Upload
lekhanh
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
A produção da desigualdade racial na Segurança Pública de São Paulo1
Maria Carolina Schlittler (UFSCar/São Paulo)
Giane Silvestre (UFSCar/São Paulo)
Jacqueline Sinhoretto (UFSCar/São Paulo)
Esta pesquisa teve como objetivo investigar a existência de mecanismos de produção da desigualdade racial na atuação das polícias do estado de São Paulo. Os dados sobre a produtividade policial publicados periodicamente não permitem a análise pela variável cor/raça dos envolvidos. Em busca de indicadores que permitissem esta observação, a equipe de pesquisa firmou uma parceria com a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo para a produção de uma base de dados sobre a letalidade policial com informações sobre o perfil das vítimas e dos policiais, incluindo a variável cor/raça de ambos. Além da letalidade, a prisão em flagrante também foi usada como indicador, porém, como os dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo também não possibilitam a observação da variável cor/raça, a Coordenadoria de Análise e Planejamento forneceu uma consulta específica à base de registro de ocorrência, o que permitiu conhecer a distribuição das prisões em flagrante efetuadas segundo a cor/raça dos presos. Os resultados da análise destas duas bases apontaram que os negros são a maioria das vítimas de mortes praticadas por policiais, especialmente os jovens e do sexo masculino. Também foi possível observar que a proporção de negros presos em flagrante é maior do que a de brancos e que a maior parte dos autores das mortes são policiais militares, sendo que parte significativa pertence a grupamentos especiais, com destaque para a Força Tática. A conclusão da pesquisa é que a desigualdade racial na segurança pública é evidenciada pela intensa vigilância e ação policial violenta sobre um grupo populacional específico, ao passo que outros grupos populacionais são menos visados sendo surpreendidos com menor frequência em suas práticas. Os resultados são indicativos também de que, possivelmente, as atividades criminais mais frequentemente cometidas por negros sejam mais vigiadas, ao passo que atividades criminais mais comuns entre brancos despertem menor atenção da polícia. Palavras-chaves: segurança pública, desigualdade racial e Polícia Militar do Estado de São Paulo
Introdução
Debater sobre o tema da desigualdade racial na segurança pública brasileira é
discutir, necessariamente, a efetividade do princípio da igualdade jurídica. Esta é uma
discussão que, em grande medida, permeia a trajetória de estudos sobre violência,
justiça criminal e direitos humanos.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.
2
Segundo Adorno (1995), o processo de constituição da igualdade jurídica
enquanto um princípio democrático, forjado com o Estado moderno, convergiu para a
redução das desigualdades sociais, constituindo as bases de “(...) um mundo ético regido
pelo reconhecimento do outro como sujeito de direitos”. E sob esta perspectiva,
estabeleceu-se um nexo histórico entre justiça social e igualdade jurídica. Porém, de
acordo com o autor, esta é uma experiência histórica restrita àquelas sociedades que já
vivenciavam a “(...) generalização do bem-estar entre as classes trabalhadoras,
sobretudo entre fins do século XIX e as primeiras décadas deste século”. Já em
sociedade com experiências diversas daquelas, o princípio da igualdade jurídica, ainda
que reconhecido constitucionalmente, permaneceu “(...) não raro contido em sua
expressão simbólica” (Adorno, 1995, p.40).
Os descompassos e ajustamentos entre “(...) o direito e os fatos, entre o
enunciado legal e as situações concretas de discriminação e exclusão” (Adorno, 1995, p.
40) foram (e são) alvos de investigação de pesquisas que integram o campo de estudos
sobre justiça criminal e segurança pública no Brasil, as quais se dedicaram,
principalmente, investigar o acesso à justiça, práticas e moralidades das instituições de
controle social e punição diante da lógica democrática e as seletividades no sistema de
justiça e na segurança pública. Além de Adorno (1995), destacam-se os estudos de
Coelho (1986); Pinheiro (1979); Paixão (1982); Vargas (1999), Sinhoretto (2014), que
tematizaram a aplicação desigual de regras e procedimentos judiciais a indivíduos de
diferentes grupos sociais, e que foram (e são) centrais para configurar o entendimento
da redução da igualdade jurídica à “expressão simbólica”.
Entretanto, se clivagens de gênero, escolaridade e origem social sempre
permearam estudos sobre a seletividade da justiça, o mesmo interesse não é percebido
sobre a questão racial. São escassos os estudos que questionam a seletividade de
instituições estatais ligadas à justiça criminal e segurança pública diante dos diversos
grupos raciais. Para Adorno (1995), a discriminação ligada à questão racial não se
configura enquanto um problema para as pesquisas sobre instituições ligadas ao
controle do crime, pois na sociedade brasileira somos levados a acreditar que nossas
relações raciais não são conflitivas e:
a fraqueza de nossas tradições históricas e políticas em denunciar discriminações contribui grandemente para solidificar esse mito, que circula livremente, seja na sociedade civil seja entre os atores políticos encarregados de formular e implementar políticas públicas de respeito
3
e preservação dos direitos humanos, mito dotado de extraordinária eficácia simbólica a ponto de ter, inclusive, seduzido o imaginário de alguns cientistas sociais (ADORNO, 1995, p. 40)
É fato que, somente em tempos recentes, a questão racial passou a configurar um
fator de desigualdade, seja nas práticas jurídicas seja nas práticas policiais, e se tornou
foco de algumas pesquisas (Sinhoretto; Silvestre; Schlittler, 2014). Tais estudos
dialogam com um movimento recente - e crescente - de mobilização de determinadas
agências do Estado (por meio de políticas públicas voltadas à igualdade racial) e de
reivindicação da sociedade civil (com a introdução de pautas antirracistas) em torno de
problemas sociais decorrentes das várias formas de produção de desigualdades raciais.
