$11 milhões de reais. Outros exemplos foram a invasão da favela Vila

Cruzeiro e do Morro do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião de Vila Cruzeiro, conta Thuswohl

(2011) que: “Sessenta policiais civis, 450 policiais militares e 88 fuzileiros navais recém-chegados do Haiti

participam da ocupação da Vila Cruzeiro. A Marinha cede doze carros blindados (a maioria do tipo M113)

para ajudar na invasão. O Estado-Maior da PM anuncia que será instalada uma UPP na Vila Cruzeiro.

Comboios da polícia são aplaudidos pela população em diversos pontos da cidade”. A mega operação de

guerra empreendida no Complexo do Alemão, é mais um exemplo, como descreve Thuswohl (2011):

“Enquanto paraquedistas e atiradores de elite vigiam os acessos às favelas, policiais civis e militares entram

em confronto com traficantes nas localidades conhecidas como Grota e Fazendinha, provocando ferimentos

em três militares e seis civis, entre eles uma criança e um fotógrafo da Reuters. O governador Sérgio Cabral

se reúne com o ministro da Defesa, Nélson Jobim, e com representantes das três Forças Armadas para acertar

uma operação conjunta de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) no Rio. O Exército anuncia a participação de

800 paraquedistas nas ações policiais e a cessão de mais dez carros blindados e três helicópteros. A Polícia

Federal coloca 420 policiais à disposição do governo do Rio. Na Guiana, onde participa de reunião da

Unasul, o presidente Lula afirma que o Rio pode contar com total ajuda do governo federal”.

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exceção nas sociedades contemporâneas, em que o Executivo, por possuir legalmente o poder

de suspender a lei, encontra-se imediatamente despido de lei.

Afora isso, Arantes (2010: 221) revela como “vem da ditadura a consagração da lógica

empresarial como prática administrativa do setor público” e ainda, como toda a estrutura

estatal, decorrente da reforma administrativa de 1967, como também o Código Tributário e o

CBT foi incorporado pela nova Constituição do país.

Para Arantes (2011), a classificação do Brasil atualmente como uma potência

econômica emergente dentro dos centros econômicos globais só foi possível pela atualização

do capital provocada pelo projeto “desenvolvimentista” do regime militar que teve início em

1964, bem como pelo sacrifício dos direitos sociais.129

A propósito dessa herança transviada da democracia, Fernandes (1982) chegou à

conclusão de que, no Brasil, a conciliação política ocorre pelo alto.130

A figura de linguagem -

“conciliação pelo alto” - nos permite entender o processo de “transição lento, gradual e

seguro” arquitetado pelo Planalto na passagem da ditadura aos tempos democráticos.

(...) a constitucionalização do golpe de Estado, desde que liderado pelas Forças

Armadas, que passaram a deter o poder soberano de se colocar legalmente fora da

lei. Passado o transe da verdadeira transição para o novo tempo que foi o regime de

1964, esse saiu de cena, convertendo sua exceção em norma. Tampouco o poder de

polícia conferido às forças armadas precisou esperar por um decreto sancionador de

FHC em 2001. (ARANTES, 2010: 213).

A partir dessa análise, que não teremos oportunidade de esmiuçar nesse momento,

podemos admitir que o período de transição democrática veio a reforçar a passagem de um

estado de exceção131

ilegítimo para um estado de exceção legítimo, ou seja, assegurou uma

estrutura jurídica de super poderes ao Executivo pela via constitucional combinado a uma

democracia exclusivamente eleitoral, onde convivem direitos sociais e econômicos

legalmente garantidos mas impedidos de concretização devido à normalização de um Estado

de emergência permanente gerado para a manutenção da ordem jurídica de mercado.

(ARANTES, 2010: 223)

129 ARANTES, Paulo Eduardo. Aula inaugural da semana de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

São Paulo. 2011. “Liberdade no Brasil Contemporâneo”.

130 Arantes adverte que (2010: 218): “Até onde sei, uma das raras vozes na massa pragmático-progressista da

ciência social uspiana a não se conformar com o fato consumado na transição pactuada com os vencedores,

mas sobretudo a contrariar a ficção da democracia consolidada, foi a de Florestan Fernandes. Trinta anos

depois do golpe, ainda teimava em dizer que a ditadura, como constelação mais abrangente do bloco civil-

militar que a sustentara, definitivamente não se dissolvera no Brasil”.

131 Por estado de exceção nos referimos aos poderes excepcionais do Executivo em instaurar, com base na

Constituição, um estado de sítio ou de emergência a qualquer momento de forma discricionária para a

salvaguarda do próprio capitalismo, bem como o poder de polícia conferido às forças armadas para ser usado

a qualquer tempo diligentemente contra os “inimigos” da sociedade e do Estado.

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Constatamos, por fim, que a estrutura que nos restou do complexo militar-punitivo

colaborou para a criação de uma democracia, e de uma política de direitos humanos, baseada

em duas vertentes. De um lado um regime jurídico-político liberal-constitucional, para

beneficiar as classes que se encontram no topo da pirâmide, e de outro o tratamento

paternalista-repressivo conferido à massa de trabalhadores.

3.6. A atual resistência à privatização do público no

contexto da mercantilização da radiodifusão no

Brasil: as rádios comunitárias em ação

Mesmo sabendo que o assunto de que trata este tópico poderia dar margem a um novo

trabalho inteiro só sobre ele e que, portanto, terá de ser desenvolvido com mais tranquilidade

em uma próxima ocasião, consideramos de bom grado problematizar sobre como a atual crise

de legitimidade dos Estados contemporâneos está relacionada com uma maior utilização da

esfera pública pelos cidadãos. A fim de traçar um breve mapeamento da atual resistência

popular à mercantilização da radiodifusão no Brasil através das rádios comunitárias, nos

baseamos, primordialmente, na análise de Boaventura de Sousa Santos, para situar a categoria

trabalho, em sua conjuntura no modo de produção capitalista, para buscar compreender como

ela influencia na resistência popular à privatização do público, especialmente quando inserida

no contexto cultural latino-americano.

Como analisa Santos (2010: 297): “à medida que se rarefaz o trabalho e mais ainda o

trabalho seguro, a integração garantida por ele torna-se mais e mais precária. E, nessa medida,

o trabalho passa a definir mais as situações de exclusão do que as situações de desigualdade”.

Assim, se é a sociabilidade pelo trabalho o que dá fundamento às políticas redistributivas,

estas que buscam a redução da extrema desigualdade, quase sempre relacionadas à

vulnerabilidade gerada pelo próprio trabalho, na ausência deste, perdem o seu elemento de

força política.

As conquistas populares democráticas do século XX, após terem enfrentado nos países

centrais a crise de legitimidade do Estado capitalista na década de sessenta, foram abaladas

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pela desarticulação do Estado de Bem Estar Social e sua substituição por políticas econômicas

neoliberais que se iniciou com o período de recessão na década de oitenta.132

Enquanto na década de sessenta, nos países centrais, o aumento dos gastos públicos

amparados por uma renovada legislação social, fruto do envolvimento de vários setores da

sociedade na luta emancipatória por direitos, permitiu a expansão da máquina estatal; a nova

ordem social e econômica estabelecida na década de oitenta, com o neoliberalismo de Reagan

e Thatcher, implicou no enxugamento das políticas sociais e atingiu, inclusive, países

desenvolvidos como Espanha, Portugal e Grécia. Essa nova conjuntura gerou ondas de

desemprego e aumento dos níveis de pobreza em todo o mundo, que agora refletem também

nos Estados Unidos.133

Como nos explica Santos (2000: 17) a conjuntura internacional na década de oitenta

foi caracterizada pelo esvaziamento e crise do Estado-Providência nos países centrais, sendo

que tal crise “já vinha da década anterior e com ela agravaram-se as desigualdades sociais e os

processos de exclusão social (30% dos americanos estão excluídos de qualquer esquema de

segurança social) e de tal modo que estes países assumiram algumas características que

pareciam ser típicas dos países periféricos”.134

Ramos (2007: 30) destaca que esse momento

histórico deu início a uma hegemonia que pôs fim ao Estado de Bem Estar keinesiano, que

tinha como ideal as políticas de compensação social e a crença na Organização das Nações

Unidas para a promoção do desenvolvimento entre as nações.

Instituições como a Unesco (United Nations Education, Science and Culture

Organization), FAO (Food and Agriculture Organization), IWO (Internacional Work

Organization), WHO (World Health Organization), Unctad (United Nations

Conference for Trade and Development) foram substituídas progressivamente pelo

Fundo Monetário Internacional (FMI), Bando Mundial (Bird) e Organização

Mundial do Comércio (OMC), como os foros privilegiados de estruturação

capitalista.135

No mundo ocidental, os países pobres do Sul e a África foram então os principais

alvos da crise que solapou os países desenvolvidos nos anos oitenta e os que mais sofreram

132 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo: Para Uma Nova Cultura Política. São Paulo:

Cortez, 3a ed., 2010.

133 O quadro desigual da oferta de força de trabalho mundial foi assim apresentado por Santos (1988: 67):“Os

países periféricos ou 'em desenvolvimento' constituem hoje um exército de reserva industrial quase ilimitado

e à escala mundial. Calcula-se entre 200 a 250 milhões o número de desempregados registrados nesses

países, isto é, um número superior ao dos postos de trabalho no mundo capitalista no seu todo”.

134 A atual crise financeira que atinge o mercado mundial, em especial os países da Europa e os Estados

Unidos, demonstra a fragilidade de um sistema em que o capital só se reproduz se expandindo, o que remonta

a uma análise da crise estrutural do capital.

135 RAMOS, Murilo César. Politicas de comunicação: buscas teóricas e práticas/ orgs. Murilo Cesar

Ramos, Suzy dos Santos. São Paulo: Paulus, 2007. 408p.

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com a cobrança de suas dívidas externas, com a desvalorização comercial de seus produtos e

com o decréscimo da ajuda externa; isso sem falar do desemprego crônico, decorrente

principalmente do desequilíbrio cambial, da exploração desumana do trabalho, da mão-de-

obra abundante barata e desqualificada.

Em vias de uma nova crise de legitimação, causada pelo atual período de recessão,

desse Estado que privilegia o capital financeiro ao invés de garantir os direitos dos seus

cidadãos, a solução econômica para a crise fiscal do Estado, a fim de que o capital continue a

sua expansão, tem sido a privatização do estado social, como acontece com alguns direitos

sociais e serviços públicos, para tomar o exemplo da privatização da educação, dos seguros

sociais de saúde e da aposentadoria, que já teve início nos países da Europa e nos Estados

Unidos.

Nesse cenário, Santos (1988: 68) observou que, para omitir a crise, a política-

ideológica do aparato estatal tem tratado de simular uma maior descentralização por meio da

participação dos cidadãos na administração local a partir de reformas administrativas. Para

Santos (1988), são medidas que visam ao mesmo tempo diminuir os custos da administração e

compensar ideologicamente a crise de legitimação resultante do corte das despesas com os

direitos sociais, pois “através do envolvimento dos cidadãos nos escalões mais baixos da

administração, o estado reproduz os ideais e os símbolos da participação popular, da

solidariedade, do comunitarismo, da paz e da estabilidade”.

Tratam de ações interdependentes e que disputam espaço com o retorno de medidas

político-repressivas da dominação capitalista, tais como as assinaladas por Santos (1988: 68):

a ineficácia crescente dos canais da representação e a consequente desertificação

política dos parlamentos; a hipertrofia do controle técnico-burocrático, quer dentro

dos aparelhos de estado, quer no próprio processo de trabalho nas fábricas; a

militarização crescente das forças da polícia com vista a combater eficazmente os

inimigos internos.

Assim, na impossibilidade do Estado expandir-se pela produção de bens econômicos,

se reproduz pela produção de bens simbólicos ativadores da naturalização de um estado

repressor e violento.

Devido à disseminação de políticas baseadas na diminuição das despesas públicas e na

retração do Estado social, o retorno de práticas autoritárias se traduz também pelo tratamento

dos problemas sociais e desigualdades econômicas como caso de polícia; enquanto que no

campo simbólico, como acontece nos veículos de comunicação de massa, expande-se a ideia

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de que essa desigualdade é natural, decorrente da natureza egoísta do homem, algo que não

pode ser transformado pela humanidade. Para Santos (2010: 192), neste momento histórico:

torna-se difícil pensar em qualquer alternativa à fase actual do capitalismo global,

liderado pelos EUA, que eu chamo globalização hegemônica (Santos, 1995a, 2000,

2002a, 2005). Contudo, uma tal alternativa é não só necessária mas urgente, dado

que o regime de dominação global actual, à medida que perde coerência, mostra-se

cada vez mais violento e imprevisível, aumentando desse modo a vulnerabilidade

das regiões, das nações e dos grupos sociais subordinados e oprimidos. O perigo

real, tanto nas relações internas dos países que compõem o sistema mundial, como

nas relações internacionais, é a emergência daquilo a que chamo fascismo social136

.

Entretanto, relembra Santos (2010: 33) que, em meio ao confronto entre hegemonia e

contra-hegemonia, o “Sul surge então como protagonizando a globalização contra-

hegemônica cuja manifestação mais consistente é o Fórum Social Mundial (...).”.

