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1 A PRODUÇÃO DA PERICULOSIDADE DO JOVEM POBRE E PRETO NO DISCURSO MIDIÁTICO: O CASO JOÃO HÉLIO Sharon Varjão Will Maria de Fátima Costa de Paula Universidade Federal Fluminense RESUMO Com base em Michel Foucault e Félix Guattari, partimos do pressuposto de que a hegemonia conservadora produz subjetividades. A partir desses referenciais teóricos, fizemos um recorte específico, onde analisamos a construção do discurso sobre a periculosidade do jovem pobre e preto, produzida pelo jornal O Globo. Tomamos como dispositivo disparador de análise o caso do assassinato do menino João Hélio, tão divulgado na mídia e que influenciou o debate acerca do controle, penalização e criminalização do jovem pobre. Observamos que a criminalização do jovem pobre e preto traz a herança do discurso médico higiênico e do discurso racista. Palavras-Chave: Jovem Pobre e Preto/ Periculosidade / Mídia / Produção de Subjetividade.

A PRODUÇÃO DA PERICULOSIDADE DO JOVEM POBRE E PRETO NO DISCURSO MIDIÁTICO: O CASO JOÃO HÉLIO

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Com base em Michel Foucault e Félix Guattari, partimos do pressuposto de que a hegemonia conservadora produz subjetividades. A partir desses referenciais teóricos, fizemos um recorte específico, onde analisamos a construção do discurso sobre a periculosidade do jovem pobre e preto, produzida pelo jornal O Globo. Tomamos como dispositivo disparador de análise o caso do assassinato do menino João Hélio, tão divulgado na mídia e que influenciou o debate acerca do controle, penalização e criminalização do jovem pobre. Observamos que a criminalização do jovem pobre e preto traz a herança do discurso médico higiênico e do discurso racista.

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A PRODUÇÃO DA PERICULOSIDADE DO JOVEM POBRE E PRETO NO

DISCURSO MIDIÁTICO: O CASO JOÃO HÉLIO

Sharon Varjão Will

Maria de Fátima Costa de Paula

Universidade Federal Fluminense

RESUMO

Com base em Michel Foucault e Félix Guattari, partimos do pressuposto de que a

hegemonia conservadora produz subjetividades. A partir desses referenciais teóricos,

fizemos um recorte específico, onde analisamos a construção do discurso sobre a

periculosidade do jovem pobre e preto, produzida pelo jornal O Globo. Tomamos como

dispositivo disparador de análise o caso do assassinato do menino João Hélio, tão

divulgado na mídia e que influenciou o debate acerca do controle, penalização e

criminalização do jovem pobre. Observamos que a criminalização do jovem pobre e

preto traz a herança do discurso médico higiênico e do discurso racista.

Palavras-Chave: Jovem Pobre e Preto/ Periculosidade / Mídia / Produção de

Subjetividade.

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Com base em Michel Foucault e Félix Guattari, analisamos a construção do

discurso sobre a periculosidade do jovem pobre e preto1, produzida pelo jornal O Globo,

tomando como dispositivo disparador de análise o caso do assassinato do menino João

Hélio, em 2007, na época maciçamente divulgado na mídia, influenciando o debate

acerca do controle, penalização e criminalização do jovem pobre.

Partimos do pressuposto de que a hegemonia conservadora produz subjetividades.

(GUATTARI e ROLNIK, 1986). Ela elege e difunde discursos como mecanismos

indutores e justificadores de políticas autoritárias. Assim, o trabalho está marcado por

uma compreensão do sujeito contrária a toda uma tradição da filosofia e das ciências

humanas que, desde Descartes, entende esse sujeito como algo do domínio de uma

suposta natureza humana. Nós o entendemos como uma produção sócio-histórica que se

materializa por meio das práticas disciplinares e de poder.

Nesse enfoque, histórico-genealógico, o indivíduo é entendido, então, não mais

como natural ou como uma essência, mas como apenas um dos modos de subjetivação

possíveis. A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no

indivíduo. Ela é fabricada e modelada no registro do social, constituída por

atravessamentos de forças.

Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 27)

A subjetividade é essencialmente fabricada – como parte do processo de produção

do sistema capitalístico2 – produção esta que interfere na maneira como os indivíduos

percebem o mundo, se articulam com ele, com a ordem social, sustentando as forças

produtivas. Guattari e Rolnik consideram a sinonímia indivíduo/subjetividade como

empobrecedora, no sentido de que atribui ao sujeito uma identidade determinada e

limitada, reduzindo as múltiplas possibilidades de se experimentar relações com a vida.