Neste processo destaca-se o nascente movimento de juventude negra, que construiu sua
intervenção em novos espaços político-institucionais para interlocução entre Estado e
sociedade civil, como por exemplo, as Conferências de Políticas Públicas de Juventude
(CNPPJs) e o Conselho Nacional de Juventude (Morais, 2013).
Segundo Morais (2013) a emergência do reconhecimento racial enquanto um
fator de produção de desigualdade está atrelado ao avanço nas políticas de ação
afirmativa para a população negra, que vai desde a obrigatoriedade do estudo da história
e da cultura da África e dos afro-brasileiros no Ensino Básico (Lei 10.639/03), passando
pela criação de um órgão específico no Governo Federal, a Secretaria de Políticas de
Promoção da Igualdade (SEPPIR)2, com status de ministério, para tratar das políticas
voltadas a promoção da “igualdade racial”3 e atualmente, a criação do Plano Juventude
Viva, de âmbito nacional.
Como correlato a este movimento, desde o ano de 2012, o campo da segurança
pública assiste tanto a emergência de pesquisas que problematizam a desigualdade
racial4, quanto de movimentos sociais tematizando o chamado “genocídio da população
2 A SEPPIR é vinculada diretamente ao Gabinete da Presidência da República tendo sido criada pela Lei 10.678 de 2003, com a função de assessorar o Presidente da República na formulação, coordenação, articulação, promoção, acompanhamento e avaliação de todas as políticas de igualdade racial desenvolvidas pelo governo federal. Mais informações: <http://www.prsp.mpf.gov.br/prdc/area-deatuacao/digualdetnraclibrel/Notas%20sobre%20as%20politicas%20de%20acoes%20afirmativas%20no%20Brasil.pdf.> Acesso em 03 de junho de 2014. 3 Destacam-se também as políticas de expansão do Ensino Superior Público Federal com incentivos à adoção de reserva de vagas, ou “cotas”, para negros e indígenas até finalmente a Lei 12.711/12 – que institui a obrigatoriedade da reserva de vagas para egressos do ensino público, negros e indígenas nas Universidades e Escolas Técnicas Federais (MORAIS, 2013). 4 Destacam-se as pesquisas Mapa da Violência (WAISELFISZ, 2012) e “Vidas Perdidas e Racismo no Brasil” (2013), publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). De forma resumida, estas concluíram que o grupo composto por jovens negros está mais sujeito a mortes violentas do que outros segmentos populacionais, demonstrando a desigualdade entre as mortes de brancos e negros: a
4
negra”. Tais movimentos denunciam a seletividade racial e territorial nas abordagens
policiais das periferias e que, a partir de 2006, passaram a compor o associativismo
antirracista5. Em 2012, cem organizações da sociedade civil, que também tematizam a
letalidade da polícia sobre a população negra, fundaram o Comitê Contra o Genocídio
da Juventude Negra e Periférica e passaram a realizar diversos atos públicos. Um deles
foi uma audiência pública realizada na cidade de São Paulo com o atual Secretário de
Segurança Pública do Estado exigindo um reconhecimento, por parte do Estado, dos
episódios de execução promovidos pela Polícia Militar nas periferias.
Outro desdobramento deste contexto do associativismo antirracista foi a 2ª
edição do edital “Pensando a Segurança Pública”, lançada no final de 2012 pelo
Ministério da Justiça. O edital continha, pela primeira vez desde a criação da Secretaria
Nacional de Segurança Pública (Senasp), uma linha de pesquisa sobre segurança pública
e relações raciais. A demanda era por pesquisas que investigassem a filtragem racial na
abordagem da Polícia Militar.
No contexto deste debate está a proposta desta comunicação de discutir os dados
de duas pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de
Conflitos (GEVAC/UFSCar), no ano de 2013, no âmbito da linha de pesquisa
Segurança Pública e Relações Raciais, do Programa de Pós Graduação em Sociologia
(PPGS) da UFSCar. Os resultados preliminares norteiam a reflexão que se segue e
enfoca alguns dos dilemas e desafios com os quais se defronta a justiça criminal em
uma ordem democrática.
A invisibilidade da questão racial para a segurança pública: os desafios da coleta
de dados
Um dos desafios comuns às duas pesquisas citadas foi a busca por indicadores
na segurança pública que permitissem observar a produção de desigualdades nas
práticas policiais, sobretudo considerando-se o recorte racial. Verificou-se que a
categoria cor/raça não figura nos dispositivos de análise e monitoramento de ações do
campo da segurança pública. Não que a categoria não exista nos documentos e sistemas
que geram os registros das polícias e demais registros técnicos. Por vezes, ela existe.
proporção é 2,4 negros mortos para cada pessoa não negra, sendo que a maioria das mortes é provocada por arma de fogo (IPEA, 2013). 5 Em 2012, o Movimento Mães de Maio publicou o livro “Mães de Maio – Do luto à luta”, reiterando a denúncia sobre a filtragem racial nas ações policiais, principalmente, diante de situações de exceção, como na resposta aos ataques atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC), em meados 2006, no estado de São Paulo.
5
Mas ela não é tratada como indicador relevante de avaliação da ação policial e de toda a
segurança pública.
Ainda que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP/SP)
divulgue mensalmente dados sobre alguns tipos de ocorrências e atividades policiais,
estes não podem ser desagregados segundo informações que permitam reconhecer o
perfil dos indivíduos que são alvo das investidas policiais6. Constata-se ausência de
sistematização de dados, seja pela não desagregação dos dados divulgados, seja pela
“opacidade”7 destes números (Lima, 2011).