A resistência à privatização do público, como sabemos, passa pela viabilização da

participação popular na esfera pública, especialmente no que diz respeito ao direito à

comunicação. Isso implica em compreender, a partir de uma perspectiva histórica, a

cidadania, a democracia, a repartição do poder e a representação política na sociedade de

classe, como pudemos verificar nos tópicos anteriores. Para Meksenas (2002: 22), que

compartilha a mesma noção de cidadania de Santos, a cidadania somente pode ser alcançada

pela garantia das liberdades civis e políticas, ao mesmo tempo em que os direitos sociais são

efetivados pela intervenção do Estado. Intervenção que decorre da pressão da sociedade

organizada para reivindicar seus direitos, como nos ensina Santos (2010):

A gestão controlada das desigualdades e da exclusão não foi, em nenhum momento

uma iniciativa ou uma concessão autônoma do Estado capitalista. Foi antes o

produto de lutas sociais que impuseram ao Estado políticas redistributivas e formas

menos extremas de exclusão.

No entanto, reconhece Santos (2010) que o conceito político de cidadania é

enfraquecido à medida que aumentam os grupos sociais das camadas mais baixas do sistema

da desigualdade e da exclusão. Isso implica na proteção institucional cada vez mais

superficial, de que o autor chama de “novo darwinismo social”. Nessa exaltação institucional

do individualismo, a luta passa a ser de cada um por si, de forma que “a sua responsabilização

é a sua alienação; alienação que, ao contrário da alienação marxista, não resulta da exploração

do trabalho assalariado, mas da ausência dele” (SANTOS, 2010: 300).

136 Conforme explica Santos (2010: 192): “Contrariamente ao fascismo político, o fascismo social é pluralista,

coexiste facilmente com o Estado democrático, e o seu espaço-tempo privilegiado, em vez de ser nacional, é

simultaneamente local e global. O fascismo social é um conjunto de processos sociais mediante os quais

grandes sectores da população são irreversivelmente mantidos no exterior ou expulsos de qualquer tipo de

contrato social.”.

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A exclusão socioeconômica de parte da sociedade pela ausência de trabalho, que não é

a única forma de exclusão que conhecemos, é decorrência da crise estrutural do capital que

delineamos acima.

É também nos momentos de crise, porém, que observamos um maior

descontentamento da população com o regime capitalista, tornando mais frequentes a

indignação com o modelo socioeconômico estabelecido. Se de um lado essa conjuntura pode

tender a um novo fascismo, também é favorável, especialmente nos países do Sul global, a

uma reformulação da emancipação social de baixo para cima.

Em meio ao contexto da mercantilização da comunicação social, que, segundo Matta

(2011), é uma tendência do sistema econômico mundial, a luta travada pela contra-hegemonia

para disputar o espaço eletrônico de comunicação se dá, como relatamos nos tópicos

anteriores, por diversas frentes. Neste tópico nos limitaremos a mapear alguns exemplos de

resistência popular na radiodifusão pelo uso desse meio como forma de atender ao interesse

público.

Na estrutura atual do sistema de meios de comunicação, a indústria formou

consórcios que privilegiam o lucro em detrimento do serviço, e institui uma forte

padronização de formatos e lógicas uniformes na produção de conteúdos de

entretenimento e informação.

Na âmbito do mercado mundial de radiodifusão, estima-se que cerca de dez

conglomerados globais detêm o controle de todos os meios de comunicação de massa. A leva

de privatizações advinda do modelo neoliberal no final da década de 80 ocasionou o maior

registro de aquisições, fusões e parcerias entre os agentes econômicos atuantes no mercado

dos meios de comunicação já observado na história do capital.137

Em particular, após a aprovação do Telecommunications Act nos Estados Unidos em

1996, o mercado de comunicação assistiu à fuga de corporações norte-americanas para o

Brasil, gerando fusões entre os setores do jornalismo, rádio, revistas, televisão, etc. Segundo

Paulino (2007: 183):

No Brasil, levantamento do Instituto de Pesquisas em Comunicação de Porto Alegre,

coordenado por Daniel Herz (Wanderlli, 2002), revelou que a concentração das

emissoras de televisão, de rádio e jornais nas mãos de grandes grupos quase dobrou

na última década e que, ao contrário de algumas expectativas, a entrada da Internet

não ajudou a democratizar as instituições de comunicação no país.

137 Nos Estados Unidos, desde o ano de 1983 até 2006 o número de grupos de comunicação social caiu de 50

para 5 macroconglomerados, responsáveis por veicular os mesmos conteúdos nos noticiários, se

diferenciando apenas quanto ao tipo de publicidade e público alvo.

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Tal concentração midiática pode ser explicada pela conformação vertical e horizontal

das diversas mídias existentes que se mesclam cada vez mais com o controle político e

econômico, sem dar margem à pluralidade de fontes de informação e de conteúdo, o que

causa desequilíbrio ainda maior quando se trata de distribuição regional das concessões.138

Após esse breve panorama dos interesses mercadológicos na comunicação,

adentramos naquilo que nos interessou aqui, qual seja, os exemplos de resistência popular na

radiodifusão no Brasil nos dias de hoje.

É possível dizer que o papel de contra-hegemonia sempre foi desempenhado, desde o

surgimento da imprensa, pelo jornal. A respeito, Pinheiro (2009) reflete que:

O jornal impresso, afora obviamente congregar sistemas de ideias e de poder, situa-

se num espaço concreto de relações culturais que lhe confere especificidade frente

aos demais meios. Portátil e maleável, tátil às exigências dos dedos e de todo o

corpo, obriga o leitor a participar de um modo de conhecimento, além do noticiado,

que interliga os âmbitos privados e domésticos às atividades de lazer externo e

investigativo da cultura urbana: nenhum ato comunicativo pode, por exemplo,

substituir aquele, democrático, de sair, comprar e folhear um jornal a céu aberto.

Estamos de acordo com Pinheiro nessa brilhante análise semiológica do jornal.

Entretanto, dado o fato de que, no Brasil, grande parte dos cidadãos não sabem ler, nem

escrever, e que ainda é quase inexpressiva a quantidade de leitores de jornal, ousamos afirmar

que o papel da televisão e do rádio exercem muito mais influência sobre a formação da

opinião pública. Daí o nosso interesse em particularizar esses dois meios de comunicação

como potenciais espaços de contra-hegemonia.

Nas nações com altos índices de analfabetismo, inclusive países grandes como Índia

ou Brasil, o rádio desempenhou, como é previsível, um papel mais importante que o

da imprensa.139

A gravidade da situação levou a Unesco classificar o Brasil como um caso de

“subinformação”, algo que pode ser feito analogia com uma subnutrição, na qual a

informação é o alimento carente ao indivíduo. Isso se explica pelo fato de que, segundo a

Unesco, deve ser de dez exemplares para cada cem habitantes o número mínimo de jornais

138 LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e Política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004.

139 DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo:

SENAC São Paulo, 2002, p. 243.

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diários; enquanto que, no Brasil, a proporção é de 4,1 exemplares para cada cem brasileiros,

colocando-o na 102ª posição no ranking de exemplares de jornal por habitante.140

Born defende que nada adianta o cidadão dispor do acesso à informação acaso não

desenvolva sua capacidade intelectual, como a capacidade de interpretar e criticar a

mensagem recebida. Por isso, argumenta Born que, além da inclusão digital, a alfabetização e

a educação como um todo devem ser consideradas meios técnicos de acesso à informação, e

portanto direitos do cidadão, sem o que permanecerá o “subdesenvolvimento

informacional”141

. Tal situação também não será superada enquanto a estrutura de

concentração dos meios de comunicação de massa continuar a difundir uma versão unilateral

dos fatos.

Dados fornecidos pela International Food Policy Research Institute dão conta de que,

em 2011, aproximadamente 1 bilhão de pessoas passavam fome no mundo142

. No Brasil a

situação é desoladora, apesar do mito do progresso econômico, o país segue uma organização

coronelista na maioria das regiões de seu território, combinada com a atual política econômica

do modelo neoliberal que conduz 11,2 milhões de brasileiros à fome (IBGE, 2010); isso sem

falar dos índices de analfabetismo: 14 milhões de brasileiros analfabetos (IBGE, 2010).

A ironia da “superpotência” emergente pode se mostrar ainda mais preocupante

quando voltamos a nossa atenção para os índices que demonstram o alcance do serviço de

teletransmissão nos domicílios brasileiros em contrapartida com os índices de garantia dos

serviços públicos fundamentais como saúde, educação, alimentação e saneamento básico.

Apesar de tratarem de serviços públicos constitucionalmente garantidos, Machado (In

COMPÓS, 2009: 235) divulgou que, até quatros anos atrás, 96,3% dos lares brasileiros

possuíam acesso ao serviço público prestado pela televisão aberta, enquanto apenas 68% da

população recebia saneamento básico, por exemplo.

Os números demonstram como o cidadão brasileiro é tratado cotidianamente como

consumidor. Enquanto carecem investimentos nos setores públicos que assegurem os direitos

básicos relativos à dignidade do ser humano, privilegia-se um serviço que na maior parte do

140 Cf. GONÇALVES, Bruno Lupion. Marcos Regulatórios e Democratização da Mídia: O Direito de Antena.

Monografia apresentada para obtenção do diploma de graduação em Direito na Universidade de São Paulo.

São Paulo. 2006, p. 34.

141 Para Born, o conceito de “subdesenvolvimento informacional” serve: “para caracterizar um ambiente social

em que os cidadãos não sabem o que fazer com a informação em grande volume que circula nos meios

sociais de comunicação. Quando a relação do cidadão com a mídia só se dá ou pelo alheamento, ou pelo

entretenimento, a informação não gera desenvolvimento social”.

142 Como referência o limite estabelecido pela ONU, que são de 1.800 quilocalorias por dia

(LICHTAROWICZ, 2010).

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tempo, apesar de público, atende aos interesses mercadológicos com o objetivo de atrair

consumidores e manter a ordem social estabelecida, marginalizando a cultura popular.143

Apesar disso, quando voltamos a nossa atenção para as demonstrações de utilização da

radiodifusão por comunidades ou grupos da sociedade civil, podemos encontrar modelos de

insurgência popular que escapam à lógica mercantil explorada pelos meios de comunicação

de massa.144

O que é fascinante, neste momento, a respeito do espaço eletrônico, é que é um

espaço contestado, um espaço onde centros de poder já se começam a desenhar, mas

onde ainda é muito grande a capacidade de subversão das margens.145

Em se tratando de radiodifusão no Brasil, podemos citar alguns exemplos de rádios

comunitárias, que ainda representam uma tecnologia de baixo custo, com um perfil alternativo

ao comercial. Dentre elas estão: Heliópolis (entre a região do Ipiranga em São Paulo e São

Caetano do Sul - SP), Rádio Novos Rumos (Baixada Fluminense - RJ), Curaçá FM (região de

Juazeiro - BA), Super FM (Sorocaba - SP) e Rádio Camponesa FM (Itapeva - SP).

Inspirados, quem sabe, na Rádio Xilik, a primeira rádio paulistana, criada por

estudantes e professores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em julho

de 1985, estudantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) organizaram há mais

de dez anos a Rádio Muda, que é aberta para a participação de toda a comunidade e também

denuncia a ditadura do monopólio da comunicação.

O fenômeno das rádios livres só toma seu sentido verdadeiro se o recolocamos no

contexto das lutas de emancipação materiais e subjetivas. (...) A intervenção de uma

inteligência alternativa, de práticas sociais inovadoras, como é o caso das rádios

livres, parece portanto indispensável à saúde de centenas de milhões de explorados

desse continente. (GUATTARI, 1987: 9)

Logicamente que não podemos ser inocentes ao ponto de estabelecer um maniqueísmo

entre as rádios, tv's comunitárias e outros meios de comunicação eletrônica, como se as

primeiras fossem “do bem” e os outros não. Dentro de todos os meios de comunicação

podemos encontrar exemplos de hegemonia e contra-hegemonia. Há rádios e tv's que se

143 Para uma visão mais complexa sobre o assunto ver Pinheiro (2009: 18), para quem: “A imprensa de massa

contribui, assim, através de empréstimos e traduções de formas em movimento, num continente que contava,

nas primeiras décadas do século passado, com dois terços de analfabetos, para o esquadrinhamento do

amálgama de culturas populares, formando trincheira contra o analfabetismo verborrágico e tribunício dos

letrados, que petrifica as palavras dentro do alinhamento possível de temas política e esteticamente

acomodados”.

144 Para uma coletânea sobre projetos de rádio radical em todo o mundo, Downing (2002: 244) aconselha B.

Girard (org.), A passion for Radio: Radio Waves and Community (Montreal: Black Roses Books, 1992).

145 SANTOS, Boaventura de Souza. A Gramática do Tempo: Para Uma Nova Cultura Política. São Paulo:

Cortez, 3a ed., 2010, p. 308.

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dizem comunitárias, por exemplo, mas guardam vínculo com a Igreja ou com setores

empresariais.