Nesse sentido, foi escolhido o jornal O Globo, por ser a ferramenta impressa da

mais poderosa instituição de comunicação, rede de multiplicação e produção de

subjetividades do Brasil e, em particular, do Rio de Janeiro: as Organizações Globo.

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As políticas punitivas espalham um discurso alarmista e catastrófico sobre a

insegurança, indispensável para a aceitação pela opinião pública das ações de controle e

extermínio da população pobre, mais especificamente do jovem negro (BATISTA,

2003). O “inimigo da pátria” que, na ditadura militar, nos anos 60 e 70, era tipificado na

figura do subversivo, do comunista, a partir do final da década de 80 e início da década

de 90, passou a ser o “traficante”, o “bandido”, o “vagabundo”, tipificado na figura do

jovem preto, pobre, favelado (COIMBRA, 2001).

Da mesma forma que se construíram perigosos “inimigos da Pátria” nos anos 60 e 70, em nosso país – e em muitos momentos da história da humanidade, foram sendo concebidos por diferentes equipamentos sociais os perniciosos, os indesejáveis (...), também hoje, principalmente via meios de comunicação de massa, estão sendo produzidos “novos inimigos internos do regime”: os segmentos mais pauperizados; todos aqueles que os “mantenedores da ordem” consideram “suspeitos” e que devem, portanto, ser evitados e, mesmo, eliminados. Para esses “enfermos”- vistos como perigosos e ameaçadores – são produzidas “identidades” cujas formas de sentir, viver e agir se tornam homogêneas e desqualificadas. São crianças e adolescentes já na marginalidade ou que poderão – porque pobres – ser atraídos para tal condição que devem ser exterminados. A modernidade exige cidades limpas, assépticas, onde a miséria – já que não pode mais ser escondida e/ou administrada – deve ser eliminada. Eliminação não pela sua superação, mas pelo extermínio daqueles que a expõem incomodando os “olhos, ouvidos e narizes” das classes mais abastadas. (COIMBRA, 2001, p.57)

A construção desse novo inimigo está diretamente associada à fabricação de uma

crise na segurança pública, um momento de forte tensão e conjuntura de pânico,

produzido em resposta a violentos acontecimentos que ocorreram no começo da década

de 1990, no Rio de Janeiro.

O primeiro deles, que ocorreu em 18 de outubro de 1992, foi apelidado de

“Arrastão da Benedita” devido à conjuntura política do momento. Jovens das favelas de

Vigário Geral e Parada de Lucas, controladas por facções criminosas diferentes

(Comando Vermelho e Terceiro Comando, respectivamente) se encontraram na praia do

Arpoador, na zona sul do Rio de Janeiro, e começaram uma briga que culminou em

corre-corre, roubos, pânico e histeria.

Vejamos como foi noticiado na capa de O Globo: “O corre-corre de pivetes e

ladrões adultos se estendeu à praia de Copacabana e às ruas próximas da orla.” (O

Globo, 19/10/1992, capa).

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Arrastões levam terror às praias (O Globo, 19/10/1992, capa).

Foram muitas e seguidas as matérias em diversos jornais sobre o arrastão e sobre

as medidas que deveriam ser tomadas pelo Estado para controlar e evitar o caos na

cidade. Com essa produção midiática, a prefeitura criou um “plano anti-arrastão” em

conjunto com a polícia e as empresas de ônibus, impondo uma série de medidas, entre

elas: a vigilância de ônibus e a montagem de barreiras nos túneis, nas estações de trem e

nos pontos de ônibus; a circulação dos ônibus com a lotação legalmente autorizada para

passageiros sentados e em pé; a exigência que os cidadãos da Zona Norte só poderiam

passar para a Zona Sul se tivessem camisa para vestir, dinheiro para pagar o ônibus e

documentos para se identificar, e também, o aumento do valor das passagens para o

sábado e o domingo.

Essa ação isolou a Zona Sul e sitiou os pobres, especialmente os pretos e os

mestiços, acomodando a imagem da cidade partida como definidora da experiência

urbana no Rio de Janeiro, cristalizada com a publicação do livro Cidade Partida, de

Zuenir Ventura, em 1994. Desde então, muitos autores têm defendido essa visão

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conceitual, alimentando e restituindo teoricamente o contraponto da favela e do asfalto

como lugares da civilização e da barbárie.