Verificou-se ainda que não há bases de acesso público sobre o resultado das
atividades policiais, principalmente, no que se refere à abordagem policial – indicador
privilegiado para reconhecer e monitorar o fenômeno da filtragem racial na prática
policial de seleção dos suspeitos. Diante da indisponibilidade de informações,
indicadores sobre letalidade policial e prisões em flagrante foram utilizados para
informar o perfil das pessoas que são alvos das ações policiais.
Para a obtenção destas informações foi necessário a) solicitar à SSP/SP
levantamentos aprofundados nas bases de registros de ocorrência sobre prisões em
flagrante e cruzamentos específicos que permitissem analisar as informações
desagregadas pelas variáveis de cor/raça dos presos e b) construir uma base de dados
sobre letalidade policial a partir de consulta aos processos reunidos na Ouvidoria da
6 A SSP/SP mantém setor que divulga periodicamente, desde 1995, estatísticas criminais organizadas por tipos de crime, que podem ser desagregados por cidade e, no caso da cidade de São Paulo, por distrito. A Coordenadoria de Análise e Planejamento divulga os dados relacionados a ocorrências policiais e produtividade policial mensalmente no site da SSP/SP, desde 2011. Trimestralmente divulga dados relativos à atuação das polícias, conforme a Lei 9155/9510, incluindo as ações que resultaram em homicídio. Contudo, os dados divulgados não são desagregados pelo perfil dos envolvidos, tampouco usam a classificação cor/raça. Consultar o site da SSP/SP. Disponível em <http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Trimestrais.aspx>. Consultado em 10 de abril de 2014. 7 Para Renato Lima (2011), as estatísticas produzidas pelo sistema de justiça criminal têm um papel político na história brasileira. Segundo o autor, mesmo com o processo de redemocratização e o aumento da pressão por transparência e controle público das agências estatais de justiça e segurança, o “segredo” permanece como modus operandi do sistema de justiça criminal, sobretudo pela polícia, na transparência dos dados, nas sofisticadas tecnologias e linguagens técnicas usadas pelos operadores. O problema se desloca da produção de conhecimento para o uso que se faz dos dados produzidos. Neste sentido, mesmo havendo constante produção de números, eles pouco permitem conhecer mais a fundo a realidade a que se referem, o que cria um efeito de opacidade.
6
Polícia do Estado de São Paulo8. A atividade de coleta foi empreendida pela equipe de
pesquisadores do GEVAC/UFSCar9.
A SSP/SP forneceu, entre informações de outras naturezas, uma tabela sobre o
perfil das pessoas presas em flagrante, segundo a informação cor do preso e tipos de
crimes mais frequentes, para o período de 2008 a 2012, no estado de São Paulo.
Analisar os dados referentes ao perfil racial dos presos na modalidade flagrante
mostrou-se um interessante indicador para o objetivo pretendido, pois este tipo de prisão
poucas vezes decorre de uma investigação criminal prévia, executada por meio de
mandado judicial, sendo muito mais recorrente em casos de abordagem policial. Permite
ainda verificar a atuação de estereótipos racializados na atividade de identificação dos
“suspeitos” – prática operacionalizada por um saber-fazer policial não pautado em
critérios objetivos e permeada por um conjunto de valores e moralidades informado pelo
cotidiano e construído “na rua” (Kant, 2009).
Já a estratégia de analisar os dados referentes à letalidade policial se justifica
pela existência, em praticamente todos os casos autuados na Ouvidoria10, de
documentos oficiais como Boletim de Ocorrência, Inquérito Policial Civil ou Militar,
laudos necroscópicos, entre outros, que em geral trazem informação sobre a cor/raça da
vítima de homicídio. Dossiês da Ouvidoria sobre ocorrências de outras naturezas, como
abuso de autoridade e abordagem excessiva, foram consultados na fase de teste do
desenho da coleta de dados, mas foram excluídos devido à escassez de documentos que
descrevessem informações sobre a vítima, constituindo uma fonte muito limitada.
Assim, nos casos de mortes cometidas por policiais, é possível observar o perfil da
vítima com base nos documentos oficiais e observar a frequência da variável cor/raça.
8 Agradecemos a inestimável colaboração do Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, de seu assessor e de toda a equipe de servidores da Ouvidoria para que a equipe de pesquisa pudesse ter acesso aos documentos que serviram de fonte. 9 Esta pesquisa foi coordenada por Jacqueline Sinhoretto, com a participação dos/as pesquisadores/as Maria Carolina Schlittler, Giane Silvestre, Giulianna Denari, Kathleen Ângulo, Henrique Linica Macedo, David Marques, Yasmin Miranda e Letícia Canonico de Souza. 10 A Ouvidoria recebe denúncias de diferentes naturezas sobre práticas consideradas abusivas e/ou excessivas por parte dos policiais civis e militares. Realiza também um acompanhamento minucioso dos casos de homicídio envolvendo policiais, provocando as respectivas corregedorias, Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário com pedidos de informações e providências cabíveis em cada um dos casos. Para cada denúncia que a Ouvidoria recebe abre-se um processo interno de acompanhamento até que uma providência seja tomada pelo órgão responsável. Processos que se revelaram uma rica e complexa fonte de dados para a presente pesquisa.
7
A seletividade racial em números
O banco de dados sobre letalidade policial foi constituído por informações
coletadas em processos, autuados na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo,
sobre mortes em decorrência da ação policial, entre os anos de 2009 e 2011. Nos 734
casos analisados foram coletadas informações referentes a 939 vítimas e 2162 autores
(policiais). Em relação ao perfil das vítimas, verificou-se que elas são
predominantemente negras11 (61%), homens (97%) e jovens, entre 15 e 29 anos. Ao
realizar o cruzamento das variáveis cor/raça (conforme registro no BO) e idade, é
possível perceber que a maioria das vítimas é formada por jovens negros, conforme
gráfico 1.