Lima Filho (2005: 8) destaca que a mídia alternativa além de ter como princípios a

democracia participativa, a contra-hegemonia e a relação dialógica com o público, tem

também pressupostos metodológicos como: “a auto-organização popular, o respeito à

pluralidade, a autonomia e o diálogo”. Tanto por isso é que os movimentos sociais acabam

sendo responsáveis por promover grande parte dessa mídia. Matta (2011) explica que:

São centenas de rádios que compartilham a missão de democratizar as

comunicações, e nas quais organizações da sociedade civil exercem papel

fundamental com princípios e gestão que não visam lucro nem proselitismo político

ou religioso. São meios que representam os interesses da comunidade onde estão

inseridos, seja uma pequena localidade ou um amplo setor social (...) Têm como

missão centrar a comunicação em questões sociais, ressignificar o trabalho

comunicacional e contribuir para remover a inércia do sistema de comunicação

atual. A propriedade coletiva e não lucrativa ocupa o centro dos debates que

questionam o viés mercantil dos grandes meios de comunicação.

Como sabemos, o Estado brasileiro não pode estabelecer mecanismos de restrição

indireta sobre as frequências de rádio e TV, sob pena de violar o direito à expressão livre,

assegurado, inclusive no artigo 13 da Convenção Interamericana, que implica na liberdade de

receber, pesquisar e difundir informação por qualquer meio. Não obstante, a realidade

brasileira é outra146

, Castro (apud GHEDINI, 2009: 64) escreveu em junho de 2007 que:

Entre outras loucuras que aconteceram nos últimos cinco anos, cerca de 10 mil

emissoras de baixa potência foram brutalmente caladas/fechadas. Cinco mil

brasileiros foram condenados. Cerca de 20 mil processos tramitam na justiça contra

comunicadores populares. Muitos deles processados mais de uma vez, como

acontece com Fátima Guedes, presidente da Abraço, MG, ré em seis processos.

A criminalização147

das rádios comunitárias no Brasil por meio de legislações

protetoras dos interesses mercadológicos e de uma política pública contrária à organização

popular, fez com que, de acordo com Matta (2011), a Amarc (Associação Mundial de Rádios

Comunitárias) trabalhasse “na formulação de quatorze princípios por uma radiodifusão

democrática (http://legislaciones.amarc.org), que buscam o reconhecimento dos meios de

146 Gonçalves (apud MELO, 2006: 77) revela que: “Segundo pesquisa feita pela Universidade de Brasília,

rádios comunitárias ligadas direta ou indiretamente a políticos têm 4,4 vezes mais chances de conseguir se

tornar legal do que as outras”.

147 Gonçalves (2006: 77) revelou que: “Em agosto de 2006 foi detonada a operação Sintonia, pela Polícia

Federal (PF), para fechar rádios comunitárias, sob o mesmo e falacioso argumento de impedir interferências

em aviões e ambulâncias, conforme comunicado à imprensa divulgado pela PF. Entre as rádios fechadas

estava a Rádio Várzea, baseada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, cf. 'Depois da

apreensão, a luta', Trama Universitário, disponível em <www.tramauniversitario.com.br/noticias/

noticias_detalhe.jsp?id=13221>.”

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comunitários e o fomento à pluralidade e à diversidade no sistema dos meios de

comunicação”.

Ghedini (2009: 16) apontou que, em 2009, entre 7 mil a 15 mil rádios comunitárias,

dependendo da fonte, funcionavam no Brasil com ou sem autorização, e que existiam em

48,6% dos 5.564 municípios, segundo o IBGE.

Para Downing (2002: 105):

A agenda continua a ser examinar de que modo a mídia radical como um todo, de

pinturas a vídeos, de panfletos a jogos de computador, pode transmitir impacto

estético e estimular uma atividade de diálogo alternativa, em vez de simplesmente

oferecer contra-informação. A interação entre artistas e produtores da mídia

alternativa e, de maneira geral, o tipo de intensa interatividade na mídia da qual

falaram Benjamin e Brecht, são fundamentais para o futuro da mídia radical.

Por fim, a agudização das contradições socioeconômicas que se espera da crise

estrutural do capital exige que os movimentos sociais exerçam um papel central na luta

cotidiana pela expansão da esfera pública. Requer, assim, tomada de consciência no sentido

da reconstrução da concepção emancipatória da democracia.

3.7. O modelo de negócios tende a configurar as políticas

públicas: crítica ao modelo de televisão digital

adotado pelo Brasil

Com o intuito de constatarmos como o modelo de negócios tende a configurar as

políticas públicas, tomamos o exemplo da introdução da televisão digital148

no país. Para

tanto, imprescindível que se leve em conta as legislações que a precederam e as políticas

socioeconômicas no campo da radiodifusão para que possamos entender a implementação das

políticas públicas em época de convergência digital. Nesse sentido, quando pensamos em

regulação da televisão digital terrestre, temos que necessariamente falar das legislações

anteriores e das relações de poder existentes até então.

Pesquisa realizada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

(FNDC), com base nos dados do Sistema de Controle de Radiodifusão (SRD) do Ministério

das Comunicações, aponta que as redes do sistema brasileiro de televisão são compostas por

148 Convém observar que a análise esboçada nesse capítulo pretendeu trabalhar apenas com a vertente da

televisão digital terrestre, cujo espectro de radiofrequência, tanto VHF quanto UHF, é destinado aos serviços

abertos e de livre recepção por parte da população.

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332 emissoras. “Deste total, 263 estão vinculadas às redes GLOBO, SBT, Record,

Bandeirantes, Rede TV e CNT, representando 79,2% de todas as emissoras brasileiras de TV

aberta.” (FNDC apud ROSA, 2005: 38).

Como vimos, a gratuidade da televisão aberta brasileira é viabilizada pelo mercado

publicitário, interessado na criação de desejos e hábitos de vida para aumentar o consumo de

seus produtos. Não obstante o descaso com o interesse público, no Brasil, ocorrem práticas

inconstitucionais e ilegais, como a liberação de canais públicos a Igrejas e a políticos, e ainda

canais que utilizam integralmente da programação televisiva para a transmissão de

publicidade.

Essa permissividade mercadológica histórica da televisão brasileira pode ser atribuída

às suas origens, já que “os primeiros canais de televisão brasileiros foram os canais

comerciais. Isso influenciou na criação de uma identidade nacional televisiva, já que o padrão

de qualidade do brasileiro se tornou o 'padrão Globo'” (CONTRAPONTO, 2011: 3).

Até hoje, o Jornal Nacional da Rede Globo é o programa de maior audiência no país

e atinge índices de quase 50%, contra 14% do Jornal da Record, que ocupa o 2o

lugar; a criação de uma imagem de sucesso televisual independentemente das

condições culturais e sociais do país - temos a melhor telenovela e o melhor

telejornal e inúmeros prêmios que atestam a sua unanimidade; e ainda uma grade de

programação que sintoniza um país inteiro às condições da veiculação, organizando,

de segunda a domingo, a vida do cidadão brasileiro, principalmente daqueles que só

têm acesso à televisão aberta. (MACHADO in COMPÓS, 2009: 234).

O conglomerado das organizações Globo, maior responsável pela propriedade cruzada

no país, controla o canal aberto, composto por cinco emissoras próprias e 121 afiliadas, assim

como o Sistema Globo de Rádio (CBN inclusive), e ainda mantém o controle da Globosat

(dona ou com participação nos canais Globonews, Multishow, SporTV, GNT, Universal

Channel, Telecines, além dos canais Premiere), das empresas de TV por assinatura Net Brasil,

Net serviços e SKY Brasil.149

Instalada em 1965, em meio à grande polêmica decorrente da sociedade com o

Grupo Time-Life, o que não era permitido pelas leis brasileiras (Herz, 1987), a TV

Globo do Rio de Janeiro se transformaria em pouco mais de duas décadas no maior

conglomerado de comunicação do Brasil, e um dos três maiores da América Latina.

(RAMOS, 2007: 20).

Podemos dizer que, por ter nascido privado em 1923, o sistema brasileiro de

radiodifusão nunca permitiu significativa participação da sociedade civil no debate que o

cerca, diferente do que ocorreu com os sistemas europeus e com os Estados Unidos, este que,

149 CAROS, Amigos, Edição Especial - Mídia: A Grande Batalha para a Democracia, ano XV, número 52,

abril de 2011, p. 12.

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mesmo tendo escolhido desde o início o modelo comercial privado sempre teve que enfrentar

a luta por uma radiodifusão pública, cultural e educativa.

Os coronéis da mídia no Brasil sempre acreditaram estar mais bem preparados do que

o povo para deliberar sobre o tema, como se tratasse de assunto de “especialista”, devendo ser

distanciado ao máximo da população, que é diretamente afetada pelas decisões tomadas,

doutrina que é compartilhada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem a:

democracia que é possível na realidade consiste no governo por uma minoria

democrática, ou seja, por uma elite formada conforme a tendência democrática,

renovada de acordo com o princípio democrático, voltada para o interesse popular: o

bem comum. (FERREIRA FILHO apud SILVA, 2008: 27).

Essa concepção liberal da democracia é a mesma que sustenta a perpetuação da

concentração da propriedade nos meios de comunicação. A ausência de atualização legislativa

no campo da radiodifusão permite dizer que a promulgação da Constituição Federal de 1988,

no campo da comunicação social, pode ser considerada simbólica, configurando o entrave até

hoje persistente para a sua democratização.

O crescente interesse dos grupos econômicos na área da comunicação social eletrônica

segue, atualmente, com a chamada nova mídia, que engloba diversas tecnologias em um

sistema multimídia. Para muitos estudiosos, como Chaui (2010) e Santos (2010), a revolução

digital vem acentuando o processo fragmentador do público, numa realidade em que a

inclusão digital se dá, muitas vezes, conforme a condição financeira do indivíduo, como

iremos debater em seguida.

Embora, aparentemente, a discussão acerca dessa tecnologia no Brasil tenha iniciado

oficialmente com a discussão da introdução da HDTV (TV em alta definição) pela Comissão

Assessora de Assuntos de Televisão (COM-TV), criada pelo Ministério das Comunicações em

1991, apenas em 2003 foi expedido o decreto 4.901 pelo Governo Federal, que deu origem ao

Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD). (ROSA, 2005: 99)

Em 2001, durante o processo de análise do modelo digital que melhor atenderia à

realidade brasileira, o desenvolvimento do Relatório integrador dos aspectos técnicos e

mercadológicos da televisão digital elaborado pelo CPqD (Fundação Centro de Pesquisa e

Desenvolvimento em Telecomunicações) para a ANATEL trouxe muitas esperanças para a

possibilidade de real democratização dos meios, como transcrevemos no trecho abaixo:

Com a potencialidade de oferecer um número maior de canais, comunicação

bidirecional entre telespectadores e entre emissoras a partir de um canal interativo,

além de um portal conveniente para serviços on-line, a TV Digital poderá estender

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88

os benefícios da era da informação a uma vasta camada da população que

atualmente tem acesso ao entretenimento audiovisual de forma passiva, com pouca

ou quase nenhuma interação com o provedor da informação ou mesmo com poucas

oportunidades de prover informação.150

Também seguiu essa mesma linha a exposição de motivos que deu origem ao decreto

presidencial de 2003, na qual estava previsto que o SBTV ofereceria:

entre outros, os seguintes benefícios para a sociedade em geral, e para os usuários,

em particular: a) democratização do acesso à informação promovendo as inclusões

digital e social; b) novos serviços e aplicações de telecomunicações, integrando

sinais digitais de diversas naturezas (além de áudio e vídeo), principalmente aqueles

baseados em interatividade; c) possibilidade da exploradora de serviço de

radiodifusão de sons e imagens ofertar conteúdo de programação com diversos

sinais simultâneos de imagem e de áudio, cuja seleção caberá a cada usuário; d)

melhor qualidade de vídeo e de áudio.151

O referido decreto, apesar de manter alguma semelhança com a exposição de motivos,

ainda era tímido no sentido de concretizar os princípios e valores que, segundo a Constituição

Federal de 1988, devem nortear a comunicação social. Em seu artigo 1°, o decreto 4.901

institui, de forma muito abstrata e vaga, quais seriam as finalidades do SBTVD:

Art.1ºFica instituído o Sistema Brasileiro de Televisão Digital-SBTVD, que tem por

finalidade alcançar, entre outros, os seguintes objetivos:

I- promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por

meio do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação;

II- propiciar a criação de rede universal de educação à distância;

III- estimular a pesquisa e o desenvolvimento e propiciar a expansão de tecnologias

brasileiras e da indústria nacional relacionadas à tecnologia de informação e

comunicação;

IV - planejar o processo de transição da televisão analógica para a digital, de modo a

garantir a gradual adesão de usuários a custos compatíveis com sua renda;

V - viabilizar a transição do sistema analógico para o digital, possibilitando às

concessionárias do serviço de radiodifusão de sons e imagens, se necessário, o uso

de faixa adicional de radiofreqüência, observada a legislação específica;

VI - estimular a evolução das atuais exploradoras de serviço de televisão analógica,

bem assim o ingresso de novas empresas, propiciando a expansão do setor e

possibilitando o desenvolvimento de inúmeros serviços decorrentes da tecnologia

digital, conforme legislação específica;

VII - estabelecer ações e modelos de negócios para a televisão digital adequados à

realidade econômica e empresarial do País;

VIII - aperfeiçoar o uso do espectro de radiofreqüências;

IX - contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de

comunicações;

X - aprimorar a qualidade de áudio, vídeo e serviços, consideradas as atuais

condições do parque instalado de receptores no Brasil; e

XI - incentivar a indústria regional e local na produção de instrumentos e serviços

digitais.