Em virtude da ação esmagadora das forças de influência e da determinação de um

ideal de sociabilidade, certos grupos encontram-se diretamente ligados a processos de

contenção e silenciamento. No caso das favelas, através da criação de um território

determinado, onde se constroem práticas de contenção e controle, um afastamento, a

manutenção de uma distância não só física, mas também subjetiva.

Desta forma, fica “afastado” da sociedade tudo aquilo que pode significar um mal

ou uma ameaça. Limpa-se da família e do corpo social tudo o que pode contrariar os

interesses de uma elite social e economicamente privilegiada. Sobre isso há uma vasta

bibliografia que mostra a forte presença da favela no imaginário da cidade como a

antítese do ideal de civilização. Como descreve Burgos (2009, p. 59):

O conceito de segregação aqui empregado refere-se à distância social existente entre áreas urbanas, que se distinguem não apenas pelas diferenças objetivas entre seus moradores, mas por aquilo que Bourdieu chamou de “efeitos do lugar”, quando os espaços da cidade podem produzir importantes assimetrias políticas, fortes identidades/rivalidades locais, preconceitos e ressentimentos mútuos, e até mesmo estigmas (Bourdieu, 1997). No caso do Rio de Janeiro, a favela, embora não seja a única, é a forma espacial mais notoriamente marcada pelo efeito da segregação urbana.

Esta premissa da cultura da violência na favela produz uma imagem negativa do

seu morador. Ou seja, a ideia de que a sociabilidade da favela, fortalecida pela presença

do tráfico, produziria efeitos negativos sobre os seus moradores, caracterizando-os

como agressivos, inquietos, bárbaros e perigosos, parte do preconceito de que o

morador da favela, por natureza (subjetiva, social, cultural, genética ou qualquer outra

explicação), é bandido ou um potencial bandido. É o que diversos autores têm apontado

como um processo de criminalização da pobreza.

Este “outro”, habitante dos espaços pobres segregados, é visto como ameaçador e é sujeito a toda uma espécie de preconceitos, discriminação, estigmas e violência física, que o transforma em um outro sempre suspeito, para o qual o remédio usualmente pensado é o maior incremento nas políticas punitivas de segurança e a possibilidade de encarceramento para que o “nosso” possa seguir vivendo sua esquizofrenia social. (PAIVA, 2009, p. 25)

É importante também marcarmos outros acontecimentos, que ocorreram nesse

período, foram eles: a chacina da Candelária, que ocorreu na madrugada do dia 23 de

julho de 1993, onde um grupo de extermínio formado por policiais executou oito

pessoas, sendo seis menores de idade.

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Policiais são suspeitos de matar menores na Candelária (O Globo, 24/07/1993, capa).

E a chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993, quando os policiais

invadiram a favela, encapuzados e executaram, à queima roupa, 20 trabalhadores e uma

estudante, oito deles da mesma família.

PMS são acusados de nova Chacina. Vingança teria motivado massacre de 21 favelados em

Vigário Geral (O Globo, 31/08/1993, capa).

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Observamos, nas reportagens de O Globo, a emergência forte do discurso da

favela como o espaço da criminalidade maximizada e do morador de favelas, em

especial o jovem pobre e preto do Rio de Janeiro, como perigoso, produzido como

“inimigo” e assim sendo, passível de ser exterminado.

Foucault demonstra como ocorreu a transformação nos mecanismos, técnicas e

tecnologias de poder, nos séculos XVII e XVIII com o domínio do poder disciplinar e a

partir da segunda metade do séc. XVIII, de uma biopolítica da espécie humana ou,

simplesmente, biopoder. Essa nova tecnologia de poder visa garantir a existência e

regular a vida da espécie humana e se exerce mediante intervenções e controles sobre as

populações. Temos, então, dois conjuntos de mecanismos, que não se excluem e se

articulam: um disciplinar (o corpo – organismo – disciplina – instituições); e o outro,

regulador (população – processos biológicos – mecanismos reguladores – Estado).