Gráfico 1 - Idade e cor/raça das vítimas de mortes em decorrência da ação policial.
Estado de São Paulo, 2009 a 2011
Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar
Os dados indicam que a letalidade policial é maior sobre a população negra. Ao
calcular as taxas de mortos por 100 mil habitantes, dentro de cada grupo de cor/raça, no
ano de 2011, é possível observar que são mortos três vezes mais negros do que brancos.
Conforme tabela 1 e gráfico 2.
11 Para a coleta dos dados foram utilizadas as categorias negro, preto, prado. Contudo, para a análise exposta, entende-se a categoria negro como a soma das categorias preto e pardo, seguindo assim a tendência da produção estatística oficial e das análises acadêmicas preocupadas em dimensionar as desigualdades raciais no país.
0
20
40
60
80
100
120
140
Negro Branco
8
Tabela 1 - Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça, em
taxas por 100 mil habitantes.
Estado de São Paulo, 2011
Negros Brancos
População residente 14.287.843 26.371.709
Mortos em decorrência da ação policial
193 131
TAXA 1,4 0,5
Fonte: Ouvidoria da Polícia; IBGE; GEVAC/UFSCar
Gráfico 2 – Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça,
em taxas por 100 mil habitantes.
Estado de São Paulo, 2011
Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar
Outro dado relevante, agora em relação ao perfil dos autores (policiais), é que a
Polícia Militar é responsável por 95% da letalidade policial no estado, sendo que 90%
dos autores são praças, com destaque para soldados e sargentos. Por volta de 30%
pertencem a grupamentos especiais, com destaque para a ROTA e a Força Tática.
Segundo os dados coletados, 635 policiais pertencem a grupos especiais, sendo que,
deste total, 39% são integrantes da ROTA e 54% integrantes da Força Tática12.
12 Enquanto a Força Tática está presente em diversos batalhões da PMESP, a ROTA é o 1º Batalhão de Polícia de Choque e está sediada somente na capital, ainda que atue em outras cidades do estado, quando acionada.
1,4
0,5
Negros Brancos
9
Tabela 2 – Policiais autores de mortes que pertencem a grupos especiais.
Estado de São Paulo, 2009 a 2011
Grupo especial Frequência Percentual
Delegacia Especializada 17 3%
Outro grupo do Choque 32 5%
ROTA 245 39%
Força Tática 341 54%
TOTAL DE POLICIAIS 635 100%
Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar
Os resultados da ação policial violenta refletem a desigualdade racial na
segurança pública, já que as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que
brancos, quando se considera a proporcionalidade entre brancos e negros na população
paulista. No ano de 2011, por exemplo, em cada grupo de 100 mil negros 1,4 foi vítima
de ação letal da polícia; enquanto que num grupo de 100 mil brancos a taxa de
letalidade por ação da polícia é 0,5. Portanto, as taxas de mortes produzidas pelas
polícias, segundo cada grupo de cor/raça, refletem a produção da desigualdade racial,
assim como a persistência do racismo institucional no campo da segurança.
O número de prisões em flagrantes também foi utilizado pela pesquisa como um
indicador do trabalho policial, no que se refere à abordagem. Isto porque a prisão em
flagrante, na maioria dos casos, decorre de uma abordagem policial sem uma
investigação prévia. No Brasil, as investigações criminais são juridicamente conduzidas
pelo inquérito policial, que é um instrumento ambivalente, pois acumula funções
administrativas e jurídicas. Alguns estudos sobre o inquérito no Brasil já
problematizaram esta ambivalência, assim a lógica mista, cartorial e arcaica deste
instrumento (Kant de Lima, 1995, 2008; Mingardi, 1992; Misse, 2010). O inquérito
policial no Brasil, na maneira como é conduzido, é alvo de críticas tanto por parte dos
delegados, responsáveis pela execução, quanto dos defensores e advogados que
representam os investigados.
Independente dos argumentos acionados, os dados apontam que as investigações
criminais no país têm um baixo índice de esclarecimento, sendo o crime de homicídio
um dos menos elucidados. Segundo os dados de uma pesquisa realizada pela
Associação Brasileira de Criminalística, no ano de 2011, a taxa de elucidação dos
10
inquéritos de homicídio no Brasil varia apenas de 5% a 8%, o que expressa a
precariedade da persecução criminal brasileira e a seletividade do sistema penal, pois
enquanto a elucidação de crimes graves, como o homicídio, é baixa, as prisões em
flagrante por furtos, roubos e tráfico de drogas (varejo) superlotam o sistema prisional
no país.
Como exposto acima, foram fornecidos pela CAP/SSP os dados sobre prisões
em flagrante para os crimes de roubo e homicídios, desagregados pela cor/raça dos
presos, mesmo tendo sido solicitados os dados sobre os crimes mais frequentes. Os
dados obtidos indicaram que a vigilância policial recai preferencialmente sobre a
população negra. A série histórica é referente ao período de 2008 a 2012, e indica que
54,1% dos presos em flagrante são negros, conforme gráfico 3.
Gráfico 3 - Prisões em flagrante no estado de São Paulo (roubo e homicídio),
segundo cor/raça
2008-2012
Fonte: SSP/SP
É possível observar uma sobrerrepresentação da população negra nas prisões em
flagrante, pois quando se calcula a taxa de presos em flagrante no ano de 2012 segundo
cor/raça proporcionalmente às populações branca e negra residentes no estado com 18
anos ou mais, a maior incidência das prisões em flagrante sobre a população negra é
observada. Enquanto que para cada 100 mil habitantes brancos 14 são presos, para cada
100 mil habitantes negros 35 são presos13, nos tipos de crime analisados.