150 Disponível em <http://sbtvd.cpqd.com.br/?obj=historico&mtd=texto&item=1>. Acesso em 12 de dezembro

de 2011.

151 A íntegra da exposição de motivos está disponível no endereço eletrônico:

<http://www.mc.gov.br/tv_digital_minuta_17112003.htm>. Acesso em 03 de dezembro de 2011.

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89

Outro importante documento, denominado Modelo de Referência: Sistema Brasileiro

de TV Digital Terrestre, foi expedido também pelo CPqD em 2006, e indicava o DVB, o

modelo europeu, como o sistema mais compatível com a realidade brasileira.

Em contrapartida a todos os estudos realizados por entidades brasileiras com vistas ao

atendimento do interesse público, recente normatização proferida durante o governo Lula com

a expedição do Decreto n 5.820 de 29/06/2006 e da portaria 652 de 10/10/2006, representou

um retrocesso com relação às vantagens que um outro modelo de televisão digital poderia

trazer para a sociedade brasileira em termos de interatividade e convergência com a internet, o

que possibilitaria expandir a quantidade de vozes na televisão e construir relações dialógicas

nesse meio.152

Santos conta que o Decreto “apresenta apenas 15 artigos, faz a opção pelo padrão

japonês e desconsidera o fato de que a atual legislação brasileira não oferece sustentação

jurídica para a maior parte das diretrizes apontadas pelo documento”. (SANTOS apud

COMPÓS, 2009: 347) Segundo Santos153

, a mudança da diretriz governamental ocorreu

devido ao lobby da radiodifusão e ao desentendimento entre os movimentos sociais e o então

Ministro das Comunicações, Hélio Costa, defensor do ISDB japonês.154

Os movimentos sociais em prol da democratização dos meios de comunicação

criticam, principalmente, o fato de que muitas das ideias contidas no decreto foram debatidas

a portas fechadas no Fórum do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, sem participação

direta do povo, representado, em sua grande maioria, pelos interesses dos grandes

empresários, que possuem “competência” para enviar os projetos discutidos ao Comitê de

Desenvolvimento do Governo Federal, este que por sua vez também não permite direito a

voto. (CONTRAPONTO, 2011) O público, que é o destinatário final desse serviço, ficou à

margem desse debate, iniciado em 1991, de modo que a informação transmitida à sociedade

em geral se restringiu ao potencial de melhoria da imagem e som transmitidos pela televisão

digital.

152 Conta Santos (2009) que: “No início de novembro de 2005, ocorreu uma transmissão interativa

experimental das imagens digitais de alta definição, no padrão MPEG 4, na sede da Sociedade Brasileira para

o Progresso da Ciência (SPBC). Na mesma semana, a instituição enviou carta ao ministro, em defesa do

padrão nacional. O fato não recebera visibilidade midiática e a situação de desgaste se agravava a cada dia”.

153 SANTOS, Adriana Cristina dos. In: SQUIRRA, Sebastião; FECHINE, Yvana (orgs.). Televisão Digital:

desafios para comunicação, Porto Alegre, Sulina, 2009.

154 Assim como a lei de rádios comunitárias foi feita apenas para silenciar os interesses das comunidades, é

possível dizer que no referido decreto foi dado um direito precário a fim de que o movimento pela

democratização dos meios de comunicação fosse calado. A propósito, considerações acerca da existência de

normas e lei de caráter simbólico podem ser encontradas em Marcelo Neves, em sua obra

“Constitucionalização Simbólica”.

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90

Todas possibilidades previstas no atual decreto dizem respeito diretamente aos

radiodifusores, evidenciando a manutenção do atual cenário de concentração da

propriedade dos meios de comunicação de massa e a utilização das novidades

tecnológicas para reafirmar o domínio no setor em detrimento das oportunidades

para o desenvolvimento da ciência e tecnologias nacionais. (SANTOS apud

COMPÓS, 2009: 360).

As ilegalidades e irregularidades, dentre elas a ausência de motivação de ato

administrativo por parte do Executivo à época da opção pelo modelo japonês, contidas no

Decreto 5.820 foram, inclusive, objeto de Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério

Público Federal, por seus Procuradores da República integrantes do Grupo de Trabalho de

Comunicação Social da Procuradoria Federal dos direitos dos cidadãos, com o objetivo de

tutelar:

a) o interesse difuso, comum a todos os cidadãos que habitam esta República, de

exigir de seus governantes o respeito à ordem jurídica nacional; b) o direito difuso

de cerca de 169 milhões de brasileiros, usuários do serviço de radiodifusão, a uma

mudança tecnológica que realmente atenda a seus interesses.155

Um outro decreto, de nº 5.820 de 29 de junho de 2006, cuidou da transição do sistema

analógico para o digital e previu um prazo de sete anos para que o sinal digital atinja todo o

território nacional e dez anos para que toda a transmissão passe a ser digital no país. Passados

esses dez anos, as concessões de canais analógicos deverão ser devolvidas à União, ou seja, a

lei não permite a multiplicação do número de canais pelos operadores privados.

Ocorre que também aí o Decreto presidencial resvalou em ilegalidade e

inconstitucionalidade, já que nos §§ 3º e 5º do artigo 223 da Constituição Federal está previsto

que o ato de outorga ou renovação do serviço de radiodifusão somente produzirá efeitos legais

após deliberação do Congresso Nacional, e não cabe ao Executivo estabelecer, via decreto, o

prazo de “consignação” de um bem público sem observar o requisito da eficácia do ato

administrativo.

A TV digital foi então implantada, pelo menos na teoria, em 02 de dezembro de 2007,

sem modificar, no entanto, a substância da programação, e em desprestígio da tecnologia

nacional que já demonstrava a sua capacidade de desenvolvimento de um padrão nacional de

digitalização em alta definição e interatividade via midlleware156

.

155 Íntegra da Ação Civil Pública referida pode ser encontrada em:

<http://www.fndc.org.br/arquivos/ACP%20-%20TV%20DIGITAL.pdf>. Acesso em 01 dezembro de 2011.

156 Adriana Santos (2009) “No início de novembro de 2005, ocorreu uma transmissão interativa experimental

das imagens digitais de alta definição, no padrão MPEG 4, na sede da Sociedade Brasileira para o Progresso

da Ciência (SPBC). Na mesma semana, a instituição enviou carta ao ministro, em defesa do padrão nacional.

O fato não recebera visibilidade midiática e a situação de desgaste se agravava a cada dia”.

Page 91: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

91

Em geral, as emissoras estão se beneficiando apenas do fator da alta definição, que

trata de mera reprodução do minimalismo detalhista da imagem conforme uma programação

baseada no modelo de “adequação à média”, deixando de lado questões fundamentais

concernentes ao conteúdo da programação e formas de interatividade, o que talvez explique a

baixa adesão dos brasileiros à televisão digital até hoje.

Desde já, cabe esclarecer que o modelo japonês adotado pelo governo Lula consiste

em um sistema conservador que dificilmente abarcará a questão da participação popular na

produção de conteúdos, foco de interesse da presente pesquisa, já que desprestigia a

interatividade e a convergência com a internet, bem como desfavorece a ampliação das

oportunidades de transmissão por atores regionais, por seu alto custo e características técnicas

(MACHADO apud COMPÓS, 2009: 223). Rosa (2005: 208), por sua vez, não atribui à

problemática tecnológica esse retrocesso democrático, mas sim ao determinismo econômico,

pois, segundo ele, “é o modelo estabelecido pelas grandes redes que não permite que se tenha

forte produção local. Não é permitido, por exemplo, às afiliadas que o sinal da cabeça de rede

seja substituído em determinados horários, como o horário nobre da noite e a maior parte do

horário durante o dia”.

Enquanto o império midiático mantém o seu poder na mesma perspectiva da relação

produção-recepção, agora com transmissão digital, nos distanciamos cada vez mais da

discussão acerca da regulação democrática da radiodifusão e da defesa tanto da regionalização

quanto da produção independente plural e amplificada que poderiam ser beneficiadas pela

nova tecnologia. Na opinião de Santos (apud COMPÓS, 2009: 360), a tecnologia implantada

no Brasil: “pelo menos do ponto de vista da tecnologia, oferece apenas uma cópia do modelo

japonês, devido à ausência de um marco regulatório que garanta a inserção das inovações

tecnológicas desenvolvidas nos centros de pesquisas brasileiros e previstas no decreto

assinado”.

Como ressalta Rosa (2005: 3), devemos estar atentos para o fato de que “a discussão

não se dá apenas no que concerne ao padrão de transmissão de televisão, embora seja o tópico

mais divulgado, mas à adoção do modelo de televisão, com tudo que isso implica no âmbito

econômico, social, cultural e político”. Nesse aspecto, compartilhamos a ideia do autor de que

a escolha do modelo tecnológico implica também em um redesenho da produção,

programação, grade, estética e políticas públicas para o meio televisivo, que vão além da

questão técnica. Para Rosa (2005:13): “o meio televisão deve também ser entendido como

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meio de fruição estética do cotidiano ou, especificamente, de apreensão da realidade por meio

do aparato estético”.157

Rosa158

explica que até então, no Brasil e no mundo, a discussão estava pautada, de

um lado por aqueles que defendem o aproveitamento puramente técnico da televisão digital,

incluindo SDTV e HDTV; enquanto do outro lado, os que consideram positiva a utilização de

recursos aplicativos de multimídia e interatividade.

No caso da televisão interativa, o telespectador deixa de ser só telespectador e passa

a ser usuário (no sentido dado na Internet, por exemplo). Isso acarretaria outra

maneira de lidar com o meio, passando a televisão a ser vista como interface e não

mais como objeto receptor. A programação (aí inclusos os programas em si e

também a grade deles) para esse tipo de consumidor deverá ser, obrigatoriamente,

diferente da programação de televisão feita hoje em dia, baseada na recepção passiva

(ROSA, 2005: 8).

Ainda a respeito da esperança na transformação de alguns princípios da relação

“persuador-persuadido”, para emprestarmos uma expressão de Umberto Eco (1993), que são

protegidos como um direito natural pela grande mídia no Brasil, Machado (apud COMPÓS,

2009: 235) garante que:

potencialmente, a convergência tecnológica prefigurada na TV digital, que

possibilita uma real e efetiva interoperabilidade entre a TV, o telefone, o computador

e a Internet, fere todos esses princípios, ao transferir o poder de deliberação e

escolha ao usuário e ao diluir a prevalência de um sobre o outro, indiferente à

qualidade da imagem ou à quantidade de bits necessários a cada operação.

No entanto, a transferência do foco do debate pela democratização para a questão da

qualidade da imagem só fez confirmar o interesse do Governo e dos setores empresariais em

prol da técnica mercadológica, em prejuízo das possibilidades democráticas que poderiam

surgir com a participação da população no processo de produção de conteúdo televisivo e com

as práticas interativas. Machado (apud COMPÓS, 2009: 229) explica que:

magnatas e altos empresários da televisão optaram pela alta definição e exerceram

todas as pressões possíveis nesse sentido durante o processo de discussão do modelo

de TV digital a ser adotado pelo Brasil, mas tudo isso porque essa opção lhes garante

o controle exclusivo do mercado televisivo e, por tabela, o acesso exclusivo ao bolo

publicitário.

157 Mota (2009: 244) cita criação nacional de experiência interativa, em homenagem a Oswald de Andrade,

desenvolvida pela Labmídia (Laboratório de Mídia Eletrônica) - UFMG, denominada Manifesto

Antropofágico, que buscou: “tratar conteúdos, metodologia e produção, na perspectiva da mudança para a

televisão que modifica o papel do usuário/cidadão, que passa a ocupar o centro do processo”. Tal projeto

pode ser conferido em <http://www.fafich.ufmg.br/manifestoa/>.

158 Ibid.

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93

Um aspecto importante a ser levantado é o de que a TV digital, em maior ou menor

grau, dependendo do modelo escolhido, possibilita a convergência e a liberação de uma

quantidade maior de frequências analógicas.

Esse fato torna ainda mais relevante a criação de uma lei para a radiodifusão e de um

órgão fiscalizador da propriedade cruzada que diferenciem os serviços de telecomunicações,

internet e radiodifusão, a fim de possibilitar a entrada de novos atores sociais no ramo. Sobre

o assunto, Rosa (2005: 212) alerta, no entanto, que uma disponibilidade maior de canais não

significa necessariamente pluralidade de conteúdos, como ocorre na televisão por assinatura

em que “são muitos os canais, mas são poucas as opções realmente diferentes. Acaba sendo

mais do mesmo. E isso não contribui para a democratização do meio”.