Temos portanto, desde o século XVIII (ou em todo caso desde o fim do século XVIII), duas tecnologias de poder que são introduzidas com certa defasagem cronológica e que são sobrepostas. Uma técnica que é, pois, disciplinar: é centrada no corpo, produz efeitos individualizantes, manipula o corpo como foco de forças que é preciso tornar úteis e dóceis ao mesmo tempo. E, de outro lado, temos uma tecnologia que, por sua vez, é centrada não o corpo, mas na vida; uma tecnologia que agrupa os efeitos de massas próprios de uma população, que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a probabilidade desses eventos, em todo caso em compensar seus efeitos. (FOUCAULT, 1999, p. 297)

O novo direito que se instala, na biopolítica, é o direito de fazer viver e de deixar

morrer. Isso posto, a partir do conceito de biopoder e de regulação em Foucault, as

práticas de extermínio das populações pobres podem ser entendidas como uma

tecnologia de poder, um mecanismo de regulação do biopoder. Mas como é possível

para um poder político matar? Como esse poder que tem, essencialmente, o objetivo de

fazer viver pode deixar morrer, dar ordem de matar e expor à morte? Foucault responde

a isso dizendo: por meio do racismo. É ele que permite uma relação entre a minha vida e

a do outro. A relação é: “quanto mais você matar, mais você fará morrer, ou quanto

mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá.” (Ibid., p. 305)

O Estado, no domínio do biopoder, inseriu o racismo como mecanismo

fundamental do poder e o recriou como racismo de Estado, como uma fronteira entre o

que deve viver e o que deve morrer.

Com efeito, o que é racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o

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aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrario como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, um grupo em relação aos outros. ((Ibid., p. 304)

A mídia se apropria do “calor do momento” e produz espetáculos que influenciam

diretamente na produção de subjetividades (GUATTARI; ROLNIK, 1986), no debate

público e na aprovação das leis. Um acontecimento, que tomamos aqui como disparador

de análise, foi o caso do assassinato do menino João Hélio, tão divulgado na mídia, em

2007, e que influenciou diretamente no debate acerca do controle, penalização e

criminalização do jovem pobre. Na manchete lemos: “Barbárie contra a infância. Morte

de menino de seis anos arrastado em carro roubado por bandidos causa comoção e

revolta.” (O Globo, 09/02/2007, capa.)

Segundo o jornal, a tragédia provocou um recorde de comentários de internautas.

Em 12 horas, mais de 2500 mensagens foram enviadas ao jornal O Globo Online, a

maioria delas pedindo rigor aos responsáveis pelo crime e questionando a maioridade

penal.O que vão dizer os nossos senhores da justiça e da legislação (...)? O que dizer de uma legislação que protege criminosos cruéis menores de idade (...)? (O Globo, 09/02/2007, p. 11)Pensem bem: essa mãe, por cumprir a lei (...), foi massacrada. Espero que agora a lei exista para ser modificada (...). As nossas leis são do tempo que os bandidos roubavam mariola (O Globo, 09/02/2007, p. 11).Esses seres abomináveis ainda terão direito a banho de sol, futebol e visitas íntimas, isso se ficarem presos, não fugindo depois. Precisamos colocar esses bandidos trabalhando de 6h às 17h (...) (O Globo, 09/02/2007, p.12).Senhores senadores, senhores deputados, dêem instrumentos aos nossos juízes para que possam ser mais severos. Precisamos de uma revisão constitucional (...) (O Globo, 10/02/2007, p.16).Só há uma saída para as barbaridades que assolam o Rio. Pena de morte. Para Bárbaros, só com penalidade máxima. Foi pego num flagrante ou mesmo confessou um crime bárbaro como este, pena de morte (O Globo, 09/02/2007, p. 12).Mudanças no judiciário já! Redução de maioridade já! Mesmo que estes monstros tivessem 10 anos. Pena de morte! (...) Direitos humanos existem apenas para proteger a marginalidade (O Globo, 10/02/2007, p.16).

A manchete na página interna do jornal também reforçou o discurso da

impunidade, no que se refere ao tratamento diferenciado dado aos menores de 18 anos,

previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990).

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PMS exibem três presos no Morro São José da Pedra: o menor (à esquerda), o homem que foi liberado na delegacia e Diego (à direita) (O Globo, 09/02/2007, p.15).

Menor acusado deve ficar detido só por 3 anos. O outro bandido, que tem 18 anos e confessou o crime, pode ser condenado à pena de 20 a 30 anos de prisão. Eles responderão por latrocínio (roubo seguido de morte). A pena de Diego varia entre 20 e 30 anos. O menor, no entanto, só poderá ficar detido por no máximo três anos, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o que reforça a sensação de impunidade nas pessoas que ficaram horrorizadas com o crime (O Globo, 09/02/2007, p.15).