13 Taxa calculada a partir do número de prisões em flagrante obtido junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo no ano de 2012 e população residente no estado de São Paulo com 18 anos ou mais, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, segundo brancos e negros.
54,1%
42,9%
2,9%
0,1%
0,0% 10,0% 20,0% 30,0% 40,0% 50,0% 60,0%
NEGROS
BRANCOS
IGNORADO
AMARELO
11
Tabela 3 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubos e homicídios), em taxa de
100 mil habitantes em São Paulo – 2012
Negros Brancos
População residente
com 18 anos ou mais 10.187.982 19.719.035
Presos em flagrante em 2012 3592 2682
TAXA POR 100 MIL HABITANTES
35 14
Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar
Gráfico 4 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubo e homicídio), em taxa de
100 mil habitantes em São Paulo – 2012
Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar
Os dados sobre prisões em flagrante apontam maior vigilância policial sobre a
população negra, que se reflete na concentração do número de prisões em flagrante
sobre este grupo. Este tipo de prisão não decorre de uma investigação criminal prévia,
executada por meio de mandado judicial, sendo muito mais recorrente em casos de
abordagem policial. Ou seja, os dados indicam que, no cometimento de delitos, os
negros são flagrados com maior frequência do que brancos, pois são mais visados pela
ação policial.
Os números fornecidos pela SSP listaram como principais ocorrências em que
ocorrem flagrantes os crimes de roubo e homicídio14. O primeiro subdivide-se em 16
tipos e, para análise, optou-se em agregar as ocorrências em dois grandes grupos –
14 Não foram fornecidos pela SSP os dados sobre outros crimes, como o de tráfico de drogas.
35
14
Negros Brancos
12
roubos e homicídios. Foi possível perceber a alta representatividade do crime de roubo
nas prisões em flagrante (tabela 4).
Tabela 4 - Presos em flagrante, segundo agregado de ocorrências.
Estado de São Paulo, 2008-2012
Ocorrência Presos Percentual
Homicídios 1877 2,7%
Roubos 68322 97,3%
TOTAL 70199 100,0%
Fonte: SSP/SP
Como destacado acima, a maioria das pessoas presas é negra (54,1%). Porém, ao
compararem-se brancos, negros e casos de cor ignorada segundo o agregado das
ocorrências, nos casos de pessoas presas por homicídio a maioria é branca,
representando 55,7%, negros representam 42,2% (vide tabela 4).
Tabela 5- Presos em flagrante segundo cor/raça, por agregado de ocorrências.
Estado de São Paulo, 2008-2012
Cor/raça Homicídios Percentual Roubos Percentual
Brancos 1044 55,7% 29059 42,6%
Negros 789 42,1% 37197 54,5%
Ignorados 42 2,2% 1993 2,9%
TOTAL 1875 100,0% 68249 100,0%
Fonte: SSP/SP
Portanto, os dados sobre prisões em flagrante expressam que a vigilância policial
privilegia as pessoas negras e as reconhece como suspeitos criminais, flagrando em
maior intensidade as suas condutas ilegais, ao passo que os brancos, menos visados pela
vigilância policial, gozam de menor visibilidade diante da polícia, sendo surpreendidos
com menor frequência em sua prática delitiva. É possível também que as atividades
criminais mais frequentemente cometidas por negros sejam mais vigiadas, ao passo que
atividades criminais mais comuns entre brancos despertem menor atenção da polícia.
Práticas policiais e produção de desigualdades
13
Nas décadas de 1980 e 1990, autores como Fernandes (1973), Pinheiro (1979,
1997), Paixão (1982), Mingardi (1992), Oliveira (2004), Mesquita Neto (1999), Souza
(1994) e Kant de Lima (1995) assumiram a vanguarda na realização de pesquisas sobre
o papel das polícias, enfatizando as possibilidades e limites de reformas das polícias em
tempos de redemocratização do país, principalmente, diante da característica
discricionária do trabalho policial e da dimensão informal da cultura organizacional das
polícias.
Paulo Sérgio Pinheiro, em entrevista para Lima e Ratton (2011), relata que a
violência dos agentes do Estado passou a ser uma questão para estudiosos de
universidades brasileiras somente com os presos políticos da ditadura militar. Para o
autor a maior ênfase na defesa dos direitos humanos durante os anos de 1980 relaciona-
se à ampliação do escopo de uma prática geralmente aceita no país. Ou seja, enquanto a
prática da tortura e da eliminação de suspeitos se restringia a membros de periferias,
poucas vozes se levantavam para protestar. O cenário só é modificado quando estas
mesmas práticas foram empregadas pelo regime militar para conter dissidências
políticas, atingindo membros das elites.
A conclusão comum a estes estudos sobre práticas policiais é que existem
processos sociais que modificam o pressuposto constitucional de que todas as pessoas
serão tratadas da mesma forma pelas polícias. Vale salientar o trabalho de Pinheiro
(1979) sobre as dificuldades que as polícias, ao longo da história do país, tiveram em
exercer o monopólio legítimo da violência, dentro de marcos legais de respeito aos
direitos civis, diante de representantes de classes populares/subalternas.
A pesquisa de Paixão (1982), sobre a Polícia Civil foi uma das primeiras que
verificou como determinadas características do trabalho policial criam desvantagens
para grupos populacionais específicos. O autor verificou a existência de uma realidade
informal e experiências subjetivas direcionando o trabalho (e o treinamento) do/a
policial, interagindo ou modificando a dimensão formal do seu trabalho. Uma das
análises mais interessantes feitas pelo autor refere-se à montagem do inquérito,
realizado informalmente “de trás para frente”, iniciando com a detenção de “suspeitos”
nas prisões “para averiguação”. Porém, as definições sobre quem é “o suspeito” são
permeadas por moralidades e saberes estereotipados, características do trabalho policial
que revelam o tratamento desigual dado a determinados tipos penais e sujeitos sociais
diversos.