Sabemos que a tecnologia digital é capaz de transformar novamente as formas de

comunicação, como aconteceu com o sistema multimídia na segunda metade dos anos 90, já

que através dela se torna possível interagir todas as mídias por um único sistema de

distribuição e recepção, gerando forte especulação de todos os setores da sociedade a respeito

de quem deverá possuir o controle dessa gigante máquina de produzir dinheiro, e também

controle.

Aspectos negativos da introdução da tecnologia digital na televisão são trabalhados

por Chaui (2010: 68), que relata como novos hábitos estão sendo criados a partir do novo

sistema pela enfatização da praticidade e individualidade. A indústria publicitária, através da

mídia, se responsabiliza por estimular atividades em que o indivíduo pode fazer sozinho e, de

preferência, em sua própria casa. A filosofa não só dá respaldo à teoria apresentada

anteriormente, como fornece exemplo do estreitamento do espaço público ao mesmo tempo

em que ganha maior importância o espaço privado na sociedade do conhecimento.

Para Chaui (2010: 61) a cultura é "uma ordem simbólica e opera com a distinção entre

presença ou realidade e ausência ou virtualidade", por isso o perigo do aprisionamento

causado pela “atopia” e “acronia” da virtualidade também está diretamente relacionado com a

intensificação da exclusão social e da hierarquia devido ao sistema multimídia, já que o seu

acesso e exploração depende da capacidade do indivíduo interagir de forma seletiva e

interativa com esse meio, sem a qual cria uma divisão entre receptores, aqueles aptos à

escolha, e aqueles à margem do sistema, como analfabetos da comunicação midiática.

(CHAUI, 2010: 78).

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Nesse mesmo sentido caminha Santos (2010: 307), para quem: “A emergência do

ciberespaço fará com que, para algumas das dimensões da sua reprodução social, esses grupos

sociais subordinados transitem do sistema de desigualdade para o sistema de exclusão”. Isso

porque o espaço eletrônico, apesar de ter a pretensão de ser um espaço público, é altamente

concentrado pelos setores da tecnologia de ponta, da publicidade e interessados na venda de

serviços e bens de consumo.

Por fim, a preferência por uma tecnologia de alto custo aqui implantada, ao invés de

outros padrões de TV digital, que funcionam com baixos investimentos, não deve ser

interpretada como uma opção inocente do governo. Significa imposição de barreiras à

participação popular nesses meios, dificultando a diversidade de agentes transmissores e de

conteúdo, de modo a favorecer o monopólio dos grupos empresariais do ramo,

desprivilegiando a política de inclusão digital, já que, de acordo com Machado (apud

COMPÓS, 2009: 229), “TV de alta definição é cara, tanto para o produtor quanto ao

consumidor, e isso limita o acesso a ambos”.

Page 95: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

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4. A SOCIOLOGIA DO DIREITO COMO METODOLOGIA DE

ESTUDO

Empregamos nesse capítulo, primordialmente, a noção de sociologia do direito

trabalhada no texto Introdução à Sociologia da Administração da Justiça de Boaventura de

Sousa Santos e no livro O que é direito de Roberto Lyra Filho.

A sociologia do direito nos interessou nesse trabalho por se ocupar de um fenômeno

social, o direito, que ao contrário de outros ramos, sofre a influência de séculos de

conhecimento intelectual, que vieram a se concretizar com a filosofia do direito, a dogmática

jurídica e a história do direito na idade moderna.159

Falamos em sociologia do Direito, enquanto se estuda a base social de um direito

específico. Por exemplo, é sociologia do Direito a análise da maneira como o nosso

direito estatal reflete a sociedade brasileira em suas linhas gerais (...). Toda aquela

velha estrutura então se desvenda como elemento condicionante, que pesa sobre o

país, obstaculizando as remodelações, sob a pressão simultânea das classes e grupos

sociais dominantes e das correlações de forças internacionais, interessadas em que

ao imperialismo não escape tão gordo quinhão. (LYRA FILHO, 1987: 151).

No século XIX, os precursores da sociologia do direito ao invés de atribuírem uma

visão institucional e organizacional ao direito, deram preferência a uma visão normativista do

mesmo com enfoque no direito substancial em detrimento do direito processual. O debate que

se estabeleceu a partir dessa percepção sociológica do direito gerou o conflito entre duas

correntes160

totalmente opostas dentre os cientistas sociais.161

Segundo Santos (1986), a primeira corrente entende o direito enquanto variável

independente e, portanto, compreende o direito como promotor de transformação social, ou

seja, é fruto de uma visão idealista que pensa o direito como maximizador da integração

social e da realização do bem comum sem considerar “a base socioeconômica, as classes

159 “Naquele procedimento circular, que entra no ofício histórico, trazendo hipóteses e modelos, resultante de

exame anterior, sobre o material acumulado, para submetê-los, depois, ao crivo de novas verificações, Marx e

Engels faziam história social, isto é, voltavam à História com a bússola duma sociologia. Não nos referimos,

aqui, à sociologia burguesa, tal como a concebeu Comte, na “física social”, mas à sociologia histórica, de que

precisamente são precursores Marx e Engels, embora não usassem essa etiqueta. Porque é sociologia a

disciplina mediadora, que constrói, sobre o monte de fatos históricos, os modelos, que os arrumam (com a

ressalva de emendas, ao novo contacto com o processo”. (LYRA FILHO, 1987: 150)

160 “Um dos mais finamente matreiros dentre os sociólogos burgueses, Ralf Dahrendorf, definiu aquelas

posições como (a) sociologia da 'estabilidade, harmonia e consenso' e (b) sociologia da 'mudança, conflito e

coação'”. (LYRA FILHO, 1987: 153)

161 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal. Revista Crítica de

Ciências Sociais. N° 21. Novembro de 1986. Disponível em <http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/

Introducao_a_sociologia_da_adm_justica_RCCS21.PD>. Acesso em 12 de dezembro de 2011.

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radicalmente contrapostas (espoliada e espoliadora), a existência de grupos oprimidos, a

contestação válida, as normas dos espoliados e oprimidos: seus direitos”.162

Essa visão está

relacionada com a posição adotada pelos positivistas jurídicos, que disseminam uma ideologia

baseada na ordem e na submissão a qualquer lei.

A segunda corrente percebe o direito enquanto variável dependente, ou seja,

compreende que o direito enquanto fruto do meio em que se encontra servirá de instrumento

para incorporação e manutenção dos valores estabelecidos.

A concepção do direito como variável dependente é resultado de uma visão realista

que enxerga o direito da sociedade capitalista como um instrumento de dominação econômica

e política para proteger os interesses de uma classe através do binômio geral-abstrato, ao que

a ideologia burguesa confere caráter universal.163

Lyra Filho (1987) alerta para a diferenciação

que há de ser estabelecida entre essa visão sociológica que tende à análise da dialética164

social do Direito e um modelo de 'mudança, conflito e coação' direcionado ao iusnaturalismo.

(...) tal como no iusnaturalismo, os padrões de crítica e avaliação das normas

dominantes continuam muito vagos e, assim como os tipos tradicionais falavam

numa certa ordem “justa”, meio nebulosa, a contestação, do modelo (mudança,

conflito e coação) (grifo nosso), fala em certa liberdade anárquica dos grupos, de

timbre individualista, cada um procurando “a sua”, que pode escandalizar o

burguesão “quadrado”, mas é logo absorvida e manipulada pelos mais espertos.165

Tanto na perspectiva positivista, quanto na iusnaturalista, percebemos que fica

prejudicada a análise social dialética, por assumirem uma posição assimilacionista com o

modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que negam a contradição entre as classes

sociais. Por outro lado, a contribuição do marxismo não-dogmático à sociologia do

conhecimento veio a confirmar a necessidade de construção de um modelo sociológico

dialético.166

Conta Santos (1986: 13) que no século XX continuou a predominar a visão

normativista substantivista, de maneira que a transição para uma visão processual,

institucional e organizacional do direito parece ter se iniciado, por influência de Ehrlich, com

162 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 155.

163 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal: Revista Crítica de

Ciências Sociais, N° 21, Novembro de 1986, p. 12.

164 De acordo com Lyra Filho (1987: 117): “... a visão dialética precisa alargar o foco do Direito, abrangendo

as pressões coletivas (e até, como veremos, as normas não estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos)

que emergem na sociedade civil (nas instituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras,

como determinados sindicatos, partidos, setores de Igrejas, associações profissionais e culturais e outros

veículos de engajamento progressista”.

165 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 159.

166 Ibidem.

Page 97: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

97

os estudos da escola do direito livre e com a jurisprudência sociológica. Com isso, além das

teses sobre os enunciados abstratos da lei, originaram-se análises concretas sobre as decisões

particulares do juiz.

Nesse mesmo período, Weber desenvolveu uma linha sociológica em que destacava a

posição privilegiada que o direito ocupa nas sociedades capitalistas em prejuízo das demais

fontes de normatividade. Assim, focou a sua análise nas pessoas responsáveis pela aplicação

da norma jurídica, nas profissões jurídicas e na burocracia estatal. Para Weber, o direito das

sociedades capitalistas se diferencia do direito das sociedades anteriores pela formação de um

monopólio estatal administrado por funcionários especializados, responsáveis pela aplicação

de normas gerais e abstratas a casos concretos conforme uma racionalidade formal.167

A esse

respeito, Santos (1986: 13) esclarece que:

A preocupação de Weber em definir a especificidade e o lugar privilegiado do direito

entre as demais fontes de normatividade em circulação nas relações sociais no seio

das sociedades capitalistas levou-o a centrar a sua análise no pessoal especializado

encarregado da aplicação das normas jurídicas, as profissões jurídicas, a burocracia

estatal. Segundo ele, o que caracterizava o direito das sociedades anteriores era o

construir um monopólio estatal administrado por funcionários especializados

segundo critérios dotados de racionalidade formal, assente em normas gerais e

abstratas aplicadas a casos concretos por via de processos lógicos controláveis, uma

administração em tudo integrável no tipo ideal de burocracia por ele elaborado.

Os direitos, segundo Weber, são particularidades da realidade social contemporânea e

traduzem a legitimação da dominação, cujo pressuposto é a existência de um aparato

burocrático capaz de coagir.168

O pensamento weberiano argumenta que os direitos

formalizados através dos ordenamentos jurídicos das repúblicas liberais foram a solução

encontrada pela burguesia para conter as lutas das classes trabalhadoras, intensificadas nos

séculos XIX e XX.169

Mas, como explica Chaui (2010: 94):

Isso não significa que antes da modernidade não houvesse teoria dos direitos dos

homens - sabemos que existiu a teoria do direito natural entre os estoicos, a do

direito subjetivo dos teólogos e juristas do final da Idade Média, a teoria da distinção

entre direito natural e direito civil em Tomás de Aquino, só para mencionarmos

alguns exemplos de muitos. A diferença não está em desconhecer ou conhecer

direitos dos homens e sim no modo de inscrição desses direitos no real.

Outros teóricos, como Bobbio, defendem que os direitos são fruto da era moderna,

dessa forma, são constituídos por um processo social permeado pela concepção individualista

167 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal: Revista Crítica de

Ciências Sociais, N° 21, Novembro de 1986, p. 14.

168 Segundo Lyra Filho (1987: 159): “O sociólogo alemão Weber disfarçava a ideia de luta de classes,

lisonjeando a estrutura capitalista com uma suposta expansão crescente da 'classe aquisitiva'

(embruguesada)”.

169 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, pp. 46-47.

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da sociedade. Segundo essa visão do direito, o Estado de direito somente é capaz de

sobreviver no liberalismo, já que os direitos seriam meras concessões da classe dominante.170

A ideologia liberal, contida no pensamento de Bobbio, coloca em segundo plano a

condição emancipatória dos direitos pleiteados pelas lutas populares. Deslegitima, bem como,

a concepção histórica dos direitos que, como explica Meksenas (2002: 48): “emergem nas

relações de poder, são instáveis, conduzem ao conflito, se renovam continuamente,

confirmam a trajetória da democracia”.171

Enquanto Bobbio sustenta haver uma tensão entre os direitos de liberdade negativa e

os direitos sociais, quando em conflito, de modo que um exige a abstenção do Estado e o

outro a intervenção estatal, que poderia levar a uma maximização excessiva do poder do

Executivo; outros pensadores aqui já citados, como Marx, Weber e Santos, veem na crise que

gera o fortalecimento do Executivo um potencial motor de transformação social, mas isso dá

origem a muitas polêmicas, que aqui não dispomos de espaço para abordar.172

Conta Santos (1986) que no pós Segunda Guerra Mundial, ainda que negligenciando

as questões processuais, institucionais e organizacionais, a sociologia do direito se repartiu em

basicamente três linhas de pesquisa.