A comoção despertada na sociedade pela brutalidade e pela divulgação massiva

do caso reabriu o debate sobre a diminuição da maioridade penal. No dia seguinte, O

Globo publicou as declarações do Governador Sérgio Cabral, do Presidente Lula e do

Supremo Tribunal Federal: “Martírio de criança reabre debate sobre Leis mais duras.

Cabral defende rediscussão da idade penal; Lula, CNBB e STF são contra.” (O Globo,

10/02/2007, capa)

Uma outra imagem forte foi a carta da irmã do João Hélio, publicada na capa do

jornal. Nessa carta, com letra de criança, ela chama o adolescente que participou do

assassinato do irmão de monstro cruel e clama para que ele seja julgado como maior de

idade.

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Agora é muito ele fácil pra ele ser tratado como uma criança quando na verdade ele já foi um

monstro cruel e sem coração (O Globo, 12/02/2007, capa).

Girando em torno deste caso, as reportagens de O Globo seguiram, quase que

diariamente, apontando para o clamor público, por penas mais duras e mudanças na

legislação. No discurso dos jornais, observamos críticas ao Estatuto da Criança e do

Adolescente, que prevê a socioeducação, no lugar da pena. Segundo o jornal, o sistema

é falho.“Faltam 3,4 mil vagas para deter menores infratores” (O Globo, 09/02/2007,

capa). E é muito caro. “Menor infrator custa 28 vezes mais que aluno” (O Globo,

23/02/2007, capa).

Assim, as notícias reforçam o clamor por repressão, controle e punição. Não

foram propostas, nas reportagens, alternativas para socializar, educar ou transformar

esses jovens, para modificar um sistema apontado pelo jornal como falho. Percebemos o

preconceito de que eles são irrecuperáveis e, por isso, é preciso evitar que eles venham a

cometer crimes novamente. Assim, a redução da maioridade penal e a condenação dos

jovens de 16, 14 e até 12 anos são apresentadas como alternativas de tirar do convívio

da sociedade esses “monstros cruéis e sem coração”, servindo de exemplo para os

futuros potenciais criminosos.

Lula aprova presídios para jovens. (O Globo, 09/02/2007, capa)Governadores pedem mais tempo de prisão para menor. (O Globo, 09/02/2007, capa)Adulto que usar menor em crime terá punição maior. (O Globo, 09/02/2007, capa)

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Não dá para punir menor sem punir governantes. (O Globo, 09/02/2007, capa)Família de João critica declarações de Lula. (O Globo, 09/02/2007, capa)Cabral intervém em área do menor infrator. (O Globo, 17/03/2007, capa)Menor que matou João Hélio irá a regime fechado. (O Globo, 23/03/2007, capa)Redução da idade penal passa no primeiro teste do Congresso. (O Globo, 27/04/2007, capa)Governo se mobiliza para tentar impedir redução da idade penal. (O Globo, 28/04/2007, capa)

Ao produzir o “novo inimigo”, tipificado na figura dos jovens pretos e pobres

moradores de favelas, estes passam a ser estigmatizados maciçamente como os

principais vetores da violência urbana e de uma pandemia de infrações menores, que

reiteram o caos coletivo.

Graças à tenaz distorção de crime, pobreza e imigração veiculada pela mídia, bem como à constante confusão entre insegurança e “sentimento de insegurança” – feita sob medida para canalizar para a figura do delinquente de rua (de pele escura) a ansiedade difusa causada pelo deslocamento dos assalariados, [...] – estas políticas são objeto não apenas de um consenso político sem precedentes, mas também desfrutam de um amplo apoio público que atravessa as fronteiras de classe. (WACQUANT, 2007, p. 28)

Cristina Rauter (2003), lançando mão da compreensão de Foucault sobre a

produtividade do poder, nos mostra que os discursos médicos e psiquiátricos

influenciam diretamente na produção da noção de periculosidade. Segundo ela:

Podemos compreender os saberes enquanto partes de estratégias de poder. Neste sentido, as ciências humanas (psicologia, psiquiatria, criminologia e outras) surgem historicamente como ponto de apoio para novas técnicas de gestão das massas humanas, capazes de controlá-las, fixá-las e de produzir indivíduos úteis do ponto de vista da produção e dóceis do ponto de vista político. (RAUTER, 2003, p. 15)