14
Caldeira (2000) problematiza a tolerância popular à violência policial quando se
trata de públicos específicos – considerados suspeitos em potencial – e, especialmente,
em momentos de aumento no sentimento de insegurança da população. Análise
compartilhada por Mingardi (1992), quando o autor descreve que nas delegacias a
tortura – aplicada enquanto método de trabalho, com regras e procedimentos – não era
aplicada a todos, pois pessoas pertencentes a classes econômicas privilegiadas, sem
antecedentes criminais, não deveriam ser torturadas: “(...) quem apanha é pobre,
colarinho branco não apanha, faz acerto” (MINGARDI, 1992, p. 57).
Outra questão recorrente nos estudos sobre práticas policiais é como conter o
uso da força das polícias, dentro dos limites da legalidade democrática, diante de
processo de ampliação de crimes em escalas globais (como o narcotráfico), crime
organizado e graves violações dos direitos humanos. O controle sobre às práticas
policiais e, especialmente, sobre a letalidade policial, está envolto às discussões sobre
quando o uso da força policial justifica-se como legítimo e quais seriam os parâmetros
de razoabilidade e de necessidade para seu uso.
Os debates sobre o tema se dividem, alguns autores como Chevigny (1991) e
Cano (1997) são enfáticos ao afirmarem que é possível estabelecer critérios15 que
determinem quando o uso da força policial é uma atividade legítima e quando é um uso
abusivo e violento; já a conclusão de outros autores, como por exemplo Mesquita
(1999), aponta que tal separação depende diretamente da forma como determinada
sociedade interpreta a noção de violência.
A conclusão deste segundo grupo de autores é que a linha demarcatória entre a
força legítima e a arbitrariedade/abuso policial não é fixa, o limite entre violência
policial e estrito cumprimento da função policial atrela-se à representação social do
indivíduo que “sofre” a ação policial, produzindo desigualdades na aplicação de regras e
de procedimentos judiciais e da segurança pública.
Pesquisas como estas citadas acima, sobre as informalidades que cercam as
práticas policiais e sobre os limites da legitimidade no uso da força policial, tiveram
sucesso em documentar como características socioeconômicas criam desvantagens para
públicos específicos no contato com agentes policiais. Porém, a produção de
15 Dentre estes autores, verifica-se três critérios usualmente empregados para aferir o uso da força letal: 1) a relação entre civis mortos e policiais mortos; 2) a razão entre civis feridos e civis mortos pela polícia; e 3) a proporção de civis mortos pelas polícias em relação ao total de homicídios dolosos (Bueno, 2014).
15
desigualdades nas práticas policiais gerada pela questão racial é, nos estudos sobre o
tema, pouco levantada.
A escassez de estudos que dimensionem a raça como fator de desigualdade na
segurança pública pode estar relacionada ao fato de que, diferentemente dos EUA16, no
Brasil, até a década de 1990, a questão da raça não se configurou enquanto um forte
elemento de análise das desigualdades, seja na percepção do Estado, seja como pauta de
mobilizações políticas coletivas.
No contexto brasileiro, a subalternidade provocada pelo pertencimento racial e
social não aparece de forma objetiva o que, de certo modo, “esvazia” a construção típica
e ideal de raça, tal como apresentada nos contexto americano ou sul-africano, por
exemplo. Segundo Guimarães (2002), esse dilema foi percebido pelas lideranças do
Movimento Negro no final do século XX que, sabiamente, tentaram acomodar suas
reivindicações e suas políticas afirmativas a fórmulas mais abrangentes como a do
“negro carente”.
Para dar conta desta realidade racial brasileira, em que a desigualdade racial
aparece imbricada à desigualdade de classe, Guimarães (1999) acompanha a tendência
de uso do conceito de “racialização” para fins analíticos (que também aparece em
Silvério, 1999), pois permite verificar as interssecionalidades entre classe e raça em
fenômenos sociais. Ou seja, possibilita compreender, analiticamente, o significado de
certas classificações sociais e de certas orientações de ação informadas pela ideia de
“raça”.
Para Guimarães (1999) o termo “racialização” é importante porque resgata a
ideia de raça enquanto uma categoria indispensável: “a única que revela que as
discriminações e desigualdades que a nação brasileira de ‘cor’ enseja são efetivamente
raciais e não apenas de classe” (p.50). A utilização do conceito, de maneira analítica e
metodológica, permitiria ao sociólogo “inferir a permanência da ideia de raça
disfarçadas em algum tropo” (p. 54).
16 Nos EUA, o tema do racial profiling tem sido debatido desde a década de 1970, quando militantes antirracistas (como por exemplo, o movimento Black Powers e os nacionalistas chicanos), passaram a elaborar críticas ao racismo do Estado, visando denunciar as injustiças nos setores de segurança, informações e policiamento policial nos EUA (Amar, 2005, p 237). Estudos como os de Amar (2005) e Meeks (2000) tiveram sucesso em apontar a raça enquanto um fator de desvantagem para alguns grupos em situações de contato com a polícia, no contexto norte americano. Outros condicionantes de desvantagens, como por exemplo, a questão socioeconômica, foi apontada como fator secundário neste processo.