A primeira, prevalecente nos países desenvolvidos, em que se estudava a discrepância

entre o direito formalmente vigente e o direito socialmente eficaz. A segunda e a terceira,

características dos estudos nos países subdesenvolvidos, trataram tanto das relações entre o

direito e o desenvolvimento socioeconômico, quanto do papel do direito na transformação

modernizadora das sociedades tradicionais.173

No final da década de 50, porém, determinadas condições teóricas provocaram uma

mudança na perspectiva sociológica do direito. Dentre elas, o desenvolvimento da sociologia

das organizações, em especial da organização judiciária, por Weber; o desenvolvimento da

ciência política, quer com a análise dos tribunais enquanto instância de decisão e poder

políticos, quer com o estudo sobre a ação dos juízes em função de suas orientações políticas; e

170 Ibidem, p. 40-44.

171 Silva Filho (2006), com base na tese de Lyra Filho, comenta que o direito achado na rua “não identifica o

direito com a norma, pura e simplesmente, e muito menos com a lei. O direito é visto como um processo

social de lutas e conquistas de grupos organizados, em especial dos novos movimentos sociais, na busca da

emancipação de situações opressoras caracterizadas pela experiência da falta de satisfação de necessidades

fundamentais”.

172 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 33.

173 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal: Revista Crítica de

Ciências Sociais, N° 21, Novembro de 1986, p. 14.

Page 99: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

99

o desenvolvimento da antropologia do direito ou da etnologia jurídica, que se direcionou aos

mecanismos de prevenção e resolução dos conflitos.174

Da mesma forma, as condições sociais foram determinantes para o surgimento de

novos campos de estudos. A crise de legitimidade dos regimes políticos baseados na igualdade

formal de direitos provocou a organização das lutas sociais por novos atores (negros,

estudantes, pequena burguesia) em conjunto com o movimento operário na reivindicação pela

ampliação da democracia nos regimes do pós-guerra.175

Santos (1986) revela que desse

contexto surgiu o questionamento da sociologia do direito a respeito da desigualdade da lei

perante os cidadãos, que interrogou os motivos do acesso diferencial ao direito e à justiça

pelas diferentes classes sociais.

Na década de 60 intensificaram-se as lutas sociais na conjuntura da expansão, cada vez

mais acelerada, do capital no Estado liberal. Nos países desenvolvidos essas lutas deram

origem à institucionalização de diversos direitos sociais e do Estado-provedor, garantidos pela

ampla integração das classes trabalhadoras no mercado de consumo e pela inserção da mulher

no mercado de trabalho.176

A crise estrutural do capital, entretanto, que abalou novamente os alicerces do

capitalismo na década de 70 marcaram o fim da expansão econômica, que foi acompanhado

pela redução progressiva dos recursos financeiros do Estado e pela incapacidade do Estado

cumprir com os compromissos assumidos na década anterior com as classes populares.177

Data dessa época a crise contemporânea de legitimação do Estado capitalista, que

refletiu na contestação aos paradigmas de conhecimento tradicionais. No campo jurídico, a

crise dos paradigmas existentes serviu para combater a teoria positivista e todas as suas

vertentes de redução da complexidade social ao binômio formalista legalista.178

Por um lado, a consagração constitucional dos novos direitos econômicos e sociais e

a sua expansão paralela à do Estado de bem estar transformou o direito ao acesso

efetivo à justiça num direito charneira, um direito cuja denegação acarretaria a de

todos os demais. Uma vez destituídos de mecanismos que fizessem impor o seu

respeito, os novos direitos sociais e econômicos passariam a meras declarações

políticas, de conteúdo e função mistificadores. (SANTOS, 1986: 18).

174 Ibidem.

175 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987.

176 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal: Revista Crítica de

Ciências Sociais, N° 21, Novembro de 1986, p. 14.

177 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça. Portugal: Revista Crítica de

Ciências Sociais, N° 21, Novembro de 1986, p. 14.

178 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Page 100: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

100

No contexto da América Latina, esse movimento foi representado de forma similar

pelos termos de 'critical legal studies', 'critique du droit', 'uso alternativo del derecho', 'direito

insurgente'; de modo que o desenvolvimento de um posicionamento crítico da ciência jurídica

foi marcado pela introdução do direito na política a partir, principalmente, da crítica marxista

direcionada para uma práxis.179

A partir de então houve uma clara tentativa de resgatar o pensamento dos humanistas

da Renascença e dos pensadores clássicos do século XVII, com suas divergências entre os

contratualistas e não contratualistas. Chaui (2010: 98) revela que tais períodos do pensamento

histórico foram o berço das teorias modernas do direito que propõem o direito de resistir à

violência e à opressão. Há referências de que no Brasil tal corrente foi desempenhada pela

“Nova Escola Jurídica Brasileira”.180

A partir de seus estudos desenvolvidos desde os anos 1960 na Universidade de

Brasília, em perspectiva dialética, o jurista Roberto Lyra Filho organizou a seu turno

uma sofisticada reflexão crítica ao positivismo jurídico, inicialmente inscrita num

manifesto, lido na UnB em 1980, no qual formulou os fundamentos de uma

concepção de Direito (1982), livre dos condicionamentos ideologizantes dos

modelos antitéticos do juspositivismoempiricista e do jusnaturalismo metafísico,

entendido este, assim, não como a norma em que se exteriorize, senão como

“enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.

(SOUSA JUNIOR, 2011).

Mais recentemente, na área da sociologia do direito, o aumento de processos e as suas

consequências para o tribunal e para a sociedade fizeram surgir diversas linhas de

investigação no campo da administração da justiça. A sociologia judiciária, então, cuidou de

temas como o das desigualdades no acesso ao direito, o fim do mito da neutralidade dos

tribunais concebidos, agora, como subsistemas do sistema político sujeito a um padrão

específico de organização profissional181

, e a existência na sociedade de múltiplas instâncias

jurisdicionais que competem com os tribunais na resolução de conflitos.

A concepção da administração da justiça enquanto instituição política e profissional

tem demonstrado a importância dos sistemas de formação e recrutamento dos magistrados, e a

premência de serem dotados de conhecimentos culturais, sociológicos e econômicos, a fim de

179 SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Marilena Chaui: amor à sabedoria e solidariedade com a vida. Artigo

publicado no livro Diálogos com Marilena Chauí, Maria Célia Paoli, organizadora. – São Paulo: Editora Barcarolla:

Discurso Editorial, 2011, págs. 15-28. Disponível em <http://odireitoachadonarua.blogspot.com/>. Acesso em 12 de

janeiro de 2012.

180 Ibidem.

181 A respeito dos estudos sobre a ideologia da magistratura, Santos (1986: 24) registra que “Outros estudos

incidindo sobre as decisões dos tribunais de primeira instância, tanto nos domínios penal como no civil,

mostraram em que medida as características sociais, políticas, familiares, econômicas e religiosas dos

magistrados influenciaram a sua definição da situação e dos interesses em jogo no processo e

consequentemente o sentido da decisão”.

Page 101: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

101

que compreendam o significado político da instituição a que pertencem e desenvolvam um

posicionamento crítico no exercício de suas funções.

Desde que a sociologia do direito evoluiu para a convergência com a antropologia, os

estudos sobre a análise do litígio, e não da norma, com orientação teórica ao pluralismo

jurídico se tornaram cada vez mais frequentes.182

No campo científico, a opção que nos leva a

reconhecer esse pluralismo como uma 'práxis jurídica' a nível de 'subculturas legais' é a

dialética, capaz de desenvolver a tese de que um outro Direito além e aquém do direito estatal

deve ser reconhecido, mediante uma opção política pelo socialismo democrático.183

O pensamento de Santos (apud MEKSENAS, 2002: 53) aponta para o conhecimento

dessa dialética, já que, a fim de explicar como o Estado nas sociedades contemporâneas não

têm o monopólio do direito e como não pode existir uma visão estática dos direitos, seja de

esquerda ou de direita, afirma, a partir de uma concepção multicultural, que os direitos na

sociedade contemporânea emergem tanto como particularidade da globalização hegemônica,

quanto contra-hegemônica. No primeiro caso refletem os interesses dos colonizadores e dos

imperialistas, atualmente representados pelas organizações internacionais de caráter político,

econômico, social e cultural. No segundo caso manifestam-se como conquistas “de baixo para

cima” e apontam para uma emancipação social a partir da história dos oprimidos.

Dessa reflexão surgiu o interesse do sociólogo português pela investigação de

mecanismos de resolução jurídica informal de conflitos que operam à margem do direito

estatal e dos tribunais oficiais.

Deram a conhecer formas de direito e padrões de vida jurídica totalmente diferentes

dos existentes nas sociedades ditas civilizadas; direitos com baixo grau de abstração,

discerníveis apenas na resolução concreta de litígios particulares; direitos com pouca

ou nula especialização em relação às restantes atividades sociais; mecanismos de

resolução dos litígios caracterizados pela informalidade, rapidez, participação ativa

da comunidade, conciliação ou mediação entre as partes através de um discurso

jurídico retórico, persuasivo, assente na linguagem ordinária. (SANTOS, 1986: 26).

O desenvolvimento da antropologia do direito e da história do direito no século

passado foi fundamental para questionar o discurso dominante sobre a “inferioridade” latino-

americana e do direito alienígena que era importado acriticamente pelos teóricos e juristas dos

182 “Ao reconhecimento deste fenômeno social chamamos de “pluralismo jurídico”. Em sua tese de doutorado,

defendida na Universidade de Yale, Boaventura de Sousa Santos viveu durante meses em uma favela situada

na cidade do Rio de Janeiro. Logo ele pôde perceber que no vácuo da não satisfação de direitos básicos,

inscritos na legislação e na ausência da presença das instituições estatais, a não ser para repressão e violação

de direitos, constituiu-se o espaço de um sistema jurídico paralelo. Importante perceber que não se trata de

defender pura e simplesmente a existência desses sistemas, mas sim de entender o fato e as razões de eles

existirem”. (SILVA FILHO, 2009)

183 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 172.

Page 102: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

102

países periféricos. Concomitantemente, os estudos latino-americanos nessas áreas começaram

a apontar para uma crítica ao mito do progresso e da modernidade introduzidos pela ideologia

eurocentrista, segundo a qual o modelo desenvolvimentista europeu deveria ser adotado

uniformemente pelo mundo.184

Autores como Eugenio Raúl Zaffaroni mostraram como que a importação do sistema

penal do primeiro mundo para as bases dos países periféricos desconsiderou as desigualdades

socioeconômicas e diversidades culturais regionais, de modo que foi responsável por

intensificar a marginalização e a criminalização de determinados grupos sociais.185

O filósofo argentino Henrique Dussel, por exemplo, confrontou essa realidade e

propôs a ideia de que vivemos em uma transmodernidade, na qual a visão eurocentrista

somente poderá ser superada através da desmistificação da “visão histórica do mundo que

transforma o 'ser' do 'outro' em um 'ser' de 'si-mesmo'”.186

Poder-se-ia dizer que a perspectiva de transmodernidade, proposta por Dussel, em

que a periferia seria reconhecida em sua especificidade e não 'encoberta' como

'outro, deveria corresponder a uma situação de igualdade de 'poderes', ou igualdade

de 'condições comunicativas'. (SILVA FILHO, 2006: 229).

Do que foi dito, concluímos que, do ponto de vista da sociologia do direito, o Estado

contemporâneo não tem o monopólio da produção e distribuição do direito. Essa constatação

nos interessa uma vez que a atual crise de legitimidade da democracia burguesa exige que nos

debrucemos sobre uma visão social dialética do direito, como ressaltou Lyra Filho (1987:

161), capaz de questionar não apenas os problemas sociais e jurídicos advindos do modo de

produção capitalista, mas também as opressões decorrentes das outras formas de dominação

presentes na sociedade, daí a importância da criação de um novo paradigma de conhecimento.

184 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Da invasão da América aos sistemas penais de hoje: o discurso

da "inferioridade" latino-americana. In: Antonio Carlos Wolkmer (org.). Fundamentos de História do

Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 221.

185 Ibidem.

186 Ibidem, p. 222.

Page 103: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

103

5. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ABORDAGEM HISTÓRICA DA

COMUNICAÇÃO SOCIAL NOS CENTROS DE PESQUISA DA

AMÉRICA LATINA

O presente capítulo foi inspirado no artigo de Christa Berger, denominado “A

Pesquisa em Comunicação na América Latina”, inserido na edição especial das “Teorias da

Comunicação” organizada por Antonio Hohlfeldt, Luiz C. Martino e Vera Veiga França. A

análise de Berger nos interessou por retratar a dicotomia criada, a partir da dependência

estrutural com os países desenvolvidos, entre uma cultura do silêncio e da submissão ao

mesmo tempo em que fortaleceu-se um ambiente de resistência e de luta.

O termo comunicação, derivado do latim communicationem, sinônimo de tornar

comum, foi sutilmente interpretado por Ana Maria Araújo Freire através da seguinte frase:

"Quem comunica vê o outro como possibilidade de ser um sujeito da história em processo

permanente de fazer-se-ser-mais, de gentificar-se"187

. Damos, assim, início a esse breve

capítulo com a convicção de que a comunicação social está diretamente relacionada com a

emancipação do homem enquanto sujeito de sua história.