Segundo a autora, os juristas brasileiros incorporaram a noção de periculosidade

ao Código Penal de 1940, influenciados diretamente pela tese do médico Cesare

Lombroso (1835- 1909), de que a anormalidade do criminoso se expressa em

características físicas e pela tese do criminologista Enrico Ferri (1856 – 1929), de que o

criminoso é um anormal moral e de que o crime é um sintoma dessa anormalidade,

transmitida hereditariamente e proveniente de uma classe inferior. Um fracasso

evolutivo, “uma anormalidade no terreno da degeneração, das raças e do

temperamento.” (RAUTER, 2003, p. 37)

A criminalidade é vista, então, como decorrente de características morais, físicas e

mentais de um grupo de indivíduos, entre elas, a incapacidade ou indolência para o

trabalho. Nesse sentido, a pobreza é concebida como uma doença causadora do crime e

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não como fruto das desigualdades sociais. O combate ao crime, além de ser tratado

como questão médica, passa por uma interpretação racista e individualizada dos

criminosos, sem que a criminalidade seja contextualizada numa sociedade

profundamente desigual como a nossa.

Coimbra (2006, p. 2), em seu texto Direitos humanos e criminalização da

pobreza, mostra como:

[...] desde o final do século XIX, já se encontravam presentes nas elites brasileiras as subjetividades que constituem o dispositivo da periculosidade. (...) esse dispositivo vai afirmar que tão importante quanto o que um indivíduo fez, é o que ele poderá vir a fazer. É o controle das virtualidades; importante e eficaz instrumento de desqualificação e menorização que institui certas essências, certas identidades. Afirma-se, então, que dependendo de uma certa natureza (pobre, negro, semi-alfabetizado, morador de periferia, etc.) poder-se-á vir a cometer atos perigosos, poder-se-á entrar para o caminho da criminalidade.

Observamos que a criminalização do jovem pobre e preto traz a herança dessas

concepções – do discurso médico higiênico e do discurso racista. Um exemplo disso é a

fala do Governador Sérgio Cabral quando questionado sobre a legalização do aborto.

Ele afirma que é favorável ao aborto porque, segundo ele, as favelas, que ele compara a

Zâmbia e Gabão, países africanos extremamente pobres e desiguais, são fábricas de

produção de marginais.

Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito aflito. Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta (G1, 2014).

Observamos nas reportagens de O Globo, a reprodução do discurso da favela

como espaço da criminalidade maximizada e que o “inimigo” tem cor, gênero, idade,

endereço e classe social. É o morador de favelas, estigmatizado na figura do jovem

pobre e preto do Rio de Janeiro, considerado como perigoso, como marginal, colocando

em risco a sociedade do asfalto.

Considerados como “inimigos”, esses sujeitos precisam de medidas

disciplinadoras, punitivas e de controle social. Medidas que não diferem em sua

centralidade - atuar sobre o comportamento do indivíduo de forma a discipliná-lo,

corrigi-lo, transformá-lo, controlá-lo ou, até mesmo, exterminá-lo.

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Notas

1 –A polêmica sobre a forma correta de se classificar a população pela cor e raça (preto ou negro) ainda alimenta muitos debates. Ao longo de mais de 140 anos, foram feitas mudanças na nomenclatura oficial utilizada (Censo – IBGE), mas ainda não há consenso. Consideramos a classificação “negro” como uma identidade social, que leva em conta a identidade de um povo, muito mais que a cor da pele, uma visão política. E também levamos em conta que, quanto mais escura for a cor da pele, maior a discriminação. Aqui, optamos por usar o termo “preto” por ser a nomenclatura oficial, utilizada atualmente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

2 – O sufixo “ístico” é acrescentado a capitalista, por Guattari e Rolnik (1986), pois se refere a todas as sociedades que vivem numa dependência ou contra dependência do capitalismo, sociedades onde predomina a lógica do capital. Tais sociedades não se diferem do ponto de vista da produção de subjetividade.

Referências

BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13/07/1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Disponível em: << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>> Acesso em: 06/10/2014.

BURGOS, M. B. Escola e projetos sociais: uma análise do “efeito-favela”. In: PAIVA, A. R. e BURGOS, M. B. (orgs). A escola e a favela. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Ed. Pallas, 2009, p. 59–131.

COIMBRA, C. Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública. Rio de Janeiro: Oficina do Autor; Niterói: Intertexto, 2001.

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