16
A seletividade racial na ação policial: o papel do policiamento ostensivo e do
combate militarizado
Os dados trazidos por esta comunicação evidenciam que o racismo institucional
opera nas práticas policiais no estado de São Paulo. Os números oficiais de letalidade
policial e prisões em flagrante levantados fornecem evidências empíricas da produção
cotidiana da desigualdade racial na operação da segurança pública. Em São Paulo,
estado com população negra residente de 34%, as vítimas negras de mortes cometidas
por policiais somam 58% do total destas mortes.
Em São Paulo a chance de um negro ser assassinado pela polícia é quase três
vezes maior do que a de um branco, sendo 1,4 negro morto para cada 100 mil habitantes
negros, enquanto que para cada 100 mil habitantes brancos, 0,5 é morto pela polícia.
Verifica-se ainda que as vítimas da letalidade policial, além de cor, também têm idade
preferencial. Entre os mortos pela polícia em 2009 e 2011, a faixa etária que vai de 15 a
29 anos representou 78% dos casos. Quando se cruza a idade e a cor/raça destas vítimas,
tem-se, entre 15 e 19 anos, 57% de negros entre os mortos, ao passo que 30% são
brancos. Há que se considerar a alta representatividade das informações ignoradas, tanto
na idade quanto na cor destas vítimas. Este fato revela a baixa qualidade dos dados
produzidos pelos órgãos da segurança pública, que poderiam indicar um cenário ainda
mais desigual.
Além da produção da desigualdade racial nos resultados da letalidade policial,
constatou-se ainda que a vigilância policial como um todo é operada de modo
racializado. Os dados sobre as prisões em flagrante indicam que a maioria dos presos é
composta de negros, comparados aos brancos presos, mais que o dobro de negros é
preso. Estes dados expressam que a vigilância policial privilegia as pessoas negras e as
reconhece como suspeitos criminais, flagrando em maior intensidade as suas condutas
ilegais, ao passo que os brancos, menos visados pela vigilância policial, gozam de
menor visibilidade diante da polícia para o cometimento de atos criminais, sendo
surpreendidos com muito menor frequência em sua prática. É indicativo também de que,
possivelmente, as atividades criminais mais frequentemente cometidas por negros sejam
mais vigiadas, ao passo que atividades criminais mais comuns entre brancos despertem
menor atenção da polícia.
Pode-se concluir que a filtragem racial está imbricada com as próprias
estratégias do policiamento. Estudos sobre o cotidiano policial apontam que diante da
ausência de critérios institucionais para se realizar a atividade policial de suspeição,
17
critérios subjetivos são mobilizados pelos policiais militares. Segundo Suassuna (2008),
a tentativa de tornar mais objetiva a mobilização destes critérios leva os policiais a
descreverem o chamado de “kit peba” – o qual serve como indicativo para a suspeição
de pessoas e que se refere a um modo de andar, peças do vestuário, formas de falar e
olhar, uso de acessórios, horários e locais de trânsito.
O trabalho de Suassuna (2008) é importante para demonstrar como conflitos
entre os níveis institucional e do agente (policial militar) – que, por ventura, possam
surgir da utilização de saberes informais (e aqui pode-se inserir: racializados) para a
seleção de suspeitos o que, em tese, afrontaria os saberes institucionais apreendidos nas
academias de polícia – são relativizados diante da necessidade de eficiência nos
resultados da instituição. Ou ainda, como estes “informalismos” (Paixão, 1982) tem
anuência velada do Estado em favor da produtividade no trabalho do policial.
Mingardi (1992) problematizou sobre a ilegalidade das prisões correcionais (os
chamados “corrós”) nas delegacias de polícias nos anos de 1980. Segundo o autor,
mesmo diante da ilegalidade, o Estado assegurava a permanência destas prisões por
meio, por exemplo, do fornecimento de alimentação a estes “presos”. O autor relata que
a ausência de conflito entre a instituição policial e esta prática informal dos policiais
civis decorria, sobretudo, da imprescindível utilidade dos “corrós” na garantia de
eficiência da atividade policial, principalmente, no procedimento de montagem do
inquérito policial “de trás para frente” (MINGARDI, 1992, p. 54).
A hipótese que cerca os dados apresentados por esta comunicação é que a
atuação policial marcada pela informalidade e orientada por práticas racializadas, pode
se relacionar à busca por eficiência na atividade policial, inscrita justamente em um
campo com pouca confrontação pelos níveis institucionais de controle da polícia, dada a
pressão por eficiência e otimização de resultados. Ou seja, há uma prática policial
consolidada, executada no nível “da rua” e administrada pelas posições de comando,
que legitima tipos de ações como forma de administrar o controle estatal do crime a
segmentos populacionais específicos. Afinal, há todo um aparato institucional, como
por exemplo a possibilidade do registro nas delegacias de polícia das mortes em
decorrência policial na categoria “resistência seguida de morte”, que se não valida a
ação racializada, ao menos, não interrompe a sua continuidade.
Uma exemplificação deste argumento é o papel do Ministério Público na
legitimação das mortes cometidas por policiais, conforme demonstra o estudo de Misse
(2011) sobre os chamados autos de resistência no Rio de Janeiro. Os dados trazidos por
18
esta comunicação reforçam as conclusões Ou então, o estudo de Sinhoretto, Silvestre e
Schlittler (2014) que verificou que a maioria dos policiais autores de mortes não foi
indiciada pelas mortes, pois os inquéritos não concluíram a existência do crime de
homicídio por parte dos policiais.