Os primeiros estudos teóricos em comunicação na América Latina datam da década de

30, quando a metologia segue o padrão historiográfico e bibliográfico com foco no debate

pela liberdade de imprensa e legislação.188

Com a Revolução Cubana, a preocupação norte-americana direcionou-se à reversão

desse quadro e resultou, durante o governo presidido por John F. Kennedy, na criação do

Centro Internacional de Estudios Superiores de Periodismo para a América Latina, o Ciespal.

O centro fazia parte da política estadunidense que pretendia adaptar a sua política interna à

política exterior para impedir o avanço do socialismo. No entanto, o que produziu, na

realidade, foi a elevação do estudo e da reflexão na área da comunicação entre o meio

187 ARAÚJO FREIRE, Ana Maria apud LIMA, Venício Artur de. Mídia: Teoria e Política.São Paulo:

Fundação Perseu Abramo, 2a ed., 2004.

188 BERGER, Christa. A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT, Antonio;;

MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p.

242.

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104

acadêmico e o profissional, e a formação de uma fonte primordial de documentação dos

meios.189

Tendo sido instalado em Quito no ano de 1959 através da cooperação entre Unesco,

OEA e o próprio Governo do Equador, o Ciespal começou a incentivar diversos estudos

especialmente direcionados para os profissionais que atuavam em comunicação de massa na

região, que obtiveram também a participação de pesquisadores de renome internacional, mas

que demonstravam uma orientação de cunho predominantemente descritivo, cujo modelo foi

denominado difusionista.190

Segundo Berger (2007: 242):

A descrição predominou sobre a análise e ali foi desenvolvido o modelo difusionista,

instrumental adotado para a comunicação rural em toda a América Latina, que

originou a dicotomia comunicação ou extensão, problematizada, posteriormente, por

Paulo Freire no Chile.

As críticas ao modelo difusionista não tardaram por vir. Pesquisadores latino-

americanos se organizaram no seminário realizado na Costa Rica no ano de 1973 e debateram

sobre a necessidade de uma nova compreensão para o Centro, segundo uma perspectiva

crítica de análise qualitativa, dentro do contexto em que se encontrava, a respeito do que

Beltrán extraiu a seguinte conclusão:

Com uma metologia esboçada por latino-americanos para América Latina, com um

instrumento de trabalho muito mais depurado e crítico, se deve chegar ao

descobrimento de toda a inter-relação econômica, política, social e cultural que

configura as estruturas de dominação e poder que, muitas vezes, condicionam e

determinam os sistemas de comunicação imperantes. (BELTRÁN apud BERGER,

2007: 243).

Como medida de aplicação daquilo discutido no seminário e como forma de afirmar a

soberania latino-americana, muitos dos professores estrangeiros foram substituídos por

argentinos, chilenos e brasileiros que buscaram a adaptação da teoria com as peculiaridades

de cada região. Os estudos que privilegiavam a comunicação popular, então, começaram a

tomar forma e a receber tratamento diferenciado no campo de estudos do Ciespal.191

A televisão, enquanto instrumento de interferência norte-americana na América Latina,

teve seu ponto de origem na Venezuela da década de 60, que a essa época, coincidentemente,

começava a destacar-se pela indústria do petróleo e pela introdução democrática. De forma

189 Ibidem.

190 Ibidem.

191 BERGER, Christa. A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT, Antonio;;

MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p.

244.

Page 105: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

105

concomitante a esses acontecimentos, os investimentos norte-americanos no setor televisivo

do país, e nos demais países latinos, posteriormente, passaram a ser cada vez mais intensos.192

Foi então que, em 1973, na Venezuela, criou-se o Instituto de Investigaciones de la

Comunicación para contestar a ausência de crítica na incorporação dessa nova tecnologia, o

que poderia resultar em uma maior influência da Indústria Cultural, principalmente norte-

americana, no país.193

O Chile, por sua vez, pôde criar instituto similar, o Centro de Estudos da Realidade

Nacional (CEREN), quando saiu vitorioso Salvador Allende em 1970. Apesar de enfraquecido

após o golpe militar, quando então teve o seu corpo institucional desmembrado e

reestruturado no Instituto Latino americano de Estudios Transnacionales (ILET) no México,

resultou em pesquisas que tiverem direta conexão com o desenvolvimento da teoria da

comunicação social sob uma visão marxista, tornando-se conhecido em toda a América

Latina.194

O ILET deu continuidade aos estudos e tornou-se referência na produção de

alternativas para a democratização dos meios de comunicação na América Latina, contando

com o apoio do presidente do México, Echeverría, de algumas instituições européias e do

Foro do Terceiro Mundo.195

Exemplo ilustrado por Berger acerca dos meios de comunicação como instrumento de

dominação foi a crescente importação, pela burguesia chilena, de programas de TV norte-

americanos durante o governo de Allende, em contraposição à produção estatal que dava

sinais de identidade com o povo.196

Para Silva (1978: 187), a dependência ideológica figura

como expressão de uma dependência estrutural:

Si a un dato de la televisión venezoelana se añaden los datos correspondientes a los

otros medios venezoelanos, y a este conjunto a su vez se lo relaciona con la variable

“sociedad capitalista subdesarollada”, entonces, y sólo entonces, se estará en el

camino adecuado para hacer rendir todo su valor teórico a los datos singulares y

aislados.

Outro instituto na América Latina que derivou de um posicionamento crítico foi criado

em 1973 e denominado ININCO. O instituto, além de pesquisas teóricas, desenvolveu

192 Ibidem.

193 Ibidem.

194 Ibidem, p. 245.

195 Ibidem, p. 246.

196 Ibidem, p. 245.

Page 106: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

106

propostas de políticas públicas no campo da comunicação para a Venezuela, dando origem ao

Projeto Ratelve de Radiodifusão.197

Oposições ao propagado e “propagandiado” american way of life, que contavam com

o apoio dos respectivos centros na América Latina a favor da mediação de alternativas viáveis

para a comunicação popular, começavam a despertar a atenção de toda a sociedade através

das denúncias à Indústria Cultural.198

A importância teórica da Escola de Frankfurt, pioneira

na utilização do termo “Indústria Cultural”, segundo Pasquale, responsável por trazer o debate

da teoria da dependência para a América Latina, pode ser entendida da seguinte maneira:

A seus principais autores devemos, saibamos ou não, quase todos os argumentos

críticos que hoje passam por lugares comuns e um descobrimento destinado a

marcar época: a de que a livre e competitiva Indústria Cultural (fórmula cunhada por

eles) reproduz, mutatis mutandis, os esquemas de manipulação autoritária teorizados

e praticados por Goebbels. (PASQUALE apud BERGER, 2007: 254).

Por outro lado, Mészáros (2010: 156) assinala que, com o tempo, e com exceção de

Walter Benjamin e Herbert Marcuse, os integrantes da Escola de Frankfurt se distanciavam

cada vez mais do radicalismo, substituindo o discurso crítico da estrutura socioeconômica

pela abstração totalizante das categorias de oposição e negação da luta de classes.

Após a implementação de ditaduras militares no continente latino, o movimento

libertário encontrou ainda mais barreiras para a concretização de uma comunicação popular.

Teve de enfrentar os desafios impostos por uma comunicação de massa baseada no

autoritarismo e na ilusão de modernidade, advinda da introdução da televisão como aparato

social, com financiamento dos Estados Unidos, que efetuaram grandes investimentos no setor,

por estarem atentos ao seu alto potencial de lucro e simbolismo ideológico para a formação de

consumidores.199

Enfim, como resultado dessas correlações, percebe-se que, enquanto na América

Latina persiste a desconsideração pela imensa maioria da população miserável e

oprimida, continuar-se-á sob a vigência de uma sociedade às avessas, em que o

“outro” não tem espaço na “comunidade de comunicação ideal”, em que a alteridade

latino-americana é encoberta por uma cultura eurocentrista, nossa herança indígena é

ignorada, espezinhada por uma configuração cultural de marginalização. (SILVA

FILHO, 2006: 263).

Despontou, então, a necessidade de articular os estudos dos intelectuais aqui

instalados, de modo a abarcar as reais peculiaridades latinas. Desse contexto, originou-se a

197 BERGER, Christa. A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT, Antonio;;

MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p.

244.

198 Ibidem, p. 247.

199 Ibidem, p. 248.

Page 107: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

107

preocupação com a semiologia e o estruturalismo no desenvolvimento cultural popular,

tentando conciliar a luta política pela libertação e a produção teórica nacional, que engatilhou

fortes críticas aos centros internacionais de conhecimento.200

Emergindo dessa viagem às raízes do ser latino-americano, pode-se perceber duas

coisas básicas. Primeiro, que este povo foi vítima de um processo de modernização

que ocultou e oculta a violência praticada contra os seus pares, violência essa

justificada por um discurso antropológico racista e cuja história é preciso ser

resgatada para que se tenha noção da existência de um outro “sujeito histórico” que

não o europeu; segundo, que existe uma particularidade e especificidade que não se

reduz às fórmulas das ideologias eurocentristas (SILVA FILHO, 2006: 251).

Percebeu-se que a quebra do paradigma dominante deveria ocorrer em todas as áreas

de conhecimento, e que uma não é independente da outra. Com base em Dussel e Zaffaroni, o

pesquisador brasileiro Silva Filho (2006) destaca como o povo latino-americano resistiu à

dominação europeia exercida, desde o início da invasão das Américas, com o desprezo da

civilização originária e de sua cultura. A forte cultura popular que se formou mesmo após os

esforços da aculturação europeia, que pretendia a negação da cultura original e a imposição de

uma ideologia desenvolvimentista, é objeto de estudo de Silva Filho (2006), que sustenta

estarmos passando por uma nova forma de colonização denominada de tecnocolonialismo:

O aumento dos avanços tecnológicos nos países centrais tende, além de provocar a

redução das classes operárias no “centro”, a colocar os países periféricos em uma

situação desesperadora, pois o que lhes permite pleitear por algum respeito no

intercâmbio internacional é, basicamente, a mão-de-obra barata e a abundância de

alimentos e de matérias-primas. Ambos os elementos, mais o primeiro do que o

segundo, tendem a ser substituídos pelos avanços tecnológicos, quadro que é

agudizado pelas dívidas externas, impedindo o acúmulo de capital produtivo. Tudo

isso gera recessão, diminuição de salário e do percentual orçamentário destinado a

obras sociais e ao combate à miséria (SILVA FILHO, 2006: 254).

Com origem no pensamento humanista, fixavam, assim, as correntes baseadas na

crítica à economia política, à comunicação e cultura, e outras às teorias da linguagem, todas

em combate à realidade da homogeneização da cultura. Esse processo de homogeneização, a

partir da globalização, tem sido o responsável por acelerar a padronização de um modelo de

comportamento determinado pela potência hegemônica de cada época com o objetivo de criar

mercados de consumo201

, não fosse a resistência popular para barrar esse descaminho.

Melo (2004: 15) reforça a memória do pensamento crítico latino-americano nos

estudos comunicacionais. Aponta para estudos originados em terras latinas que, antes mesmo

200 BERGER, Christa. A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT, Antonio;;

MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p.

250.

201 ARBEX, José. O Poder da TV. São Paulo: Scipione, 1995.

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da vanguarda frankfurtiana nos anos 60, emergiam da busca por uma identidade cultural,

mestiça ou cabocla.

Segundo Melo (2004), o brasileiro Barbosa Lima Sobrinho merece ser reconhecido

como o pioneiro da análise crítica da comunicação no continente. O livro de Barbosa,

publicado em 1923, denominado “O Problema da Imprensa” já naquela época demonstrava a

problemática que envolvia a transição de um modelo de imprensa pública para o modelo

privado de exploração econômica, tendo como base de referência o papel exercido pela

imprensa.

No Brasil, a ingerência dos Estados Unidos nas instituições de telecomunicações se

intensificou nos anos 40. A consolidação desses meios, que atingiu seu ápice durante o projeto

desenvolvimentista da ditadura militar, se deu por investimentos norte-americanos para a

formação de um modelo comercial como forma de organização das instituições sociais.

Com o fim das ditaduras do Cone Sul, a pesquisa-denúncia perdeu lugar para a

pesquisa-ação no campo da comunicação.202

Na segunda metade da década de 80, com o

início do processo de redemocratização no Brasil, ganhou maior destaque o papel dos meios

de comunicação na construção do espaço público. Aqui, após a promulgação da Constituição

de 1988, foi adotado o “pragmatismo utópico”, como corrente teórica da comunicação,

extensamente disseminado pela Escola Latino-Americana de Comunicação, para articular

empresas, governos e sociedade civil, o que pode ser interpretado como um certo flerte com a

concepção liberal da solidariedade, que discutimos brevemente em outro tópico.

A política de privatizações implementada pelo governo do presidente Fernando

Henrique Cardoso, na segunda metade da década de 90, permitiu a entrada de diversos global

players no mercado brasileiro de comunicações, caracterizando o alinhamento da política

nacional com o neoliberalismo, o que tem gerado o estudo sobre a nova economia política na

área das comunicações e um resgate do marxismo não pragmático.