O que implica afirmar que seletividade nas ações policiais pode se atrelar às
discussões sobre como o limite entre força legítima e violência policial é algo
impreciso, relacional - conforme é possível verificar nos estudos de Klockars (1996),
Muniz et al (1999), Mesquita Neto (1999), Costa (2003), Costa & Medeiros (2002),
Porto (2000), Adorno (2002) - e, talvez, racializado. Os dados trazidos aqui mostraram
que quanto mais altas as taxas de letalidade policial, mais elas se concentram sobre a
população negra, jovem e dos territórios estigmatizados. Violência policial e
racialização, desta forma, são fenômenos sociais correlacionados
Outra hipótese, complementar à primeira, conforme o modelo analítico
desenvolvido em Sinhoretto (2014), é que a resposta militarizada para o combate aos
supostos “criminosos” é, atualmente, uma das estratégias de controle estatal do crime, a
qual produz alto número de mortes e é justificada pelas autoridades da segurança
pública como uma forma legítima de atuação. Outra estratégia é a chamada “clássica”
que produz maior número de indiciamentos, de condenações e de presos cumprindo
pena no sistema carcerário, em expansão vertiginosa.
Entretanto, estas seriam explicações rasas se à questão racial não for dada
relevância analítica. A proposta deste paper – e do programa de pesquisa ao qual se liga
– é relacionar o padrão das relações raciais a um modelo de policiamento que, por um
lado, privilegia o policiamento ostensivo em detrimento do processo de investigação
policial, culminando assim num elevado índice de prisões em flagrante e
encarceramento em massa. E por outro lado, tem um viés militarizado na vigilância
policial, atingindo desigualmente sobre os grupos racializados e sobre determinados
tipos de crimes, produzindo um altíssimo grau de letalidade policial, com vítimas
preferenciais entre homens jovens e negros, oriundos de territórios estigmatizados.
As evidências empíricas da produção da desigualdade racial na segurança
pública foram identificadas, portanto, a partir de três indícios a) inexistência de
indicadores sobre a questão racial no campo da segurança pública, b) dados sobre
letalidade policial e c) dados sobre prisões em flagrante. Os dados que foram reunidos
nesta comunicação pretenderam problematizar os resultados da atividade policial e seu
impacto sobre os diversos grupos sociais, usando os indicadores de cor/raça. E ainda,
19
como aspectos racializados de prática policial na atividade de seleção de suspeitos
permitem as práticas policiais abusivas, criando desvantagens para alguns grupos
populacionais, em especial os jovens negros.
Referências
ADORNO, Sérgio. Crise no sistema de justiça criminal. Ciência e Cultura, SBPC, São Paulo, p. 50-51, 2002. ____. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e negros em perspectiva comparativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 18, p. 283-300, 1995 BARROS, Geová da S. Filtragem racial: a cor na seleção do suspeito. Revista
Brasileira de Segurança Pública, Ano 2, Edição 3, p. 134-155, 2008. BUENO, Samira. Letalidade na ação policial. In: LIMA, R. S.; RATON, J. L.; AZEVEDO, R. G. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 487 – 497, 2014. COELHO, Edmundo. A administração da justiça criminal no Rio de Janeiro: 1942-1967. Dados, Rio de Janeiro, 1986. GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999. _____. Classes, Raças e Democracia. São Paulo: Editora 34, 2002. IPEA. Vidas perdidas e racismo no Brasil. Relatório de pesquisa, 2013 KANT DE LIMA, Roberto. A polícia da cidade do Rio de Janeiro. Seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Forense, 1995 _____. Ensaios de antropologias e de direitos. Acesso à justiça e processos institucionais de administração de conflitos e produção da igualdade jurídica em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
LIMA, Renato Sérgio. Entre palavras e números: violência, democracia e segurança pública no Brasil. São Paulo: Alameda, 2011.
20
MISSE, Michel (org.). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. RJ: NEVCU/UFRJ / Booklink, 2010. MORAIS, Danilo. Movimento de Juventude Negra e construção democrática no Brasil. In: MENEZES, Jaileila de Araújo; COSTA, Mônica Rodrigues; ARAÚJO, Tatiana Cristina dos Santos (Org). JUBRA. Territórios Interculturais de Juventude. Recife: Editora Universitária UFPE, 2013. NETO, Paulo Mesquita. Violência policial no Brasil: abordagens teóricas e práticas de controle. Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, p. 129-148, 1999. PAIXÃO, Antônio L. A organização policial numa área metropolitana. Dados - Rev.
Ciências Sociais, vol.25, n.1, 63-85, 1982. PINHEIRO, Paulo Sérgio. Crime, violência e poder. São Paulo: Brasiliense, 1983 ____. Violência do Estado e classes populares. Dados, n. 22 1979. RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. [S.I.]: Civilização Brasileira, 2004. SILVÉRIO, Valter. O Multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora. Revista
USP, n. 42, p.44-55, jun. ago. 1999. SINHORETTO, Jacqueline. Controle social estatal e organização do crime em São Paulo. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social - Vol. 7 - no 1 - pp. 167-196 - JAN/FEV/MAR, 2014. _____. Seletividade penal e acesso à justiça. In: LIMA, Renato Sérgio; RATON, José Luiz; AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli. Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 487 – 497, 2014. SINHORETTO, Jacqueline; SILVESTRE, Giane; SCHLITTLER, Maria Carolina. Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo: letalidade policial e segurança pública. Relatório de Pesquisa, GEVAC / UFSCar, 2014. SOUZA, Luiz Antônio Francisco (org.). Políticas de segurança pública no estado de
São Paulo: situações e perspectivas a partir das pesquisas do Observatório de Segurança Pública da UNESP. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. _____. Polícia Civil, Classe Trabalhadora e Delinquência: uma revisão. Revista Plural, São Paulo, v. 1, n.1, 1994.
21
SUASSUNA, Rodrigo. O habitus dos policiais militares do Distrito Federal. Dissertação (mestrado em Sociologia). Universidade de Brasília, Brasília, 2008. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil. Rio de Janeiro e Brasília: CEBELA, FLACSO; SEPPIR/PR, 2012.