Desse esboço sobre a comunicação popular na América Latina, fica evidente que,

como consenso geral da discussão acadêmica e dos centros apontados, a politização por meio

da comunicação alternativa, aliada à resistência, nos ensina um caminho para a efetiva

articulação entre o social, o político e o institucional na esfera da democratização dos meios

de comunicação.

202 BERGER, Christa. A Pesquisa em Comunicação na América Latina. In: HOHLFELDT, Antonio;;

MARTINO, Luiz C.; FRANÇA, Vera Veiga (orgs.). Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2007, p.

263.

Page 109: A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR

109

6. CONSIDERAÇÕS FINAIS

O que se buscou neste trabalho foi contribuir para a construção de uma nova

epistemologia em torno do que acreditamos ser um Estado democrático de direito.

Tendo analisado como a concepção liberal da democracia, atualmente dominante

enquanto discurso hegemônico, é incompatível com os anseios emancipatórios da sociedade,

levantamos alguns pontos fundamentais sobre o período histórico que se convencionou

chamar de fase descendente da democracia burguesa. Com isso, tivemos o intuito de

demonstrar como o projeto de democracia dessa classe, idealizado no período iluminista,

passou, desde que a burguesia tomou o poder durante a Revolução Francesa, por um processo

de “abstração” e “universalização” dos direitos e por um deslocamento da questão social para

a problemática do indivíduo isolado. Tal processo, constatamos, foi responsável pela

banalização da crítica à estrutura socioeconômica nas diversas esferas de conhecimento, o que

deu início a uma ideologia apologética em favor da naturalização das desigualdades

estruturais inerentes ao modelo capitalista.

A supremacia do direito à propriedade privada sobre os demais direitos, assegurada

por ordenamentos jurídicos e instituições político-sociais capazes de sustentar a aplicação da

concepção liberal da democracia, foi identificada como o pilar do Estado democrático de

direito contemporâneo, de modo que reflete essa ideologia em variados aspectos da

convivência humana.

Nesse sentido, depreendemos que a concretização de uma democracia substancial,

para os teóricos liberais, aparece como um obstáculo impossível de transpor, já que essa

corrente de pensamento parte do pressuposto de que os indivíduos são naturalmente egoístas,

ou então que são as instituições as misteriosamente responsáveis pela alienação na sociedade.

O caminhar por tais conceitos nos pareceu fundamental para resgatar o senso crítico à

estrutura socioeconômica vigente. A fim de discutirmos a concretização da democracia, não

por acaso, a problemática do monopólio dos meios de comunicação de massa foi escolhida

como objeto central deste estudo, onde, mais especificamente, as dificuldades para a

efetivação do direito à comunicação no Brasil pós-ditadura militar nos interessou como

recorte espacial e temporal.

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A partir de uma abordagem histórica do surgimento da concentração dos meios de

comunicação de massa, que data da segunda metade do século XIX, verificamos que não

apenas a determinação econômica foi fundamental fator de monopolização; como também um

aparato institucional e jurídico-legal foram erguidos para dar embasamento a essa

esquizofrenia, em completa dissonância com os princípios de liberdade e igualdade

idealizados no período iluminista. Assim, os processos revolucionários, que durante o século

XIX tinham como potencial agente contra-hegemônico a própria imprensa, foram sendo

enfraquecidos ao longo do século XX, tanto pela mercantilização dos meios de comunicação,

quanto pelo processo de desarticulação da emancipação política em torno de uma imprensa

revolucionária.

Um outro fenômeno denominado por Orwell de censura voluntária em sociedades

livres, posteriormente trabalhado por Chomsky sob a alcunha de consenso fabricado, também

transpareceu como fruto da hegemonia capitalista nos meios de comunicação social. Para

ambos os autores, trata-se de um poder de controle da opinião pública que não é mais

articulado diretamente pelo Estado através da censura, mas sim decorrente da estrutura do

próprio capital. Vimos que esse controle da opinião pública não deve ser entendido como

manipulação de uma “multidão criança” apolítica, como o fez Adorno ao longo dos anos, uma

vez que outras relações de resistência surgem em meio a essa estrutura de dominação

capitalista.

Desde que a burguesia tomou o poder, a livre formação da opinião pública, que tinha a

pretensão de ser uma conquista dessa classe social, começou a entrar em conflito com a

ideologia liberal que prega o discurso da competência, baseado na racionalidade técnico-

científica, e com um sistema de democracia em que as decisões devem ser tomadas pelos

detentores da “sabedoria”, distante daquela “massa criança”.

No campo jurídico, essa ideologia dominante, constatamos, ganha ares ora de

pragmatismo positivista, ora de iusnaturalismo metafísico. Em ambas as correntes omitem-se

o impacto do modelo socioeconômico sobre as relações jurídicas e, por isso, inviabilizam a

concretização dos direitos institucionalizados, bem como marginalizam a participação cidadã

na esfera pública.

A investigação dessas tendências da concepção liberal da democracia foi

imprescindível para obtermos um quadro mais preciso sobre como se deu a monopolização

dos meios de comunicação e, particularmente, em que medida tal concepção está relacionada

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com a inefetividade do direito à comunicação, fazendo com que fique prejudicada a livre

formação da opinião pública.

A forma como o pensamento liberal se modifica e se relaciona com as peculiaridades

sociais, culturais e econômicas existentes na América Latina foram observadas tanto em seu

aspecto positivo, quanto negativo. Ao mesmo tempo em que uma forte carga de autoritarismo

cerca ainda as relações de poder, é possível encontrar uma fonte organizada de resistência que

se articula a nível do popular e exige um redimensionamento da visão eurocentrista da

cidadania. É uma realidade em que a esfera pública é confundida com a esfera privada e a

disputa pela hegemonia se dá basicamente pela divisão da sociedade em duas vertentes:

aquela em que sobressaem os interesses de mercado (discurso hegemônico), e a outra em que

nega-se os interesses mercadológicos (discurso contra-hegemônico), representada por

movimentos sociais e membros organizados da sociedade civil.

No caso da disputa pelo espaço público da radiodifusão no Brasil, o embate pela

hegemonia se dá em várias frentes, dentre elas abordamos tanto a normativa e institucional,

quanto a simbólica.

Na frente normativa, mostramos como o discurso hegemônico se esforça para bloquear

a intervenção do Estado na produção de marcos regulatórios, de modo a permanecer a

dispersão regulamentar e o histórico poder do mercado sobre esse serviço público. No âmbito

do discurso contra-hegemônico, por sua vez, verificamos que a luta se constrói pela

elaboração de um marco regulatório capaz de atender aos princípios democráticos e normas

programáticas, presentes na Constituição Federal brasileira, em favor da democratização dos

meios de comunicação eletrônica, que se traduzem por ações afirmativas do Estado no sentido

de coibir o monopólio e garantir o pluralismo no desenvolvimento de conteúdo a ser

veiculado na mídia, que implica no reconhecimento do direito à comunicação como um

direito da cidadania, que inclui o direito dos representantes comunitários, a fim de ampliar a

diversidade, a cultura e a identidade na radiodifusão.

Na frente institucional, o lobby da hegemonia continua a defender um modelo de

organização centralizada para as concessões de radiodifusão, sem participação popular, de

modo que o mais polêmico assunto durante a elaboração da Carta Maior de 1988 foi a

possibilidade de criação de um Conselho Nacional de Comunicação Social, pleiteado pelos

movimentos sociais atuantes na comunicação social. O papel do referido Conselho, que nunca

saiu do papel, foi reduzido, por pressão da Abert, a mero órgão auxiliar do Congresso

Nacional. Na contra-hegemonia, a luta continua em favor da criação de um Conselho

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Nacional capaz de discutir políticas de comunicação para todo o território brasileiro, como

também há movimentação no sentido de criação de Conselhos Estaduais e de um órgão

regulador vinculado ao Congresso Nacional, com representação na sociedade civil, mas com

regime jurídico diverso de uma autarquia.

Entendemos que a descentralização do poder normativo e deliberativo em forma de

Conselhos para a comunicação social, que contem com a participação da sociedade civil,

inclusive movimentos sociais atuantes na área, é importante luta a ser travada pela

democratização dos meios de comunicação. Ainda, as diferenças e profundas assimetrias entre

órgão regulador com regime jurídico específico a ser delimitado conforme o ordenamento

jurídico pátrio e autarquia, exigem que a sociedade seja esclarecida sobre tais conceitos a fim

de que possa melhor opinar e compreender os mecanismos de regulação da comunicação

social, que não devem ter relação alguma com a censura.

Ainda, vimos que, na frente simbólica, desde o século XVIII, o discurso hegemônico

passou por transformações que afetaram, até mesmo, a forma do ser humano se expressar em

público, adquirindo uma tendência ao maniqueísmo. Entretanto, pontuamos que tal oposição

entre o mal e o bem, que assistimos constantemente nos noticiários brasileiros, faz parte de

uma tendência tanto de direita, quanto de esquerda; e que, portanto, deve ser combatida tendo

em vista a complexidade da questão social, que vai muito além dessa sectarização.

Pela contextualização da articulação dos movimentos sociais e da sociedade civil no

Brasil em prol da democratização dos meios de comunicação, colocamos em xeque, como

premissa menor, a pretensa hegemonia cultural e econômica dos coronéis da mídia, e como

premissa maior, a democracia representativa em si.

Analisamos como se deu, durante o período de transição democrática brasileira pós-

ditadura militar, a relação entre o poder político e a distribuição de concessões de radiodifusão

pelo Estado, em parceria com o Congresso Nacional; e retiramos dos dados levantados a

conclusão de que, aqui, além da transição democrática ter servido de pano de fundo para a

política do continuismo; frequentemente, o bem público é apropriado como um bem de

família ou então é objeto de barganha política, como é o caso das concessões de rádio e

televisão.

A denúncia da estrutura jurídico-administrativa herdada da ditadura militar também

ressoou como importante aspecto para discutirmos as barreiras encontradas na sociedade

brasileira para a efetivação do direito à comunicação, considerado um direito humano por

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grande parte das legislações internacionais desde a promulgação do Pacto de São José da

Costa Rica em 1969. Para tanto, foi preciso abordar a questão da influência da ditadura

militar, até os dias de hoje, sobre a construção da política nacional de direitos humanos.

Chegamos a um consenso de que métodos, como o desaparecimento forçado de pessoas,

utilizados para extirpar a ideia da política como potencial agente emancipatório, ficaram

presentes na memória dos que sobreviveram a essa barbaridade e produziram uma política

nacional de direitos humanos, muitas vezes, de caráter imediatista, ou que não considera a

complexidade da conjuntura econômico-social, sendo apenas mais um meio a serviço do

capital.

No entanto, como foi imprescindível ressaltar ao longo do trabalho, não é sempre que

o capital, por meio do discurso hegemônico, domina todas as esferas das relações humanas.

Especialmente nos países em que a mestiçagem faz parte da cultura há mais de séculos, o

estudo que pretenda criticar a hegemonia do capital sobre determinado aspecto deve ter o

cuidado para não recorrer à generalizações herméticas, sob pena de empobrecer-se. Exemplos

de resistência a essa dominação estão por todos os lados, e em uma próxima oportunidade

gostaríamos de aprofundá-los.

Para trazer uma discussão recente sobre a comunicação social eletrônica no Brasil,

procuramos examinar criticamente o modelo de televisão digital adotado pelo Governo

brasileiro, pelo que constatamos que o modelo de negócios tende a configurar as políticas

públicas.

No capítulo seguinte, especialmente dedicado para apresentar a sociologia do direito

como metodologia de estudo, os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos e de Lyra Filho

deram embasamento teórico para refletirmos sobre um novo paradigma para o direito. Através

do reconhecimento de que existem variadas formas de prática jurídica na sociedade, que vão

além do monopólio do Estado sobre o direito, deduzimos que uma concepção multicultural do

direito é requisito da análise dialética e necessária para afastar os dogmatismos de esquerda e

de direita.

No último capítulo, a contextualização da abordagem histórica da comunicação social

nos centros de pesquisa da América Latina nos mostrou que os estudos sobre a comunicação

no continente ganharam contornos específicos para cada região à medida em que eram

trazidos dos centros internacionais de pesquisa e começaram a caminhar com as próprias

pernas. Ao mesmo tempo em que existia uma dependência estrutural econômica com os

países desenvolvidos, a rica cultura popular dos países latino-americanos fortaleceu uma

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unidade de resistência e luta contra a homogeneidade de pensamentos e cultura, que refletiu

na produção científica no âmbito da comunicação social.

Em suma, para a democratização dos meios de comunicação na América Latina, e

mais especificamente no Brasil, verificamos que devem ser respeitadas as especificidades que

emergem da cultura popular, de forma que não existem fórmulas prontas que possam ser

aplicadas acriticamente na comunicação social brasileira. Importante frisar que, uma vez

superado o embate sobre a ilusão jurídica, percebemos que a concretização do direito à

comunicação e, em última instância, da própria democracia, vai além da esfera regulatória-

normativa, exigindo que um nova epistemologia seja capaz de encontrar o equilíbrio entre

regulação-emancipação, e ainda possa estimular políticas emancipatórias com vista ao

reconhecimento multicultural e pluriétnico e à redistribuição da liberdade e igualdade..

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